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Leituras de nós – ciberespaço e literatura. Alckmar - Itaú Cultural

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Claramente, o que se postula aqui é a submissão das técnicas e <strong>de</strong> suas lógicas <strong>de</strong> produção a interferências<br />

e <strong>de</strong>slocamentos inerentes ao fazer artístico, para que possamos, em algum momento, construir <strong>de</strong> fato um<br />

saber artístico (saber acerca do artístico e, mais importante, <strong>de</strong>rivado do artístico). Expliquemos isso mais<br />

<strong>de</strong>talhadamente. As lógicas do fazer técnico impõem a eficácia como valor <strong>de</strong> troca e <strong>de</strong> circulação <strong>de</strong> seus<br />

objetos. Se um programa é menor e mais rápido que um outro que faz o mesmo, esse primeiro é certamente<br />

melhor, segundo os critérios <strong>de</strong> valor e <strong>de</strong> produção das técnicas. Ora, isso tem como contrapartida a criação<br />

<strong>de</strong> um mito mo<strong>de</strong>rno e contemporâneo, o da onipotência da tecnologia. E se encontra aí, justamente, uma<br />

das portas <strong>de</strong> entrada para que o gesto transgressor das artes a<strong>de</strong>ntre o espaço das técnicas, transtornando<br />

e transformando suas significações e sentidos, sobrepondo-lhes uma outra camada <strong>de</strong> simbolização (não<br />

mais essa <strong>de</strong>rivada <strong>de</strong> forma direta e simplista das mitologizações da produtivida<strong>de</strong> técnica).<br />

Aparentemente, essas transgressões são o que Grégory Chatonsky chama <strong>de</strong> “inci<strong>de</strong>nte”. 40 Não<br />

necessariamente o gran<strong>de</strong> inci<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> Paul Virilio, 41 mas justamente essa <strong>de</strong>scoberta <strong>de</strong> veios e jazidas <strong>de</strong><br />

sentidos inesperados e que estão sempre insertos às técnicas, escondidas e amalgamadas em suas<br />

insignificâncias (e que, exatamente por serem insignificâncias, são escamoteadas da imagem pública que se<br />

exibe das técnicas, <strong>de</strong>sses seus mitos contemporâneos e tão-somente profanos):<br />

“L’inci<strong>de</strong>nt n’est plus dès lors une simple obstruction au régime fonctionnel <strong>de</strong> la technique. En le<br />

désinstrumentalisant et en le refonctionnalisant dans un cadre esthétique on propose un comportement inédit<br />

auquel aucun mo<strong>de</strong> <strong>de</strong> lecture préexistant n’est (encore) adapté. C’est dans cette découverte <strong>de</strong> l’inci<strong>de</strong>nt<br />

comme refoulé <strong>de</strong> la technique qu’une imagination sans formations représentatives peut émerger”. 42<br />

E esses inci<strong>de</strong>ntes (sempre no plural, como <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> Chatonsky), 43 na verda<strong>de</strong>, não aparecem pelo fato <strong>de</strong><br />

os sistemas se <strong>de</strong>sconectarem, <strong>de</strong> as re<strong>de</strong>s se <strong>de</strong>sgovernarem, <strong>de</strong> se intrometerem vírus e hackers. Não<br />

temos, é claro, uma estetização imediata do espaço telemático. Digamos que tais inci<strong>de</strong>ntes constituem<br />

justamente a condição <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> termos lógicas artísticas sobrepostas às das técnicas: sintomas <strong>de</strong><br />

inutilida<strong>de</strong>s, incapacida<strong>de</strong>s temporárias que se tornam duráveis ou mesmo permanentes, quebras na or<strong>de</strong>m<br />

no esperado e na esfera do possível, tudo isso po<strong>de</strong> ser recuperado como novos mitos, esses do saber que<br />

escolhe sempre as vias mais difíceis, os caminhos mais áridos, as propostas mais inúteis. Mas todas elas<br />

irrepetíveis, criando sempre esse espanto original e originário. Aliás, à diferença do espanto com a técnica<br />

(cujo mo<strong>de</strong>lo é o do ovo <strong>de</strong> Colombo, espanto que prece<strong>de</strong> a repetição extremamente fácil), o espanto com<br />

o artístico parece sempre impossível <strong>de</strong> ser reproduzido exatamente. Diante <strong>de</strong>le – e com ele –, estamos na<br />

mesma situação <strong>de</strong>scrita por Caeiro:<br />

“Sei ter o pasmo comigo<br />

Que teria uma creança se, ao nascer,<br />

Reparasse que nascera <strong>de</strong>veras...” 44<br />

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