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Leituras de nós – ciberespaço e literatura. Alckmar - Itaú Cultural

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unilateral <strong>de</strong> uma Gran<strong>de</strong> Razão travestida <strong>de</strong> dogma ou <strong>de</strong> preconceito, mas como uma retomada<br />

constante e provisória <strong>de</strong> uma racionalida<strong>de</strong> vivida corporalmente. Trata-se, em suma, <strong>de</strong> uma racionalida<strong>de</strong><br />

em movimento, capaz <strong>de</strong> estabelecer conexões insuspeitas entre hipóteses e <strong>de</strong>duções, ao ponto <strong>de</strong> umas<br />

não mais se distinguirem facilmente das outras, como uma curva <strong>de</strong> Moebius retórica e argumentativa em<br />

que interior/anterior e exterior/posterior colocam-se no mesmo plano. Trata-se, enfim, <strong>de</strong> uma<br />

racionalida<strong>de</strong> não mais <strong>de</strong>bitada à conta <strong>de</strong> um eu puro pretensamente encarregado <strong>de</strong> pôr uma or<strong>de</strong>m<br />

transcen<strong>de</strong>ntal na poeira <strong>de</strong> fatos, palavras e gestos com que habitamos nosso dia-a-dia.<br />

E, no ciberespaço, a arquitetura conectivista pela qual ele se cristaliza e se dá à navegação talvez seja um<br />

dos primeiros elementos dignos <strong>de</strong> nota. Essa proprieda<strong>de</strong>, que po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong>scrita como a característica que<br />

nos permite partir <strong>de</strong> qualquer nó e chegar a qualquer outro, acarreta duas conseqüências. A primeira <strong>de</strong>las<br />

é a ilusão (e insisto nessa palavra, ilusão) <strong>de</strong> que todos os nós seriam, então, equivalentes, ou mesmo<br />

homogêneos. Com isso, qualquer significação, no ciberespaço, seria <strong>de</strong>finitivamente <strong>de</strong>scartada, uma vez<br />

que só se chega a algum significado quando um sistema significante se torna capaz <strong>de</strong> opor diferenças<br />

relativas (e nunca absolutas) num horizonte <strong>de</strong> sentidos possíveis (esse, sim, o único absoluto em todo esse<br />

esquema). Opor nós intrinsecamente homogêneos seria, então, o mesmo que dizer que o ciberespaço leva,<br />

afinal <strong>de</strong> contas, a uma indistinção absoluta (e parece ser esse temor que está por trás das críticas <strong>de</strong><br />

Baudrillard). A segunda conseqüência <strong>de</strong>ssa arquitetura conectivista está em outra ilusão: a <strong>de</strong> que, ao<br />

contrário da homogeneida<strong>de</strong> a-significante (já <strong>de</strong>scrita), o ciberespaço nos levaria a um saber total,<br />

completo, todo-po<strong>de</strong>roso, talvez até mesmo infinito, a um conhecimento que seria a realização <strong>de</strong> todos os<br />

otimismos tecnológicos dos dois últimos séculos. De fato, cria-se a impressão <strong>de</strong> que a extensão ilimitada e<br />

a varieda<strong>de</strong> das leituras beiram o infinito e arrastam consigo as potencialida<strong>de</strong>s do pensamento. Não mais<br />

um pensamento produto do espírito humano, mas pensamentos provenientes <strong>de</strong> próteses maquínicas que<br />

dariam origem a uma nova união substancial – não mais aquele corpo-e-alma proposto por Descartes, mas<br />

um corpo-e-máquina (que faz o horror <strong>de</strong> Paul Virilio e as <strong>de</strong>lícias <strong>de</strong> um Pierre Lévy).<br />

Se conseguirmos escapar a essas duas ilusões, teremos boas chances <strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r como po<strong>de</strong> o pensamento<br />

se inserir <strong>de</strong> maneira produtiva e não automatizante (ou até mesmo alienante) no ciberespaço.<br />

Primeiramente, é fundamental esclarecer que a arquitetura conectivista não reduz as diferenças entre os<br />

nós. E, no caso, é igualmente importante perceber o quão essenciais são essas diferenças entre cada um<br />

<strong>de</strong>sses nós, evitando que as diluamos em uma homogeneida<strong>de</strong> redutora e simplista. Em segundo lugar, isso<br />

tudo implica, <strong>de</strong> certa forma, estabelecer limites para a razão, sobretudo para a razão que se exibe num<br />

(ciber)espaço fingindo-se vocacionado para o infinito. Ora, boa parte da filosofia oci<strong>de</strong>ntal vem-se<br />

construindo justamente na tentativa <strong>de</strong> <strong>de</strong>senhar os limites do saber, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os pré-socráticos, passando por<br />

Sócrates, pelo ceticismo <strong>de</strong> Pirro, chegando a Descartes (a dúvida sistemática é uma última e <strong>de</strong>sesperada<br />

tentativa <strong>de</strong> mapear as fronteiras possíveis do saber para escapar ao ceticismo <strong>de</strong> um mestre anterior,<br />

Montaigne), a Kant (que buscava <strong>de</strong>limitar a razão para salvar a fé), sem contar ainda Nietzsche, Husserl,<br />

assim como vários dos pensadores do século XX (Foucault, Derrida, Deleuze etc.).<br />

Voltando ao ciberespaço, po<strong>de</strong>mos dizer que, se suas possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> conexão são praticamente infinitas<br />

(e apenas a tentativa <strong>de</strong> esclarecer como seria essa infinitu<strong>de</strong> das conexões já faria correr muita tinta) e se<br />

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