A tarefa do tradutor, de Walter Benjamin: - Fale
A tarefa do tradutor, de Walter Benjamin: - Fale
A tarefa do tradutor, de Walter Benjamin: - Fale
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
A <strong>tarefa</strong> <strong>do</strong> <strong>tradutor</strong> 1<br />
25<br />
Tradução <strong>de</strong> Fernan<strong>do</strong> Camacho<br />
Para o conhecimento <strong>de</strong> uma forma artística ou <strong>de</strong> uma obra<br />
<strong>de</strong> arte não se revela <strong>de</strong> maneira alguma frutífero tomar em<br />
consi<strong>de</strong>ração aqueles a quem ela se dirige! Assim é, não só<br />
porque qualquer relacionação com <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> público ou<br />
com os seus representantes significa um <strong>de</strong>svio<br />
<strong>de</strong>snecessário, 2 mas também porque o próprio conceito ou<br />
noção <strong>de</strong> um público “i<strong>de</strong>al” prejudica todas as discussões<br />
teóricas sobre a arte, pois estas <strong>de</strong>vem apenas aceitar e ter<br />
como pressuposto a existência e a essência <strong>do</strong> humano. A<br />
própria Arte também não pressupõe senão o ser humano na<br />
sua natureza espiritual e corporal, e nunca a atenção que esta<br />
dispensa às suas obras. Nenhum poema é váli<strong>do</strong> em função<br />
<strong>de</strong> quem o lê, nenhuma pintura se limita em termos <strong>do</strong> seu<br />
possível especta<strong>do</strong>r, nenhuma sinfonia se reduz àquilo que o<br />
seu auditório consegue ouvir. 3 Será que uma tradução seja<br />
válida em termos <strong>do</strong>s leitores que não enten<strong>de</strong>m a obra<br />
original? 4 Isso explicaria <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> suficiente e convincente a<br />
diferença <strong>de</strong> grau e categoria que separa no <strong>do</strong>mínio da Arte<br />
uma tradução e o texto original. Além disso, parece ser esta a<br />
única razão para se voltar a dizer “a mesma coisa”. 5 Que nos<br />
“diz” então uma poesia? Que comunica ela? Muito pouco<br />
àqueles que a compreen<strong>de</strong>m. O essencial nela não é a<br />
comunicação, 6 não é o <strong>de</strong>poimento. 7 Aquelas traduções que<br />
escolhem para si o papel <strong>de</strong> intermediário, que em nome<br />
<strong>do</strong>utro transmite ou comunica, não conseguem transmitir<br />
senão a comunicação, ou seja, o inessencial. E esta é uma<br />
das características por que se reconhece uma má tradução.<br />
Não será então aquilo que para além da comunicação existe<br />
numa poesia – e até o mau <strong>tradutor</strong> conce<strong>de</strong> que aqui se<br />
situa o essencial – o que geralmente se cognomina <strong>de</strong><br />
inapreensível, misterioso e “poético”? 8 Ou seja, aquilo que o<br />
<strong>tradutor</strong> só consegue transmitir na medida em que também<br />
ele escreva poesia? Chegamos com isto à segunda<br />
característica das más traduções e que po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong>finida<br />
como transmissão <strong>de</strong>ficiente e inexata dum conteú<strong>do</strong> nãoessencial.<br />
9 E assim continuará enquanto a tradução estiver<br />
comprometida a servir o leitor. A tradução só <strong>de</strong>ve ir ao<br />
encontro <strong>do</strong> leitor no caso <strong>de</strong> também assim acontecer com o<br />
original. Mas se não for essa a finalida<strong>de</strong> <strong>do</strong> original como se<br />
po<strong>de</strong>rá compreen<strong>de</strong>r que a tradução assuma uma tal<br />
prerrogativa?<br />
A tradução é em primeiro lugar uma forma. E concebê-la<br />
como tal significa antes <strong>de</strong> tu<strong>do</strong> o regresso ao original em que<br />
ao fim e ao cabo se encontra afinal a lei que <strong>de</strong>termina e<br />
contém a “traduzibilida<strong>de</strong>” da obra. Este problema da<br />
“traduzibilida<strong>de</strong>” <strong>de</strong> uma obra é susceptível <strong>de</strong> duas<br />
interpretações: com a primeira inquire-se a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
jamais se encontrar entre to<strong>do</strong>s os seus leitores um <strong>tradutor</strong><br />
acessível, pon<strong>do</strong> assim uma questão a que só po<strong>de</strong><br />
correspon<strong>de</strong>r uma resposta também problemática; com a<br />
segunda interpretação – aliás a mais pertinente e apropriada<br />
– pergunta-se se a natureza da obra permite uma tradução, 10<br />
ou, <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com o significa<strong>do</strong> <strong>de</strong>ssa forma, se até não exige<br />
e reclama, levantan<strong>do</strong>-se aqui um problema a que se <strong>de</strong>ve<br />
respon<strong>de</strong>r <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> claro e apodíctico.<br />
Evi<strong>de</strong>ntemente só um espírito superficial po<strong>de</strong>ria<br />
consi<strong>de</strong>rar idênticas estas duas interpretações, negan<strong>do</strong> com<br />
isso o significa<strong>do</strong> <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte e autônomo <strong>de</strong> que se reveste o<br />
último problema aqui apresenta<strong>do</strong>. Aponte-se <strong>de</strong>s<strong>de</strong> já que<br />
certos conceitos <strong>de</strong> relação preservam o seu bom senti<strong>do</strong><br />
(<strong>de</strong>veríamos talvez dizer o seu melhor senti<strong>do</strong>) quan<strong>do</strong> não se<br />
começa logo <strong>de</strong> antemão a referi-las exclusivamente a<br />
pessoas. 11 Po<strong>de</strong>mos mesmo falar <strong>de</strong> uma vida ou momento<br />
inesquecível também quan<strong>do</strong> já toda a gente os tenha<br />
esqueci<strong>do</strong>, pois, caso a sua natureza exija que não sejam<br />
esqueci<strong>do</strong>s, esse predica<strong>do</strong> não se torna falso pelo fato <strong>de</strong><br />
constituir uma exigência a que os homens não se po<strong>de</strong>m<br />
26