Prosa - Academia Brasileira de Letras
Prosa - Academia Brasileira de Letras
Prosa - Academia Brasileira de Letras
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
Fernando Cristóvão<br />
Se alguma coisa, aparentemente, se per<strong>de</strong> quanto ao tonus dramático final,<br />
muito se ganha quanto ao entendimento <strong>de</strong>ste confronto: é que o poeta fala<br />
em nome da condição humana, e não em seu nome pessoal. Aparentemente,<br />
porque o questionamento do “eu” é menor (será?), diluído no coro geral dos<br />
reclamantes.<br />
O poema assume, <strong>de</strong>ste modo, o papel tradicional romântico em que, membro<br />
do género humano, fala em nome do povo, como profeta ou como tribuno.<br />
É então neste espaço colectivo que as razões mais fortes do confronto surgem<br />
à luz do dia: Deus falhou na sua criação, pois o mundo está mal feito; a<br />
paixão, morte e ressurreição <strong>de</strong> Cristo redundaram em <strong>de</strong>sastre; os humanos<br />
são um fracasso ainda maior; Deus pouco ou nada se preocupa com o mundo.<br />
Assim o expressa, especialmente, no poema “IX – A natureza do mundo”:<br />
“E um mundo tão mal feito: / gelo num pólo, fogo no outro; / seca num canto,<br />
dilúvio no outro. / Sempre em <strong>de</strong>sequilíbrio e à beira do fim, que nunca<br />
chega. […] sempre a mesma cósmica rotina, há bilénios.”<br />
Ainda em maiores contradições, os humanos se interrogam: “E que viemos<br />
fazer aqui, / aqui, neste nicho do universo? […] Apenas testar tua criativida<strong>de</strong>?”,<br />
“uns poucos se acrisolam por uns imaginários paraísos / e uns tantos se<br />
pulverizam pelos infernos reais”. “Todos em guerra contra todos, sempre”<br />
(“VII – Da humana peripécia”).<br />
E assim se proce<strong>de</strong>, tanto na esfera social, económica e política, como na<br />
ética individual, simbolicamente evocada pelo poeta constatando a violação <strong>de</strong><br />
todos e cada um dos <strong>de</strong>z Mandamentos, para concluir: “fizemos tudo ao contrário:<br />
/ não amamos, senão a nós próprios; nem respeitamos, senão ao interesse”<br />
(“XXXIX – A inútil interdição”).<br />
Mais ainda, a própria vida parece absurda e trágica: “…somos / o único<br />
animal que nasce em dor / lúgubre castigo / ou lúcido prenúncio? […] solitários<br />
no Universo, / sem outra espécie a agredir como inimiga, / inventamos<br />
inimigos <strong>de</strong>ntro da própria espécie” (“VI – O trágico específico”); “Só isto, a<br />
vida humana: / um breve rastejar, entre o Big Bang e o Apocalipse” (“VIII – A<br />
dimensão da vida”).<br />
100