Prosa - Academia Brasileira de Letras
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Luiz Paulo Horta<br />
velho Israel: se você seguir na trilha da Justiça, será recompensado, e não numa<br />
vida futura, mas aqui, nesta terra, com a proteção <strong>de</strong> Deus. Assim os patriarcas<br />
da Bíblia receberão terras, rebanhos, concubinas.<br />
Mas o Livro <strong>de</strong> Jó abre um outro tipo <strong>de</strong> perspectiva, <strong>de</strong> discussão intelectual.<br />
Porque Jó era um justo, andava nos caminhos do Senhor, e tinha recebido<br />
todas aquelas recompensas que eu acabei <strong>de</strong> mencionar – inclusive muitos filhos,<br />
condição básica para a felicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um clã. Mas <strong>de</strong> repente, todas as <strong>de</strong>sgraças<br />
caem sobre a sua cabeça.<br />
O Livro <strong>de</strong> Jó é um livro tardio <strong>de</strong>ntro do cânone judaico. E não preten<strong>de</strong><br />
ser um livro <strong>de</strong> história. É antes um poema <strong>de</strong> conotações metafísicas, abordando<br />
esse mesmo problema que, quarenta anos atrás, quase levou o C. S. Lewis<br />
à loucura e à perda da fé. É costume datar esse poema <strong>de</strong> Jó em alguma coisa<br />
como o século III ou IV antes da era cristã – período quase que <strong>de</strong> fechamento<br />
do cânone judaico. Os gran<strong>de</strong>s dias <strong>de</strong> Israel tinham passado. A Palestina<br />
é dominada por uma série <strong>de</strong> impérios – talvez, naquele momento, pelos sucessores<br />
<strong>de</strong> Alexandre, alguns dos quais foram perseguidores do judaísmo.<br />
Então o livro correspon<strong>de</strong> àquela curva em que uma tradição abandona o tom<br />
épico para meditar sobre os nossos dramas subjetivos. E o drama <strong>de</strong> Jó tem<br />
uma importância crucial para a reflexão judaica. Porque ele parece contrapor-se<br />
ao Israel dos patriarcas. É uma história da miséria humana, <strong>de</strong> on<strong>de</strong><br />
Deus parece ter-se retirado totalmente.<br />
De um momento para o outro, Jó vai per<strong>de</strong>ndo todas as suas prerrogativas.<br />
O livro começa com um artifício literário em que o diabo discute com Deus, e<br />
diz, num tom <strong>de</strong> <strong>de</strong>safio, que Jó só se comporta bem porque teve todas as<br />
compensações materiais. Se esses bens terrenos sumirem – provoca o <strong>de</strong>mônio<br />
– Jó vai blasfemar como qualquer ser humano. E o Deus da Bíblia dá ao <strong>de</strong>mônio<br />
o direito <strong>de</strong> provocar Jó, atingindo-o em todos os seus bens, inclusive no<br />
físico, e na vida dos seus filhos.<br />
As tragédias se suce<strong>de</strong>m, e a mulher <strong>de</strong> Jó diz a ele que só lhe resta blasfemar<br />
contra o Senhor que o tratou tão mal. Mas Jó não quer blasfemar. Entra, então,<br />
o coro dos amigos, falando um <strong>de</strong> cada vez, e chamando Jó à racionalida-<br />
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