A tarefa do tradutor, de Walter Benjamin: - Fale
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ela for reconhecida em tu<strong>do</strong> aquilo <strong>de</strong> que existe uma história,<br />
e que não seja apenas seu cenário. Pois em última análise o<br />
âmbito da vida é <strong>de</strong>terminável a partir da história e não da<br />
natureza, e muito menos <strong>de</strong> uma natureza tão instável como<br />
a sensação e a alma. Daí que a <strong>tarefa</strong> <strong>do</strong> filósofo seja a <strong>de</strong><br />
compreen<strong>de</strong>r toda a vida natural a partir <strong>de</strong>ssa outra, mais<br />
vasta, que é a da história. E não é a sobre-vida das obras<br />
incomparavelmente mais fácil <strong>de</strong> reconhecer <strong>do</strong> que a das<br />
criaturas? A história das gran<strong>de</strong>s obras <strong>de</strong> arte conhece a sua<br />
<strong>de</strong>scendência das fontes, a sua configuração estética na época<br />
<strong>do</strong> artista e o perío<strong>do</strong> da sua sobre-vida, por princípio eterna,<br />
nas gerações subsequentes. A essa vida póstuma, sempre<br />
que vem à luz <strong>do</strong> dia, chama-se fama. As traduções que são<br />
mais <strong>do</strong> que meios <strong>de</strong> transmissão <strong>de</strong> conteú<strong>do</strong>s nascem<br />
quan<strong>do</strong>, na sobre-vida <strong>de</strong> uma obra, esta atinge o seu perío<strong>do</strong><br />
áureo. Por isso, elas não servem apenas a obra, como os<br />
maus <strong>tradutor</strong>es costumam reclamar para o seu trabalho,<br />
mas <strong>de</strong>vem-lhe antes a sua própria existência. Nelas, a vida<br />
<strong>do</strong> original alcança o seu <strong>de</strong>senvolvimento último, mais amplo<br />
e sempre renova<strong>do</strong>.<br />
Este <strong>de</strong>senvolvimento, próprio <strong>de</strong> uma vida singular e<br />
elevada, é <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> por uma finalida<strong>de</strong> singular e elevada.<br />
Vida e finalida<strong>de</strong> – a sua conexão, aparentemente evi<strong>de</strong>nte e<br />
no entanto quase se furtan<strong>do</strong> ao conhecimento, manifesta-se<br />
apenas quan<strong>do</strong> aquele fim para o qual trabalham todas as<br />
finalida<strong>de</strong>s particulares da vida for procura<strong>do</strong>, não na esfera<br />
que é própria à vida, mas numa outra, mais elevada. Todas<br />
as manifestações <strong>de</strong> vida com uma finalida<strong>de</strong>, tal como a sua<br />
finalida<strong>de</strong> em geral, são em última análise a<strong>de</strong>quadas aos<br />
seus fins, não em função da vida, mas em função da<br />
expressão da sua essência, da representação da sua<br />
significação. Assim, a tradução tem por finalida<strong>de</strong> dar<br />
expressão à relação mais íntima das línguas umas com as<br />
outras. Ela própria não tem possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> revelar ou <strong>de</strong><br />
produzir essa relação oculta; mas po<strong>de</strong>, isso sim, representá-<br />
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la, levan<strong>do</strong>-a à prática <strong>de</strong> forma embrionária e intensiva. Ora,<br />
esta representação <strong>de</strong> uma realida<strong>de</strong> significada por meio <strong>de</strong><br />
uma tentativa embrionária <strong>de</strong> a produzir constitui um mo<strong>do</strong><br />
<strong>de</strong> representação extremamente original, praticamente<br />
impossível <strong>de</strong> encontrar no <strong>do</strong>mínio da vida não linguística.<br />
Esta conhece, <strong>de</strong> facto, outros tipos <strong>de</strong> referenciação,<br />
analógicos e sígnicos, diferentes da actualização in-tensiva,<br />
isto é, antecipatória e alusiva. – Mas aquela relação muito<br />
íntima entre as línguas, em que estamos a pensar, é a <strong>de</strong><br />
uma convergência original, que consiste em as línguas não<br />
serem estranhas umas às outras, mas sim, a priori e sem<br />
pensar agora em todas as relações históricas, aparentadas<br />
umas com as outras naquilo que querem dizer.<br />
Com esta tentativa <strong>de</strong> explicação, porém, a nossa<br />
reflexão parece ir <strong>de</strong>saguar <strong>de</strong> novo na teoria tradicional da<br />
tradução, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> se ter meti<strong>do</strong> por <strong>de</strong>svios sem finalida<strong>de</strong>.<br />
Se aquilo que tem <strong>de</strong> afirmar-se na tradução é o parentesco<br />
entre as línguas, como po<strong>de</strong>ria ela fazê-lo a não ser através<br />
da transmissão, o mais exacta possível, da forma e <strong>do</strong> senti<strong>do</strong><br />
<strong>do</strong> original? É certo que aquela teoria não saberia como dizer<br />
em que consiste esta exactidão, não estaria, pois, em<br />
condições <strong>de</strong> dar conta <strong>do</strong> que é essencial numa tradução. E<br />
no entanto uma tradução é um testemunho muito mais<br />
profun<strong>do</strong> e exacto daquele parentesco entre as línguas <strong>do</strong> que<br />
a semelhança superficial e in<strong>de</strong>finível entre duas obras<br />
literárias. Para apreen<strong>de</strong>r a autêntica relação entre original e<br />
tradução teremos <strong>de</strong> encetar uma reflexão cujo propósito é<br />
em tu<strong>do</strong> análogo à argumentação pela qual a crítica <strong>do</strong><br />
conhecimento <strong>de</strong>monstra a impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma teoria da<br />
imitação. Nesta, mostra-se que no processo <strong>de</strong> conhecimento<br />
não po<strong>de</strong>ria haver objectivida<strong>de</strong>, nem sequer a pretensão<br />
disso, se ele consistisse em captar cópias <strong>do</strong> real; <strong>do</strong> mesmo<br />
mo<strong>do</strong> po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>monstrar que nenhuma tradução seria<br />
possível se a sua aspiração, a sua essência última, fosse a da<br />
semelhança com o original. Pois o original transforma-se ao<br />
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