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A tarefa do tradutor, de Walter Benjamin: - Fale

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tu<strong>do</strong> que prece<strong>de</strong>. Fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> e liberda<strong>de</strong> – liberda<strong>de</strong> da<br />

reprodução <strong>do</strong> senti<strong>do</strong> e, para seu alcance, fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> à<br />

palavra – são os velhos conceitos emprega<strong>do</strong>s nas discussões<br />

sobre as traduções. Uma teoria que busca na tradução só a<br />

reprodução <strong>do</strong> senti<strong>do</strong>, não mais parece ser <strong>de</strong> valia. É<br />

verda<strong>de</strong> que seu emprego tradicional sempre toma esses<br />

conceitos como uma antinomia insolúvel. Pois a que po<strong>de</strong><br />

propriamente conduzir a fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> à repetição <strong>do</strong> senti<strong>do</strong>?<br />

Fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong>, na tradução, <strong>de</strong> cada palavra, não assegura que se<br />

reproduza o pleno senti<strong>do</strong> que ela tem no original. Pois este<br />

não se esgota em sua significação poética conforme o original,<br />

mas a adquire pela forma como o significa<strong>do</strong> se une ao mo<strong>do</strong><br />

<strong>de</strong> significar a palavra em questão. Costuma-se exprimi-lo<br />

pela forma segun<strong>do</strong> a qual as palavras trazem consigo uma<br />

tonalida<strong>de</strong> afetiva. A literalida<strong>de</strong> sintática po<strong>de</strong> reverter<br />

inteiramente a restituição <strong>do</strong> senti<strong>do</strong> e conduzi-la diretamente<br />

ao nonsense. As traduções <strong>de</strong> Sófocles por Höl<strong>de</strong>rlin<br />

apresentaram, no século XIX, exemplos monstruosos <strong>de</strong> tal<br />

literalida<strong>de</strong>. Não é dificil perceber-se, afinal, como a fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong><br />

na restituição da forma torna difícil a restituição <strong>do</strong> senti<strong>do</strong>.<br />

Em conseqüência, a exigência <strong>de</strong> literalida<strong>de</strong> é in<strong>de</strong>dutível <strong>do</strong><br />

interesse na conservação <strong>do</strong> senti<strong>do</strong>. Esta é beneficiada – mas<br />

não a criação literária, nem a língua – pela indisciplinada<br />

liberda<strong>de</strong> <strong>do</strong>s maus <strong>tradutor</strong>es. Em conseqüência, tal<br />

exigência, cujo direito é evi<strong>de</strong>nte mas cuja justificação<br />

permanece misteriosa, há <strong>de</strong> ser entendida a partir <strong>de</strong><br />

correlações mais pertinentes. Como os cacos <strong>de</strong> uma ânfora,<br />

para que, nos mínimos <strong>de</strong>talhes, se possam recompor, mas<br />

nem por isso se assemelhar, assim também a tradução, ao<br />

invés <strong>de</strong> se fazer semelhante ao senti<strong>do</strong> <strong>do</strong> original, <strong>de</strong>ve, em<br />

um movimento amoroso que chega ao nível <strong>do</strong> <strong>de</strong>talhe, fazer<br />

passar em sua própria língua o mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> significar <strong>do</strong> original.<br />

Do mesmo mo<strong>do</strong> que os cacos tornam-se reconhecíveis como<br />

fragmentos <strong>de</strong> uma mesma ânfora, assim também original e<br />

traduções tornam-se reconhecíveis como fragmentos <strong>de</strong> uma<br />

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linguagem maior. Mesmo por isso a tradução <strong>de</strong>ve, em alta<br />

medida, renunciar ao intento <strong>de</strong> comunicar algo; o original lhe<br />

é essencial só na medida em que liberou o <strong>tradutor</strong> e a sua<br />

obra <strong>do</strong> esforço e da or<strong>de</strong>m da comunicação. Também no<br />

<strong>do</strong>mínio da tradução é <strong>de</strong> regra: εν αρχη ην ο λογος, no<br />

princípio era o verbo. Diante <strong>do</strong> senti<strong>do</strong>, a língua <strong>do</strong> <strong>tradutor</strong><br />

<strong>de</strong>ve agir livremente, não para que faça ressoar a sua intentio<br />

como reprodução, mas sim como harmonia, como suplemento<br />

à língua em que se comunica <strong>de</strong> seu próprio mo<strong>do</strong> a intentio.<br />

É por isso que, sobretu<strong>do</strong> na época em que a tradução<br />

aparece, o maior elogio que se lhe po<strong>de</strong> fazer não é que ela<br />

se leia como uma obra original <strong>de</strong> sua própria língua. Ao<br />

invés, o valor da fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong>, garantida pela literalida<strong>de</strong>,<br />

consiste em que na obra se exprima a gran<strong>de</strong> aspiração à<br />

suplementação da língua. A verda<strong>de</strong>ira tradução é<br />

transparente, não escon<strong>de</strong> o original, não o ofusca, mas faz<br />

com que caia tanto mais plenamente sobre o original, como<br />

se forçada por seu próprio meio, a língua pura.<br />

Isso se obtém sobretu<strong>do</strong> pela literalida<strong>de</strong> na<br />

transposição (Übertragung) da sintaxe, o que mostra com<br />

precisão que é a palavra, e não a frase, o elemento originário<br />

<strong>do</strong> <strong>tradutor</strong>. Pois a frase é o muro diante da língua <strong>do</strong> original,<br />

a literalida<strong>de</strong> a arcada.<br />

Se até o presente, fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> e liberda<strong>de</strong> na tradução<br />

têm si<strong>do</strong> tomadas por tendências opostas, parece que esta<br />

exegese mais profunda da primeira, longe <strong>de</strong> reconciliá-las,<br />

priva, ao contrário, a segunda <strong>de</strong> qualquer direito. Pois a que<br />

<strong>de</strong> fato se refere a liberda<strong>de</strong> senão à reprodução <strong>do</strong> senti<strong>do</strong><br />

que, segun<strong>do</strong> esta interpretação, <strong>de</strong>ve <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> ser<br />

normativa? Mas, se é preciso tomar como idênticos o senti<strong>do</strong><br />

<strong>de</strong> uma obra <strong>de</strong> linguagem e sua comunicação, continua<br />

existin<strong>do</strong>, próximo <strong>de</strong>le e, entretanto, infinitamente distante,<br />

escondi<strong>do</strong> sob ele ou mais exposto, fratura<strong>do</strong> por ele ou se<br />

impon<strong>do</strong> com mais força ainda, para além <strong>de</strong> toda<br />

comunicação, um elemento último e <strong>de</strong>cisivo. Em todas as<br />

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