Prosa - Academia Brasileira de Letras
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Da latinida<strong>de</strong> à lusofonia<br />
este apanágio, veículo dos encantadores discursos <strong>de</strong> Cícero, da heroicida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>scrita por Virgílio, dos tons plangentes <strong>de</strong> um Horácio ou das Liras amorosas<br />
<strong>de</strong> um Catulo, o latim era um mo<strong>de</strong>sto veículo do conteúdo <strong>de</strong> pensamento<br />
<strong>de</strong> humil<strong>de</strong>s pastores, condição refletida no seu vocabulário ligado à terra e à<br />
fertilida<strong>de</strong> do solo. Marouzeau, latinista francês dos melhores, nos apresenta<br />
vários exemplos disto: arbor felix (‘árvore feliz’) é aquela que produz frutos; a<br />
honestida<strong>de</strong> do homem se chama homo frugi (‘<strong>de</strong> boa produção’) passando ao<br />
significado moral <strong>de</strong> probida<strong>de</strong>; ou então é comparado ao animal <strong>de</strong> bom preço<br />
que se <strong>de</strong>staca do rebanho: homo egregius; a <strong>de</strong>cadência do homem é comparada<br />
ao fruto que cai: homo caducus (<strong>de</strong> ca<strong>de</strong>re ‘cair’); ao ato <strong>de</strong> enganar-se dizia-se<br />
<strong>de</strong>lirare, que significava originariamente sair do rego, do sulco que em latim se<br />
chamava lira (<strong>de</strong>lirare, que caiu fora da lira); ao que se <strong>de</strong>bate pelo direito ao<br />
mesmo canal <strong>de</strong> irrigação é o rivalis (= port. rival, <strong>de</strong>rivado do latim rivus, ‘rio’).<br />
Até palavras que servem à prática da vida literária têm origem rural; é o caso,<br />
por exemplo, <strong>de</strong> escrever, latim scribere, que significa ‘gravar’, ‘fazer uma incisão’;<br />
o ato <strong>de</strong> falar, o discurso, se dizia sermo,<strong>de</strong>serere ‘entrançar’; ler se dizia em<br />
latim legere, que significava ‘colher’.<br />
Mas às vezes a explicação exige análise mais profunda. É o caso <strong>de</strong> se dar<br />
como exemplo <strong>de</strong> palavra da língua comum <strong>de</strong> origem da ativida<strong>de</strong> rural o termo<br />
pecus ‘gado’, que dá o <strong>de</strong>rivado pecunia com o significado <strong>de</strong> ‘dinheiro’. É um<br />
dos exemplos <strong>de</strong> Marouzeau, que se vê repetido noutras ocasiões. Ora, Emilio<br />
Benveniste, um dos maiores lingüistas do século XX, mostrou à sacieda<strong>de</strong> que<br />
pecus significou originariamente ‘o conjunto da posse móvel privada, tanto homens<br />
quanto animais’, ‘riqueza móvel’, e que, só por especialização <strong>de</strong> significado,<br />
pecus passou a <strong>de</strong>signar o ‘gado’. Todos os autores da latinida<strong>de</strong> antiga e<br />
clássica não autorizam o estabelecimento <strong>de</strong> um elo entre pecunia e pecu ‘rebanho,<br />
gado’: pecunia significa sempre ‘fortuna, dinheiro’, numa prova evi<strong>de</strong>nte <strong>de</strong><br />
que o primitivo pecu significa ‘posse móvel’. O mesmo se há <strong>de</strong> dizer <strong>de</strong> peculium<br />
‘posse ou economia do escravo’, evi<strong>de</strong>nciando que o significado do primitivo<br />
pecu não se refere especialmente a ‘gado’. É, portanto, uma lição que <strong>de</strong>ve ser alterada<br />
nos manuais <strong>de</strong> semântica histórica.<br />
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