chama-nos da selva O cinema de Apichatpong Weerasethakul
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Sexta-feira<br />
1 Abril 2011<br />
www.ipsilon.pt<br />
ESTE SUPLEMENTO FAZ PARTE INTEGRANTE DA EDIÇÃO Nº 7657 DO PÚBLICO, E NÃO PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE<br />
O <strong>cinema</strong> <strong>de</strong> <strong>Apichatpong</strong> <strong>Weerasethakul</strong><br />
<strong>chama</strong>-<strong>nos</strong> <strong>da</strong> <strong>selva</strong><br />
Somos capazes <strong>de</strong> o seguir?<br />
Howard Jacobson Iron & Wine Cuca Roseta Ahmet Ögüt Norberto Fuentes Os Golpes
Flash<br />
Sumário<br />
<strong>Apichatpong</strong><br />
<strong>Weerasethakul</strong> 6<br />
O maestro <strong>da</strong>s coisas simples<br />
Panorama 12<br />
Quando eles filmavam a<br />
revolução portuguesa<br />
Pornografia 16<br />
Uma nova colecção resgata<br />
a pornografia nacional <strong>da</strong><br />
viragem do século XIX para o<br />
XX: e assim (re)<strong>de</strong>scobrimos<br />
que não éramos <strong>de</strong> brandos<br />
costumes<br />
Fi<strong>de</strong>l Castro 18<br />
Visto por quem o seguiu<br />
e por quem o enfrentou:<br />
Norberto Fuentes<br />
Iron & Wine 22<br />
Uma improvável estrela<br />
americana<br />
Cuca Rosetta 26<br />
Uma fadista nas mãos <strong>de</strong><br />
um vencedor <strong>de</strong> Óscares,<br />
Gustavo Santaolalla<br />
Ahmet Ogut 28<br />
Envia pedras <strong>de</strong> Lisboa para<br />
Diyarbarkir<br />
Ficha Técnica<br />
Directora Bárbara Reis<br />
Editor Vasco Câmara, Inês Na<strong>da</strong>is<br />
(adjunta)<br />
Conselho editorial Isabel<br />
Coutinho, Óscar Faria, Cristina<br />
Fernan<strong>de</strong>s, Vítor Belanciano<br />
Design Mark Porter, Simon<br />
Esterson, Kuchar Swara<br />
Directora <strong>de</strong> arte Sónia Matos<br />
Designers Ana Carvalho, Carla<br />
Noronha, Mariana Soares<br />
Editor <strong>de</strong> fotografia Miguel<br />
Ma<strong>de</strong>ira<br />
E-mail: ipsilon@publico.pt<br />
França rendi<strong>da</strong><br />
ao último filme <strong>de</strong><br />
Manoel <strong>de</strong> Oliveira<br />
Não se trata duma novi<strong>da</strong><strong>de</strong> na<br />
longa carreira do realizador, mas<br />
não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser impressionante o<br />
acolhimento crítico que o último<br />
filme <strong>de</strong> Manoel <strong>de</strong> Oliveira, “O<br />
Estranho Caso <strong>de</strong> Angélica” (2010),<br />
está a ter em França, on<strong>de</strong> chegou<br />
às salas no dia 16 <strong>de</strong> Março, <strong>de</strong>pois<br />
<strong>da</strong> antestreia mundial no Festival <strong>de</strong><br />
Cannes.<br />
Na contabili<strong>da</strong><strong>de</strong> feita às<br />
apreciações críticas e às estrelas<br />
dispensa<strong>da</strong>s ao filme, a revista<br />
“Premiere” mostra que meta<strong>de</strong> <strong>da</strong>s<br />
14 publicações referi<strong>da</strong>s (entre<br />
jornais e revistas <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> e<br />
pequena circulação) premeiam o<br />
filme com a nota máxima (quatro<br />
estrelas), e só uma <strong>de</strong>las, a “Nouvel<br />
Observateur”, lhe atribui duas<br />
estrelas. Mesmo assim, a crítica<br />
<strong>de</strong>sta revista, Lucie Calet, classifica<br />
“O Estranho Caso...” como um filme<br />
“metafísico, pictural e terrivelmente<br />
comovente”, além <strong>de</strong> o comparar<br />
com os contos românticos <strong>de</strong><br />
Théophile Gautier e <strong>de</strong> o radicar na<br />
eficácia <strong>de</strong> simplici<strong>da</strong><strong>de</strong> artesanal <strong>de</strong><br />
Georges Méliès.<br />
“O Estranho Caso <strong>de</strong> Angélica”,<br />
filme com que Oliveira concretiza<br />
um argumento que escrevera <strong>nos</strong><br />
a<strong>nos</strong> 50, baseado numa vivência<br />
pessoal, recebeu também quatro<br />
estrelas do “Le Mon<strong>de</strong>”, “Le Figaro”<br />
e “Libération”. “Um filme <strong>de</strong> uma<br />
beleza surpreen<strong>de</strong>nte, habitado por<br />
fantasmas”, escreve o crítico do<br />
primeiro, enquanto “Le Figaro” diz<br />
tratar-se <strong>de</strong> “um conto<br />
pacificamente fantástico, realizado<br />
com um refinamento poético<br />
extremo”, e o “Libé” <strong>de</strong>staca “o<br />
sortilégio <strong>de</strong> um filme hipnótico”,<br />
<strong>de</strong> on<strong>de</strong> ressalta “uma certa i<strong>de</strong>ia<br />
fabulosa <strong>de</strong> <strong>cinema</strong>”. Também a<br />
revista “Les Inrockuptibles”<br />
dispensou a Oliveira a classificação<br />
máxima, vendo em “O Estranho<br />
Caso <strong>de</strong> Angélica” “um belo e rico<br />
livro <strong>de</strong> horas”, que faz pensar em<br />
Freud, e “uma fábula bizarra”, feita<br />
“com paciência” e com “um sentido<br />
<strong>da</strong> narrativa realista muito preciso e<br />
límpido”.<br />
De fora <strong>da</strong> contabili<strong>da</strong><strong>de</strong> feita pela<br />
“Premiere” fica a revista<br />
(concorrente) “Cahiers du Cinéma”,<br />
cuja cumplici<strong>da</strong><strong>de</strong> com a carreira do<br />
realizador é<br />
conheci<strong>da</strong>. “O Estranho Caso <strong>de</strong><br />
Angélica” é eleito como “o filme do<br />
mês” <strong>de</strong> Março <strong>da</strong> revista, que diz<br />
estarmos em presença duma obra<br />
com uma “riqueza espantosa, um<br />
filme secreto, à maneira dos<br />
quadros <strong>da</strong> Renascença, recheado<br />
<strong>de</strong> pormenores que o espectador é<br />
convi<strong>da</strong>do a <strong>de</strong>cifrar”.<br />
Já a própria “Premiere” (que dá três<br />
estrelas a Oliveira), através do crítico<br />
Philippe Rouyer assegura que<br />
“aqueles que receiam a estética<br />
À vossa escolha:<br />
“Carlos”<br />
ou<br />
“Les Amours<br />
Imaginaires”<br />
Dia 5 <strong>de</strong> Maio, <strong>de</strong>cisão<br />
difícil: “Carlos”, <strong>de</strong> Olivier<br />
Assayas, ou “Les Amours<br />
Imaginaires”, <strong>de</strong> Xavier<br />
Dolan? São os filmes que<br />
abrem - 21h15, Culturgest,<br />
21h30, S. Jorge,<br />
respectivamente – o<br />
IndieLisboa. O primeiro é<br />
um “tour <strong>de</strong> force” <strong>de</strong> um<br />
cineasta habitualmente<br />
frágil e íntimo, que aqui se<br />
aventura pela História,<br />
olhando para Carlos, o<br />
Chacal, revolucionário e/<br />
ou mercenário, “estrela” do<br />
terrorismo <strong>nos</strong> a<strong>nos</strong> 70. É<br />
um pe<strong>da</strong>ço <strong>da</strong> história do<br />
século XX mas é, também,<br />
uma história sobre a<br />
sedução: Carlos (outro<br />
“tour <strong>de</strong> force”, o do actor<br />
venezuelano Edgar<br />
Ramirez) e a sua estratégia<br />
<strong>de</strong> sensuali<strong>da</strong><strong>de</strong> – as<br />
mulheres, como as armas<br />
– para chegar ao topo.<br />
Ficamos, <strong>de</strong>pois, à espera<br />
<strong>da</strong> estreia<br />
comercial, a 19<br />
<strong>de</strong> Maio, <strong>de</strong>sta<br />
versão, mais<br />
curta, para<br />
<strong>cinema</strong><br />
François Sagat<br />
em “L’Homme au Bain”<br />
feita a partir <strong>da</strong>s cinco<br />
horas <strong>da</strong> versão televisiva.<br />
É o que preten<strong>de</strong> também<br />
– a sedução – Xavier Dolan,<br />
canadiano, 22 a<strong>nos</strong>, que<br />
alguns colocam já no topo<br />
<strong>de</strong> alguma coisa. Que se<br />
esforça por seduzir<br />
confirma-o “Les Amours<br />
Imaginaires”, me<strong>nos</strong> um<br />
pe<strong>da</strong>ço <strong>de</strong> fantasmagoria<br />
amorosa, mais um pe<strong>da</strong>ço<br />
<strong>de</strong> estilo <strong>de</strong>corativo, “cool”,<br />
câmaras lentas, cigarro,<br />
fumos e, obviamente,<br />
muito inspirado por<br />
Wong Kar-wai. À vossa<br />
escolha, enquanto se<br />
aguar<strong>da</strong> também pela<br />
estreia.<br />
O que vamos ver mais<br />
neste Indie? A programação<br />
será anuncia<strong>da</strong> no dia 5 <strong>de</strong><br />
Abril, mas po<strong>de</strong>mos<br />
Edgar Ramirez<br />
em “Carlos”<br />
e Xavier Dolan<br />
(em baixo,<br />
à esquer<strong>da</strong>)<br />
em “Les Amours<br />
Imaginaires”<br />
antecipar títulos em<br />
antestreia, como “Post<br />
Mortem”, <strong>de</strong> Pablo Larraín<br />
(o cineasta <strong>de</strong> “Tony<br />
Manero”), “Neds”, <strong>de</strong> Peter<br />
Mullan, “Homme au Bain”,<br />
<strong>de</strong> Christophe Honoré (a<br />
experiência-ensaio em que<br />
o cineasta francês traz para<br />
o domínio <strong>da</strong> ficção um<br />
corpo impositivo, o do actor<br />
porno François Sagat, e<br />
espera para ver como eles,<br />
o corpo e a ficção, se<br />
comportam), “Kaboom”, <strong>de</strong><br />
Gregg Araki, “Essential<br />
Killing”, <strong>de</strong> Jerzy<br />
Skolimowski, “Meek’s<br />
Cutoff”, <strong>de</strong> Kelly Reichardt,<br />
“Mulberry St.”, <strong>de</strong> Abel<br />
Ferrara, “Tabloid”, <strong>de</strong> Errol<br />
Morris ou “A Letter to Elia”,<br />
<strong>de</strong> Martin Scorsese e Kent<br />
Jones. Vasco Câmara<br />
Ípsilon • Sexta-feira 1 Abril 2011 • 3
Flash<br />
“O Estranho Caso <strong>de</strong> Angélica”<br />
austera do <strong>de</strong>cano dos cineastas<br />
po<strong>de</strong>m ficar tranquilos”. “Do cimo<br />
<strong>da</strong>s suas 102 Primaveras, o sempre<br />
vivo Manoel <strong>de</strong> Oliveira consegue<br />
uma fábula sumptuosa”, num<br />
“gran<strong>de</strong> filme testamentário” <strong>de</strong><br />
“gran<strong>de</strong> beleza”.<br />
Cereja em cima <strong>de</strong>ste “bolo<br />
francês”, Oliveira vai ser<br />
homenageado no Festival <strong>de</strong> Cinema<br />
<strong>de</strong> Brive, que <strong>de</strong>corre <strong>de</strong> 6 a 11 <strong>de</strong><br />
Abril nesta pequena ci<strong>da</strong><strong>de</strong> no oeste<br />
do país. Serão exibi<strong>da</strong>s nove médias<br />
e longas-metragens, <strong>de</strong> “Douro,<br />
Faina Fluvial” (1931) a<br />
“Singulari<strong>da</strong><strong>de</strong>s duma Rapariga<br />
Loira” (2009). O festival quer<br />
mostrar “a actuali<strong>da</strong><strong>de</strong>” <strong>de</strong>ste<br />
“autor duma <strong>da</strong>s filmografias mais<br />
ricas <strong>da</strong> história do <strong>cinema</strong>”, escreve<br />
o crítico Bamcha<strong>de</strong> Pourvali, a<br />
justificar a atenção que Brive<br />
<strong>de</strong>cidiu <strong>da</strong>r ao realizador português<br />
(outro autor homenageado será o<br />
francês Jean Eustache). Sérgio C.<br />
Andra<strong>de</strong><br />
Lars von Trier:<br />
<strong>de</strong>pois <strong>de</strong><br />
“Melancholia”, “The<br />
Nymphomaniac”<br />
Já não é <strong>de</strong>feito, é feitio – e algo <strong>nos</strong><br />
diz que Lars von Trier gosta mesmo<br />
é <strong>de</strong> provocar. No caso, através do<br />
anúncio, à revista <strong>da</strong> indústria<br />
“Screen Daily”, que o seu próximo<br />
projecto abor<strong>da</strong>rá uma mulher que<br />
“<strong>de</strong>scobre o erotismo que há em si”<br />
e <strong>chama</strong>r-se-á “The<br />
Nymphomaniac” (a tradução,<br />
presumimos, é <strong>de</strong>snecessária). A<br />
provocação vai mais longe: na<br />
mesma entrevista, o autor <strong>de</strong><br />
“On<strong>da</strong>s <strong>de</strong> Paixão, “Os Idiotas”,<br />
“Dancer in the Dark” e do infame<br />
“Anticristo” diz que o seu produtor<br />
<strong>de</strong> sempre, Peter Aalbaek Jensen,<br />
lhe disse que “com um título <strong>de</strong>sses,<br />
o filme já tem o financiamento<br />
garantido”. Para já, os pormenores<br />
não abun<strong>da</strong>m, visto que o “enfant<br />
terrible” dinamarquês ultima o seu<br />
filme-catástrofe-psicológico<br />
“Melancholia”, sobre os últimos<br />
meses do planeta Terra, ameaçado<br />
por um planeta em rota <strong>de</strong> colisão, e<br />
sobre as reacções ao fim do mundo<br />
iminente <strong>de</strong> duas irmãs<br />
interpreta<strong>da</strong>s por Kirsten Dunst e<br />
Charlotte Gainsbourg. O elenco <strong>de</strong><br />
luxo inclui ain<strong>da</strong> Kiefer Sutherland,<br />
Charlotte Rampling, John Hurt e<br />
Udo Kier, e os observadores<br />
apontam que “Melancholia” é um<br />
forte candi<strong>da</strong>to à selecção oficial <strong>de</strong><br />
Cannes. Caso a selecção se<br />
confirme, no entanto, não sabemos<br />
bem como é que Von Trier se<br />
<strong>de</strong>slocará à Croisette: é que o<br />
homem recusa-se a an<strong>da</strong>r <strong>de</strong> avião e<br />
pôs à ven<strong>da</strong> no site <strong>de</strong> leilões eBay a<br />
fiel auto-caravana que guiou por<br />
todo o mundo (com um preço <strong>de</strong><br />
reserva <strong>de</strong> 28 mil euros que, até<br />
agora, não foi atingido).<br />
Prémio Jabuti mudou as regras<br />
O prémio literário mais importante<br />
e mais tradicional no Brasil, o Jabuti,<br />
abriu as inscrições para a sua 53ª<br />
edição esta quarta-feira e alterou as<br />
suas regras na sequência <strong>da</strong><br />
polémica que surgiu em Novembro<br />
<strong>de</strong>pois <strong>da</strong> atribuição <strong>de</strong> Livro do<br />
Ano <strong>de</strong> Ficção a “Leite Derramado”,<br />
<strong>de</strong> Chico Buarque (ed. Companhia<br />
<strong>da</strong>s Letras), que tinha ficado em<br />
segundo lugar na categoria <strong>de</strong><br />
melhor romance, on<strong>de</strong> o vencedor<br />
foi “Se Eu Fechar os Olhos Agora”,<br />
<strong>de</strong> Edney Silvestre (ed. Record). Em<br />
Dezembro, José Luiz Goldfarb, o<br />
curador do prémio <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1991, disse<br />
ao ca<strong>de</strong>rno P2 que a comissão do<br />
Prémio Jabuti iria reunir-se para<br />
“analisar tudo o que ocorreu”. Essa<br />
alteração <strong>da</strong>s regras aconteceu e foi<br />
agora divulga<strong>da</strong> pela Câmara<br />
Brasileira do Livro (CBL).<br />
Até à polémica do ano passado, o<br />
Lars von Trier<br />
VINCENT KESSLER/REUTERS<br />
Sílvia Real e Francisco Camacho, “Solo<br />
para Sílvia Real (título provisório)”<br />
A peça mais espera<strong>da</strong> em Edimburgo é uma<br />
a<strong>da</strong>ptação americana <strong>de</strong> um romance <strong>de</strong> Haruki<br />
Murakami,<br />
Mais uma tempora<strong>da</strong><br />
preenchi<strong>da</strong><br />
na Culturgest<br />
Na programação divulga<strong>da</strong> para a próxima tempora<strong>da</strong>, <strong>de</strong> Abril<br />
a Agosto, a Culturgest continua a sua aposta na música, <strong>cinema</strong>,<br />
teatro, <strong>da</strong>nça, exposições, apresentando para os próximos<br />
meses um programa rico em diversi<strong>da</strong><strong>de</strong>. Há a <strong>de</strong>stacar a 8ª<br />
edição do Festival Internacional <strong>de</strong> Cinema In<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong><br />
Lisboa. De 5 a 15 <strong>de</strong> Maio, o IndieLisboa volta a marcar presença,<br />
tendo a organização já anunciado uma retrospectiva do<br />
realizador brasileiro Júlio Bressane, que é o “Herói<br />
In<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte”. A 8ª edição vai contar ain<strong>da</strong> com um concerto<br />
dos Tin<strong>de</strong>rsticks. A convite do Indie, o grupo britânico vai<br />
interpretar ao vivo, na Aula Magna, as ban<strong>da</strong>s sonoras que<br />
compôs para os filmes <strong>da</strong> realizadora francesa Claire Denis.<br />
Na <strong>da</strong>nça, o <strong>de</strong>staque vai para “Icosahedron”, co-produção com<br />
a França, <strong>da</strong> coreógrafa Tânia Carvalho, <strong>nos</strong> dias 29 e 30 <strong>de</strong><br />
Abril, e para “Solo para Sílvia Real (título provisório)”, <strong>nos</strong> dias 1<br />
e 2 <strong>de</strong> Junho, espectáculo dirigido por Francisco Camacho e que<br />
apresenta duas figuras proeminentes <strong>da</strong> <strong>da</strong>nça portuguesa:<br />
Sílvia e Camacho.<br />
Na programação teatral, continua a aposta no projecto PANOS. A<br />
iniciativa, <strong>de</strong> 20 a 22 <strong>de</strong> Maio, junta a nova dramaturgia ao teatro<br />
escolar ou juvenil. Na sua sexta edição, reúne quarenta grupos<br />
<strong>de</strong> todo o país que encenam uma <strong>da</strong>s três peças propostas,<br />
escritas <strong>de</strong> propósito para serem representa<strong>da</strong>s por<br />
adolescentes.<br />
A peça <strong>de</strong> André Murraças “Três Homens Sós”, com Suzana<br />
Borges, Anabela Brígi<strong>da</strong>, Vítor d’Andra<strong>de</strong> e André Patrício, vai<br />
estar em cena <strong>de</strong> 4 a 8 <strong>de</strong> Junho. E <strong>de</strong>staque para o regresso <strong>da</strong><br />
companhia americana The TEAM, que estevem em 2009 na<br />
Culturgest com “Architecting”. Este ano volta para apresentar<br />
“Mission Drift” <strong>nos</strong> dias 14, 15 e 16 e Julho.<br />
Na música, diversi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> estilos: dois concertos <strong>de</strong> música<br />
brasileira (Vitor Ramil, no dia 4 <strong>de</strong> Abril, e Ná Ozzetti, no dia 17<br />
<strong>de</strong> Julho), dois concertos do ciclo “Isto é jazz?”, com Sidsel<br />
Endresen (27 <strong>de</strong> Abril) e com o quinteto Platform 1, do qual<br />
sobressai o nome do saxofonista Ken<br />
Van<strong>de</strong>rmark (24 e 25 <strong>de</strong> Maio) e um recital <strong>de</strong> canto e piano,<br />
integrado no ciclo Concertos no Palco, que junta dois intérpretes<br />
nacionais, Jorge Vaz <strong>de</strong> Carvalho e João Paulo Santos (9 <strong>de</strong> Abril).<br />
Quanto à programação <strong>de</strong> exposições, entre as que estão em<br />
exibição e as que vão inaugurar, <strong>de</strong>staque para a exposição na<br />
Culturgest do Porto, patente <strong>de</strong> 14 <strong>de</strong> Maio a 14 <strong>de</strong> Agosto, sobre<br />
a obra gráfica Luísa Correia Pereira (1945-2009), “artista que<br />
gran<strong>de</strong> parte do mundo <strong>da</strong> arte <strong>de</strong>sconhece ou à qual<br />
permanece indiferente, apesar <strong>da</strong> extraordinária importância do<br />
seu trabalho”, conforme se po<strong>de</strong> ler no programa.<br />
primeiro, segundo e terceiro lugares<br />
premiados em ca<strong>da</strong> categoria<br />
podiam concorrer a prémio Livro do<br />
Ano. A partir <strong>de</strong> agora só haverá um<br />
finalista por categoria e é entre estes<br />
29 finalistas que será escolhido o<br />
Livro do Ano <strong>de</strong> ficção e <strong>de</strong> nãoficção.<br />
No dia 13 <strong>de</strong> Setembro, serão<br />
anunciados pela Câmara Brasileira<br />
do Livro (CBL) os <strong>de</strong>z finalistas em<br />
ca<strong>da</strong> uma <strong>da</strong>s 29 categorias. E a<br />
divulgação dos vencedores, por<br />
categoria, será divulga<strong>da</strong> no dia 18<br />
<strong>de</strong> Outubro. A cerimónia <strong>de</strong> entrega<br />
dos prémios está marca<strong>da</strong> para o dia<br />
30 <strong>de</strong> Novembro, na Sala São Paulo,<br />
naquela ci<strong>da</strong><strong>de</strong> brasileira e aí serão<br />
divulgados os vencedores nas<br />
categorias <strong>de</strong> Livro do Ano ficção e<br />
não-ficção. Isabel Coutinho<br />
Festival<br />
Internacional <strong>de</strong><br />
Edimburgo <strong>de</strong>scobre<br />
o Oriente<br />
Na Capital <strong>da</strong> Escócia, em 1947,<br />
realizou-se o primeiro Festival<br />
Internacional <strong>de</strong> Edimburgo, um<br />
festival <strong>de</strong> artes performativas com o<br />
objectivo <strong>de</strong> recuperar do<br />
pessimismo e <strong>da</strong> <strong>de</strong>cadência do pósguerra.<br />
Este ano o festival vai<br />
<strong>de</strong>correr entre 12 <strong>de</strong> Agosto e 4 <strong>de</strong><br />
Setembro. O director, Jonathan Mills,<br />
expressou o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> criar “uma<br />
exploração e celebração <strong>da</strong> cultura<br />
vibrante e diversa <strong>da</strong> Ásia e <strong>da</strong> sua<br />
longa influência no Oci<strong>de</strong>nte”.<br />
Durante três semanas, Edimburgo<br />
vai ser invadi<strong>da</strong> pela China, Índia,<br />
Japão, Coreia, Taiwan e Vietname.<br />
Entre os <strong>de</strong>staques está o Ballet <strong>da</strong><br />
China a interpretar uma a<strong>da</strong>ptação<br />
<strong>de</strong> “Peony Pavillion”, peça <strong>de</strong> Tang<br />
Xianzu <strong>da</strong> dinastia Ming, fusão <strong>de</strong><br />
<strong>da</strong>nça contemporânea oci<strong>de</strong>ntal<br />
com música tradicional chinesa.<br />
Ain<strong>da</strong> <strong>da</strong> China, a Ópera <strong>de</strong> Xangai<br />
interpreta Shakespeare,<br />
nomea<strong>da</strong>mente uma a<strong>da</strong>ptação <strong>de</strong><br />
“Hamlet” para Man<strong>da</strong>rim.<br />
De inspiração japonesa, a peça mais<br />
espera<strong>da</strong> é uma a<strong>da</strong>ptação<br />
americana <strong>de</strong> um romance <strong>de</strong> Haruki<br />
Murakami, consi<strong>de</strong>rado pelo “The<br />
Guardian” “um dos melhores<br />
escritores vivos do mundo.” O<br />
romance a<strong>da</strong>ptado é “The Wind-up<br />
Bird Chronicle”, traduzido para<br />
inglês em 1995. Descreve a história<br />
do infeliz e aborrecido<br />
<strong>de</strong>sempregado Toru Oka<strong>da</strong>, que após<br />
per<strong>de</strong>r o seu gato, <strong>de</strong>monstra como<br />
uma rotina quotidiana se po<strong>de</strong><br />
transformar em algo dinâmico e<br />
efusivo. A a<strong>da</strong>ptação <strong>de</strong>senvolve a<br />
peça não só em teatro, mas também<br />
em marionetas e instalações <strong>de</strong><br />
ví<strong>de</strong>o.<br />
Da Índia, Edimburgo apresenta<br />
música tradicional, interpreta<strong>da</strong><br />
pelos “Legen<strong>da</strong>ry Music of<br />
Rajasthan”. Além <strong>de</strong> música, “O<br />
Livro <strong>da</strong>s Mil e Uma Noites” será<br />
transposto para peça teatral.<br />
4 • Sexta-feira 1 Abril 2011 • Ípsilon
AGENDA CULTURAL FNAC<br />
entra<strong>da</strong> livre<br />
APRESENTAÇÃO MÚSICA AO VIVO LANÇAMENTO EXPOSIÇÃO<br />
APRESENTAÇÃO<br />
O TESOURO ESCONDIDO<br />
Livro <strong>de</strong> José Tolentino Mendonça<br />
Apresentado por Leonor Xavier e Luís Mah<br />
Padre, ilustre intelectual e poeta, reflecte, nesta obra, acerca <strong>da</strong> arte <strong>da</strong> procura interior, mantendo o<br />
habitual diálogo entre os valores do Cristianismo e a mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />
01.04. 21H30 FNAC VASCO DA GAMA<br />
MÚSICA AO VIVO<br />
LOUSY GURU<br />
As Big as Divi<strong>de</strong>d<br />
Do ecletismo não premeditado dos seus seis elementos, surge uma uni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> qual se <strong>de</strong>stacam<br />
harmonias vocais e ambiências várias.<br />
02.04. 17H30 FNAC VASCO DA GAMA<br />
10.04. 17H00 FNAC COIMBRA<br />
12.04. 21H30 FNAC COLOMBO<br />
LANÇAMENTO<br />
REVISTA LETRAS COM(N) VIDA<br />
Por Centro <strong>de</strong> Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias <strong>da</strong><br />
Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Letras <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Lisboa<br />
A apresentação do segundo número <strong>de</strong>sta revista está a cargo <strong>de</strong> Rui Zink e conta com a presença dos<br />
directores <strong>da</strong> publicação, Miguel Real e Beata Cieszynska, <strong>da</strong> directora do Centro, Annabela Rita, e <strong>de</strong> Helena<br />
Rafael (Gradiva).<br />
06.04. 19H30 FNAC CHIADO<br />
LANÇAMENTO<br />
PORTUGAL AGRILHOADO<br />
A ECONOMIA CRUEL NA ERA DO FMI<br />
Livro <strong>de</strong> Francisco Louçã<br />
O economista e político apresenta a sua última obra em que reflecte sobre o <strong>de</strong>semprego, a per<strong>da</strong> <strong>de</strong> salários,<br />
o aumento dos impostos, a dívi<strong>da</strong> externa e os escân<strong>da</strong>los financeiros <strong>de</strong>masiado próximos do po<strong>de</strong>r político.<br />
07.04. 18H30 FNAC CHIADO<br />
LANÇAMENTO<br />
VIVA A CRISE! MANUAL DA ALEGRIA<br />
Livro dos Homens <strong>da</strong> Luta<br />
Após a vitória no Festival <strong>da</strong> Canção, os Homens <strong>da</strong> Luta lançam o seu primeiro livro que preten<strong>de</strong> ser um<br />
olhar optimista sobre a <strong>nos</strong>sa reali<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />
07.04. 22H00 FNAC COLOMBO<br />
09.04. 22H00 FNAC NORTESHOPPING<br />
17.04. 17H00 FNAC ALMADA<br />
19.04. 18H30 FNAC CHIADO<br />
apoio:<br />
Consulte a AGENDA FNAC em:<br />
http://cultura.fnac.pt
Festim<br />
para os sentidos na <strong>selva</strong><br />
<strong>de</strong> <strong>Apichatpong</strong> <strong>Weerasethakul</strong><br />
A primeira,<br />
magistral<br />
e misteriosa,<br />
sequência<br />
<strong>de</strong> “O Tio<br />
Boonmee<br />
que se Lembra<br />
<strong>da</strong>s Suas<br />
Vi<strong>da</strong>s<br />
Anteriores”<br />
assinatura<br />
“O Tio Boonmee que se Lembra <strong>da</strong>s Suas Vi<strong>da</strong>s Anteriores”<br />
é a orquestra dos sentidos e dos fantasmas <strong>de</strong> um cineasta<br />
tailân<strong>de</strong>s, <strong>Apichatpong</strong> <strong>Weerasethakul</strong>. A (discuti<strong>da</strong>)<br />
Palma <strong>de</strong> Ouro <strong>de</strong> Cannes veio <strong>da</strong> <strong>selva</strong>. Estamos à altura<br />
<strong>de</strong> mergulhar nela? Hél<strong>de</strong>r Beja, em Hong Kong<br />
Passou quase um ano <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que Cannes<br />
viu – e premiou com a Palma <strong>de</strong><br />
Ouro – um filme que abre com uma<br />
sequência <strong>de</strong> cinco minutos em que<br />
o ver<strong>de</strong> <strong>da</strong> <strong>selva</strong> e um búfalo enchem<br />
o ecrã. Depois, há uns olhos vermelhos<br />
<strong>de</strong> macaco fantasma que fixam<br />
a câmara. Na<strong>da</strong> está explicado. Na<strong>da</strong><br />
tem <strong>de</strong> estar.<br />
“O Tio Boonmee que se Lembra<br />
<strong>da</strong>s Suas Vi<strong>da</strong>s Anteriores”, primeiro<br />
filme do tailandês <strong>Apichatpong</strong> <strong>Weerasethakul</strong><br />
a ter distribuição comercial<br />
em Portugal, é isso mesmo: a<br />
história <strong>de</strong> um homem doente dos<br />
fígados que, no inverno <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, consegue<br />
pôr-se a recor<strong>da</strong>r existências<br />
anteriores, em que foi búfalo, princesa<br />
e outras coisas que não sabemos<br />
dizer. Há pe<strong>da</strong>ços que são assim, simples,<br />
no universo <strong>de</strong>ste arquitecto <strong>de</strong><br />
“Quando vamos<br />
à <strong>selva</strong> temos medo<br />
<strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as coisas que<br />
não <strong>nos</strong> são familiares.<br />
Os sons, a camuflagem<br />
que faz as coisas não<br />
parecerem claras.<br />
Os meus filmes<br />
são uma tentativa<br />
<strong>de</strong> me relacionar<br />
com essa reali<strong>da</strong><strong>de</strong>”<br />
formação que cresceu no nor<strong>de</strong>ste<br />
<strong>da</strong> Tailândia (Khon Kaen) antes <strong>de</strong><br />
rumar aos EUA para estu<strong>da</strong>r <strong>cinema</strong><br />
no Chicago Art Institute, mesma escola<br />
por on<strong>de</strong> passaram Walt Disney<br />
ou Orson Welles. Aliás, tudo é simples<br />
em <strong>Apichatpong</strong>, mesmo aquilo que<br />
não se percebe. Só que a simplici<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
tem cama<strong>da</strong>s, como a vegetação<br />
<strong>da</strong> <strong>selva</strong> que a câmara do realizador<br />
filma.<br />
Meses <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter dividido a crítica<br />
com uma obra que espantou mesmo<br />
os que conheciam o seu trabalho<br />
- <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o exercício surrealista <strong>de</strong> “cadáver<br />
esquisito” que é “Mysterious<br />
Object at Noon” (2000), ou <strong>da</strong> primeira<br />
ficção (se lhe po<strong>de</strong>mos <strong>chama</strong>r assim...)<br />
“Blissfully Yours” (2002) – encontramos<br />
<strong>Apichatpong</strong> em Hong<br />
Kong, on<strong>de</strong> veio para apresentar mais<br />
uma curta feita a convite do festival<br />
internacional <strong>de</strong> <strong>cinema</strong> <strong>da</strong> antiga colónia<br />
britânica.<br />
Queremos começar pela porta<br />
maior e falar do que está por baixo<br />
<strong>de</strong>ssa cama<strong>da</strong> poética e transcen<strong>de</strong>ntal<br />
<strong>de</strong> “Tio Boonmee...”, <strong>de</strong> um projecto<br />
maior <strong>chama</strong>do “Primitive” do<br />
qual a longa-metragem faz parte. O<br />
projecto “Primitive” mergulha na<br />
história <strong>de</strong> Nabua, pequena al<strong>de</strong>ia <strong>da</strong><br />
província <strong>de</strong> Isan, no nor<strong>de</strong>ste tailandês<br />
junto à fronteira com o Laos, através<br />
<strong>de</strong> um grupo <strong>de</strong> adolescentes.<br />
Compõe-se, além do filme, <strong>de</strong> uma<br />
instalação já mostra<strong>da</strong> em várias ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />
europeias, <strong>da</strong> curta “A Letter<br />
to Uncle Boonmee” (que passou no<br />
IndieLisboa), <strong>de</strong> um livro baseado<br />
<strong>nos</strong> <strong>de</strong>poimentos <strong>da</strong>s gentes <strong>da</strong> al<strong>de</strong>ia<br />
que <strong>Apichatpong</strong> entrevistou e nu-<br />
Arquitecto<br />
<strong>de</strong> formação<br />
que cresceu<br />
no nor<strong>de</strong>ste<br />
<strong>da</strong> Tailândia<br />
(Khon Kaen)<br />
antes<br />
<strong>de</strong> rumar<br />
aos EUA<br />
para estu<strong>da</strong>r<br />
<strong>cinema</strong><br />
no Chicago<br />
Art Institute,<br />
<strong>Apichatpong</strong><br />
<strong>Weerasethakul</strong><br />
vive hoje<br />
perto <strong>da</strong> <strong>selva</strong><br />
6 • Sexta-feira 1 Abril 2011 • Ípsilon
Ípsilon • Sexta-feira 1 Abril 2011 • 7
ma instalação ví<strong>de</strong>o <strong>de</strong> 11 minutos,<br />
disponível em www.animateprojects.<br />
org.<br />
“Sinto necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> olhar para a<br />
região on<strong>de</strong> cresci. Normalmente<br />
foco-me em pessoas, <strong>nos</strong> meus sentimentos<br />
em relação a elas. Mas a situação<br />
política na Tailândia <strong>nos</strong> últimos<br />
cinco a<strong>nos</strong> tem sido muito tensa e sinto<br />
que as regiões do nor<strong>de</strong>ste têm<br />
uma forte relação com isso”, começa<br />
<strong>Apichatpong</strong>.<br />
Quis tocar o presente olhando o<br />
passado. Reflectir sobre as revoltas<br />
dos “camisas vermelhas”, que marcaram<br />
a Tailândia <strong>nos</strong> últimos a<strong>nos</strong> e<br />
particularmente em 2010, com um<br />
<strong>de</strong>senlace sangrento poucos dias antes<br />
<strong>de</strong> <strong>Apichatpong</strong> receber a Palma<br />
<strong>de</strong> Ouro. Descobriu Nabua enquanto<br />
viajava pelo nor<strong>de</strong>ste me<strong>nos</strong> turístico<br />
<strong>de</strong> um país que fervilha enquanto copia<br />
as práticas <strong>da</strong>s socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s capitalistas<br />
mantendo forte base tradicionalista<br />
e religiosa.<br />
A al<strong>de</strong>ia foi, entre os a<strong>nos</strong> 1960 e<br />
1980, i<strong>de</strong>ntifica<strong>da</strong> pelo regime como<br />
um bastião comunista. A violência<br />
apertou, os homens foram perseguidos<br />
e os que não morreram fugiram<br />
para a <strong>selva</strong>. Sobraram as viúvas e os<br />
<strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes que <strong>Apichatpong</strong> retrata<br />
em “Primitive”. Descreve o lugar<br />
como uma al<strong>de</strong>ia tipicamente tailan<strong>de</strong>sa,<br />
povoa<strong>da</strong> por velhos e crianças.<br />
Os jovens trabalham na ci<strong>da</strong><strong>de</strong> e regressam<br />
apenas para o período <strong>da</strong><br />
colheita do arroz.<br />
“Fui atingido por esta al<strong>de</strong>ia e pela<br />
sua história <strong>de</strong> <strong>de</strong>saparecimento”,<br />
conta. Hoje com 40 a<strong>nos</strong>, não sentiu<br />
na pele as convulsões políticas do país.<br />
Mas viveu-as indirectamente. “Não<br />
tive a experiência directa que no passado<br />
as pessoas <strong>da</strong>s ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s tiveram.<br />
Com estes adolescentes passa-se o<br />
mesmo, eles experimentam este processo<br />
em segun<strong>da</strong> mão. Por isso sintome<br />
mais próximo <strong>de</strong>les do que se<br />
trabalhasse com as ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iras vítimas.<br />
Tive uma experiência distante e<br />
i<strong>de</strong>ntifico-me com a forma como eles<br />
vivem os acontecimentos <strong>de</strong> hoje.”<br />
A maior crise política <strong>da</strong>s últimas<br />
duas déca<strong>da</strong>s na Tailândia fez <strong>de</strong>zenas<br />
<strong>de</strong> mortos durante os protestos<br />
dos “camisas vermelhas” em Banguecoque,<br />
em Abril e Maio do ano passado.<br />
A população do norte e nor<strong>de</strong>ste<br />
rural <strong>de</strong>sceu à capital para enfrentar<br />
aquelas que vêem como as elites<br />
do país, que acusam <strong>de</strong> terem tomado<br />
o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>pois do golpe <strong>de</strong> Estado<br />
que <strong>de</strong>stituiu o primeiro-ministro<br />
Thaksin Shinawatra, em 2006. Dias<br />
<strong>de</strong>pois, os jornais tailan<strong>de</strong>ses largavam<br />
a tragédia para <strong>da</strong>r lugar ao feito<br />
histórico logrado por <strong>Apichatpong</strong><br />
para o <strong>cinema</strong> <strong>da</strong>quele país. Foi uma<br />
espécie <strong>de</strong> orgulho nacional <strong>de</strong> uma<br />
ban<strong>de</strong>ira com feri<strong>da</strong>s renova<strong>da</strong>s.<br />
“Se olhar para as pessoas, elas vêm<br />
do mesmo tipo <strong>de</strong> regime opressor,<br />
do Exército e <strong>de</strong> outras instituições.<br />
E até hoje não houve nenhum pedido<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>sculpas a este povo”, refere <strong>Apichatpong</strong><br />
sobre os conflitos. Para o<br />
artista, a Tailândia “continua agora<br />
mesmo a ver a violência a acontecer,<br />
o apontar <strong>de</strong> <strong>de</strong>do. Ninguém é suficientemente<br />
corajoso para pedir <strong>de</strong>sculpa,<br />
preferem ficar com as mãos<br />
sujas <strong>de</strong> sangue”.<br />
No filme, a personagem Boonmee<br />
(interpreta<strong>da</strong> por Thanapat Saisaymar)<br />
também refere directamente a<br />
perseguição feita aos comunistas. Ou<br />
se estava com os vermelhos ou contra<br />
eles e, com a morte a aproximar-se,<br />
Boonmee, servo do regime, recor<strong>da</strong><br />
os homens que silenciou. A referência<br />
“não foi planea<strong>da</strong> no início” e surgiu<br />
“<strong>da</strong> necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> ligar a história<br />
<strong>da</strong>quela região à história <strong>de</strong> Boonmee”,<br />
que <strong>Apichatpong</strong> encontrou<br />
num pequeno livro inspirador.<br />
“Tudo está a mu<strong>da</strong>r.<br />
Isso acontece<br />
também no modo<br />
como fazemos filmes,<br />
em que tudo está<br />
a tornar-se digital.<br />
Este filme é uma<br />
<strong>de</strong>spedi<strong>da</strong>, foi filmado<br />
em 16 milímetros<br />
e tem quali<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />
muito artesanais”<br />
Tributos<br />
<strong>Apichatpong</strong> <strong>Weerasethakul</strong> vê “Tio<br />
Boonmee...” – <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iro elemento<br />
do projecto “Primitive” que começou<br />
a mostrar em 2009 – como “um tributo<br />
a to<strong>da</strong> as coisas que estão a morrer”,<br />
a começar pelo protagonista.<br />
Tributo esse que se esten<strong>de</strong> a uma<br />
maneira <strong>de</strong> fazer <strong>cinema</strong>. “Tudo está<br />
a mu<strong>da</strong>r, a transformar-se. Isso acontece<br />
também no modo como fazemos<br />
filmes, em que tudo está a tornar-se<br />
digital. Depois, a forma como trabalhamos,<br />
o mercado, os meios <strong>de</strong> distribuição...<br />
Este filme, nesse sentido,<br />
é uma <strong>de</strong>spedi<strong>da</strong>, foi filmado em 16<br />
milímetros e tem quali<strong>da</strong><strong>de</strong>s muito<br />
artesanais.”<br />
A <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong> ro<strong>da</strong>r em 16 milímetros<br />
ajudou a reduzir o orçamento e serviu<br />
para <strong>da</strong>r ao filme uma textura que recor<strong>da</strong><br />
<strong>da</strong> TV tailan<strong>de</strong>sa que via em<br />
adolescente. “Ain<strong>da</strong> sou <strong>de</strong>sse tempo<br />
em que os programas eram filmados<br />
assim, em estúdio, e em que os monstros<br />
estavam sempre no escuro, para<br />
que não se visse como a caracterização<br />
e o guar<strong>da</strong>-roupa eram maus. Por<br />
isso quis mostrar o modo como me<br />
sentia em relação a essa coisas com<br />
que cresci”, diz. Comenta uma <strong>da</strong>s<br />
cenas mais fala<strong>da</strong>s, em que o fantasma<br />
<strong>da</strong> mulher <strong>de</strong> Boonmee e o filho <strong>de</strong>saparecido<br />
surgem no ecrã. O segundo<br />
está vestido <strong>de</strong> macaco, com um<br />
fato que tem semelhanças a Chewbacca,<br />
<strong>de</strong> “Star Wars”, e uns olhos vermelhos<br />
flamejantes. Uma <strong>da</strong>s personagens,<br />
com a maior serie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>ste<br />
mundo e do outro, pergunta-lhe por<br />
que <strong>de</strong>ixou crescer tanto o cabelo.<br />
<strong>Apichatpong</strong> ri-se do nonsense.<br />
“Quando olho para o <strong>cinema</strong> antigo,<br />
tenho sempre um sentimento duplo,<br />
que por um lado é <strong>de</strong> tristeza por<br />
todos aqueles actores que já <strong>de</strong>sapareceram.<br />
Por outro é <strong>de</strong> divertimento,<br />
porque eles são muito sérios em relação<br />
ao seu papel <strong>de</strong> intérpretes. Queria<br />
que o público tivesse esta sensação<br />
esquisita entre ter vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> chorar<br />
ou <strong>de</strong> rir”, continua.<br />
A personagem do macaco nasceu<br />
<strong>de</strong> um compêndio <strong>de</strong> influências que<br />
vão dos “comics” tailan<strong>de</strong>ses à televisão,<br />
passando pela ficção científica.<br />
Estas e outras homenagens ao passado<br />
fazem com que <strong>Apichatpong</strong> <strong>de</strong>sconfie<br />
quando lhe dizem que está a fazer algo<br />
<strong>de</strong> novo com o <strong>cinema</strong>. “Não sei o que<br />
é novo. Há tantos tipos <strong>de</strong> <strong>cinema</strong> experimental...<br />
É como um universo em<br />
que é impossível i<strong>de</strong>ntificar tudo o que<br />
as pessoas têm vindo a fazer. Não penso<br />
em como inventar qualquer coisa<br />
mas em como posso fazer filmes que<br />
estejam relacionados com os meus<br />
sentimentos. Esse é o meu ângulo. Como<br />
se po<strong>de</strong> ver, o ‘Tio Boonmee’ tem<br />
imensas referências a <strong>cinema</strong> clássico.<br />
Na<strong>da</strong> há <strong>de</strong> inventivo ali.”<br />
Quero recor<strong>da</strong>r<br />
Para <strong>Apichatpong</strong>, “o conceito é o<br />
mais importante” e, no caso <strong>de</strong>ste<br />
filme, começou a construir-se <strong>de</strong>pois<br />
<strong>de</strong> ter encontrado um livro escrito por<br />
O realizador e os actores na ro<strong>da</strong>gem <strong>de</strong> uma<br />
<strong>da</strong>s mais belas sequências do filme: os fantasmas à mesa<br />
O Tio<br />
Boonmee<br />
está a morrer<br />
e a sua vi<strong>da</strong> -<br />
as suas outras<br />
vi<strong>da</strong>s e os<br />
seus<br />
fantasmas -<br />
sentam-se<br />
à sua mesa<br />
8 • Sexta-feira 1 Abril 2011 • Ípsilon
ERIC GAILLARD/ REUTERS<br />
“Blissfully<br />
Yours”,<br />
“Tropical<br />
Malady”<br />
e “Sindromes<br />
and a<br />
Century”,<br />
obras<br />
anteriores<br />
LUCAS JACKSON/ REUTERS<br />
um monge budista, sobre um homem<br />
(Boonmee) que certo dia apareceu no<br />
templo garantindo que, enquanto<br />
meditava, podia recor<strong>da</strong>r ao <strong>de</strong>talhe<br />
as suas vi<strong>da</strong>s passa<strong>da</strong>s. “Tio Boonmee”<br />
não é uma a<strong>da</strong>ptação <strong>da</strong> obra<br />
<strong>de</strong> 1983, porque <strong>Apichatpong</strong> percebeu<br />
que não seria capaz <strong>de</strong> fazê-lo. É,<br />
antes, um “diário pessoal” em que o<br />
realizador armazena algumas <strong>da</strong>s suas<br />
próprias memórias.<br />
“O livro é incrível, porque tem uma<br />
linha temporal cheia <strong>de</strong> saltos, entre<br />
várias vi<strong>da</strong>s e memórias. Sou fascinado<br />
pelo acto <strong>de</strong> recor<strong>da</strong>r, <strong>de</strong> como <strong>nos</strong><br />
conseguimos lembrar <strong>da</strong>s coisas. E<br />
sou uma pessoa muito esqueci<strong>da</strong>. Foi<br />
por isso que quis fazer um filme sobre<br />
as minhas memórias – eu quero recor<strong>da</strong>r”,<br />
vinca. Depois <strong>de</strong> ler o livro,<br />
percebeu que estava perante um homem<br />
que “era uma máquina <strong>de</strong> memórias”,<br />
que voltava a vi<strong>da</strong>s passa<strong>da</strong>s<br />
como se fossem sonhos. “Num certo<br />
sentido é como o <strong>cinema</strong>, on<strong>de</strong> po<strong>de</strong>mos<br />
saltar no tempo.”<br />
O realizador, que ao mesmo tempo<br />
que faz projectos como este já trabalhou<br />
em peque<strong>nos</strong> filmes para a Dior<br />
e a Louis Vuitton, começou então a<br />
pensar que seria <strong>de</strong>safiante fazer um<br />
filme a partir <strong>da</strong>li. Hoje não tem dúvi<strong>da</strong>s:<br />
“Acho que falhei”. Porquê?<br />
“Quando li o livro foi tão fantástico…<br />
De ca<strong>da</strong> vez que o leio tenho imagens<br />
diferentes. Boonmee chegou mesmo<br />
a ser um fantasma. E como é que se<br />
põe isso em imagens?” Explica que<br />
com o livro “a imaginação solta-se<br />
mais, não tem amarras”. Já o <strong>cinema</strong><br />
“é limitação”. “E é por isso que ponho<br />
tanto <strong>de</strong> mim e me<strong>nos</strong> do livro.” Entre<br />
as criações narrativas <strong>de</strong> <strong>Apichatpong</strong>,<br />
está o tomo em que uma princesa<br />
(também retira<strong>da</strong> do imaginário<br />
<strong>da</strong> TV e <strong>da</strong>s telenovelas tailan<strong>de</strong>sas)<br />
faz sexo com um peixe-gato num lago.<br />
É uma alegoria do belo e <strong>da</strong> i<strong>de</strong>ologia<br />
do belo, “<strong>de</strong> como as pessoas querem<br />
manter a mesma aparência” e seguir<br />
os padrões.<br />
Til<strong>da</strong><br />
Swinton tem<br />
já encontro<br />
marcado com<br />
o cineasta<br />
tailandês num<br />
projecto sobre<br />
o rio Mekong<br />
Comentário<br />
Vasco<br />
Câmara<br />
Tim Burton, e o regresso ao planeta dos<br />
macacos: “Uma <strong>da</strong>s coisas que gosto <strong>de</strong>ste<br />
festival [Cannes] é ver coisas que não vemos<br />
habitualmente. Vemos muitos filmes, sabem, o<br />
mundo está a ficar ca<strong>da</strong> vez mais pequeno e os<br />
filmes tornam-se mais oci<strong>de</strong>ntalizados ou<br />
hollywoodizados e com este filme senti que estava a ver<br />
[alguma coisa] <strong>de</strong> outro país, <strong>de</strong> outra perspectiva. Pelos<br />
temas, usando elementos <strong>de</strong> fantasia <strong>de</strong> uma forma que<br />
nunca tinha visto antes. Por isso senti que era um bonito<br />
e estranho sonho que não se vê com frequência.”<br />
Isto era Tim Burton, citado pelo “Toronto Star”, na<br />
conferência <strong>de</strong> imprensa do Palmarés <strong>de</strong> Cannes 2010,<br />
cujo júri, que ele presidiu, atribuiu a Palma <strong>de</strong> Ouro a “O<br />
Tio Boonmee que se lembra <strong>da</strong>s suas vi<strong>da</strong>s anteriores”,<br />
<strong>de</strong> <strong>Apichatpong</strong> <strong>Weerasethakul</strong>. Foi <strong>da</strong>queles palmarés<br />
em que um festival se mostra à frente, <strong>da</strong>queles palmarés<br />
que, para além <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r fazer bem a um filme, faz bem<br />
a um festival – até porque, no caso concreto, elevou<br />
para uma fasquia <strong>de</strong> excelência uma competição que na<br />
reali<strong>da</strong><strong>de</strong> foi só sofrível – e ao <strong>cinema</strong>.<br />
E foi um abanão – como<br />
aquele outro, em 1999, em<br />
que o júri presidido por David<br />
Na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />
isto é <strong>cinema</strong> em 3D.<br />
Mas neste caso,<br />
para o ver, é preciso<br />
tirar os óculos<br />
<strong>Apichatpong</strong> <strong>Weerasethakul</strong> cumprimenta o presi<strong>de</strong>nte do júri Tim Burton na noite do Palmarés<br />
<strong>de</strong> Cannes 2010 – ro<strong>de</strong>ados pelos outros premiados, como Juliette Binoche ou Javier Bar<strong>de</strong>m<br />
Para sermos melhores espectadores<br />
Cronenberg se <strong>de</strong>ixou invadir<br />
pela correria <strong>de</strong> “Rosetta”,<br />
dos irmãos Dar<strong>de</strong>nne, e, para<br />
cúmulo dos seus pecados,<br />
premiou os não-actores <strong>de</strong><br />
“L’Humanité”, <strong>de</strong> Bruno<br />
Dumont, que tinha irritado<br />
muita gente e que ain<strong>da</strong> ficou<br />
com o Gran<strong>de</strong> Prémio do Júri.<br />
Para alguns a <strong>selva</strong> <strong>de</strong><br />
<strong>Apichatpong</strong> foi uma epifania,<br />
para outros uma agressão. Aplausos entusiasmados<br />
perante o anúncio do júri (aquilo que se ouviu na sala<br />
em que a imprensa seguia a cerimónia dos prémios),<br />
entusiasmos no “Mon<strong>de</strong>” ou no “Libération” (e no<br />
PÚBLICO), um “vi-o duas vezes e aborreci-me duas<br />
vezes” (“L’Express”, mas ca<strong>da</strong> um aborrece-se com<br />
aquilo que po<strong>de</strong>) e um “grotesca Palma <strong>de</strong> Ouro” no “El<br />
País”, título e artigo que sintetizaram, como lhe <strong>chama</strong>r?,<br />
o medo, a intimi<strong>da</strong>ção, perante o <strong>de</strong>sconhecido. Uma<br />
guerrilha cultural, o “mainstream” feita virgem ofendi<strong>da</strong><br />
pelo “alternativo”? O que quer que ca<strong>da</strong> uma <strong>de</strong>ssas<br />
categorias seja...<br />
O último filme <strong>de</strong> <strong>Weerasethakul</strong>, “ou o que quer<br />
que essa coisa seja”, escrevia-se nesse artigo do diário<br />
espanhol, seria uma invenção dos festivais, “do ridículo<br />
gueto dos festivais”. Mas que outra coisa po<strong>de</strong> ser um<br />
festival, <strong>de</strong> <strong>cinema</strong>, <strong>de</strong> música, <strong>de</strong> teatro, <strong>de</strong> literatura,<br />
<strong>de</strong> qualquer coisa, a não ser um gueto (mais ou me<strong>nos</strong><br />
ridículo) on<strong>de</strong> – é isso que se espera – se tacteia o futuro<br />
e às vezes se encontra e outras vezes se vê miragens a<br />
ca<strong>da</strong> esquina?<br />
Acusações, ao júri, na pessoa do seu presi<strong>de</strong>nte,<br />
<strong>de</strong> fascínio pelo “vanguardismo”, pelo “rebuscado<br />
hermetismo” por uma “poética difícil <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificar”,<br />
pela “patética linguagem expressiva” <strong>de</strong> <strong>Weerasethakul</strong>?<br />
Sim, isso tudo. Mas a palavra que aqui interessa é<br />
“fascínio”. Ou esse é um pecado, na perspectiva <strong>de</strong><br />
quem se <strong>de</strong>scobre incapaz <strong>de</strong> aí chegar?<br />
Não passou <strong>de</strong>spercebido o facto <strong>de</strong> no ano do seu<br />
“blockbuster” “Alice no País <strong>da</strong>s Maravilhas” – filme<br />
tão normalizado pelos efeitos digitais e pelo 3D... – Tim<br />
Burton ter sido seduzido pela estranheza artesanal,<br />
ele que em tempos já foi cineasta <strong>selva</strong>gem e estranho<br />
(também <strong>de</strong> “poética difícil <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificar”?). Foram-lhe<br />
feitos juízos <strong>de</strong> intenções: o americano quis fazer-se<br />
“cool” ao <strong>da</strong>r o prémio ao tailandês, o gesto terá sido<br />
calculista (até se escreveu: se ele gosta <strong>de</strong>sses filmes,<br />
porque é que não os faz em Hollywood?). Preferimos<br />
esta versão, me<strong>nos</strong> cínica embora subjectiva como as<br />
outras: os fantasmas (e não só a criatura felpu<strong>da</strong> saí<strong>da</strong><br />
<strong>de</strong> uma versão barata <strong>de</strong> “Star Wars”) recor<strong>da</strong>ram a Tim<br />
Burton o cineasta que ele já foi, sem CGI e sem 3D. Como<br />
quem recor<strong>da</strong> vi<strong>da</strong>s passa<strong>da</strong>s. O Tio Burton lembrou-se<br />
<strong>da</strong>s suas vi<strong>da</strong>s anteriores.<br />
Não é outro o <strong>de</strong>safio <strong>de</strong> <strong>Apichatpong</strong> <strong>Weerasethakul</strong><br />
com este filme que faz o levantamento <strong>da</strong> memória <strong>de</strong><br />
uma cultura específica, a do Noroeste <strong>da</strong> Tailândia,<br />
que (<strong>nos</strong>) mergulha numa floresta animista – a curta<br />
“Letter do Uncle Boonmee”, exibi<strong>da</strong> o ano passado no<br />
IndieLisboa, foi um preliminar, um agitar <strong>da</strong> memória<br />
para a natureza começar a falar – mas, sobretudo, que<br />
<strong>nos</strong> confronta no lugar universal <strong>de</strong> espectadores:<br />
lembra-<strong>nos</strong> aquilo que já fomos, nesta e noutras vi<strong>da</strong>s <strong>de</strong><br />
espectadores.<br />
É uma experiência <strong>de</strong> estados alterados “O Tio<br />
Boonmee que se lembra <strong>da</strong>s suas vi<strong>da</strong>s anteriores”,<br />
uma reserva <strong>de</strong> sensações, <strong>de</strong> energia e <strong>de</strong> imaginação<br />
que o espectador <strong>de</strong>scobre existir (e feliz o que assim<br />
se <strong>de</strong>scobre) e que o filme nele vai apurando. Numa<br />
entrevista à revista “Cinemascope”, <strong>Weerasethakul</strong><br />
falava <strong>da</strong> diferença entre as suas instalações e os seus<br />
filmes. No primeiro caso, no espaço <strong>de</strong> uma galeria,<br />
espectador e instalação seriam como dois animais que se<br />
farejam mutuamente, o espectador estando activo; numa<br />
sala <strong>de</strong> <strong>cinema</strong> o espectador seria como um “zombie”,<br />
subjugado e hipnotizado perante o po<strong>de</strong>r “extremo” do<br />
filme. Ficámos subjugados perante o que disse o senhor<br />
<strong>Weerasethakul</strong>. E ficámos subjugados perante o filme. O<br />
ecrã po<strong>de</strong> tornar-se “branco”, aberto a que projectemos<br />
nele as <strong>nos</strong>sas memórias. É experiência física: um filme,<br />
uma câmara, os animais e a natureza permitindo esta<br />
sensação <strong>de</strong> estar sujeito à transformação.<br />
Coisa <strong>de</strong> “pureza”? Na<strong>da</strong> disso, como po<strong>de</strong> ser “puro”<br />
o <strong>cinema</strong> <strong>de</strong> um arquitecto <strong>de</strong> formação, tailandês,<br />
que estudou <strong>cinema</strong> em Chicago e que cita Antonioni,<br />
Jacques Tourneur, o <strong>cinema</strong> <strong>de</strong> ficção científica ou os<br />
subprodutos <strong>da</strong> TV tailan<strong>de</strong>sa?<br />
Coisa “primitiva”? Sim, no sentido — na<strong>da</strong> elitista,<br />
já agora – do <strong>cinema</strong> como espectáculo que <strong>nos</strong> <strong>de</strong>ixa<br />
boquiabertos <strong>de</strong> espanto. Como já estivemos. Como já<br />
fomos, espectadores me<strong>nos</strong> formatados.<br />
Na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, isto é <strong>cinema</strong> em 3D. Mas neste caso, para<br />
o ver, é preciso tirar os óculos.<br />
Ípsilon • Sexta-feira 1 Abril 2011 • 9
A estrutura é elíptica e não <strong>nos</strong><br />
é dito muito do que po<strong>de</strong> ser percebido<br />
ou interpretado. Daí nasce a sequência<br />
em que Boonmee, já embrenhado<br />
na <strong>selva</strong> e no mundo animista<br />
<strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as coisas vivas e transformáveis,<br />
fala <strong>de</strong> um sonho que teve – outra<br />
vez com os olhos rubros a observarem-no<br />
a partir <strong>da</strong>s trevas. A voz do<br />
velho que se apresta a morrer para<br />
nascer <strong>de</strong> novo é pinta<strong>da</strong> por fotografias<br />
<strong>da</strong> al<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> Nabua, em que aparecem<br />
adolescentes com uniformes<br />
militares acompanhados do macaco<br />
que percorre o filme. “São as minhas<br />
memórias <strong>de</strong> ter trabalhado com os<br />
adolescentes <strong>da</strong>quela al<strong>de</strong>ia. O sonho<br />
<strong>de</strong> Boonmee é sobre o futuro e ao<br />
mesmo tempo sobre <strong>cinema</strong>. Estão<br />
lá to<strong>da</strong>s as referências, que vão dos<br />
filmes <strong>de</strong> ficção científica <strong>de</strong> Chris<br />
Marker a Antonioni e ‘Blow Up’”, refere.<br />
DAMIR SAGOLJ/ REUTERS<br />
“Os problemas que<br />
tive [na Tailândia]<br />
fizeram-me perceber<br />
o contexto geral e não<br />
apenas a questão do<br />
<strong>cinema</strong>. São limites<br />
<strong>de</strong> expressão que<br />
existem, porque se<br />
vive numa socie<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
conservadora que age<br />
através <strong>da</strong> violência.<br />
Sufoca-se a liber<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> expressão em<br />
nome <strong>da</strong> tradição”<br />
são em nome <strong>da</strong> tradição. É com isso<br />
que tenho lutado”, <strong>de</strong>nuncia.<br />
A religião budista, comum à larga<br />
maioria <strong>da</strong> população, é um assunto<br />
sensível para aquela monarquia constitucional.<br />
E, ao mesmo tempo, um<br />
dos temas recorrentes em <strong>Apichatpong</strong>.<br />
“Fui criado num ambiente budista<br />
mas a minha família não era<br />
louca por todos os rituais. Claro que<br />
íamos a templos mas, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> o<br />
meu pai morrer em 2003, senti-me<br />
mais próximo do budismo como um<br />
caminho para estar com os meus sentimentos<br />
e a minha mente.”<br />
Ao contrário do que se escreveu<br />
muitas vezes <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> o cineasta<br />
agra<strong>de</strong>cer a “todos os espíritos e todos<br />
os fantasmas <strong>da</strong> Tailândia” quando<br />
venceu a Palma <strong>de</strong> Ouro, <strong>Apichatpong</strong><br />
não é assim tão místico. “Hoje olho<br />
para a religião <strong>de</strong> um ponto <strong>de</strong> vista<br />
mais científico. Mesmo a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> reencarnação,<br />
não posso dizer que acredito<br />
nisso, mas é possível, só precisamos<br />
<strong>de</strong> alguma prova”, conce<strong>de</strong>.<br />
Fala com o compasso repousado<br />
dos seus filmes. Vive fora <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />
a 30 quilómetros <strong>de</strong> Chiang Mai, uma<br />
<strong>da</strong>s principais urbes do norte do país,<br />
“numa al<strong>de</strong>ia muito tranquila”. A <strong>selva</strong><br />
continua a ser a sua preferência.<br />
“Mesmo assim não estou acostumado.<br />
Quando vamos à <strong>selva</strong> temos medo<br />
<strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as coisas que não <strong>nos</strong> são<br />
familiares. Os sons, a repetição do<br />
ver<strong>de</strong>, a camuflagem que faz as coisas<br />
não parecerem claras – é por isso que<br />
temos medo. Os meus filmes são uma<br />
tentativa <strong>de</strong> me relacionar com essa<br />
reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, ain<strong>da</strong> que continue a ser<br />
um homem <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong>”, admite.<br />
Foi <strong>da</strong> <strong>selva</strong> que bebeu um dos principais<br />
elementos do seu trabalho: o<br />
som, que em “Tio Boonmee” é uma<br />
massa espessa que enche a sala. “Para<br />
mim o som é tão importante como<br />
as imagens, e às vezes mais. É como<br />
uma orquestração, é conduzir música.<br />
Eu sou obcecado com o som, é por<br />
isso que adoro o sistema ‘dolby surround’,<br />
porque estimula a <strong>nos</strong>sa percepção.”<br />
E é também por isso que já<br />
disse mais <strong>de</strong> uma vez que os seus<br />
filmes não funcionam em DVD.<br />
A orquestra <strong>de</strong> <strong>Apichatpong</strong> po<strong>de</strong><br />
ser a mesma <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> Cannes, mas<br />
tem outro peso. O sucesso não o faz<br />
trabalhar com sofreguidão. Quer<br />
manter-se tranquilo e lançar-se na<br />
produção, ao mesmo tempo que explora<br />
outras vertentes artísticas. “Se<br />
não conseguir ter o financiamento<br />
necessário para voltar a fazer filmes,<br />
estou <strong>de</strong> bem com isso. Contenta-me<br />
o que tenho. Por isso é que às vezes<br />
me dizem ‘por que és tão preguiçoso?’<br />
E eu posso sempre respon<strong>de</strong>r que<br />
estou a viajar”.<br />
“O Tio Boonmee que se Lembra <strong>da</strong>s<br />
Suas Vi<strong>da</strong>s Anteriores” acabou por<br />
ser bem aceite na Tailândia, on<strong>de</strong> foi<br />
o filme escolhido na hora <strong>de</strong> indicar<br />
um título para os Óscares. O reconhecimento<br />
<strong>de</strong>ixa <strong>Apichatpong</strong> contente,<br />
principalmente por lhe permitir chegar<br />
às pessoas. “É um encorajamento<br />
DAMIR SAGOLJ/ REUTERS<br />
Quando Cannes <strong>da</strong>va a Palma<br />
a “Tio Boonmee”, os “camisas<br />
vermelhas” rurais protestavam<br />
contra o governo tailandês<br />
e as elites que governam o país,<br />
espelho real dos fantasmas<br />
políticos do filme<br />
Cinema honesto<br />
Não foi <strong>de</strong> fácil digestão para alguma<br />
crítica a consagração em Cannes <strong>de</strong><br />
um tipo que põe os créditos a meio<br />
do filme (por acaso até não faz isso<br />
neste filme), que trabalha com actores<br />
não profissionais, que faz longas sequências<br />
<strong>de</strong> pla<strong>nos</strong> sem diálogos nem<br />
aquilo a que <strong>nos</strong> acostumámos a <strong>chama</strong>r<br />
acção, entrecruzando-as com<br />
uma componente quase esotérica ou<br />
transcen<strong>de</strong>ntal.<br />
<strong>Apichatpong</strong> começou a mostrar-se<br />
em Cannes em 2002, na secção Un<br />
Certain Regard, com “Blissfully<br />
Yours”, e prosseguiu com “Tropical<br />
Malady”, que mereceu o Prémio do<br />
Júri dois a<strong>nos</strong> <strong>de</strong>pois. É duro resumir<br />
os filmes numas quantas frases, mas<br />
<strong>de</strong>stes po<strong>de</strong> dizer-se que são ambos<br />
sobre relações amorosas, os trabalhadores<br />
migrantes (no caso do primeiro)<br />
e a homossexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> (no segundo).<br />
E isto é extremamente redutor.<br />
“Penso que os filmes são sempre<br />
pessoais, são sobre como sermos honestos<br />
con<strong>nos</strong>co próprios. E claro que<br />
quando se é honesto não se po<strong>de</strong><br />
agra<strong>da</strong>r to<strong>da</strong> a gente. Claro que estou<br />
a falar <strong>de</strong> um tipo particular <strong>de</strong> <strong>cinema</strong>.<br />
Depois há outro tipo que todos<br />
conhecemos, que é o ‘mainstream’.<br />
Mas para mim, com o meu interesse<br />
pelas artes visuais e a minha boa sorte<br />
– porque tenho um bom produtor,<br />
que me compreen<strong>de</strong> e me dá liber<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
– consigo ser honesto comigo <strong>nos</strong><br />
meus filmes.”<br />
Não há gran<strong>de</strong>s segredos no modo<br />
como trabalha. Em 1999 criou a sua<br />
produtora, Kick The Machine, e a partir<br />
<strong>da</strong>í tratou <strong>de</strong> olhar em volta e encontrar<br />
as pessoas com quem lhe interessava<br />
fazer caminho.<br />
“Acho sempre que há muitas pessoas<br />
mais interessantes que eu”, ri-se.<br />
“Escolho sempre alguém com quem<br />
possa apren<strong>de</strong>r. Muitas <strong>da</strong>s vezes mudo<br />
o guião para que possa encaixar<br />
os ensinamentos que vou recebendo.<br />
Isso permite que <strong>nos</strong> encontremos a<br />
meio caminho.”<br />
No essencial, continua a olhar para<br />
um país e uma região que têm não<br />
uma mas várias histórias <strong>de</strong> violência.<br />
“A Tailândia é um país violento, tem<br />
passado por intermináveis regimes<br />
opressivos. Mesmo que quando se é<br />
turista se vá lá e tudo pareça livre e<br />
natural, quando se lá vive há imensas<br />
limitações”, lamenta.<br />
Já teve seu quinhão <strong>de</strong> problemas<br />
com as autori<strong>da</strong><strong>de</strong>s. E qualifica <strong>de</strong><br />
“inocentemente brutais” os regimes<br />
do Su<strong>de</strong>ste Asiático e a própria China.<br />
“Os problemas que tive fizeram-me<br />
perceber o contexto geral e não apenas<br />
a questão do <strong>cinema</strong>. São limites<br />
<strong>de</strong> expressão que existem, porque se<br />
vive numa socie<strong>da</strong><strong>de</strong> conservadora<br />
que age através <strong>da</strong> violência. Há censura<br />
e sufoca-se a liber<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> exprespara<br />
os realizadores in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes.<br />
A Tailândia percebeu que há um público<br />
para este tipo <strong>de</strong> <strong>cinema</strong>. Não<br />
temos <strong>cinema</strong>tecas mas temos locais<br />
que agora abrem as suas portas para<br />
os cineastas in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes falarem<br />
com o público.”<br />
Paralelamente, tem um percurso<br />
na instalação e na ví<strong>de</strong>o-arte. Ca<strong>da</strong><br />
vez trabalha mais com projectos como<br />
“Primitive”, que <strong>de</strong>pois se ramificam<br />
e on<strong>de</strong> o <strong>cinema</strong> é apenas uma<br />
<strong>da</strong>s formas <strong>de</strong> expressão. Para Julho,<br />
apresentará já a primeira parte <strong>de</strong> um<br />
estudo que parte do gran<strong>de</strong> rio<br />
Mekong, que nasce nas montanhas<br />
do Tibete para atravessar a província<br />
<strong>de</strong> Yunnan, na China, o Myanmar,<br />
Laos, Tailândia, Camboja e Vietname.<br />
O resultado será exposto no Irish Museum<br />
of Mo<strong>de</strong>rn Art, em Dublin.<br />
“Quero focar-me na escuridão. A escuridão<br />
no <strong>cinema</strong>, na História e também<br />
a escuridão à volta <strong>da</strong>quele rio”,<br />
diz.<br />
Está concentrado <strong>nos</strong> fenóme<strong>nos</strong><br />
naturais, e avisa que isto em na<strong>da</strong> tem<br />
que ver com a tragédia que se abateu<br />
sobre o Japão. “Estou interessado há<br />
muito tempo na i<strong>de</strong>ia <strong>da</strong> mãe natureza<br />
e <strong>de</strong> quando falamos nela ser aparentemente<br />
uma coisa boa. Mas na<br />
ver<strong>da</strong><strong>de</strong> esta mãe é muito cruel, é má<br />
às vezes. Quero olhar para a natureza<br />
sob essa perspectiva, <strong>de</strong> qualquer coisa<br />
que po<strong>de</strong> catastrófica.” E, no<br />
Mekong, a principal catástrofe são as<br />
recorrentes cheias.<br />
Também este novo projecto terá o<br />
seu braço <strong>de</strong> <strong>cinema</strong>, no qual participará<br />
a actriz Til<strong>da</strong> Swinton, que <strong>de</strong>ve<br />
visitar a Tailândia ain<strong>da</strong> este ano.<br />
“Sou fascinado por ela <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que vejo<br />
<strong>cinema</strong> <strong>de</strong> um modo mais sério,<br />
logo a partir dos filmes que ela fez<br />
com Derek Jarman. Soube que ela<br />
gosta do meu trabalho e começámos<br />
a comunicar. Fico sensibilizado por<br />
estar disposta a quebrar esta fronteira.<br />
Gosto <strong>de</strong> quebrar fronteiras no<br />
<strong>cinema</strong> e na arte, e acho que ela é<br />
uma <strong>da</strong>s poucas que percebe essa<br />
vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> partilhar.”<br />
Para já, continua a seguir com gran<strong>de</strong><br />
interesse o trabalho <strong>de</strong> Tsai Mingliang<br />
e Hou Hsiao-Hsien, por quem<br />
tem “muita admiração”, e <strong>de</strong> Jacques<br />
Rivette, Terrance Davis ou Manoel <strong>de</strong><br />
Oliveira. “Não o digo por ele ser português,<br />
e nem quero falar <strong>da</strong> i<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
que tem. Mas o facto <strong>de</strong> conseguir<br />
fazer filmes tão maravilhosos uma e<br />
outra vez é <strong>de</strong> loucos e ao mesmo<br />
tempo é muito bom.”<br />
<strong>Apichatpong</strong> <strong>Weerasethakul</strong> quer<br />
encontrar meios <strong>de</strong> contornar o impacto<br />
díspar que um filme visto numa<br />
sala e as obras que estão num museu<br />
têm nas pessoas. “Para mim é muito<br />
interessante po<strong>de</strong>r usar diferentes<br />
meios, <strong>de</strong>safiar as tais fronteiras <strong>de</strong><br />
que falava. Claro que o <strong>cinema</strong> é arte<br />
mas o modo como o percepcionamos<br />
ain<strong>da</strong> é muito diferente. Quero encontrar<br />
caminhos para criar qualquer<br />
coisa... Qualquer coisa que mostre<br />
tudo.”<br />
Mesmo que sejam fantasmas.<br />
10 • Sexta-feira 1 Abril 2011 • Ípsilon
COLECÇÃO CINEMATECA PORTUGUESA - MUSEU DO CINEMA<br />
Quando eles filmav<br />
Saíram para as ruas <strong>de</strong> câmaras nas mãos logo no dia 25 <strong>de</strong> Abril. Ocuparam o instituto do <strong>cinema</strong> e<br />
as notícias não chegavam. Havia todo um país a mostrar. Muitos <strong>de</strong>sses filmes nunca mais foram v<br />
12 • Sexta-feira 1 Abril 2011 • Ípsilon
vam a revolução<br />
e a censura, filmaram ocupações, fábricas em auto-gestão, al<strong>de</strong>ias em Trás-os-Montes on<strong>de</strong><br />
vistos. Vamos vê-los no Panorama, a partir <strong>de</strong> hoje, S. Jorge, Lisboa. Alexandra Prado Coelho<br />
Tinham pedido a José Nascimento<br />
que, aproveitando o facto <strong>de</strong> ir frequentemente<br />
montar filmes nas instalações<br />
<strong>da</strong> televisão, tentasse perceber<br />
como ia ser o golpe que se sabia<br />
que estava a ser preparado. O cineasta<br />
não soube tudo mas conseguiu algumas<br />
informações. “Sabíamos que<br />
as rádios iam passar o Grândola Vila<br />
Morena e que isso seria o sinal <strong>de</strong> arranque”.<br />
Na noite <strong>de</strong> 24 <strong>de</strong> Abril saiu<br />
para a rua à procura <strong>de</strong> sinais. Lisboa<br />
estava calma. “Andámos até às duas<br />
<strong>da</strong> manhã, mas só tar<strong>de</strong> começámos<br />
a ver algumas movimentações, sobretudo<br />
junto ao Rádio Clube Português.”<br />
Decidiram que o melhor seria dormirem<br />
algumas horas, e no dia 25<br />
levantaram-se cedo, passaram pela<br />
produtora Telecine, conseguiram<br />
uma câmara <strong>de</strong> 16 milímetros e foram<br />
para o Largo do Carmo filmar a revolução.<br />
No Carmo a confusão era já<br />
muita. Outro cineasta e produtor, António<br />
Cunha Telles, tinha ouvido as<br />
notícias na rádio e fora imediatamente<br />
para o local. “Por acaso tinha uma<br />
câmara <strong>de</strong> filmar e fui com ela <strong>de</strong>baixo<br />
do braço. Fiquei à espera que acontecessem<br />
coisas importantes.”<br />
O ambiente era <strong>de</strong> tensão. Marcelo<br />
Caetano <strong>de</strong>ntro do quartel, Salgueiro<br />
Maia, à frente <strong>da</strong>s tropas revolucionárias,<br />
no exterior. “O Salgueiro Maia<br />
“De início<br />
só me interessava<br />
o registo, essa era<br />
a preocupação,<br />
e a <strong>nos</strong>sa<br />
disponibili<strong>da</strong><strong>de</strong> total.<br />
Estávamos a viver<br />
um período único<br />
e teríamos que <strong>da</strong>r<br />
tudo por tudo para<br />
estar nesse processo”<br />
Rui Simões<br />
disse que às três horas abria caminho<br />
a fogo”, conta Cunha Telles. “Eu estava<br />
<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um cafezinho, saí e <strong>de</strong><br />
um lado estava a GNR e do outro as<br />
tropas do Salgueiro Maia. Quando<br />
quis voltar para <strong>de</strong>ntro a porta já estava<br />
fecha<strong>da</strong>.” Ficou à espera, guar<strong>da</strong>ndo<br />
a única bobine <strong>de</strong> filme que<br />
tinha para um momento crucial. E o<br />
momento aconteceu. “Às três horas<br />
o Salgueiro Maia resolve atacar e, ao<br />
contrário do que se diz, houve mesmo<br />
fogo. Filmei as bazucas que foram dispara<strong>da</strong>s<br />
contra a porta do quartel do<br />
Carmo, imagens que foram <strong>de</strong>pois<br />
usa<strong>da</strong>s em pré-genérico do ‘As Armas<br />
e o Povo’”.<br />
O filme, <strong>de</strong> 1975, assinado pelo colectivo<br />
dos Trabalhadores <strong>da</strong> Activi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
Cinematográfica, é um dos vários<br />
que po<strong>de</strong>m ser vistos a partir <strong>de</strong><br />
hoje e até dia 10 no São Jorge, em Lisboa,<br />
no Panorama – 5ª Mostra do Documentário<br />
Português (“As Armas e<br />
o Povo”, dia 2 às 21h30). Numa edição<br />
que lança a pergunta “Como se relaciona<br />
o documentário português com<br />
o mundo hoje?”, e on<strong>de</strong> serão exibidos<br />
os mais recentes documentários<br />
<strong>de</strong> realizadores portugueses, regressa-se<br />
aos dias <strong>da</strong> revolução para <strong>de</strong>scobrir,<br />
através <strong>de</strong> filmes que em muitos<br />
casos passaram uma vez na televisão<br />
e nunca mais foram vistos, como<br />
era filmar num momento <strong>de</strong> “urgência”,<br />
em que havia todo um país novo<br />
a mostrar.<br />
“Estava sempre tudo a acontecer,<br />
a to<strong>da</strong> a hora e em todo o lado, e era<br />
muito complicado conseguirmos<br />
acompanhar”, recor<strong>da</strong> José Nascimento.<br />
“Havia sempre notícias cruza<strong>da</strong>s.<br />
E isso para quem quer filmar<br />
acontecimentos é o pior que po<strong>de</strong><br />
acontecer. Não há maneira <strong>de</strong> saber<br />
o que é mais importante, ou se chegamos<br />
lá e já acabou. Havia essa fragili<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> não se saber se quando<br />
chegássemos ao acontecimento ain<strong>da</strong><br />
haveria acontecimento.”<br />
E o Couraçado Potemkin?<br />
Tudo se passava a uma veloci<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
alucinante. Os cineastas começaram<br />
a organizar-se e a 29 <strong>de</strong> Abril ocuparam<br />
as instalações do Instituto Português<br />
<strong>de</strong> Cinema, criando as <strong>chama</strong><strong>da</strong>s<br />
Uni<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> Produção. “Não estive<br />
na ocupação do IPC mas estive na <strong>da</strong><br />
censura”, conta Cunha Telles. “É que,<br />
mesmo <strong>de</strong>pois do 25 <strong>de</strong> Abril, a censura<br />
continua a existir. Eu ia estrear<br />
o filme ‘Jaime’, do António Reis, e a<br />
censura, muito zelosa, telefonou-me<br />
a dizer que não podia. Agarrei no [músico]<br />
Zeca Afonso e no dia seguinte,<br />
<strong>de</strong> madruga<strong>da</strong>, juntamente com outros<br />
camara<strong>da</strong>s, fomos ocupar a censura.”<br />
A cena teve momentos caricatos,<br />
como acontecia por aqueles dias.<br />
“Quando entrámos <strong>de</strong>scobrimos que<br />
havia uma sala fecha<strong>da</strong> on<strong>de</strong> se ouviam<br />
uns choros. Eram as secretárias<br />
<strong>da</strong> censura que se tinham fechado ali<br />
com medo <strong>de</strong> serem fuzila<strong>da</strong>s. Lá as<br />
convencemos a abrir a porta e explicámos<br />
que iam ficar <strong>de</strong>semprega<strong>da</strong>s<br />
porque a censura ia acabar, mas que<br />
<strong>de</strong> resto não tinham na<strong>da</strong> a temer porque<br />
ninguém as ia fuzilar.”<br />
Com as chaves <strong>da</strong> censura na mão,<br />
Cunha Telles dirigiu-se para a Cova<br />
<strong>da</strong> Moura, o quartel-general <strong>da</strong> Junta<br />
<strong>de</strong> Salvação Nacional. Falou com um<br />
tenente “ain<strong>da</strong> muito jovem”, que<br />
escreveu o documento <strong>de</strong>cretando o<br />
fim <strong>da</strong> censura em filmes para adultos.<br />
À saí<strong>da</strong>, o militar perguntou ao<br />
realizador: “Então, e ‘O Couraçado<br />
Potemkin’, quando é que sai?”<br />
Na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, Telles tinha já o filme<br />
<strong>de</strong> Eisenstein. “Tinha feito um acordo<br />
com os russos em que teria os direitos<br />
a partir do dia em que fosse possível<br />
exibir oficialmente em Portugal, por<br />
isso o filme estava na prateleira à espera.”<br />
Não esperou muito mais: no<br />
primeiro 1º <strong>de</strong> Maio em liber<strong>da</strong><strong>de</strong>, “O<br />
Couraçado Potemkin” estreava, em<br />
glória, no <strong>cinema</strong> Império, na Alame<strong>da</strong>,<br />
em Lisboa. “As pessoas estavam<br />
a reunir-se na Alame<strong>da</strong> para comemorar<br />
o 1º <strong>de</strong> Maio quando o pano<br />
com ‘O Couraçado Potemkin’ começa<br />
a ser içado na frontaria imensa do<br />
Império. Teve a maior salva <strong>de</strong> palmas<br />
<strong>de</strong> que me lembro.”<br />
Nesse 1º <strong>de</strong> Maio um grupo <strong>de</strong> cineastas<br />
tinha-se juntado com a i<strong>de</strong>ia<br />
<strong>de</strong> fazer “As Armas e o Povo”. Foram<br />
buscar película aos laboratórios <strong>da</strong><br />
Tóbis, dividiram-se em várias equipas<br />
e espalharam-se por Lisboa. No filme<br />
as imagens são frenéticas – pessoas a<br />
serem entrevista<strong>da</strong>s na rua, “o que<br />
pensa <strong>da</strong> revolução?”, “qual a sua posição<br />
sobre a guerra em África?”, perguntas<br />
muitas <strong>de</strong>las dispara<strong>da</strong>s com<br />
enorme entusiasmo pelo cineasta brasileiro<br />
Glauber Rocha, que entretanto<br />
tinha chegado a Portugal.<br />
Era o <strong>cinema</strong> possível<br />
Quem não estava em Portugal nesses<br />
primeiros dias era outro cineasta, Alberto<br />
Seixas Santos. “O meu nome<br />
aparece sempre que se fala no ‘As Armas<br />
e o Povo’ mas não participei nele<br />
porque estava na Suécia a ser operado.<br />
Lembro-<strong>de</strong> <strong>de</strong> ver aquele célebre<br />
travelling com as caras dos<br />
membros do Conselho <strong>da</strong> Revolução,<br />
que me assustaram imenso. A única<br />
coisa que me acalmou foi ver o Spínola.<br />
Pensei ‘bem, pelo me<strong>nos</strong> não é<br />
o Kaúlza <strong>de</strong> Arriaga’. Na altura achava<br />
que íamos ter uma ditadura militar<br />
<strong>de</strong> direita.”<br />
No início <strong>de</strong> Maio chega também a<br />
Portugal, vindo <strong>de</strong> Bruxelas, Rui Simões,<br />
autor <strong>da</strong>queles que viriam a ser<br />
dois dos filmes mais marcantes <strong>de</strong>ste<br />
período: “Deus, Pátria e Autori<strong>da</strong><strong>de</strong>”<br />
(dia 2 às 17h no Panorama) e “Bom<br />
Povo Português” (dia 7 às 21h30).<br />
“Bom Povo<br />
Português”,<br />
<strong>de</strong> Rui Simões<br />
Ípsilon • Sexta-feira 1 Abril 2011 • 13
Seixas<br />
Santos<br />
“Sentíamos que era<br />
preciso mostrar o país<br />
e que isso não tinha<br />
sido feito. Estávamos<br />
fartos <strong>de</strong> ver o jornal<br />
<strong>de</strong> actuali<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />
que o Partido<br />
Comunista produzia e que mostrava<br />
invariavelmente os discursos do Vasco<br />
Gonçalves”<br />
José<br />
Nascimento<br />
“Estava sempre tudo<br />
a acontecer, a to<strong>da</strong> a<br />
hora e em todo o lado, e<br />
era muito complicado<br />
conseguirmos<br />
acompanhar. Havia<br />
sempre notícias<br />
cruza<strong>da</strong>s. E isso para<br />
quem quer filmar acontecimentos<br />
é o pior que po<strong>de</strong> acontecer. Não<br />
há maneira <strong>de</strong> saber o que é mais<br />
importante, ou se chegamos lá e já<br />
acabou. Havia essa fragili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> não<br />
se saber se quando chegássemos<br />
ao acontecimento ain<strong>da</strong> haveria<br />
acontecimento.”<br />
António<br />
<strong>da</strong> Cunha<br />
Telles<br />
“Não estive na ocupação<br />
do IPC mas estive na <strong>da</strong><br />
censura. É que, mesmo<br />
<strong>de</strong>pois do 25 <strong>de</strong> Abril,<br />
a censura continua a<br />
existir. Eu ia estrear<br />
‘Jaime’, do António Reis, e<br />
a censura, zelosa, telefonou-me a dizer<br />
que não podia. Agarrei no Zeca Afonso<br />
e no dia seguinte, <strong>de</strong> madruga<strong>da</strong>,<br />
fomos ocupar a censura”<br />
RUI GAUDÊNCIO LUÍS RAMOS/ ARQUIVO<br />
“Conheci<br />
o Portugal rural<br />
e fiquei impressinado<br />
com a diferença<br />
entre a reali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
nas ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s e aquele<br />
tempo parado que<br />
existia nas al<strong>de</strong>ias<br />
do Norte”<br />
Philippe Costantini<br />
“Comecei a filmar assim que cheguei,<br />
ain<strong>da</strong> sem saber o que fazer <strong>de</strong>ssas<br />
imagens”, conta ao Ípsilon por<br />
email. “De início só me interessava o<br />
registo, essa era a principal preocupação,<br />
e a <strong>nos</strong>sa disponibili<strong>da</strong><strong>de</strong> era<br />
total. Sabíamos que estávamos a viver<br />
um período único e que teríamos que<br />
<strong>da</strong>r tudo por tudo para estar <strong>de</strong>ntro<br />
<strong>de</strong>sse processo.”<br />
Não tinham dinheiro, ao princípio<br />
nem sequer tinham película. “As primeiras<br />
filmagens são feitas com restos<br />
<strong>de</strong> película que os meus amigos operadores<br />
traziam <strong>de</strong> filmes on<strong>de</strong> tinham<br />
participado.” O director <strong>de</strong><br />
fotografia Acácio <strong>de</strong> Almei<strong>da</strong> juntouse<br />
ao projecto, o que foi “muito importante”.<br />
A casa dos pais <strong>de</strong> Rui Simões<br />
transformara-se numa “central<br />
que recebia <strong>da</strong>s comissões <strong>de</strong> trabalhadores,<br />
dos militares, <strong>de</strong> militantes<br />
anónimos, informações do que se<br />
passava, as lutas dos trabalhadores,<br />
as ocupações <strong>de</strong> terras, as movimentações<br />
políticas.”<br />
Quando começou a pensar na estrutura<br />
do filme percebeu que queria<br />
fazer “o filme <strong>da</strong> revolução”, mas também<br />
do povo português. Por isso estão<br />
lá “a Santa <strong>da</strong> La<strong>de</strong>ira, a Nossa<br />
Senhora <strong>de</strong> Fátima, o abate <strong>de</strong> animais,<br />
a carneira<strong>da</strong>, as ban<strong>da</strong>s, a agricultura,<br />
as fábricas, o mar, o sol, os<br />
pinheiros mansos, e até há uma família<br />
portuguesa numa consoa<strong>da</strong>, tentando<br />
mostrar que está uni<strong>da</strong>, mas<br />
ain<strong>da</strong> não está, ain<strong>da</strong> há muitos conflitos.”<br />
José Nascimento e os irmãos Fernando<br />
e João Matos Silva tinham entretanto<br />
formado uma cooperativa, a<br />
Cinequipa, e an<strong>da</strong>vam a filmar para<br />
dois programas <strong>de</strong> televisão. “Éramos<br />
um veículo <strong>da</strong> voz popular, <strong>da</strong>s lutas<br />
operárias e outras, sobretudo em multinacionais<br />
que <strong>de</strong>sapareceram, administrações<br />
que se foram embora,<br />
fábricas que ficaram em auto-gestão.<br />
Era o <strong>cinema</strong> possível, enquandrado<br />
naquele processo político.”<br />
Seixas Santos também criara uma<br />
cooperativa, o Grupo Zero, com Acácio<br />
<strong>de</strong> Almei<strong>da</strong>, o encenador Jorge<br />
Silva Melo e a cineasta Solveig Nordlund,<br />
mas o que <strong>de</strong>sejaram era criar<br />
alguma distância e filmar coisas com<br />
outro tempo. “Sentíamos que era preciso<br />
mostrar o país e que isso não tinha<br />
sido feito. Estávamos fartos <strong>de</strong><br />
ver o jornal <strong>de</strong> actuali<strong>da</strong><strong>de</strong>s que o Partido<br />
Comunista produzia e que mostrava<br />
invariavelmente os discursos do<br />
Vasco Gonçalves.”<br />
Foram para o Alentejo e filmaram<br />
“A Lei <strong>da</strong> Terra”. “Descobrimos que<br />
o campo também tem luta <strong>de</strong> classes.<br />
Eu não fazia i<strong>de</strong>ia: os pastores que<br />
encontrei eram muito mais anarquistas<br />
do que comunistas. Não tinham<br />
na<strong>da</strong> a ver com as cooperativas <strong>de</strong><br />
produção agrícola. E era divertido<br />
começar a perceber as diferenças sociais<br />
<strong>de</strong>ntro do campesinato.” À noite,<br />
<strong>nos</strong> barracões <strong>da</strong>s cooperativas,<br />
projectavam filmes. “Mostrávamos<br />
filmes do Eisenstein e <strong>de</strong> vez em quando<br />
havia uns velhotes que vinham ter<br />
con<strong>nos</strong>co e perguntavam, ain<strong>da</strong> a medo:<br />
aquele ali era o Lenine, não<br />
era?”.<br />
Entretanto<br />
em Trás-os-Montes...<br />
Nesses últimos meses <strong>de</strong> 74, a brasileira<br />
Ana Glogowski e o francês Philippe<br />
Costantini instalavam-se em Portugal<br />
on<strong>de</strong> tinham vivido, encantados,<br />
o Verão a seguir ao 25 <strong>de</strong> Abril. Chegaram<br />
primeiro ao Algarve, a casa do<br />
pintor Júlio Pomar, e com o filho <strong>de</strong>ste,<br />
Alexandre, subiram “por Portugal<br />
acima para ver os cantores que estavam<br />
a entrar em Portugal, o Fausto,<br />
o José Mário Branco, que passavam<br />
pelas al<strong>de</strong>ias do Norte e iam cantando”,<br />
recor<strong>da</strong> Anna.<br />
Philippe já conhecia vários cineastas<br />
portugueses e teve uma oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
para trabalhar em “Máscaras”<br />
<strong>de</strong> Noémia Delgado, que o fez <strong>de</strong>scobrir<br />
Trás-os-Montes, on<strong>de</strong> viria a filmar,<br />
com Anna, “Terra <strong>de</strong> Abril – Vilar<br />
<strong>de</strong> Perdizes” (dia 5 às 21h30). “Conheci<br />
o Portugal rural e fiquei impressinado<br />
com a diferença entre a reali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
nas ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s e aquele tempo parado<br />
que existia nas al<strong>de</strong>ias do Norte”, conta.<br />
Numa primeira al<strong>de</strong>ia, o francês,<br />
então <strong>de</strong> barbas e cabelos compridos,<br />
foi olhado com <strong>de</strong>sconfiança. Pensavam<br />
que era cubano. Mas <strong>de</strong>pois,<br />
através do padre António Fontes, foram<br />
parar a Vilar <strong>de</strong> Perdizes on<strong>de</strong><br />
pu<strong>de</strong>ram filmaram o regresso <strong>de</strong> uma<br />
tradição que <strong>de</strong>saparecera há onze<br />
a<strong>nos</strong>, o Auto <strong>da</strong> Paixão <strong>da</strong> Páscoa. Registaram<br />
também a vi<strong>da</strong> <strong>da</strong> al<strong>de</strong>ia on<strong>de</strong><br />
os entusiasmos políticos <strong>de</strong> Lisboa<br />
não chegavam – até porque os poucos<br />
aparelhos <strong>de</strong> televisão que existiam<br />
transmitivam a televisão <strong>de</strong> Espanha,<br />
on<strong>de</strong> Franco ain<strong>da</strong> se mantinha no<br />
po<strong>de</strong>r.<br />
E filmaram a campanha eleitoral<br />
<strong>de</strong> 76, os silêncios <strong>de</strong>sconfiados <strong>da</strong><br />
população a ouvir os políticos vindos<br />
<strong>de</strong> longe e com uma linguagem que<br />
“Deus, Pátria, Autori<strong>da</strong><strong>de</strong>”,<br />
<strong>de</strong> Rui Simões<br />
não lhes dizia na<strong>da</strong>. “A palava colectivo<br />
era muito conota<strong>da</strong> com o PC e<br />
o PC não tinha implantação na zona”,<br />
conta Philippe. “As pessoas tinham<br />
pequenas proprie<strong>da</strong><strong>de</strong>s e tinham medo<br />
<strong>de</strong> as per<strong>de</strong>r.”<br />
Mais colectiva, e utópica, era a reali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
que, entretanto, Cunha Telles<br />
filmava no Algarve, em “Continuar a<br />
Viver ou os Índios <strong>da</strong> Meia-Praia” (dia<br />
2 às 02h00), esse filme em que um<br />
velho pescador diz qualquer coisa<br />
como “<strong>da</strong>ntes estávamos mal, agora<br />
estamos pior mas estamos mais contentes.”<br />
Era no entanto ca<strong>da</strong> vez mais evi<strong>de</strong>nte,<br />
nas imagens que as câmaras<br />
captavam, que a revolução não estava<br />
a correr como muitos sonhavam. A<br />
utopia <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> Meia-Praia<br />
havia <strong>de</strong> chegar ao fim. Em Vilar <strong>de</strong><br />
Perdizes (on<strong>de</strong> haveria <strong>de</strong> voltar para<br />
filmar “Pedras <strong>da</strong> Sau<strong>da</strong><strong>de</strong>” em 1988),<br />
Philippe olhava e pensava que “ia <strong>de</strong>morar<br />
muito tempo para acontecer<br />
uma mu<strong>da</strong>nça <strong>de</strong> mentali<strong>da</strong><strong>de</strong>s” (esta<br />
acabaria por acontecer <strong>nos</strong> a<strong>nos</strong><br />
80 mas mais por influência dos emigrantes<br />
que voltavam nas férias), e<br />
Anna compreendia que “havia um<br />
mundo inteiro entre o sonho dos políticos<br />
nas ruas <strong>de</strong> Lisboa e o que se<br />
passava no campo, on<strong>de</strong>, quem não<br />
tem os meios básicos <strong>de</strong> subsistência<br />
não po<strong>de</strong> pensar em mu<strong>da</strong>r o mundo.”<br />
No Alentejo, Seixas Santos ia também<br />
percebendo que “os principais<br />
ocupantes <strong>de</strong> proprie<strong>da</strong><strong>de</strong>s eram tipos<br />
ricos, que alugavam máquinas<br />
agrícolas e que estimulavam os camponeses<br />
a ocupar as terras porque<br />
assim já tinham hipóteses <strong>de</strong> alugar<br />
as máquinas”. E pensava que gostaria<br />
<strong>de</strong> fazer um filme sobre os militares<br />
e o po<strong>de</strong>r – e fez, no início dos a<strong>nos</strong><br />
80, “Gestos e Fragmentos” (dia 9 às<br />
21h30), obra com a qual, disse um dia<br />
João Bénard <strong>da</strong> Costa, “se fechou<br />
Abril”.<br />
Rui Simões <strong>de</strong>scobria que a RTP<br />
não lhe vendia imagens <strong>de</strong> arquivo e<br />
que tinha que recorrer a cineastas estrangeiros<br />
para as comprar, e “olhava<br />
para aquela reali<strong>da</strong><strong>de</strong> [que filmava] e<br />
já sabia que as coisas iam correr mal,<br />
via-se, sentia-se a ca<strong>da</strong> momento, o<br />
povo era ingénuo e <strong>de</strong>ixava-se levar<br />
pelos malandros <strong>da</strong> história que a ca<strong>da</strong><br />
dia que passava lhe quebravam o<br />
ânimo.”<br />
E José Nascimento, no dia 25 <strong>de</strong> Novembro<br />
<strong>de</strong> 1975, olhava para os amigos<br />
reunidos numa tasca e pensava<br />
“temos que regressar à clan<strong>de</strong>stini<strong>da</strong><strong>de</strong>”.<br />
Mas, recor<strong>da</strong> agora, passados<br />
mais <strong>de</strong> 35 a<strong>nos</strong>, que a partir <strong>de</strong> 76<br />
“as pessoas dos meios <strong>da</strong>s artes começaram-se<br />
a conhecer e esse foi outro<br />
lado, o lado que culminou na vi<strong>da</strong><br />
nocturna lisboeta dos a<strong>nos</strong> 80, em<br />
que a política foi substituí<strong>da</strong> por uma<br />
aproximação mais humana e artística.”<br />
No Bairro Alto, o Frágil abria as portas.<br />
Já não se filmava a revolução.<br />
COLECÇÃO CINEMATECA PORTUGUESA - MUSEU DO CINEMA<br />
14 • Sexta-feira 1 Abril 2011 • Ípsilon
O que po<strong>de</strong>m um senhor e uma senhor<br />
ita fazer <strong>nos</strong> seus dias <strong>de</strong> lazer<br />
para se entreter? Entre outras hipóteses,<br />
é aceitável assumir que se <strong>de</strong>diquem<br />
a pregar parti<strong>da</strong>s um ao outro.<br />
Como exemplo, mencione-se<br />
Ricardo e Ricardina. Ricardo foi “orfanado<br />
em tenra i<strong>da</strong><strong>de</strong>” e posterior<br />
mente recolhido “na casa <strong>de</strong> uma<br />
generosa parenta”, D. Eulália (Titi<br />
para os mais próximos), viúva “a<br />
quem ficara uma filha”, Ricardina.<br />
Como Ricardo e Ricardina se entretiveram<br />
na infância pouco importa,<br />
mas, contando ele 16 a<strong>nos</strong> e ela 14,<br />
<strong>de</strong>u-lhes, pelo Carnaval, para a brinca<strong>de</strong>ira.<br />
Ricardina resolveu <strong>de</strong>stapar<br />
Ricardo durante o sono <strong>de</strong>ste e em<br />
resposta Ricardo <strong>de</strong>u-lhe aquilo a que<br />
se po<strong>de</strong> <strong>chama</strong>r “uma pirraça” ou<br />
“um clister”.<br />
Por acasos do acaso Titi surgiu no<br />
quarto no momento em que “os ma<strong>nos</strong>”,<br />
como se tratavam mutuamente<br />
os meni<strong>nos</strong>, experimentavam o clister.<br />
Titi não quis cá <strong>de</strong>ssas coisas e<br />
exigiu a Ricardo que lhe entregasse<br />
“a seringa” do clister.<br />
Sendo impossível a Ricardo entregar<br />
a seringa, quando muito este,<br />
embaraçado, podia <strong>de</strong>ixar a Titi apalpar<br />
a dita, mas “sem a ver”. A Titi<br />
achou a seringa elástica e pediu-lha<br />
empresta<strong>da</strong> caso precisasse <strong>de</strong> um<br />
clister. Ricardo assentiu e Titi sentiu<br />
logo ali necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> um, embora<br />
– e curiosamente – não tivesse usado<br />
a seringa na abertura habitual dos<br />
clisteres.<br />
Este pe<strong>da</strong>gógico exemplo <strong>de</strong> ludismo<br />
correspon<strong>de</strong> ao início <strong>de</strong> “Entre<br />
Lençóis”, novela que abre “Entre Lençóis,<br />
Episódios Inocentes para Educação<br />
e Recreio <strong>de</strong> Pessoas Casadoiras”,<br />
o primeiro livro <strong>de</strong> uma nova<br />
colecção <strong>da</strong> Tinta-<strong>da</strong>-China <strong>de</strong>dica<strong>da</strong><br />
à pornografia portuguesa <strong>de</strong> finais do<br />
século XIX, início do século XX.<br />
A colecção – cujo formato é, apropria<strong>da</strong>mente,<br />
<strong>de</strong> bolso – inicia-se com<br />
outros dois volumes, “O Pauzinho do<br />
Matrimónio – Almanaque Perpétuo<br />
– Nova Edição Aumenta<strong>da</strong> com uma<br />
substanciosa Arte <strong>de</strong> Gozar e Fazer<br />
Gozar, Várias poesias e <strong>de</strong>scobertas<br />
imp or tantes” e “O Vício em Lisboa<br />
– Antigo e Mo<strong>de</strong>rno”, mas não se ficará<br />
por estes três compêndios.<br />
O acesso a esta literatura permite<strong>nos</strong>,<br />
segundo António Ventura, professor<br />
<strong>de</strong> História na Universi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
Clássica <strong>de</strong> Lisboa e compilador, um<br />
olhar único sobre a socie<strong>da</strong><strong>de</strong> portuguesa<br />
<strong>da</strong> época, ou pelo me<strong>nos</strong> sobre<br />
as classes que tinham acesso aos livros.<br />
Não será exagero consi<strong>de</strong>rar<br />
que, ao contrário <strong>da</strong> imagem que se<br />
criou no século XX dos portugueses<br />
como sendo <strong>de</strong> brandos costumes, a<br />
<strong>nos</strong>sa morali<strong>da</strong><strong>de</strong> íntima “era exactamente<br />
igual à dos espanhóis, franceses,<br />
etc”.<br />
O achado é tão mais gratificante se<br />
tivermos em conta um par <strong>de</strong> <strong>da</strong>dos<br />
extra: por um lado é sabido que os<br />
autores <strong>da</strong>s obras são gente respeitável<br />
(escritores conhecidos, governantes)<br />
que assinava sob pseudónimo;<br />
por outro a pornografia <strong>da</strong> época é<br />
uma <strong>da</strong>s zonas mais recônditas <strong>da</strong><br />
edição nacional – segundo António<br />
Ventura, e “para se ter uma i<strong>de</strong>ia do<br />
pouco que sabemos sobre este território”,<br />
a Biblioteca Nacional é “paupérrima<br />
neste tipo <strong>de</strong> livros”, não<br />
constando do seu acervo mais do que<br />
escassas uni<strong>da</strong><strong>de</strong>s.<br />
“Não há qualquer estudo sobre este<br />
tipo <strong>de</strong> literatura em Portugal”, não<br />
há “sequer levantamentos <strong>da</strong> literatura<br />
pornográfica que existiu” em<br />
Portugal.<br />
E não é certamente por falta <strong>de</strong><br />
objectos: só António Ventura, que,<br />
admite, é um coleccionador compulsivo<br />
<strong>de</strong> todo o tipo <strong>de</strong> literatura, possui<br />
“umas <strong>de</strong>zenas ou centenas largas<br />
<strong>de</strong>stes livros”.<br />
Há outros <strong>da</strong>dos que fazem Ventura<br />
ter certeza <strong>de</strong> que a pornografia<br />
tinha um universo <strong>de</strong> leitores alargado:<br />
“Tenho um catálogo que encontrei”,<br />
conta, “e só esse catálogo tem<br />
<strong>de</strong>zenas <strong>de</strong> títulos <strong>de</strong> livros e fotos”.<br />
ANTÓNIO CARRAPATO<br />
O acesso a esta<br />
literatura<br />
permite-<strong>nos</strong>, segundo<br />
António Ventura,<br />
professor <strong>de</strong> História<br />
na Universi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
Clássica <strong>de</strong> Lisboa<br />
e compilador,<br />
um olhar único<br />
sobre a socie<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
portuguesa <strong>da</strong> época,<br />
ou pelo me<strong>nos</strong> sobre<br />
as classes que tinham<br />
acesso aos livros<br />
Facto esclarecedor sobre o circuito<br />
pornográfico: do mencionado catálogo<br />
estão omissos os nomes <strong>da</strong>s<br />
editoras, bem como <strong>da</strong>s gráficas – e<br />
o mesmo acontece <strong>nos</strong> livros originais.<br />
“Estes objectos eram vendidos à<br />
socapa em livrarias <strong>de</strong> Lisboa, Porto<br />
e Coimbra”, assinala, lembrando que<br />
foi em Coimbra que se encontrou o<br />
primeiro livro pornográfico, “A Martinha<strong>da</strong>”,<br />
do século XVIII, que também<br />
vai ser editado nesta colecção.<br />
O gozo <strong>da</strong> classe média alta<br />
Os mais incautos po<strong>de</strong>rão ser levados<br />
a pensar que a literatura pornográfica<br />
<strong>de</strong> fins do século XIX, inícios do século<br />
XX, estará atrasa<strong>da</strong> ou será ingénua.<br />
Adverte-se então que aqui há <strong>de</strong><br />
tudo e que é certo que os vivos não<br />
saberão mais que os mortos.<br />
Trata-se portanto <strong>de</strong> pornografia<br />
“tout court”, com lesbianismo, protoincesto,<br />
prostitutas e “lava” pelo pescoço<br />
<strong>de</strong> empregaditas.<br />
Nestas obras fica à mostra que a<br />
sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> em Portugal não era<br />
campo em poisio – muito me<strong>nos</strong> que<br />
houvesse uma só forma <strong>de</strong> a experimentar.<br />
“Entre Lençóis – Episódios Inocentes<br />
para Educação e Recreio <strong>de</strong> Pessoas<br />
Casadoiras”, que “parece ser <strong>de</strong><br />
1900”, é o mais novelesco dos três.<br />
“O Pauzinho do Matrimónio” será <strong>de</strong><br />
1879 ou 1880 e assume a forma <strong>de</strong><br />
almanaque, reunindo brejeirices,<br />
conselhos <strong>de</strong> alpaca, opúsculos sobre<br />
o beijo, a apalpa<strong>de</strong>la ou mesmo a<br />
bimba<strong>de</strong>la – forma <strong>de</strong> coito que consiste<br />
em tentar evitar o rompimento<br />
do hímen. Tanto um como outro<br />
usam bastante do humor – refinado<br />
aqui, liminarmente porco acolá.<br />
Quanto a “O Vício Em Lisboa”, esse<br />
po<strong>de</strong> ser <strong>da</strong>tado com precisão: é<br />
<strong>de</strong> 1912, constituindo “uma espécie<br />
<strong>de</strong> radiografia <strong>da</strong> prostituição <strong>da</strong> época”.<br />
Hoje temos na net críticas <strong>de</strong> prostituição<br />
que incluem não só um olhar<br />
sobre as capaci<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>da</strong>s/dos profissionais<br />
mas também quão atenciosa<br />
foi a reccepção, quão higiénico era o<br />
lugar. Este tipo <strong>de</strong> informação já existia<br />
antigamente – e está recolhi<strong>da</strong><br />
n’”O Vício”.<br />
De acordo com António Ventura,<br />
“<strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1840 que há livros sobre a<br />
prostituição em Lisboa e Porto”.<br />
A prostituição, na época, não sendo<br />
inteiramente legal, era “tolera<strong>da</strong>”.<br />
Daí vem o termo “casa <strong>de</strong> tolerância”<br />
ou “casa tolera<strong>da</strong>” que equivale a “lupanar”<br />
ou “bor<strong>de</strong>l”. O que se faz em<br />
Uma nova colecção resgata a<br />
pornografia nacional <strong>da</strong> viragem<br />
do século XIX para o XX: e assim<br />
(re)<strong>de</strong>scobrimos que não éramos<br />
<strong>de</strong> brandos costumes, mas tão<br />
malandros, liberais,<br />
sofisticados e <strong>da</strong>dos<br />
ao prazer como<br />
“os<br />
espanhóis ou os<br />
franceses”, diz António<br />
Ventura, organizador.<br />
João Bonifácio<br />
Eles sabiam-na<br />
16 • Sexta-feira 1 Abril 2011 • Ípsilon
“O Vício em Lisboa” é “estabelecer<br />
que tipo <strong>de</strong> prostituição exist[ia]”.<br />
Po<strong>de</strong>mos ficar a saber que “as prostitutas<br />
eram matricula<strong>da</strong>s, iam à inspecção<br />
sanitária”, etc.<br />
Na altura, recor<strong>da</strong> o professor, havia<br />
“muita literatura proto-científica<br />
sobre isto”, o que tem <strong>de</strong> ser enquadrado<br />
à luz <strong>da</strong> época: “É preciso não<br />
esquecer que D. Luís morreu <strong>de</strong> sífilis,<br />
D. Manuel também sofreu <strong>da</strong> doença,<br />
etc”.<br />
É também por esta época (meio do<br />
século XIX), lembra, que “começam<br />
a aparecer livros sobre a homossexuali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
(masculina ou feminina), a<br />
masturbação”, entre outros assuntos<br />
prementes. Como é visível nas duas<br />
obras mais narrativas que iniciam a<br />
colecção, estes temas no final do século<br />
XIX já an<strong>da</strong>vam na boca <strong>de</strong> to<strong>da</strong><br />
a gente.<br />
O “Vício” é o único dos três livros<br />
que, à época, era legal. Grosso modo<br />
as edições pornográficas eram clan<strong>de</strong>stinas<br />
– citando Ventura, “a pornografia<br />
não era proibi<strong>da</strong>, mas não era<br />
aceite”. (Esta é uma <strong>da</strong>s razões para<br />
as edições serem anónimas.)<br />
Ao historiador não restam dúvi<strong>da</strong>s<br />
que a pornografia “era muito vendi<strong>da</strong>:<br />
“Havia literalmente <strong>de</strong>zenas <strong>de</strong><br />
edições. Em França havia edições<br />
impressas <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o século XVI. Em<br />
Portugal só começaram no século<br />
XVIII [as impressas]”. Ventura, escusando<br />
a fazer afirmações <strong>de</strong> carácter<br />
científico, arrisca dizer “que se publicava<br />
tanto <strong>de</strong>stes livros como <strong>de</strong><br />
qualquer outra edição comum”, sendo<br />
a maior parte <strong>de</strong>les era traduzi<strong>da</strong>,<br />
em particular do francês.<br />
Envolvi<strong>da</strong> no circuito comercial <strong>da</strong><br />
literatura pornográfica estava “uma<br />
classe média alta, que lia e fazia as<br />
traduções”. Nem po<strong>de</strong>ria ser <strong>de</strong> outra<br />
forma, tendo em conta que na época<br />
havia 90 por cento <strong>de</strong> analfabetos e<br />
que estes livros não estavam nas bibliotecas.<br />
Pelo que os leitores <strong>de</strong>stes<br />
livros seriam os mesmos dos outros.<br />
Este <strong>da</strong>do é verificável quando<br />
atentamos <strong>nos</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iros autores<br />
dos livros: “Entre Lençóis” sai <strong>da</strong> pena<br />
<strong>de</strong> Cândido <strong>de</strong> Figueiredo, filólogo<br />
<strong>de</strong> renome, autor do “Novo Dicionário<br />
<strong>da</strong> Língua Portuguesa”, fun<strong>da</strong>dor<br />
<strong>da</strong> Socie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Geografia <strong>de</strong> Lisboa<br />
e sócio <strong>da</strong> Aca<strong>de</strong>mia Brasileira <strong>de</strong> Letras.<br />
No caso do “Pauzinho” os <strong>de</strong>senhos<br />
pertencem a Rafael Bor<strong>da</strong>lo Pinheiro<br />
embora não se saiba a quem<br />
pertencem os textos.<br />
Há outros exemplos <strong>de</strong> ilustres que<br />
se <strong>de</strong>dicaram à escrita procriativa,<br />
como Alfredo Gallis, o autor mais prolífero<br />
<strong>da</strong> época: em termos literários<br />
“não faz parte do cânone” e a sua<br />
obra – <strong>da</strong> qual não consta “um único<br />
palavrão” – foi “proposita<strong>da</strong>mente”<br />
esqueci<strong>da</strong>.<br />
Gallis, autor <strong>de</strong> títulos como “O<br />
Marido Virgem” ou “As Doze Mulheres<br />
<strong>de</strong> Adão”, era funcionário público,<br />
administrador do Concelho do<br />
Barreiro, “um indivíduo conhecido<br />
na época”: “É uma figura extraordinária,<br />
que escreveu um ciclo <strong>de</strong> romances<br />
– doze ou treze, pelo me<strong>nos</strong><br />
– com o título ‘Tuberculose Social’,<br />
em que abor<strong>da</strong>va temas como a prostituição,<br />
o jogo, etc”. É o autor <strong>de</strong> “O<br />
Sr Ganime<strong>de</strong>s”, “o primeiro livro sobre<br />
a homossexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> feminina”.<br />
“Só ele merecia uma tese”, diz Ventura,<br />
em tom taxativo.<br />
Não se <strong>de</strong>ve partir do princípio que<br />
o dinheiro era o motor <strong>da</strong> activi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
pornógrafa – Ventura está “convencido<br />
que havia quem fizesse as traduções,<br />
a escrita e a edição por puro<br />
divertimento”, e dá o exemplo <strong>de</strong><br />
Cândido <strong>de</strong> Figueiredo: “Ele não precisava<br />
<strong>de</strong> dinheiro. O que escreveu<br />
servia-lhe como um alter-ego; era um<br />
<strong>de</strong>sdobramento e um divertimento”.<br />
Pós-liminares: o facto <strong>de</strong> serem edições<br />
<strong>de</strong> quali<strong>da</strong><strong>de</strong>, com procura, por<br />
vezes bem escritas e explícitas <strong>de</strong>monstra<br />
que o povo que lia isto era<br />
<strong>de</strong>safogado financeiramente e “liberto”;<br />
a pornografia era varia<strong>da</strong>, tanto<br />
havendo “folhetos com 20 páginas<br />
que se vê que foram feitos para obter<br />
um impacto imediato” como “literatura<br />
com 300 páginas”; o filão existiu<br />
“em paralelo ao <strong>da</strong> literatura oficial”<br />
mas foi sempre “<strong>de</strong>libera<strong>da</strong>mente”<br />
ignorado.<br />
O término <strong>de</strong>sta micro-história <strong>da</strong><br />
pornografia é quase caricatural: não<br />
sabemos mais por que “quando um<br />
coleccionador morria a sua família<br />
queimava este tipo <strong>de</strong> coisas”. Pelo<br />
que, diz Ventura, “só conhecemos a<br />
ponta do iceberg”. Fruamos a ponta,<br />
por tanto.<br />
Diz António Ventura,<br />
organizador <strong>da</strong> colecção, que<br />
envolvi<strong>da</strong> no circuito comercial<br />
<strong>da</strong> literatura pornográfica<br />
estava “uma classe média alta,<br />
que lia e fazia as traduções”<br />
SÃO LUIZ TEATRO MUNICIPAL<br />
RUA ANTÓNIO MARIA CARDOSO, 38; 1200-027 LISBOA<br />
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Ípsilon • Sexta-feira 1 Abril 2011 • 17
A<br />
animosi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> Fi<strong>de</strong>l para<br />
com Che era<br />
a mesma <strong>de</strong><br />
Che para<br />
com Fi<strong>de</strong>l,<br />
diz-<strong>nos</strong><br />
Fuentes<br />
No alvor <strong>da</strong> revolução, milhares <strong>de</strong><br />
cuba<strong>nos</strong> seguiram Fi<strong>de</strong>l Castro. O guajiro<br />
<strong>de</strong> Birán mostrara combativi<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />
agili<strong>da</strong><strong>de</strong> oratória e audácia como ninguém<br />
antes. Além disso fizera fugir Batista<br />
e prometia um país igualitário – o<br />
que não era difícil numa ilha marca<strong>da</strong><br />
pela miséria. Norberto Fuentes, miúdo<br />
quando os barbudos entraram em Havana,<br />
foi um dos que o seguiu. Cresceu<br />
com o regime, tornou-se num nome e<strong>de</strong><br />
referência literária, com <strong>de</strong>z livros blicados e o Prémio Casa <strong>de</strong> las Américas,<br />
foi íntimo do po<strong>de</strong>r. Mas <strong>de</strong>sencan-encantou-se,<br />
teve a vi<strong>da</strong> por um fio, no quadro<br />
do mesmo processo que levou<br />
pu-<br />
Arnaldo Ochoa e Antonio <strong>de</strong> la Guardia<br />
ao paredón, sobrevivendo graças as à intervenção<br />
<strong>de</strong> Gabriel García Márquez.<br />
Exilou-se em Miami e um editor propôslhe<br />
que partilhasse os a<strong>nos</strong> <strong>de</strong> convívio<br />
com o fi<strong>de</strong>lismo, <strong>de</strong> que resultou u tobiografia <strong>de</strong> Fi<strong>de</strong>l Castro”, publica<strong>da</strong><br />
em 2007 e agora entre nós pela Casa<br />
<strong>da</strong>s Letras. É o retrato <strong>de</strong> um homem<br />
cheio <strong>de</strong> si, sôfrego <strong>de</strong> protagonismo e<br />
<strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, tanto que tudo e todos à sua<br />
volta, como Che, aparecem como peças<br />
<strong>de</strong> um jogo – o <strong>da</strong> revolução, ou o seu,<br />
apresentados como o mesmo. O Ípsilon<br />
falou com Norberto Fuentes para tentar<br />
distinguir o biografado do autor. E <strong>de</strong>scobriu<br />
por <strong>de</strong>trás <strong>da</strong> informação o uma<br />
“Au-<br />
novela.<br />
Como é que começou a<br />
trabalhar para Fi<strong>de</strong>l?<br />
Eu nunca trabalhei para Fi<strong>de</strong>l. Eu trabalhei<br />
com Fi<strong>de</strong>l. Nem ele era patrão<br />
nem eu empregado. O importante era<br />
a <strong>de</strong>dicação à causa com que <strong>nos</strong> tínhamos<br />
comprometido.<br />
Então quando é que se juntou<br />
a ela?<br />
Na mesma madruga<strong>da</strong> do dia <strong>da</strong> ria <strong>da</strong> Revolução, aí pelas 3h20 <strong>de</strong> 1<br />
vitó-<br />
Janeiro <strong>de</strong> 1959.<br />
Descreve o lí<strong>de</strong>r cubano como<br />
uma pessoa calculista, sem<br />
rasgos <strong>de</strong> afecto...<br />
Fi<strong>de</strong>l é um homem <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> matismo, que além disso dirigiu iu um<br />
prag-<br />
país numa confrontacão permanente<br />
e <strong>de</strong>sigual com uma superpotênsecia.<br />
Nessas situações mais vale pragmático, calculista, hábil, flexível<br />
e tudo mais. Quanto aos<br />
seus afectos, creio que se subordinam<br />
obrigatoriamente a isso.<br />
Mas pergunto eu: não é uma<br />
gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>monstração <strong>de</strong> afecto,<br />
<strong>de</strong> paixão, <strong>de</strong> amor <strong>de</strong>smedido,<br />
o <strong>de</strong> Fi<strong>de</strong>l pelos seus objectivos<br />
políticos?<br />
Ele não levou esse pragmatismo<br />
longe <strong>de</strong>mais em relação à<br />
família? Está no seu livro o<br />
distanciamento em relação ao<br />
pai, ao irmãos mais velho, e até<br />
a Raúl...<br />
Vivemos em escalas diferentes do nhecimento e <strong>da</strong>s relações humanas.<br />
William Faulkner dizia que um artista,<br />
na prossecução <strong>da</strong> sua obra, podia<br />
chegar a ser <strong>de</strong>sapie<strong>da</strong>do. A um artis-<br />
cota<br />
aparentemente po<strong>de</strong> perdoar-se-lhe<br />
a sua conduta. O político tem <strong>de</strong> li<strong>da</strong>r<br />
“Parece um vício cubano:<br />
todos querem<br />
ser como Fi<strong>de</strong>l!”<br />
Norberto Fuentes serviu Fi<strong>de</strong>l antes <strong>de</strong> o enfrentar.<br />
E agora meteu-se na sua pele. “O maior gozo que tive foi o <strong>de</strong> me<br />
instalar no posto <strong>de</strong> comando privilegiado que é o seu cérebro.”<br />
“Autobiografia <strong>de</strong> Fi<strong>de</strong>l Castro” é o retrato <strong>de</strong> um homem<br />
cheio <strong>de</strong> si, sôfrego <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r. Fernando Sousa<br />
Norberto<br />
Fuentes<br />
foi um dos<br />
que seguiu<br />
Fi<strong>de</strong>l. Cresceu<br />
com o regime,<br />
foi íntimo do<br />
po<strong>de</strong>r. Mas<br />
<strong>de</strong>sencantouse<br />
e teve<br />
a vi<strong>da</strong> por<br />
um fio<br />
18 • Sexta-feira 1 Abril 2011 • Ípsilon
com outras regras, ou pelo me<strong>nos</strong>, se<br />
tenciona ser <strong>de</strong>sapie<strong>da</strong>do, ter o cui<strong>da</strong>do<br />
<strong>de</strong> não o fazer em público. Mas<br />
on<strong>de</strong> é que falo <strong>de</strong> distanciamento<br />
com o pai ou com algum dos irmãos?<br />
É interesante essa perspectiva. O que<br />
seria bom saber é quem se afastou<br />
primeiro. Se Fi<strong>de</strong>l se os familiares.<br />
Fi<strong>de</strong>l foi sempre como o<br />
apresenta ou houve algo que o<br />
mudou?<br />
Acho que não apresentei Fi<strong>de</strong>l como<br />
um ente estático. Pelo me<strong>nos</strong> empenhei-me<br />
na <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong> uma existência<br />
em movimento e conforme as vicissitu<strong>de</strong>s<br />
do seu tempo. Ninguém<br />
nasce para ser o “lí<strong>de</strong>r máximo <strong>da</strong><br />
Revolução Cubana”, como lhe <strong>chama</strong>va<br />
a propagan<strong>da</strong> oficial, ou um<br />
sátrapa caribenho, como diziam os<br />
comentadores <strong>de</strong> Miami.<br />
Não, não o apresentou<br />
como um ente estático, mas<br />
apresentou-o como um ente<br />
sempre em movimento em torno<br />
<strong>de</strong> si mesmo, numa ambição<br />
<strong>de</strong>smedi<strong>da</strong> para estar sempre<br />
acima dos outros e em direcção<br />
a esse<br />
mesmo lí<strong>de</strong>r máximo…<br />
Ninguém se converte num lí<strong>de</strong>r revolucionário<br />
se estiver abaixo do nível<br />
<strong>de</strong> inteligência ou <strong>de</strong> valentia, ou <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>cisão, ou <strong>de</strong> futuro dos que o ro-<br />
<strong>de</strong>iam. Isso está mais do que estu<strong>da</strong>-<br />
do pela<br />
psicología <strong>de</strong> grupo. O lí<strong>de</strong>r<br />
surge do grupo, não contra o grupo.<br />
Qualquer que seja a escala em que o<br />
ponhas, o lí<strong>de</strong>r é o resumo <strong>da</strong>s quali-<br />
<strong>da</strong><strong>de</strong>s do grupo. Esse é o caso, mais<br />
do que evi<strong>de</strong>nte, <strong>de</strong> Fi<strong>de</strong>l Castro.<br />
Ele admitiu incendiar Santiago<br />
<strong>de</strong> Cuba? Como Nero fez com<br />
Roma? Custa a crer...<br />
Pelo me<strong>nos</strong>, disse-o. Tenho testemu-<br />
nhas que mo contaram. Claro, não há<br />
que levar isso dramaticamente. Ele é<br />
muito amigo <strong>de</strong>sse tipo <strong>de</strong> <strong>de</strong>clara-<br />
ções, que na ver<strong>da</strong><strong>de</strong> são simples<br />
“bouta<strong>de</strong>s”.<br />
No seu<br />
livro, Fi<strong>de</strong>l aparece<br />
<strong>de</strong>sconfiado <strong>de</strong> Che <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o<br />
primeiro momento. Porque é<br />
que lhe <strong>de</strong>u então tanto po<strong>de</strong>r?<br />
Não me lembro que lhe tenha <strong>da</strong>do<br />
algum po<strong>de</strong>r. Po<strong>de</strong>r? Ao Che, o que<br />
lhe <strong>da</strong>va eram tarefas, ca<strong>da</strong> vez<br />
mais complexas e mais próximas<br />
do suicídio. Isso não tem na<strong>da</strong> a<br />
ver com o po<strong>de</strong>r.<br />
Pois, mas quando se dão<br />
tarefas importantes a uma<br />
pessoa, está-se-lhe a <strong>da</strong>r<br />
po<strong>de</strong>r. Lembre-se do Che<br />
nas Nações Uni<strong>da</strong>s…<br />
On<strong>de</strong> tu vês po<strong>de</strong>r, eu vejo<br />
uma marioneta.<br />
O que é que se passou<br />
“Ninguém<br />
se converte num lí<strong>de</strong>r<br />
revolucionário<br />
se estiver abaixo do<br />
nível <strong>de</strong> inteligência<br />
ou<br />
<strong>de</strong> valentia, ou <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>cisão, ou <strong>de</strong> futuro<br />
dos<br />
que o ro<strong>de</strong>iam.<br />
Qualquer que seja<br />
a escala em que<br />
o ponhas, o lí<strong>de</strong>r<br />
é o resumo <strong>da</strong>s<br />
quali<strong>da</strong><strong>de</strong>s do grupo.<br />
Esse é o caso <strong>de</strong> Fi<strong>de</strong>l<br />
Castro”<br />
<strong>de</strong> concreto para tanta<br />
animosi<strong>da</strong><strong>de</strong> para com o<br />
homem que <strong>de</strong>u tanto à<br />
Revolução?<br />
A animosi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Fi<strong>de</strong>l era a mesma<br />
<strong>de</strong> Che para com ele. Tenho informações<br />
sobre isso, mas tens que<br />
esperar pelo meu próximo livro sobre<br />
o argentino.<br />
Bom... um combate <strong>de</strong> galos?<br />
Na Argentina há galos?<br />
Para quando esse livro?<br />
Destape um pouco <strong>de</strong>sse Che…<br />
Não, coño; <strong>de</strong>ixa-me escrevê-lo primeiro!<br />
Agora estamos é com o livro<br />
do vencedor.<br />
Mostra Fi<strong>de</strong>l como o homem<br />
que segura a espingar<strong>da</strong><br />
enquanto outros, como Raúl,<br />
ou Che, fuzilam. Foi assim?<br />
É uma forma <strong>de</strong> ver as coisas.<br />
Descreve no seu livro Raúl<br />
como um matador...<br />
Gostava mais <strong>de</strong> o ver como um homem<br />
<strong>de</strong> tarefas. Chamar a Raúl Castro<br />
um matador não seria digno dos<br />
meus “stan<strong>da</strong>rds” como escritor. Demasiado<br />
simples. Não conseguiria<br />
dormir hoje. “Norbertico – diria para<br />
mim – escreveste algo falso”. É ver<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
que no livro ponho na boca <strong>de</strong><br />
Fi<strong>de</strong>l um par <strong>de</strong> anedotas para <strong>de</strong>finir<br />
a dureza <strong>de</strong> Raúl, mas se escrever<br />
uma novela sobre ele será um filão a<br />
escavar em profundi<strong>da</strong><strong>de</strong> – <strong>de</strong> como<br />
Raúl se transformou no homem mais<br />
duro <strong>da</strong> Revolução Cubana.<br />
Uma autobiografia <strong>de</strong> Fi<strong>de</strong>l<br />
Castro. Como é que lhe ocorreu<br />
a i<strong>de</strong>ia?<br />
A i<strong>de</strong>ia não foi minha, foi uma proposta<br />
<strong>de</strong> Basilio Baltasar, o meu antigo<br />
editor <strong>da</strong> Seix Barral. Claro, não<br />
o livro em si. Este livro é uma versão<br />
inteiramente recria<strong>da</strong> do projecto<br />
<strong>de</strong> Basilio. On<strong>de</strong> ele viu um livro <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>talhes inéditos e informacões pouco<br />
conheci<strong>da</strong>s sobre o círculo íntimo<br />
<strong>de</strong> Fi<strong>de</strong>l, eu inventei uma novela.<br />
Como é que conseguiu meterse<br />
na sua pele e mentali<strong>da</strong><strong>de</strong>?<br />
Pon<strong>de</strong>rou os riscos?<br />
Metendo-me.<br />
Claro, mas pon<strong>de</strong>rou os riscos<br />
<strong>de</strong> falar por uma pessoa ain<strong>da</strong><br />
viva?<br />
Sim, on<strong>de</strong> haja risco, perigo, <strong>de</strong>safio,<br />
po<strong>de</strong>s contar comigo. Na primeira<br />
fila.<br />
Serviu Fi<strong>de</strong>l antes <strong>de</strong> o<br />
enfrentar. Neste sentido, este<br />
livro não é algo também como<br />
um exorcismo?<br />
Exorcizar-me <strong>de</strong> uma coisa que me<br />
está no sangue? Na outra resposta tinha<br />
algo mais para dizer, mas isso<br />
teria tirado força à palavra solitária,<br />
tão <strong>de</strong>finitiva [metendo-me]. Mas ia<br />
acrecentar: sobretudo, não me <strong>de</strong>ixando<br />
levar por nenhum preconceito.<br />
E mais: gostei muito <strong>de</strong> me meter <strong>nos</strong><br />
seus sapatos. Parece um vício cubano:<br />
todos querem ser como ele, tanto em<br />
Havana como em Miami. Mas mais do<br />
que me meter na sua pele, o maior<br />
gozo que tive foi o <strong>de</strong> me instalar no<br />
posto <strong>de</strong> comando privilegiado que é<br />
o seu cérebro. Definitivamente, sou<br />
um intelectual, e obrigar-me a pensar<br />
como ele era um <strong>de</strong>safio à minha própria<br />
inteligência.<br />
Acabei o seu livro com a<br />
sensação que ain<strong>da</strong> admira<br />
Fi<strong>de</strong>l. É ver<strong>da</strong><strong>de</strong>?<br />
Não será antes a sensação com que<br />
tu ficaste <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> o ler? Que admiras<br />
Fi<strong>de</strong>l? Não te preocupes, não é<br />
caso para te envergonhares. De Tennessee<br />
Williams a Gabriel García<br />
Márquez, <strong>de</strong> Sartre a Hemingway,<br />
todos o admiraram, quiseram aparecer<br />
numa fotografia <strong>de</strong>baixo <strong>de</strong>sse<br />
braço e perto <strong>da</strong> sua barba.<br />
Ver crítica <strong>de</strong> livros págs. 30 e segs.<br />
Ípsilon • Sexta-feira 1 Abril 2011 • 19
Howard Jacobson já tinha escrito uma<br />
<strong>de</strong>zena <strong>de</strong> livros, pouco conhecidos<br />
fora do mundo <strong>de</strong> língua inglesa,<br />
quando “A Questão <strong>de</strong> Finkler” ganhou<br />
o Booker Prize e lhe assegurou<br />
uma internacionalização meteórica.<br />
O júri, pouco <strong>da</strong>do a premiar romances<br />
cómicos, <strong>de</strong>ixou-se seduzir pela<br />
divertidíssima história <strong>de</strong> Julian Treslove,<br />
um pacato inglês que inveja a tal<br />
ponto o seu melhor amigo, o ju<strong>de</strong>u<br />
Sam Finkler, que tenta transformarse,<br />
ele próprio, num ju<strong>de</strong>u. Mas esta<br />
é também a história <strong>de</strong> Finkler, um<br />
ju<strong>de</strong>u que <strong>de</strong>testa o ju<strong>da</strong>ísmo e dirige<br />
uma associação <strong>de</strong> “ju<strong>de</strong>us envergonhados”.<br />
E <strong>de</strong> Libor Sevcik, um viúvo<br />
<strong>de</strong> 90 a<strong>nos</strong> que privou com Garbo,<br />
Dietrich e Monroe, mas cuja única<br />
paixão foi a sua mulher, Malkie, cuja<br />
morte não consegue ultrapassar. Um<br />
livro hilariante, mas que <strong>de</strong>ixa um<br />
amargo <strong>de</strong> boca. Jacobson quer que<br />
os leitores se riam, mas que se engasguem<br />
com o riso.<br />
Ju<strong>de</strong>us e ingleses partilham a<br />
reputação <strong>de</strong> ter pia<strong>da</strong> a gozar<br />
com eles próprios. Enquanto<br />
autor ju<strong>de</strong>u britânico, estava<br />
con<strong>de</strong>nado a escrever romances<br />
cómicos?<br />
Sinto-me realmente con<strong>de</strong>nado, <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />
logo, a escrever romances. Mas a<br />
auto-ironia também é uma coisa que<br />
está <strong>de</strong> tal modo entranha<strong>da</strong> em mim<br />
que, quando comecei a publicar, a<br />
minha mãe perguntou-me: “Por que<br />
é que estás a ser tão cruel contigo próprio,<br />
a fazer troça <strong>de</strong> ti mesmo?”. Eu<br />
respondi-lhe, claro, que era porque<br />
ela não me tinha amado o suficiente.<br />
Nenhum dos seus livros tinha<br />
sido editado em Portugal, mas<br />
este último foi rapi<strong>da</strong>mente<br />
traduzido e publicado.<br />
Acelerar a internacionalização<br />
é o aspecto mais revelante do<br />
Booker Prize?<br />
O livro está a ser publicado em 24 línguas<br />
e em países como a China ou a<br />
Coreia. É um óptimo prémio para se<br />
ganhar. Mas também penso que escrevi<br />
muitos outros livros antes <strong>de</strong>ste,<br />
e <strong>de</strong>saponta-me saber que não foram<br />
traduzidos. De repente, aos 68 a<strong>nos</strong>,<br />
fui <strong>de</strong>scoberto.<br />
Não faltam bons ficcionistas<br />
ju<strong>de</strong>us america<strong>nos</strong>, e muitos<br />
<strong>de</strong>les são bastante divertidos.<br />
Mas não me ocorre, além <strong>de</strong> si,<br />
outro romancista cómico inglês<br />
que seja ju<strong>de</strong>u.<br />
Na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, não há muitos romancistas<br />
ingleses ju<strong>de</strong>us. Os que escrevem<br />
são geralmente dramaturgos, como<br />
Harold Pinter, que nunca, mas mesmo<br />
nunca, gozou com ele próprio. É claro<br />
que em Inglaterra também só há<br />
uns 300 mil ju<strong>de</strong>us. Não somos tão<br />
importantes como os ju<strong>de</strong>us america<strong>nos</strong>.<br />
E somos mais discretos, não<br />
achamos que possamos pôr-<strong>nos</strong> a troçar<br />
<strong>de</strong> nós mesmos. Nisso sou original.<br />
O seu livro trata <strong>de</strong> infortúnios,<br />
pelo que o facto <strong>de</strong> ter treze<br />
capítulos po<strong>de</strong> ser lido como<br />
<strong>de</strong>liberado. Mas pergunto-me<br />
se não há também uma alusão<br />
aos 13 princípios <strong>da</strong> fé ju<strong>da</strong>ica<br />
compilados por Maimóni<strong>de</strong>s,<br />
cujo “Guia dos Perplexos” o<br />
protagonista, Julian Treslove,<br />
an<strong>da</strong> a ler. Como se este<br />
romance fosse também uma<br />
espécie <strong>de</strong> guia irónico às<br />
perplexi<strong>da</strong><strong>de</strong>s que o ju<strong>da</strong>ísmo<br />
hoje coloca.<br />
Só reparei no treze como número do<br />
azar, mas gostava sinceramente <strong>de</strong> lhe<br />
dizer que tinha pensado nisso, porque<br />
me agra<strong>da</strong> essa i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> o livro po<strong>de</strong>r<br />
ser lido como um comentário irónico<br />
a Maimóni<strong>de</strong>s.<br />
Chamam-lhe o Philip Roth<br />
inglês, mas, apesar <strong>da</strong>s<br />
afini<strong>da</strong><strong>de</strong>s óbvias, não acha<br />
que o seu humor tem um lado<br />
muito inglês, mais leve, mais<br />
caricatural, do que o <strong>de</strong> Roth?<br />
Não sou tão zangado como ele. Sintome<br />
tão zangado como ele, mas não o<br />
sou tanto no que escrevo. Há alguma<br />
coisa <strong>nos</strong> meus romances que é inglesa,<br />
um tom mais afectuoso. Com Roth<br />
parece, às vezes, que estamos num<br />
tribunal. Ele castiga sobretudo as mulheres,<br />
com aquele seu sentido <strong>de</strong><br />
rectidão. Eu não conseguiria fazer<br />
isso. Sentir-me-ia <strong>de</strong>masiado ridículo.<br />
Mas não sei se me <strong>de</strong>va sentir orgulhoso<br />
disso. Roth é um escritor maravilhoso,<br />
e ser-se diferente <strong>de</strong>le em<br />
alguma coisa não <strong>de</strong>ve ser bom.<br />
Como é que lhe ocorreu essa<br />
i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> mostrar o ju<strong>da</strong>ísmo a<br />
partir do olhar <strong>de</strong> alguém que<br />
não é ju<strong>de</strong>u e quer sê-lo?<br />
Por um lado, quis lembrar que há<br />
muita gente fascina<strong>da</strong> pelos ju<strong>de</strong>us,<br />
pelo seu modo <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> e cultura. Mas,<br />
como romancista cómico, o principal<br />
foi ter percebido que seria muito divertido:<br />
Treslove a ler Maimóni<strong>de</strong>s,<br />
Treslove preocupado com a circuncisão...<br />
Não há asssim tantos ingleses<br />
que saibam muito sobre ju<strong>de</strong>us. Há<br />
al<strong>de</strong>ias on<strong>de</strong> as pessoas nunca viram<br />
Um riso que<br />
Consi<strong>de</strong>rado por muitos o Philip Roth inglês, Howard Jacobson ganhou a última edição do B<br />
obcecado pelo <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> se tornar ju<strong>de</strong>u. Um livro hilariante, mas também s<br />
diz, “é manter a disputa entre comédia e t<br />
20 • Sexta-feira 1 Abril 2011 • Ípsilon
Sinto-me realmente<br />
con<strong>de</strong>nado, <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />
logo, a escrever<br />
romances.<br />
Mas a auto-ironia<br />
também é uma coisa<br />
que está <strong>de</strong> tal modo<br />
entranha<strong>da</strong> em mim<br />
que, quando comecei<br />
a publicar, a minha<br />
mãe perguntou-me:<br />
“Por que é que estás<br />
a ser tão cruel contigo<br />
próprio, a fazer troça<br />
<strong>de</strong> ti mesmo?”.<br />
Eu respondi-lhe,<br />
claro, que era porque<br />
ela não me tinha<br />
amado o suficiente<br />
Nenhum dos<br />
livros <strong>de</strong><br />
Jacobson<br />
tinha sido<br />
editado em<br />
Portugal, mas<br />
este último foi<br />
rapi<strong>da</strong>mente<br />
traduzido e<br />
publicado<br />
seguir manter essa disputa entre comédia<br />
e tragédia. Também quis que<br />
o livro fosse assim porque Treslove<br />
está a brincar com coisas sérias, tem<br />
inveja do sofrimento dos outros.<br />
Quando convi<strong>da</strong>mos a tristeza para a<br />
um ju<strong>de</strong>u. Creio que também fiquei como uma comédia <strong>de</strong> Woody <strong>nos</strong>sa vi<strong>da</strong>, ela aceita.<br />
a <strong>de</strong>ver um pouco o Booker a essa Allen que acabasse num filme <strong>de</strong> O livro, que tem <strong>nos</strong> sentimentos<br />
i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> um não ju<strong>de</strong>u a levar os gentios<br />
Bergman. Foi <strong>de</strong>liberado? <strong>de</strong> per<strong>da</strong> um tópico central,<br />
ao mundo ju<strong>da</strong>ico.<br />
Os meus romances têm tendência a é <strong>de</strong>dicado a três amigos que<br />
Começamos a ler o seu livro ir ficando mais escuros, a comédia morreram em 2009. Essa<br />
e não temos dúvi<strong>da</strong>s <strong>de</strong> que é torna-se mais negra. Rimo-<strong>nos</strong> e sentimos<br />
sucessão <strong>de</strong> mortes pesou na<br />
mesmo um romance cómico,<br />
que não <strong>nos</strong> <strong>de</strong>víamos estar a escrita <strong>de</strong>ste romance?<br />
<strong>da</strong>queles que po<strong>de</strong>m levar um rir, engasgamo-<strong>nos</strong> com o riso. É isto Contou muito. É também por isso que<br />
leitor a rir-se alto. Mas <strong>nos</strong> que quero fazer. Mas não controlo o romance é sombrio. Ganhei o prémio<br />
últimos capítulos, ain<strong>da</strong> que muito, <strong>de</strong>ixo o livro ir para on<strong>de</strong> ele<br />
Booker e sinto-me outra vez jo-<br />
subsistam passagens hilariantes, quiser. Tento apenas assegurar que a vem. Mas senti-me velho e a morrer<br />
o clima vai-se tornando<br />
comédia não <strong>de</strong>sapareça, sinto que a quando estava a escrever o livro. Como<br />
progressivamente mais sombrio, minha obrigação <strong>de</strong> romancista é conengasga<br />
Treslove, tenho essa capaci<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> antecipar o sofrimento e a morte.<br />
Admito que fosse impossível,<br />
mas suponha que o livro tinha<br />
sido escrito por alguém que<br />
não é ju<strong>de</strong>u e que lhe calhava<br />
lê-lo. Haveria momentos em<br />
que se irritaria por achar que o<br />
autor tinha ido longe <strong>de</strong> mais na<br />
caricaturização dos ju<strong>de</strong>us.<br />
Não creio que o romance seja agressivo.<br />
O modo como Treslove vê os<br />
ju<strong>de</strong>us é, <strong>de</strong> facto, uma caricatura –<br />
acha que são todos inteligentes e ambiciosos<br />
–, mas é afectuosa. Ele é um<br />
bocado simplório, e o retrato que faz<br />
dos ju<strong>de</strong>us, embora impreciso, não é<br />
ofensivo. Mas admito que há uma ou<br />
duas pia<strong>da</strong>s no livro que eu posso dizer,<br />
mas que não permitiria a um gentio.<br />
Como Finkler com Treslove?<br />
Sim, como Finkler. É-me fácil simpatizar<br />
com Finkler, porque <strong>de</strong> algum<br />
modo, tal como ele, também estou<br />
fora: não sei o que sou enquanto ju<strong>de</strong>u.<br />
É isso que é fascinante, o facto<br />
<strong>de</strong> ser uma questão sem fim. O que<br />
somos? Como <strong>de</strong>vemos viver? Estamos<br />
sempre a argumentar. Argumentamos<br />
com a <strong>nos</strong>sa fé e <strong>de</strong>ixámo-la<br />
em pe<strong>da</strong>ços, é essa a <strong>nos</strong>sa tradição.<br />
Diz simpatizar com Finkler,<br />
mas fica-se com a impressão<br />
<strong>de</strong> que a personagem que lhe<br />
agra<strong>da</strong> mais é Libor, o velho<br />
viúvo que privou com as estrelas<br />
<strong>de</strong> Hollywood e que acha que<br />
os amigos <strong>de</strong> Finkler são antisemitas.<br />
Há nele uma digni<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
que não conce<strong>de</strong> aos outros, e as<br />
ironias que lhe dirige nunca são<br />
mor<strong>da</strong>zes.<br />
Porque tenho mesmo uma simpatia<br />
especial por ele. É baseado num velho<br />
<strong>de</strong> 90 a<strong>nos</strong> que conheci e que tinha<br />
sido, como Libor, jornalista <strong>de</strong> escân<strong>da</strong>los.<br />
A mulher <strong>de</strong>le tinha morrido e<br />
diziam-me que ele gostava dos meus<br />
livros e que eu <strong>de</strong>via ir almoçar com<br />
ele. Fui e gostei muito <strong>de</strong>le. Fez-me<br />
rir e comoveu-me. Mas foi a partir dos<br />
meus próprios terrores que <strong>de</strong>screvi<br />
os seus sentimentos.<br />
Há referências no seu romance<br />
a alguns ataques anti-semitas.<br />
Acontecem com frequência no<br />
Reino Unido?<br />
O anti-semitismo estava a voltar a Inglaterra,<br />
porque as críticas a Isarel<br />
estavam a atingir os ju<strong>de</strong>us em geral.<br />
Ca<strong>da</strong> vez que acontecia algo no Médio<br />
Oriente que irritava as pessoas, havia<br />
ju<strong>de</strong>us atacados. Agora isso dissolveuse<br />
um bocado, mas cheguei a sentir<br />
receio. Os ataques graves são muito<br />
poucos, mas po<strong>de</strong>m acontecer.<br />
Se é a política <strong>de</strong> Israel que<br />
motiva a crítica generaliza<strong>da</strong> aos<br />
ju<strong>de</strong>us, ela vem sobretudo <strong>da</strong><br />
esquer<strong>da</strong>?<br />
Absolutamente. Se vem aí um novo<br />
anti-semitismo, é <strong>da</strong> esquer<strong>da</strong> que o<br />
receamos, e não <strong>da</strong> direita. É isso que<br />
é tão estranho. O anti-semitismo sempre<br />
foi uma coisa <strong>da</strong> direita, que a<br />
esquer<strong>da</strong> atacou.<br />
Finkler admira os ju<strong>de</strong>us<br />
a ponto <strong>de</strong> querer tornarse<br />
ju<strong>de</strong>u. A admiração ou a<br />
repulsa generaliza<strong>da</strong>s não são<br />
sinais contrários <strong>de</strong> um mesmo<br />
preconceito?<br />
É ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. Há muitos ju<strong>de</strong>us que se<br />
irritam com os que acham que somos<br />
todos maravilhosos. Sentem-no como<br />
paternalismo, con<strong>de</strong>scendência. Treslove<br />
é benigno, faz isso sem má intenção,<br />
mas Finkler está sempre muito<br />
à <strong>de</strong>fesa com ele.<br />
Des<strong>de</strong> Isaiah Berlin a George<br />
Steiner, vários intelectuais<br />
ju<strong>de</strong>us têm abor<strong>da</strong>do o tópico<br />
do ódio dos ju<strong>de</strong>us por si<br />
próprios, sugerido no seu livro<br />
através <strong>da</strong> personagem <strong>de</strong><br />
Finkler. De on<strong>de</strong> é que isso vem?<br />
É preciso ter cui<strong>da</strong>do com os termos.<br />
Eu não falaria em ódio. Mas é algo que<br />
existe e que me fascina. Finkler é um<br />
<strong>de</strong>sses ju<strong>de</strong>us que sentem que têm <strong>de</strong><br />
anunciar aos gentios que estão envergonhados<br />
enquanto ju<strong>de</strong>us. São satirizados<br />
no livro, não pela sua política,<br />
mas pelo modo como pensam acerca<br />
<strong>de</strong>les mesmos. Tudo isso vem do início,<br />
<strong>da</strong> invenção do monoteísmo. Mosisés<br />
vai à montanha, <strong>de</strong>mora-se um<br />
bocadinho a trazer os <strong>de</strong>z man<strong>da</strong>mentos<br />
e, quando chega, os ju<strong>de</strong>us já voltaram<br />
todos à idolatria. A Bíblia é uma<br />
história <strong>de</strong> sucessivas rebeliões. O ju<strong>de</strong>u<br />
inventou o <strong>de</strong>us único e con<strong>de</strong>nou-se<br />
a argumentar com ele. No paganismo,<br />
se alguém se chateava com<br />
um <strong>de</strong>us, falava com outro. O monoteísmo<br />
não dá escolha. A escolha é<br />
abandonar o ju<strong>da</strong>ísmo, e os ju<strong>de</strong>us<br />
estão sempre a fazê-lo. Os ortodoxos<br />
dizem que ain<strong>da</strong> há ju<strong>de</strong>us porque as<br />
pessoas vão à sinagoga. Eu acho o<br />
contrário: precisamente porque argumentamos,<br />
porque, milhares <strong>de</strong><br />
a<strong>nos</strong> <strong>de</strong>pois, ain<strong>da</strong> estamos a discutir,<br />
é que ain<strong>da</strong> somos ju<strong>de</strong>us.<br />
Treslove quer ser ju<strong>de</strong>u e<br />
Finkler quer <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> o<br />
ser. Falham ambos. Mas se<br />
Finkler permanece ju<strong>de</strong>u,<br />
acha que se po<strong>de</strong>ria dizer, no<br />
mesmo sentido, que Treslove<br />
permanece ateu, ou inglês, ou<br />
seja o que for? O livro abor<strong>da</strong> a<br />
dificul<strong>da</strong><strong>de</strong> dos ju<strong>de</strong>us em li<strong>da</strong>r<br />
com a sua própria i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />
mas o problema não será mais o<br />
<strong>de</strong> um excesso <strong>de</strong> i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>?<br />
É uma boa maneira <strong>de</strong> pôr a questão.<br />
Ninguém po<strong>de</strong> ser vagamente ju<strong>de</strong>u.<br />
Ser ju<strong>de</strong>u é uma coisa em que penso<br />
todos os dias. E isto confun<strong>de</strong>-me,<br />
porque não tive educação ju<strong>da</strong>ica tradicional.<br />
É como se isso estivesse à<br />
minha espera. Tal como Treslove, assaltado<br />
na rua por uma mulher (e essa<br />
mulher é o ju<strong>da</strong>ísmo), eu também<br />
fui atacado. Uma vez disse a mim mesmo:<br />
<strong>de</strong>sta vez não vou escrever sobre<br />
ju<strong>de</strong>us. E fi-lo. O livro <strong>chama</strong>-se “Act<br />
of Love” e é a história <strong>de</strong> um homem<br />
que quer que a mulher lhe seja infiel.<br />
Não há lá ju<strong>de</strong>u nenhum. Um crítico<br />
disse que era o mais ju<strong>da</strong>ico <strong>de</strong> todos<br />
os meus livros.<br />
Ver crítica <strong>de</strong> livros págs. 30 e segs<br />
Booker Prize com “A Questão <strong>de</strong> Finkler”, a história <strong>de</strong> um homem<br />
sombrio. “A minha obrigação como romancista”,<br />
tragédia”. Luís Miguel Queirós<br />
Ípsilon • Sexta-feira 1 Abril 2011 • 21
PIPER FERGUSON<br />
Estrela impro<br />
Há um par <strong>de</strong> semanas os Iron & Wine<br />
ofereceram um presentinho aos seguidores<br />
do AV Club. O magazine tem<br />
por hábito propor aos seus artistas<br />
preferidos que uma <strong>de</strong> 25 canções<br />
previamente escolhi<strong>da</strong>s seja transforma<strong>da</strong><br />
<strong>de</strong> acordo com o seu gosto. Sendo<br />
cria<strong>da</strong> pelos seguidores do site, a<br />
lista é suficientemente lata em gosto<br />
para incluir Danzig e LCD Soundsystem,<br />
Chumbawamba e Kanye West,<br />
Huey Lewis e Loretta Lynn, Human<br />
League e Otis Redding – o lixo e o luxo,<br />
se quiserem. Mas para Sam Beam,<br />
o lí<strong>de</strong>r dos Iron & Wine, esta largura<br />
<strong>de</strong> espectro ain<strong>da</strong> não era suficiente,<br />
pelo que o dono <strong>de</strong> uma <strong>da</strong>s mais respeitáveis<br />
barbas <strong>da</strong> actuali<strong>da</strong><strong>de</strong> resolveu<br />
ir resgatar ao fundo do poço do<br />
mau gosto um pechisbeque do pior<br />
<strong>de</strong> George Michael dos a<strong>nos</strong> 80.<br />
No seu original, “One more try” era<br />
uma <strong>da</strong>quelas bala<strong>da</strong>s melosas que<br />
consagraram o vocalista como o mais<br />
“posterizado” galã <strong>da</strong> época. Havia<br />
teclados soporíferos, uma <strong>da</strong>quelas<br />
interpretações sofri<strong>da</strong>s, um ví<strong>de</strong>o com<br />
sombras. Perante isto o entrevistador<br />
do AV Club viu-se na obrigação <strong>de</strong> perguntar<br />
a Sam Beam se o interesse em<br />
fazer uma versão não teria algo <strong>de</strong><br />
“irónico” – no sentido em que agora<br />
é <strong>de</strong> bom gosto admirar “I’m not in<br />
love”, dos 10CC, porque é irónico. Mas<br />
Beam não se <strong>de</strong>scoseu: que sim, havia<br />
certa ironia, mas mais que tudo, dizia,<br />
“muitas <strong>de</strong>stas canções dos a<strong>nos</strong> 80<br />
têm boas melodias mas foram estraga<strong>da</strong>s<br />
por uma má produção”.<br />
Qualquer <strong>de</strong>sconfiança que tivéssemos<br />
em relação à palavra <strong>de</strong> Beam<br />
<strong>de</strong>saparece quando vemos o ví<strong>de</strong>o.<br />
Não é um milagre, somente uma belíssima<br />
transformação: sem guitarra,<br />
acompanhado <strong>de</strong> um órgão <strong>de</strong> igreja<br />
que dá à canção um tom cerimonioso,<br />
<strong>de</strong> um violino, um clarinete e duas<br />
coristas, Beam retira a “One more try”<br />
to<strong>da</strong> a mun<strong>da</strong>ni<strong>da</strong><strong>de</strong> gordurosa e recria-a<br />
enquanto salmo pelo amor.<br />
Pensando bem, não <strong>de</strong>via ser uma<br />
surpresa a admirável volta que Beam<br />
– que, na prática, é os Iron & Wine –<br />
<strong>de</strong>u à canção <strong>de</strong> George Michael, pelo<br />
me<strong>nos</strong> tendo em conta o que alcançou<br />
em finais <strong>de</strong> Janeiro: o seu mais<br />
recente disco, “Kiss Each Other Clean”,<br />
chegou ao número dois <strong>da</strong> tabela<br />
<strong>de</strong> ven<strong>da</strong>s dos EUA, feito por norma<br />
apenas acessível a artistas <strong>de</strong> hip-hop<br />
ou crooners <strong>de</strong> bala<strong>da</strong>s xaroposas e<br />
inacessível a ban<strong>da</strong>s <strong>de</strong> barbudos pouco<br />
sensuais que fazem música folk.<br />
“Não é alucinante tudo isto?”, dizia<strong>nos</strong><br />
ele quando o apanhámos ao telefone.<br />
Homem com os pés assentes na<br />
“Kiss Each Other Clean”,<br />
chegou ao número dois <strong>da</strong><br />
tabela <strong>de</strong> ven<strong>da</strong>s dos EUA, feito<br />
por norma apenas acessível a<br />
artistas <strong>de</strong> hip-hop ou crooners<br />
<strong>de</strong> bala<strong>da</strong>s xaroposas<br />
Sam Beam, o homem que se escon<strong>de</strong> por trás do nome Iron & Wine, foi parar ao topo <strong>da</strong>s t<br />
Ou talvez se perceba: está tudo na fé que <strong>de</strong>posita nas m<br />
22 • Sexta-feira 1 Abril 2011 • Ípsilon
ovável<br />
terra, não pôs o carro à frente dos bois<br />
nem se <strong>de</strong>ixou levar pelos acontecimentos.<br />
Limitou-se a aventar que<br />
aquela era “uma época para<strong>da</strong> para<br />
a indústria”. “Não vejo mais nenhuma<br />
razão para isto estar a acontecer”.<br />
Há, contudo, uma possível razão:<br />
o contrato que os Iron & Wine assinaram<br />
com a Warner, <strong>de</strong>ixando para<br />
trás a SubPop, mítica editora <strong>de</strong> Seattle<br />
que havia editado os discos anteriores.<br />
Antigamente este tipo <strong>de</strong> saltos<br />
era mal visto pela comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> – preconceito<br />
que acabou com a transferência<br />
dos Nirvana e dos Sonic Youth<br />
para a Geffen. Aberto o prece<strong>de</strong>nte,<br />
muitas ban<strong>da</strong>s “menores” tentaram<br />
o mesmo salto, já sem complexos,<br />
mas sem atingirem resultados <strong>de</strong> ven<strong>da</strong>s<br />
admiráveis. Beam não foge ao<br />
assunto. “Estar ligado à Warner certamente<br />
que não prejudica as ven<strong>da</strong>s.<br />
Encontram-se excepções históricas à<br />
regra, mas é preciso estar na rádio<br />
para que a música chegue a mais gente.<br />
Tem-se mais recursos e eles têm<br />
maior experiência no que fazer e como<br />
fazer”.<br />
O artesanato <strong>da</strong> canção<br />
Tudo isto é dito num tom suave <strong>de</strong><br />
quem aparenta ser um tipo relaxado,<br />
<strong>de</strong> bem com a vi<strong>da</strong>. Não há, no tom<br />
<strong>de</strong> voz, enfado, pose, irritação. Coisa<br />
rara, ele simplesmente conversa <strong>de</strong><br />
forma aprazível. “Eu gosto <strong>da</strong>s entrevistas<br />
e <strong>de</strong> falar com as pessoas. É<br />
claro que isto é um trabalho <strong>de</strong> promoção,<br />
mas não me incomo<strong>da</strong> fazêlo.<br />
Não assinei por uma editora gran<strong>de</strong><br />
para tornar as coisas mais difíceis<br />
e ser conhecido por me<strong>nos</strong> gente”.<br />
É fora do comum a abertura com<br />
que Beam assume esse <strong>de</strong>sejo, em<br />
particular se tivermos em conta como<br />
a ban<strong>da</strong> começou: era “um passatempo”<br />
<strong>de</strong> “um tipo que nunca pensou<br />
ter uma carreira musical” e os discos<br />
iniciais eram “<strong>de</strong>finitivamente lo-fi”.<br />
Como com outros músicos a opção<br />
“Neste momento<br />
sinto que tenho uma<br />
carreira e que quando<br />
estou em digressão<br />
isto é trabalho.<br />
Mas quando estou<br />
em casa, ao acor<strong>da</strong>r<br />
<strong>de</strong> manhã e olhar-me<br />
ao espelho não penso<br />
‘Sou um músico<br />
conhecido’.<br />
Nessa altura sou<br />
apenas um pai”<br />
pelo lo-fi <strong>de</strong>u-se “mais pela contingência<br />
<strong>da</strong> falta <strong>de</strong> meios” do que por<br />
razões estéticas.<br />
Com quatro discos e uma <strong>da</strong>ta <strong>de</strong><br />
EPs editados <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 2002, Beam tinha<br />
uma sóli<strong>da</strong> obra <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong>quilo a que<br />
se po<strong>de</strong>ria <strong>chama</strong>r a terceira (ou quarta?,<br />
já lhes per<strong>de</strong>mos a conta) vaga <strong>de</strong><br />
“americana”, tipo <strong>de</strong> som reconhecível<br />
por fun<strong>da</strong>r-se no folclore e na<br />
country norte-americanas. Mas “Kiss<br />
Each Other Clean” marca uma viragem:<br />
o tom é pop, há mais soluções,<br />
mais órgãos, baixos que balançam,<br />
xilofones em luta com guitarras eléctricas,<br />
wurlitzers a contrabalançar a<br />
doçura <strong>da</strong> voz <strong>de</strong> Beam. O tipo <strong>de</strong> disco<br />
que se fazia em LA <strong>nos</strong> a<strong>nos</strong> 70, o<br />
tipo <strong>de</strong> disco que Bill Callahan não<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong>nharia, o tipo <strong>de</strong> disco que os<br />
Low fariam se rezassem me<strong>nos</strong> e rebolassem<br />
mais as ancas.<br />
Não há gran<strong>de</strong> explicação metafísica<br />
para as mu<strong>da</strong>nças no som dos<br />
Iron & Wine, diz Beam, mas punhamos<br />
as coisas assim: “Ao fim <strong>de</strong> algum<br />
tempo três acor<strong>de</strong>s e ‘A ver<strong>da</strong><strong>de</strong> sobre<br />
o universo’ começam a cansar”.<br />
A <strong>de</strong>claração contém um certo gozo<br />
àquela premissa <strong>de</strong> que tudo o que<br />
é folk transporta consigo a tocha <strong>da</strong><br />
“ver<strong>da</strong><strong>de</strong>”. Tendo em conta que o<br />
próprio Beam fez carreira assim, há<br />
nisto uma auto-ironia – que só lhe fica<br />
bem.<br />
“Eu não tinha um plano <strong>de</strong>liberado<br />
<strong>de</strong> me afastar fosse do que fosse, mas<br />
tinha uma vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> olhar <strong>de</strong> outra<br />
forma para o que fazia”. Pôs-se uma<br />
questão: “O que posso mu<strong>da</strong>r na minha<br />
música?”<br />
A primeira opção foi “óbvia”: “Bem,<br />
a guitarra acústica era a parte mais<br />
fácil <strong>de</strong> tirar”. Com isso foi-se o suporte<br />
habitual <strong>da</strong>s canções, o que acabou<br />
por ter as suas vantagens: “Quando<br />
se escreve uma canção na guitarra<br />
ten<strong>de</strong>-se a repetir padrões”, explica<br />
Beam, que acredita que “as canções<br />
que partem <strong>da</strong> guitarra acabam por<br />
soar mais monotónicas e por ser mais<br />
percussivas” (isto apesar <strong>de</strong> o piano<br />
ser consi<strong>de</strong>rado um cordofone, isto<br />
é, um instrumento <strong>de</strong> percussão).<br />
Resumi<strong>da</strong>mente: Beam mudou-se<br />
para o piano. O próximo passo foi<br />
perceber o que era essencial em ca<strong>da</strong><br />
canção. “Pensei assim: se um tipo vai<br />
escrever uma canção tem <strong>de</strong> criar alguma<br />
coisa que consiga cantar”. E<br />
nisto <strong>de</strong>u-se uma epifania: percebeu<br />
que “tinha <strong>de</strong> ter fé nas melodias. Se<br />
se tem uma boa melodia tem-se tudo.<br />
Só com isso po<strong>de</strong>-se fazer uma canção<br />
a capella e é suficiente para aguentar<br />
tudo. Depois, se se quiser, po<strong>de</strong> pôrse<br />
harmonias e colorir <strong>de</strong> forma mais<br />
interessante, mais misteriosa”.<br />
O processo <strong>de</strong> compor <strong>de</strong>ixou então<br />
<strong>de</strong> partir <strong>de</strong> uns acor<strong>de</strong>s à guitarra<br />
e passou para a melodia. A ca<strong>da</strong><br />
sequência <strong>de</strong> notas Beam perguntavase:<br />
“‘O que é que posso fazer com<br />
isto? On<strong>de</strong> é que esta melodia vai parar?’.<br />
Quanto mais melodias um tipo<br />
faz mais tem <strong>de</strong> pensar no que se está<br />
a fazer”.<br />
Na prática estamos perante a velha<br />
crença na arte <strong>de</strong> compor canções<br />
clássicas, <strong>de</strong> fazer parte <strong>da</strong>quela linha<br />
condutora que vai dos primeiros<br />
bluesman a Ju<strong>de</strong>e Sill (óbvia inspiração<br />
para “Brother in love”) passando<br />
pela Tin Pan Alley e pela Motown:<br />
“Mais que tudo o que sinto é vonta<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r o lado artesanal <strong>de</strong> escrever<br />
canções. Um tipo tem <strong>de</strong><br />
apren<strong>de</strong>r como se faz, quais são as<br />
estruturas possíveis, o que po<strong>de</strong> ser<br />
posto e o que po<strong>de</strong> ser tirado, qual o<br />
fulcro <strong>da</strong> canção”.<br />
Implica<strong>da</strong> nesta firme apologia do<br />
conhecimento está uma valorização<br />
do trabalho. “A inspiração”, avança,<br />
“é uma ave rara que não aparece<br />
quando mais queremos”. Para o senhor<br />
<strong>da</strong>s barbas compor é matéria<br />
diária: “Sentamo-<strong>nos</strong> todos os dias a<br />
trabalhar, a tentar e a tentar – e, mesmo<br />
que haja um dia, uma semana,<br />
um mês em que não <strong>nos</strong> surgiu na<strong>da</strong><br />
<strong>de</strong> jeito, acabamos por ter muita coisa<br />
ao fim do ano”. No caso <strong>de</strong> “Kiss<br />
Each Other Clean” <strong>de</strong>u-se exactamente<br />
isso: “Passei nove meses a trabalhar<br />
no disco”, conta. “Acaba<strong>da</strong>s as bases<br />
iniciais <strong>da</strong>s canções, o meu trabalho<br />
é mais acerca <strong>de</strong> re-imaginar e reescrever<br />
do que <strong>de</strong> criar”.<br />
Beam diz então que gosta mais do<br />
processo do que <strong>da</strong> parte final, que<br />
“a direcção que as coisas acabam por<br />
seguir é o me<strong>nos</strong> importante”, mas<br />
escutando “Kiss Each Other Clean”<br />
<strong>de</strong>ve pôr-se a <strong>de</strong>claração em causa: é<br />
o disco mais variado dos Iron & Wine<br />
e o mais inventivo <strong>nos</strong> arranjos, com<br />
ângulos apertados on<strong>de</strong> se esperava<br />
esferas, com mel on<strong>de</strong> pensávamos<br />
haver sal.<br />
Do alto <strong>da</strong>s tabelas <strong>de</strong> ven<strong>da</strong>s Beam<br />
mostra uma satisfação mo<strong>de</strong>ra<strong>da</strong>:<br />
“Neste momento sinto que tenho uma<br />
carreira e que quando estou em digressão<br />
isto é trabalho”. “Mas”, acrescenta,<br />
“quando estou em casa, ao<br />
acor<strong>da</strong>r <strong>de</strong> manhã e olhar-me ao espelho<br />
não penso ‘Sou um músico conhecido’.<br />
Nessa altura sou apenas um<br />
pai”.<br />
- Quantos filhos tem?<br />
- Cinco. Tudo raparigas.<br />
- Tudo raparigas?<br />
- Sim.<br />
- Bem, o seu esperma é óptimo<br />
- [gargalha<strong>da</strong>s] Juro-lhe que nunca me<br />
tinham dito isso antes. Muito obrigado,<br />
<strong>de</strong> qualquer modo. Vou contar à minha<br />
mulher.<br />
Que outra estrela pop que an<strong>da</strong> pelas<br />
tabelas <strong>de</strong> ven<strong>da</strong>s se riria assim?<br />
DANÇA<br />
CÉDRIC ANDRIEUX<br />
JÉRÔME BEL<br />
03 ABR 2011 (Dom), 22h00<br />
Auditório<br />
Bilhetes à ven<strong>da</strong> na recepção <strong>de</strong> Serralves e em www.serralves.pt<br />
PROGRAMAÇÃO ASSOCIADA AO ESPECTÁCULO “SUN MOON & STARS”<br />
10 e 11 ABR 2011 (Dom e Seg)<br />
APRESENTAÇÕES PÚBLICAS INFORMAIS<br />
DOS RESULTADOS DOS WORKSHOPS<br />
SUN MOON & STARS<br />
Por Elaine Summers, Pauline Oliveros e Jason Hwang<br />
Serralves / ESMAE / Bar Passos Manuel<br />
12 ABR 2011 (Ter), 21h30<br />
CINEMA<br />
Programação: Ricardo Matos Cabo<br />
Filmes <strong>de</strong> Elaine Summers,<br />
apresentados pela realizadora<br />
Auditório <strong>de</strong> Serralves<br />
Entra<strong>da</strong> gratuita para estas apresentações e sessão <strong>de</strong> <strong>cinema</strong>. To<strong>da</strong> a informação em www.serralves.pt<br />
Fotografia: Herman Sorgeloos<br />
Apoio Institucional<br />
Improvisações/Colaborações co-financiado por<br />
s tabelas <strong>de</strong> ven<strong>da</strong>s norte-americanas não se percebe como.<br />
s melodias. João Bonifácio<br />
Com o Apoio<br />
Apoio Logístico<br />
Parceria<br />
Apoio à Divulgação<br />
Patrocinador <strong>da</strong><br />
Programação <strong>de</strong> Música<br />
Fun<strong>da</strong>ção <strong>de</strong> Serralves Rua D. João <strong>de</strong> Castro, 210 / 4150-417 Porto / www.serralves.pt<br />
Siga-<strong>nos</strong> em www.facebook.com/fun<strong>da</strong>caoserralves<br />
Mecenas Exclusivo<br />
Improvisações/Colaborações<br />
Ípsilon • Sexta-feira 1 Abril 2011 • 23
A golpa<strong>da</strong><br />
(só que meio sem querer)<br />
Os Golpes fizeram um disco só para os fãs, “G”, mas o sucesso <strong>de</strong> “Vá lá senhora” não permitiu<br />
que o exclusivo se mantivesse. Em tempo <strong>de</strong> protestos populares, a reivindicação <strong>de</strong>u frutos:<br />
“G” chega segun<strong>da</strong>-feira às lojas. Gonçalo Frota<br />
24 • Sexta-feira 1 Abril 2011 • Ípsilon<br />
“Vá lá senhora” ampliou<br />
<strong>de</strong>scomunalmente o auditório<br />
d’Os Golpes, que agora são<br />
reconhecidos pelo senhor<br />
<strong>da</strong> pastelaria e pela senhora<br />
do cabeleireiro<br />
“Durante a déca<strong>da</strong><br />
<strong>de</strong> 90 e parte <strong>de</strong>sta<br />
última, houve<br />
o <strong>de</strong>slumbramento<br />
provinciano <strong>de</strong> querer<br />
fazer músicas para se<br />
ouvir em Piccadilly ou<br />
em Nova Iorque; o que<br />
tem expressão é fazer<br />
uma canção para<br />
o vizinho do lado”<br />
Manuel Fúria<br />
Quando se provoca a História, ela<br />
provoca <strong>de</strong> volta. Há uns a<strong>nos</strong>, Os<br />
Golpes surgiram evocando todo um<br />
imaginário que, noutros tempos, causou<br />
problemas aos Heróis do Mar:<br />
uma iconografia forte, patriótica, que<br />
<strong>de</strong>ixou a ban<strong>da</strong> <strong>de</strong> Pedro Ayres Magalhães<br />
e Rui Pregal <strong>da</strong> Cunha <strong>de</strong>baixo<br />
<strong>de</strong> um fogo cerrado <strong>de</strong> acusações<br />
<strong>de</strong> fascismo. Os Golpes escaparam a<br />
esta cobrança pós-25 <strong>de</strong> Abril. Mas a<br />
recuperação dos símbolos nacionais<br />
– o vocalista Manuel Fúria diz querer<br />
matar a vergonha que lhes está associa<strong>da</strong><br />
–, as far<strong>da</strong>s, as músicas com o<br />
apelo à festa e à <strong>da</strong>nça lembram inevitavelmente<br />
o que os Heróis do Mar<br />
an<strong>da</strong>ram a anunciar há 30 a<strong>nos</strong>.<br />
Tal como os Heróis, há outra vergonha<br />
que Os Golpes querem matar,<br />
a <strong>da</strong> pop nacional. Na ressaca <strong>da</strong> Revolução<br />
dos Cravos e com o canto <strong>de</strong><br />
intervenção esgotado na sua função,<br />
vieram punks, new waves, hard-rocks,<br />
pops electrónicas, importou-se<br />
<strong>de</strong> tudo sofregamente, na ânsia <strong>de</strong><br />
fazer igual ao que se via e ouvia lá<br />
fora, com medo do que o país “escondia”.<br />
Fúria diag<strong>nos</strong>tica: “Durante a<br />
déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 90 e parte <strong>de</strong>sta última,<br />
houve o <strong>de</strong>slumbramento provinciano<br />
<strong>de</strong> querer fazer músicas para se<br />
ouvir em Piccadilly ou em Nova Iorque;<br />
o que tem expressão é fazer uma<br />
canção para o vizinho do lado”.<br />
Os Golpes foram atrás e não olharam<br />
apenas para o lado. E foi nessa<br />
altura que a História lhes enviou um<br />
recado, lembrando que sempre se<br />
repete. Se os Heróis do Mar alcançaram<br />
os seus maiores êxitos com os<br />
maxi-singles <strong>de</strong> “Paixão” e “Amor”,<br />
com Os Golpes não po<strong>de</strong>ria ser diferente.<br />
“Nós trazemos a intenção <strong>de</strong> animar<br />
as pessoas: oferecemos a <strong>nos</strong>sa<br />
alma na música, na festa e no espectáculo<br />
que <strong>da</strong>mos, e achamos que<br />
vimos trazer muita vi<strong>da</strong>, mas também<br />
anunciamos uma espécie <strong>de</strong> morte:<br />
a <strong>da</strong> vergonha”, sentencia Manuel<br />
Fúria. A morte <strong>de</strong>ssa vergonha levou<br />
precisamente a que Os Golpes, comparados<br />
fatalmente com os Heróis<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> que “Cruz Vermelha Sobre<br />
Fundo Branco” foi lançado em 2009,<br />
<strong>chama</strong>ssem <strong>de</strong>savergonha<strong>da</strong>mente<br />
Rui Pregal <strong>da</strong> Cunha para se lhes juntar<br />
em “Vá lá senhora”. Evitar essa<br />
colaboração e a versão <strong>de</strong> “Paixão”<br />
em “G”, diz o guitarrista Pedro <strong>da</strong><br />
Rosa, equivaleria a trair a ver<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
mais elementar d’Os Golpes. “Em vez<br />
<strong>de</strong> renegarmos as coisas boas do passado,<br />
é mais fácil <strong>de</strong>ixar que tudo<br />
aconteça naturalmente. E é-<strong>nos</strong> natural<br />
tocar o ‘Paixão’. To<strong>da</strong> a gente<br />
sente que é uma influência que temos<br />
<strong>de</strong> abraçar”.<br />
E foi assim que “G”, gravado para<br />
oferecer aos fãs num par <strong>de</strong> concertos,<br />
se viu aumentado com a versão<br />
<strong>de</strong> “Paixão” (dos Heróis do Mar) e um<br />
original. A i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> tocar “Paixão”<br />
surgiu apenas porque, na preparação<br />
dos concertos, conta Luís dos Golpes<br />
(dos bigo<strong>de</strong>s), a ban<strong>da</strong> não quis “<strong>de</strong>sperdiçar<br />
um monstro dos palcos [Rui<br />
Pregal] só com uma música”. E o original,<br />
“A Brasileira”, não é mais do<br />
que o instrumental com que abriam<br />
os espectáculos após obras <strong>de</strong> ampliação.<br />
Bailes <strong>de</strong> al<strong>de</strong>ia<br />
(só que na ci<strong>da</strong><strong>de</strong>)<br />
“Vá lá senhora” <strong>nos</strong> ecrãs <strong>de</strong> televisão,<br />
<strong>nos</strong> rádios dos carros, nas cabeças<br />
<strong>da</strong>s gentes. E Os Golpes assaltados<br />
por pedidos insistentes em busca <strong>de</strong><br />
um disco que não havia, que fora totalmente<br />
distribuído aos fãs <strong>nos</strong> concertos<br />
<strong>de</strong> lançamento. O paradoxo aí<br />
estava, em letras garrafais: um lançamento<br />
exclusivo, <strong>de</strong> circulação limita<strong>da</strong>,<br />
tornava-os audição obrigatória,<br />
alargava-lhes o público. O interesse<br />
<strong>de</strong>spertado foi tanto que acabou por<br />
VANDA NORONHA<br />
esgotar o álbum <strong>de</strong> estreia nas lojas.<br />
A se<strong>de</strong> por músicas d’Os Golpes saciava-se<br />
com tudo o que houvesse à<br />
mão. O que, na ocasião, queria apenas<br />
dizer “Cruz Vermelha…”. Essa<br />
populari<strong>da</strong><strong>de</strong> inespera<strong>da</strong> fez-se sentir,<br />
por vezes, <strong>de</strong> forma bem real. Foi<br />
então que perceberam que já eram<br />
vistos como quem faz vi<strong>da</strong> <strong>da</strong> música<br />
e não toca apenas para sacar umas<br />
cervejas à borla e piscar o olho às miú<strong>da</strong>s<br />
<strong>da</strong> primeira fila. Manuel Fúria<br />
começou a ser abor<strong>da</strong>do por pessoas<br />
do seu dia-a-dia, que afinal já não falavam<br />
só <strong>de</strong> galões ou <strong>de</strong> patilhas: “O<br />
senhor <strong>da</strong> pastelaria e a senhora do<br />
cabeleireiro, pessoas que me conheciam<br />
como alguém <strong>da</strong> vizinhança,<br />
associaram-me à música e começaram<br />
a perguntar on<strong>de</strong> podiam comprar<br />
o disco”.<br />
O sucesso foi tal que <strong>de</strong>u em medo.<br />
Até então, Os Golpes achavam que a<br />
conquista <strong>nos</strong> concertos se fazia “pessoa<br />
a pessoa, música a música”. Agora,<br />
contraria Luís, são eles os conquistados,<br />
<strong>de</strong>sarmados pela novi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
Manuel já não ter <strong>de</strong> pedir para as<br />
pessoas se levantarem. Quando perceberam<br />
que a maioria do público<br />
que tinham pela frente era atraí<strong>da</strong><br />
por uma canção em particular, recearam<br />
que o resto do alinhamento não<br />
fosse recebido com o mesmo entusiasmo.<br />
“Senti algum receio <strong>de</strong> que o<br />
‘Vá lá senhora’ fosse um cartão-<strong>de</strong>visita<br />
envenenado e que as pessoas,<br />
quando <strong>de</strong>scobrissem o resto do repertório,<br />
se sentissem um bocadinho<br />
traí<strong>da</strong>s, mas tem sido muito bem aceite”,<br />
conclui Luís.<br />
Constatação óbvia para Os Golpes:<br />
o alargamento do seu público aconteceu,<br />
em parte, junto <strong>de</strong> gente para<br />
quem o nome <strong>da</strong> editora AmorFúria<br />
não passará <strong>de</strong> duas palavras a atropelarem-se.<br />
Essa gente, <strong>de</strong> i<strong>da</strong><strong>de</strong> mais<br />
avança<strong>da</strong> – concretiza Manuel Fúria<br />
–, “não é tanto aquela que po<strong>de</strong> associar-<strong>nos</strong><br />
a um rock português mais<br />
antigo, mas que vibra com uma canção<br />
como o ‘Vá lá senhora’ <strong>da</strong> mesma<br />
maneira que vibra no baile <strong>da</strong> terra”.<br />
Regozijo evi<strong>de</strong>nte n’Os Golpes: “Aquilo<br />
[o tal single] lembra-lhes ou evoca<br />
uma aura que tem a ver com festas<br />
populares”. Uma linguagem comum,<br />
na opinião <strong>de</strong> Pedro, aos Diabo na<br />
Cruz e a B Facha<strong>da</strong>. “As três sonori<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />
remetem para esse Portugal<br />
que precisava <strong>de</strong> uma ponte para o<br />
agora e para o futuro”.<br />
O futuro d’Os Golpes, pelo me<strong>nos</strong><br />
o imediato, é isto: concertos, muitos,<br />
para aproveitar o momento; e, <strong>de</strong>pois,<br />
a preparação do segundo álbum,<br />
uma possível pedra<strong>da</strong> nas águas<br />
algo para<strong>da</strong>s <strong>da</strong> pop nacional. “Umas<br />
<strong>da</strong>s <strong>nos</strong>sas próximas batalhas”, vai<br />
avisando Fúria, “é as ban<strong>da</strong>s em Portugal<br />
po<strong>de</strong>rem começar a ser arrogantes<br />
sem serem mal interpreta<strong>da</strong>s”.<br />
Façam favor.
OWEN RICHARDS<br />
“Quem critica<br />
o disco diz que<br />
não se aguenta<br />
como um todo, que<br />
corre em <strong>de</strong>masia<strong>da</strong>s<br />
direcções.<br />
Estou totalmente<br />
<strong>de</strong> acordo”<br />
Thomas Carrell<br />
Uma ban<strong>da</strong> que começou quando um <strong>de</strong>les, Richard Manber<br />
<strong>de</strong>scobriu o outro, Thomas Carrell, a tocar uma<br />
versão dos Eurythmics num bar <strong>de</strong> Bristol<br />
Como é que dois tipos que <strong>de</strong>cidiram<br />
começar a fazer música juntos quando<br />
um <strong>de</strong>les, Richard Manber, <strong>de</strong>scobriu<br />
o outro, Thomas Carrell, a tocar<br />
uma versão dos Eurythmics (dos Eurythmics,<br />
senhores!) num bar <strong>de</strong> Bristol,<br />
acabam nisto? Nisto, numa ban<strong>da</strong><br />
<strong>chama</strong><strong>da</strong> Munch Munch, que agora<br />
já é quarteto (juntaram-se Sarah Louise<br />
Renwick e Jack O’Connor), que faz<br />
<strong>da</strong> sua música uma feérica colisão <strong>de</strong><br />
órgãos e percussões e que man<strong>da</strong> às<br />
malvas estruturas convencionais <strong>de</strong><br />
canção.<br />
Forcemos uma comparação: os<br />
Munch Munch são como uns Animal<br />
Collective (sonhadores entre betão e<br />
néon citadino) que ouviram muito<br />
Soft Machine (“adoro o Robert Wyatt”,<br />
exclamará <strong>da</strong>qui a pouco Thomas Carrell),<br />
muito Deerhoof, umas pita<strong>da</strong>s<br />
<strong>de</strong> Four Tet e, portanto, bem acompanhados<br />
que estão, têm um gozo<br />
evi<strong>de</strong>nte em entregar-se à <strong>de</strong>scoberta.<br />
Ca<strong>da</strong> canção é uma <strong>de</strong>scarga hiperactiva<br />
<strong>de</strong> energia, num frenesim escapista<br />
que tem ponto <strong>de</strong> parti<strong>da</strong> mas<br />
que <strong>nos</strong> surpreen<strong>de</strong> por nunca chegar<br />
ao ponto <strong>de</strong> chega<strong>da</strong> que imaginávamos.<br />
Portanto, como é que chegámos<br />
a isto, Thomas?<br />
Thomas Carrell, até ao ano passado<br />
estu<strong>da</strong>nte <strong>de</strong> música e tecnologia em<br />
Bristol, on<strong>de</strong> a ban<strong>da</strong> se formou (neste<br />
momento, o quarteto vive em Londres),<br />
não tem naturalmente resposta.<br />
Ao telefone <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a capital britânica,<br />
conta-<strong>nos</strong> a história <strong>de</strong> um<br />
percurso. A resposta, essa, está em<br />
“Double Visions”, o álbum <strong>de</strong> estreia<br />
dos Munch Munch.<br />
Synth-pop, 1980<br />
Tudo começou <strong>nos</strong> Eurythmics (<strong>nos</strong><br />
Eurythmics, senhoras!). Thomas Carrell:<br />
“O synth-pop dos a<strong>nos</strong> 1980 é<br />
algo que inspira a minha música. Eurythmics,<br />
Human League, Yazoo, esse<br />
tipo <strong>de</strong> ban<strong>da</strong>s. Interessam-me os<br />
sintetizadores, interessa-me a forma<br />
como funcionava essa música, como<br />
tinha um lado artesanal na composição,<br />
com estruturas muito <strong>de</strong>fini<strong>da</strong>s.”<br />
Este é o início. O que os Munch Munch<br />
fizeram <strong>de</strong>pois é to<strong>da</strong> uma outra<br />
coisa.<br />
Inicialmente, Thomas e Richard<br />
eram artesãos <strong>de</strong> laptop. Esse era o<br />
seu universo, eram esses os concertos<br />
que viam: um tipo em palco com um<br />
computador à frente. Ora isso, perceberam,<br />
representava um problema.<br />
“Só resultava se [o músico] fosse muito<br />
enérgico e carismático e esses eram<br />
uma minoria.” Eles, que não se achavam<br />
particularmente carismáticos,<br />
não queriam correr o risco <strong>de</strong> se aborrecerem<br />
e <strong>de</strong> aborrecer quem os via.<br />
Venham <strong>da</strong>í então os órgãos e sintetizadores,<br />
as baterias, <strong>de</strong>mais percussões<br />
e as vozes atira<strong>da</strong>s ao ar em excitação<br />
caleidoscópica. Venha <strong>da</strong>í<br />
isto que ouvimos agora em “Double<br />
Visions”, que é duplamente um óptimo<br />
título: porque estas canções são<br />
forma<strong>da</strong>s por múltiplas secções cosi<strong>da</strong>s<br />
com especial talento (percebe-se,<br />
nesse sentido e só nesse sentido, que<br />
Thomas Carrell cite os Sparks como<br />
referência), e porque há nelas algo <strong>da</strong><br />
dimensão do sonho (uma bebe<strong>de</strong>ira<br />
sensorial saltitante, esfuziante, acentua<strong>da</strong><br />
pelas letras, compostas em<br />
“brainstorm” colectivo noites fora,<br />
quando a ban<strong>da</strong> se apercebeu, conta<br />
Carrell, que o prazo <strong>de</strong> entrega do<br />
álbum estava próximo e, pormenor<br />
nunca negligenciável, não tinham ain<strong>da</strong><br />
na<strong>da</strong> para cantar).<br />
“Double Visions” po<strong>de</strong> confundir<br />
pela incapaci<strong>da</strong><strong>de</strong> em se <strong>de</strong>ter por<br />
muito tempo no mesmo sítio – não<br />
utilizámos o adjectivo caleidoscópico<br />
gratuitamente -, mas essa é, e não há<br />
aqui paradoxo, a sua maior força.<br />
“Quem critica o disco diz que não se<br />
aguenta como um todo, que corre em<br />
<strong>de</strong>masia<strong>da</strong>s direcções”, aponta Thomas.<br />
Não o faz para, acto contínuo,<br />
se <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r <strong>da</strong> ignomínia <strong>da</strong> acusação.<br />
Pelo contrário. “Estou totalmente<br />
<strong>de</strong> acordo”, confessa. “Não pensámos<br />
o álbum como um todo. Estávamos<br />
a <strong>de</strong>scobrir as canções, sem saber<br />
para on<strong>de</strong> as queríamos levar. Deixávamo-<strong>nos</strong><br />
ir. Procurávamos.”<br />
No fundo, a música dos Munch<br />
Munch nasce <strong>da</strong> arte <strong>da</strong> sabotagem,<br />
Os Munch Munch e a arte <strong>da</strong><br />
fervorosamente pratica<strong>da</strong> pelo quarteto.<br />
Sabotaram os seus próprios fascínios:<br />
“os Animal Collective foram a<br />
maior inspiração a início e <strong>de</strong>pois<br />
transformaram-se na <strong>nos</strong>sa Némesis.<br />
Tínhamos que <strong>de</strong>struir aquilo que<br />
ouvíamos <strong>de</strong>les na <strong>nos</strong>sa música para<br />
po<strong>de</strong>rmos ser nós próprios”. Sabotaram<br />
a “estrutura linear” <strong>da</strong>s canções<br />
synth pop que lhes ocupam o iPod,<br />
tendo como referência, surpreen<strong>de</strong>ntemente,<br />
Burt Bacharach: “As minhas<br />
canções favoritas neste momento são<br />
<strong>de</strong>le. Têm uma aparência sóli<strong>da</strong>, com<br />
uma melodia principal muito simples,<br />
mas <strong>de</strong>pois ele monta-as como se se<br />
<strong>de</strong>senrolassem várias cenas ao longo<br />
<strong>da</strong> canção. Interessa-<strong>nos</strong> isso. Criar<br />
diversas variações <strong>de</strong> um tema e arranjar<br />
maneira <strong>de</strong> ‘coser’ tudo na<br />
mesma canção”.<br />
De uma música dos Eurythmics<br />
(dos Eurythmics, senhoras e senhores!)<br />
chegámos então a isto, aos Munch<br />
Munch <strong>de</strong> “Double Visions”. Uma<br />
inventivi<strong>da</strong><strong>de</strong> alucina<strong>da</strong>, música irrequieta<br />
e incapaz <strong>de</strong> concentrar o olhar<br />
num mesmo ponto por um minuto<br />
que seja. A imaginação a alimentar<br />
um intenso <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> escapismo.<br />
Os Munch Munch que se inspiram<br />
<strong>nos</strong> Animal Collective para se <strong>de</strong>scobrirem<br />
a si próprios, que traduzem a<br />
opulência e graciosi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Burt Bacharach<br />
em micro-sinfonias rock (sem<br />
guitarras) <strong>de</strong>liciosamente esquizói<strong>de</strong>s,<br />
são uma ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira viagem. Uma<br />
<strong>da</strong>nça tão sobressalta<strong>da</strong> quanto eufórica.<br />
Uma óptima <strong>de</strong>scoberta.<br />
Ver crítica <strong>de</strong> discos págs. 38 e segs.<br />
sabotagem<br />
Por culpa <strong>de</strong> uma música dos Eurythmics, chegámos aos Munch Munch<br />
<strong>de</strong> “Double Visions”. Uma inventivi<strong>da</strong><strong>de</strong> alucina<strong>da</strong>, música irrequieta e incapaz<br />
<strong>de</strong> concentrar o olhar num mesmo ponto por um minuto que seja. A imaginação<br />
a alimentar um intenso <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> escapismo. Mário Lopes<br />
Ípsilon • Sexta-feira 1 Abril 2011 • 25
Cuca nas<br />
mãos<br />
<strong>de</strong> Gustavo<br />
Esperou<br />
quase quatro a<strong>nos</strong> pela oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
gravar com<br />
Gustavo Santaolalla, mas “Cuca Roseta” – o<br />
disco que leva o seu nome – chegou por fim. Estreia-<br />
se no<br />
fado e por lá quer continuar, mas há quem<br />
tenha outros pla<strong>nos</strong>. Gonçalo Frota<br />
Correra a notícia <strong>de</strong> que<br />
Gustavo Santaolalla – autor<br />
<strong>da</strong>s ban<strong>da</strong>s sonoras <strong>de</strong> “Babel”<br />
e “Brokeback Mountain” –<br />
queria gravar o disco <strong>de</strong> estreia<br />
<strong>de</strong> Cuca; mas os adiamentos<br />
sucessivos e a fé inabalável <strong>da</strong><br />
fadista na palavra do argentino<br />
pareciam con<strong>de</strong>ná-la à vi<strong>da</strong><br />
suspensa <strong>da</strong>s mulheres que<br />
perdiam os homens na guerra<br />
“Posso gravar<br />
contigo”, foi avisando<br />
a cantora<br />
a Santaolalla,<br />
“mas quero gravar<br />
fado, o mais<br />
tradicional possível”<br />
Diziam-lhe<br />
muito uma<br />
coisa: que parecia uma<br />
criança a viver ve num mun-<br />
do <strong>de</strong> fantasia, a alimen-<br />
tar inutilmente n esperan-<br />
ças numa hipótese irreal.<br />
Ou que estava a em vão à es-<br />
pera<br />
<strong>de</strong> um príncipe encantado,<br />
<strong>de</strong>stina<strong>da</strong> a a acabar sozinha,<br />
abandona<strong>da</strong> n e sem<br />
ninguém a querer. e Após a ex-<br />
citação inicial gera<strong>da</strong> pela pro-<br />
posta <strong>de</strong> Gustavo Santaolalla – o<br />
homem dos Bajofondo o Tango<br />
Club e autor <strong>da</strong>s oscariza<strong>da</strong>s ban-<br />
<strong>da</strong>s sonoras <strong>de</strong> “Babel” e “Broke-<br />
back Mountain” –, o entusiasmo à<br />
beira <strong>da</strong> histeria <strong>de</strong>ra<br />
lugar a uma<br />
<strong>de</strong>scrença <strong>de</strong>smaia<strong>da</strong>. Rapi<strong>da</strong>mente<br />
correra a notícia <strong>de</strong> que<br />
Santaolalla<br />
queria gravar o disco <strong>de</strong> estreia <strong>de</strong><br />
Cuca Roseta, mas os adiamentos sucessivos<br />
e a fé inabalável aláv<br />
<strong>da</strong> fadista na<br />
palavra do músico argentino pare-<br />
ciam con<strong>de</strong>ná-la à mesma m vi<strong>da</strong> sus-<br />
pensa <strong>da</strong>s mulheres que<br />
perdiam os<br />
homens na guerra e nunca n recebiam<br />
uma notificação oficial, acor<strong>da</strong>ndo<br />
todos os dias com a esperança e <strong>de</strong> ver<br />
umas botas escalavra<strong>da</strong>ss<br />
a entrar pe-<br />
la porta.<br />
Cuca não <strong>de</strong>sarmou, ficou presa à<br />
palavra <strong>de</strong> Santaolalla e rejeitou to<strong>da</strong>s<br />
as muitas propostas que lhe foram<br />
chegando às mãos, <strong>de</strong> editoras por-<br />
tuguesas, francesas, holan<strong>de</strong>sas. À<br />
sua volta, os entusiastas a iniciais fo-<br />
ram tombando aos poucos, até só<br />
ela permanecer <strong>de</strong> pé. “Não sei se<br />
não <strong>de</strong>vias aceitar esta” foi-se tor-<br />
nando um coro ca<strong>da</strong> vez mais<br />
numeroso e sonoro. o E a ca<strong>da</strong><br />
recusa <strong>de</strong> Cuca,<br />
lá se avolu-<br />
mavam mais mãos a escon-<br />
<strong>de</strong>r a boca comentando que<br />
“Coita<strong>da</strong>, ela<br />
lá ficou a<br />
achar que o Santaolalla ia<br />
gravar com ela e vai ficar<br />
eternamente t a sonhar”.<br />
Foi-se sempre agarrando<br />
à troca <strong>de</strong><br />
emails entre<br />
os dois, em<br />
que ele lhe<br />
explicava<br />
as razões <strong>de</strong><br />
mais um adiamento –<br />
agora uma digressão<br />
com os Bajofondo,<br />
agora o<br />
disco <strong>da</strong><br />
Nelly Furtado, <strong>de</strong>-<br />
pois a ban<strong>da</strong> sonora<br />
do filme “Biutiful”,<br />
em segui<strong>da</strong> o disco<br />
<strong>de</strong> Cristóbal Repetto,<br />
com os negócios <strong>de</strong> vinhos e a<br />
família à mistura. Até que à nona <strong>de</strong>smarcação,<br />
a certeza <strong>de</strong> Cuca, não<br />
caindo, rachou <strong>de</strong> alto a baixo. “On<strong>de</strong><br />
é que havia tempo para ele ter o capricho<br />
<strong>de</strong> vir gravar com uma miudinha<br />
e pagar tudo do bolso <strong>de</strong>le?”,<br />
perguntou-se.<br />
Email, <strong>de</strong> Cuca Roseta para Gustavo<br />
Santaolalla: “Chega, não vou ficar<br />
mais à espera. Ou an<strong>da</strong>mos com isto<br />
para a frente, já estou nisto quase há<br />
quatro a<strong>nos</strong>, ou <strong>de</strong>sisto e vou trabalhar<br />
com outra pessoa ou fazer outra<br />
coisa”. O susto funcionou como uma<br />
mola na ca<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> produtor do argentino.<br />
Pouco <strong>de</strong>pois, entravam finalmente<br />
em estúdio. E Cuca – que<br />
abdicara <strong>de</strong> ser psicóloga a pedido<br />
expresso <strong>de</strong> Santaolalla – respirava<br />
finalmente <strong>de</strong> alívio. Afinal, este príncipe,<br />
encantado por ela, era a sério.<br />
Uma escala<br />
No meio <strong>de</strong> uma agen<strong>da</strong> impossível,<br />
Gustavo Santaolalla conseguiu enfiar<br />
três dias <strong>de</strong> escala, vindo <strong>de</strong> Barcelona<br />
e a caminho <strong>de</strong> Los Angeles, para<br />
gravar a fadista em Lisboa. Depois <strong>de</strong><br />
uma tão longa espera, os três dias ecoaram<br />
em Mário Pacheco – o guitarrista<br />
que apadrinhou Cuca e a acolheu<br />
no seu Clube <strong>de</strong> Fado – como mais<br />
uma loucura <strong>da</strong> sua protegi<strong>da</strong>. Mas<br />
na vi<strong>da</strong> <strong>de</strong> um homem que quase não<br />
dorme e para quem dois meses <strong>de</strong><br />
estúdio soam mais a férias do que a<br />
trabalho, três dias eram suficientes.<br />
“Deu para gravar e ain<strong>da</strong> sobrou tempo”,<br />
ri-se Cuca. “Psicológica e emocionalmente<br />
foi uma violência, porque<br />
eram quatro vezes segui<strong>da</strong>s a<br />
gravar o mesmo fado e sempre como<br />
se fosse a primeira, com a mesma ver<strong>da</strong><strong>de</strong>”.<br />
Mas é <strong>de</strong>sse repente que vive<br />
“Cuca Roseta”.<br />
Finalmente, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que numa passagem<br />
por Lisboa Santaolalla fora<br />
atraído para Alfama pelo nome <strong>de</strong><br />
Argentina Santos (se foi a coincidência<br />
do nome <strong>da</strong> fadista com o do seu<br />
país ou apenas a sua fama cantadoira,<br />
não sabemos) e acabou no Clube <strong>de</strong><br />
Fado a <strong>de</strong>slumbrar-se com Cuca, o<br />
namoro artístico entre os dois era finalmente<br />
consumado. E <strong>de</strong> tal forma<br />
que o homem lhe fez já juras <strong>de</strong> fi<strong>de</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
eterna, confessando-lhe que<br />
gostava que gravassem juntos para o<br />
resto <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. “Eu quero o talento <strong>de</strong>le<br />
em todo o meu crescimento”, solta<br />
Cuca, não me<strong>nos</strong> rendi<strong>da</strong>.<br />
A reverência para com a reputação<br />
<strong>de</strong> Santaolalla levou a que muitos <strong>de</strong>ssem<br />
carta-branca ao músico para fazer<br />
do fado aquilo que quisesse, como<br />
se as suas mexi<strong>da</strong>s na canção lisboeta<br />
precisassem <strong>de</strong> uma autorização prévia<br />
<strong>de</strong> uma comissão <strong>de</strong> honra. Mas à<br />
mesa com Cuca, a tenra i<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> fadista<br />
não fez <strong>de</strong>la palco para experiências<br />
<strong>de</strong>sabri<strong>da</strong>s. “Posso gravar contigo”,<br />
foi avisando a cantora, “mas<br />
quero gravar fado, o mais tradicional<br />
possível”. Gustavo não podia estar<br />
mais <strong>de</strong> acordo, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>ndo a intocabili<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
<strong>da</strong> raiz e a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que a<br />
novi<strong>da</strong><strong>de</strong> estaria sempre presente<br />
pelo facto <strong>de</strong> Cuca ouvir rock e outras<br />
músicas, ter um passado ligado à pop,<br />
vestir-se e ter uma imagem distinta<br />
<strong>da</strong> maioria <strong>da</strong>s fadistas, escrever as<br />
suas letras e ter composto até um original<br />
para o disco. Daí que Santaolalla<br />
tenha mexido no fado com pinças,<br />
respeitoso, percebendo igualmente<br />
a irritação a tomar forma na cara <strong>de</strong><br />
Cuca sempre que alguém sugeria um<br />
bandoneón ou algo do género. “Ele é<br />
sempre assim”, diz ela. “É sempre<br />
pelo puro, pelo cru, pelo simples”.<br />
Se Cuca conseguiu manter o fado<br />
inviolado no seu primeiro disco, <strong>de</strong>pois<br />
veremos se, a manter-se a colaboração<br />
com Santaolalla, terá teimosia<br />
suficiente para resistir à i<strong>de</strong>ia do<br />
músico argentino. “Tu vais cantar todo<br />
o tipo <strong>de</strong> músicas”, diz-lhe ele a<br />
to<strong>da</strong> a hora. “Se calhar nem sequer<br />
vais ficar no fado”, disse-lhe uma vez.<br />
Ela irrita-se e respon<strong>de</strong> que já experimentou<br />
to<strong>da</strong>s as outras, e só o fado<br />
a convoca por inteiro para ca<strong>da</strong> interpretação.<br />
Mas a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> é que até aos<br />
18 a<strong>nos</strong> nunca tinha havido fado na<br />
sua vi<strong>da</strong>.<br />
Ver crítica <strong>de</strong> discos págs. 38 e segs
J O R G E G O N Ç A LV E S<br />
Se isto é um<br />
homem<br />
Um homem faliu. Esta é a sua história conta<strong>da</strong> em palco pelos Artistas Unidos.<br />
Oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong> para ficarmos a conhecer melhor o teatro <strong>de</strong> David Lescot e a interpretação<br />
notável <strong>de</strong> Rúben Gomes. Até dia 9 no Franco-Português e <strong>de</strong> 28 Abril a 15 <strong>de</strong> Maio<br />
no Teatro Meridional, em Lisboa. Tiago Bartolomeu Costa<br />
À parti<strong>da</strong> aquele homem não tem na<strong>da</strong><br />
<strong>de</strong> especial. E por isso o seu nome<br />
nunca será pronunciado, para que<br />
na<strong>da</strong> o distinga dos outros. Nem a sua<br />
separação <strong>da</strong> mulher é diferente, nem<br />
os discos que ouve, os livros que lê,<br />
nem o relógio em cima do frigorífico,<br />
a cama on<strong>de</strong> se <strong>de</strong>ita, as pare<strong>de</strong>s vazias,<br />
ou as dívi<strong>da</strong>s que tem são diferentes<br />
<strong>de</strong> qualquer outro homem.<br />
Mas este homem <strong>de</strong>sistiu. Ou assim<br />
parece. Desistiu <strong>de</strong> si, <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, <strong>da</strong>s<br />
dívi<strong>da</strong>s, do relógio e <strong>da</strong> cama. E só<br />
não <strong>de</strong>siste dos livros, ou <strong>de</strong> um livro<br />
em particular, porque esse livro, que<br />
lê obsessivamente, lhe permite evadir-se<br />
para um mundo on<strong>de</strong> não é<br />
igual aos outros.<br />
Aquele homem é “um homem falido”,<br />
título <strong>de</strong> um texto escrito em<br />
2004 pelo francês David Lescot (n.<br />
1971) que os Artistas Unidos apresentam<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> dia 29 <strong>de</strong> Março no Instituto<br />
Franco-Português, em Lisboa.<br />
Não é a primeira vez que “Um Homem<br />
Falido” se apresenta em Portugal.<br />
Em 2007, o próprio Lescot trouxe<br />
a sua versão ao D. Maria II, em 2007,<br />
no âmbito <strong>da</strong> Mostra Internacional <strong>de</strong><br />
Teatro.<br />
Mas podia ser uma história igual a<br />
qualquer outra, sobretudo quando<br />
li<strong>da</strong> num contexto on<strong>de</strong> a economia<br />
tomou conta <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as conversas,<br />
<strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as <strong>de</strong>cisões. Basta pensar <strong>nos</strong><br />
<strong>da</strong>dos recentes que dão conta <strong>de</strong> que<br />
duplicaram os números <strong>de</strong> portugueses<br />
que pediram falência por incapaci<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> pagamento <strong>da</strong>s suas dívi<strong>da</strong>s.<br />
Mas o que isso representa <strong>de</strong> falência<br />
<strong>da</strong> própria capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> manter<br />
um certo individualismo e i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
é o que mais interessa a Lescot, que<br />
não escreveu a peça agora, mas numa<br />
altura em que, em França, tinham<br />
sido aprova<strong>da</strong>s leis <strong>de</strong> controlo e resgate<br />
<strong>de</strong> dívi<strong>da</strong>s e on<strong>de</strong> o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong><br />
compra <strong>da</strong>s pessoas começava a ser<br />
um problema, “mesmo que, na explosão<br />
<strong>da</strong> bolha económica, a França<br />
não tenha sido um dos países mais<br />
afectados”, recor<strong>da</strong>.<br />
“Na altura interessou-me a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong><br />
que alguém pu<strong>de</strong>sse <strong>de</strong>clarar falência,<br />
tal como uma empresa, num plano<br />
filosófico”, diz-<strong>nos</strong> ao telefone.<br />
Este homem <strong>de</strong>sistirá, aparentemente.<br />
De si, <strong>da</strong>s suas coisas, do seu futuro,<br />
<strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong>. “Há aqui um lado <strong>de</strong><br />
parábola sem moral [porque] nunca<br />
sabemos se esse homem aceita, conscientemente,<br />
a auto-exclusão social,<br />
ou se está a jogar, ele mesmo, um jogo”,<br />
acrescenta. Este jogo <strong>de</strong>ve-se ao<br />
modo como este homem <strong>nos</strong> conta,<br />
ou <strong>nos</strong> lê, ou faz as vezes <strong>de</strong> Mr.<br />
Shrink, uma personagem <strong>de</strong> ficção<br />
que vai, aos poucos, ocupando todo<br />
o espaço e to<strong>da</strong> a reali<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />
Melville, Kafka<br />
É aqui que entram as possíveis balizas<br />
referenciais <strong>de</strong>ste texto, entre “Bartleby,<br />
o escrivão”, <strong>de</strong> Herman Melville,<br />
e “A Metamorfose”, <strong>de</strong> Kafka. Lescot<br />
reconhece os ecos <strong>de</strong>ste textos e<br />
diz, inclusivamente, que “romances<br />
como os <strong>de</strong> Kafka são textos que nunca<br />
<strong>de</strong>ixamos <strong>de</strong> reler. E <strong>de</strong> reescrever.<br />
O Homem<br />
aqui é Rúben<br />
Gomes,<br />
uma surpresa<br />
que carrega<br />
a peça<br />
sem esforço<br />
aparente<br />
Há uma i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> verificação que <strong>nos</strong><br />
persegue e <strong>nos</strong> leva a permanentemente<br />
reescrever, a reeinscrever esses<br />
textos”.<br />
António Simão, que encenou, também<br />
reconhece estas referências e diz<br />
que o texto “tem uma forte i<strong>de</strong>ntifi-<br />
“Há aqui um lado<br />
<strong>de</strong> parábola sem<br />
moral [porque]<br />
nunca sabemos se<br />
esse homem aceita,<br />
conscientemente,<br />
a auto-exclusão<br />
social, ou se está<br />
a jogar, ele mesmo,<br />
um jogo”<br />
David Lescot<br />
cação com o processo teatral”. Explica:<br />
“Ela não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> se apresentar<br />
como uma peça, on<strong>de</strong> aparecem excertos<br />
que alteram a reali<strong>da</strong><strong>de</strong>”. O<br />
autor, confia-<strong>nos</strong> o encenador, aproveita<br />
esse mecanismo para explorar<br />
o próprio texto, no modo como corta<br />
as cenas, lhes mu<strong>da</strong> o tempo, alterando<br />
a sua lineari<strong>da</strong><strong>de</strong>, e a sua caracterização<br />
precisa.<br />
David Lescot acrescenta: “Não me<br />
apetecia entrar em reali<strong>da</strong><strong>de</strong>s financeiras<br />
concretas nem ser preciso<br />
quanto a contextos. Aqui, mergulhamos<br />
– somos mergulhados – num<br />
território mais onírico, me<strong>nos</strong> natural”.<br />
E é por isso que nenhumas<br />
<strong>da</strong>s personagens é i<strong>de</strong>ntifica<strong>da</strong> pelo<br />
nome. A ausência <strong>de</strong> nomes ou <strong>de</strong><br />
mais <strong>da</strong>dos biográficos encontra<br />
justificação na vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> “não tornar<br />
caricaturais as personagens”,<br />
explica.<br />
Ao contrário do encenador, o autor<br />
não pensa no público, diz-<strong>nos</strong> Lescot.<br />
“Não é o seu trabalho, a meu ver, fechar<br />
as interpretações”. E conta que,<br />
<strong>da</strong>s diversas encenações que a peça<br />
já teve, foram várias as leituras para<br />
a interpretação <strong>de</strong>ste homem. “O sentido<br />
mu<strong>da</strong> em ca<strong>da</strong> encenação. Na<br />
Alemanha a encenação optou por fazer<br />
o protagonista, <strong>de</strong> quase 60 a<strong>nos</strong>,<br />
suici<strong>da</strong>r-se e isso não está, necessariamente,<br />
inscrito no texto”, conta.<br />
António Simão explica que “no texto<br />
não há indicações precisas quanto à<br />
vi<strong>da</strong> do protagonista, mas sabemos<br />
que já tem alguma experiência”. Na<br />
opção portuguesa, a par <strong>da</strong>s encenações<br />
inglesas e escocesas, o intérprete<br />
é novo.<br />
O Homem aqui é Rúben Gomes,<br />
uma surpresa que carrega a peça<br />
sem esforço aparente, mantendo-se<br />
na fronteira entre o ouro <strong>de</strong>lírio-re<strong>de</strong>ntor<br />
que é o universo <strong>de</strong> Mr.<br />
Shrink, e a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> que, todos os<br />
dias, lhe é trazi<strong>da</strong> pelas memorias <strong>da</strong><br />
mulher que o <strong>de</strong>ixou e do cobrador<br />
que, estranhamente, é o seu único<br />
amigo. Uma interpretação meticulosa<br />
que surpreen<strong>de</strong>u o encenador:<br />
“Foi um trabalho feito pouco a pouco<br />
e <strong>de</strong> <strong>de</strong>scoberta do próprio actor”.<br />
O encenador diz que é evi<strong>de</strong>nte<br />
no texto essa margem <strong>de</strong> <strong>de</strong>scoberta,<br />
e fala <strong>de</strong> um entrar e sair<br />
permanente, à maneira Brechtiana,<br />
permitindo “um jogo <strong>de</strong> actor que<br />
enriquece o texto”. “A coerência é<br />
algo que o actor foi <strong>de</strong>scobrindo, não<br />
é algo que a encenação possa <strong>da</strong>r”,<br />
acrescenta, realçando-se assim a capaci<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> Rúben Gomes em <strong>nos</strong><br />
guiar por entre as duas narrativas<br />
complementares e, por vezes, antagónicas.<br />
Esta i<strong>de</strong>ia respon<strong>de</strong>, assim,<br />
à própria filosofia do teatro <strong>de</strong> Lescot<br />
(editado em português na colecção<br />
Livrinhos <strong>de</strong> teatro, <strong>da</strong> Cotovia/Artistas<br />
Unidos): “não gosto do teatro<br />
que fecha as i<strong>de</strong>ias, que as limitas. A<br />
obra <strong>de</strong>ve ser aberta.”<br />
Ípsilon • Sexta-feira 1 Abril 2011 • 27
RUI GAUDÊNCIO<br />
São pedras vulgares, <strong>de</strong> rua, apresenta<strong>da</strong>s<br />
em pe<strong>de</strong>stais pretos, cobertos<br />
a veludo. O turco Ahmet Ögüt apanhou-as<br />
em Estocolmo, Copenhaga,<br />
Amsterdão, Lisboa, pintou-lhes <strong>de</strong>senhos<br />
como os que os pilotos militares<br />
pintam <strong>nos</strong> aviões e nas bombas que<br />
lançam – <strong>de</strong>senhos infantis, bonecos<br />
<strong>de</strong> BD, animais <strong>de</strong> ar inocente – e colocou-as<br />
em <strong>de</strong>z pe<strong>de</strong>stais expostos<br />
(a partir <strong>de</strong> hoje e até 14 <strong>de</strong> Maio) na<br />
Kunsthalle Lissabon, em Lisboa.<br />
Mas só quem visitar a exposição<br />
logo no início conseguirá ver as <strong>de</strong>z<br />
pedras inspira<strong>da</strong>s na “<strong>nos</strong>e art” dos<br />
pilotos militares. Gradualmente, elas<br />
vão começar a <strong>de</strong>saparecer, uma após<br />
a outra. Ögüt vai enviá-las para um<br />
amigo em Diyarbakir, Turquia, a sua<br />
ci<strong>da</strong><strong>de</strong> natal. Aí, o amigo <strong>de</strong>ixá-las-á<br />
nas ruas, ao acaso.<br />
Ögüt – que vive na Holan<strong>da</strong>, e em<br />
2009 co-representou a Turquia, na<br />
Bienal <strong>de</strong> Veneza – gosta <strong>de</strong> trabalhar<br />
a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que a leitura que fazemos<br />
<strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> do contexto.<br />
“Gosto <strong>de</strong>sta i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> uma obra <strong>de</strong> arte<br />
transforma<strong>da</strong> numa coisa que não<br />
controlo totalmente”, diz. “Quando<br />
<strong>de</strong>ixo as pedras na rua não sei o que<br />
lhes vai acontecer. Mas isso também<br />
não <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>da</strong> minha <strong>de</strong>cisão.”<br />
As pedras (e a <strong>de</strong>cisão sobre o que<br />
fazer com elas) po<strong>de</strong>m ir parar às<br />
mãos dos rapazes que inspiraram este<br />
trabalho, intitulado Stones to<br />
throw, que estreia em Lisboa e é o<br />
primeiro em que Ögüt li<strong>da</strong> directamente<br />
com a sua ci<strong>da</strong><strong>de</strong> natal, algo<br />
que “há muito tinha vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> fazer”.<br />
No meio dos pe<strong>de</strong>stais <strong>da</strong> Kunstalle,<br />
explica: “Queria <strong>chama</strong>r a atenção<br />
para o que se passa em Diyarbakir,<br />
em que muitos miúdos com<br />
me<strong>nos</strong> <strong>de</strong> 18 a<strong>nos</strong> têm sido presos por<br />
atirarem pedras. Não há uma lei que<br />
diga como se <strong>de</strong>ve tratar os menores<br />
nestes casos. Atirar pedras é tratado<br />
como outra activi<strong>da</strong><strong>de</strong> ilegal e a i<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>les não é ti<strong>da</strong> em conta. É como se<br />
eles estivessem a usar as pedras como<br />
armas muito po<strong>de</strong>rosas.”<br />
O que quis fazer foi usar os <strong>de</strong>senhos<br />
absur<strong>da</strong>mente infantis que os<br />
sol<strong>da</strong>dos pintam <strong>nos</strong> aviões e nas<br />
bombas e colocá-los em “armas sem<br />
po<strong>de</strong>r”. As pedras não po<strong>de</strong>m <strong>de</strong>struir<br />
os tanques. “Eles atiram-nas não<br />
para <strong>de</strong>struir alguma coisa mas como<br />
prova <strong>de</strong> que existem, e resistem.”<br />
Se um <strong>de</strong>sses rapazes encontrar<br />
uma <strong>da</strong>s pedras envia<strong>da</strong>s <strong>de</strong> Lisboa<br />
po<strong>de</strong> escolher atirá-la (e o que pensará<br />
<strong>de</strong>la o sol<strong>da</strong>do do outro lado?), ou<br />
guardá-la. Só que – e é aqui que a mu<strong>da</strong>nça<br />
<strong>de</strong> contexto mu<strong>da</strong> tudo – não<br />
olhará para ela como uma obra <strong>de</strong><br />
arte, como farão as pessoas que visitarem<br />
a Kunsthalle Lissabon. “Aqui,<br />
em Lisboa, a pedra vai parecer valiosa<br />
[é, aliás, por isso que está sobre<br />
veludo], mas se tiveres a sorte <strong>de</strong> a<br />
encontrar em Diyarbakir, po<strong>de</strong>s pô-la<br />
no bolso e passa a ser tua.”<br />
Vigilância <strong>de</strong> 23 horas por dia<br />
O que vale por uma razão em Lisboa<br />
vale por outra em Diyarbakir – o contexto<br />
altera a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> e esta é uma <strong>da</strong>s<br />
questões na obra <strong>de</strong> Ögüt. Outra <strong>da</strong>s<br />
peças que o artista traz a Lisboa brinca<br />
“Gosto <strong>de</strong>sta i<strong>de</strong>ia<br />
<strong>de</strong> uma obra <strong>de</strong> arte<br />
transforma<strong>da</strong> numa<br />
coisa que não<br />
controlo totalmente.<br />
Quando <strong>de</strong>ixo as<br />
pedras na rua não sei<br />
o que lhes vai<br />
acontecer. Mas isso<br />
também não <strong>de</strong>pen<strong>de</strong><br />
<strong>da</strong> minha <strong>de</strong>cisão”<br />
As <strong>de</strong>z pedras têm <strong>de</strong>senhos<br />
infantis inspirados naqueles<br />
que os pilotos militares fazem<br />
<strong>nos</strong> seus aviões e bombas<br />
também com as diferentes percepções<br />
<strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong>: “Somebody else’s car”<br />
(<strong>de</strong> 2005) é uma série <strong>de</strong> sli<strong>de</strong>s que<br />
mostram Ögüt a transformar dois carros<br />
escolhidos ao acaso num parque <strong>de</strong><br />
estacionamento. Usando papel e outros<br />
materiais, em cerca <strong>de</strong> 15 minutos <strong>de</strong>ixa<br />
os dois carros transformados num<br />
táxi e num veículo <strong>da</strong> polícia.<br />
“São intervenções públicas, nas<br />
quais não espero para saber o que<br />
acontece <strong>de</strong>pois. Interessa-me esta<br />
acção temporária [não ficam marcas<br />
<strong>de</strong>finitivas <strong>nos</strong> carros], que cria uma<br />
ilusão temporária. Imagino que quando<br />
as pessoas vêem o carro não o reconhecem,<br />
hesitam, ficam aliena<strong>da</strong>s<br />
do seu próprio objecto privado”. Como<br />
intervenção é algo que <strong>de</strong>saparece<br />
rapi<strong>da</strong>mente (tal como as pedras<br />
<strong>da</strong> Kunsthalle), mas Ögüt espera que<br />
a experiência <strong>de</strong>ixe questões na cabeça<br />
<strong>da</strong>s pessoas. “Há uma espécie<br />
<strong>de</strong> diálogo que permanece mesmo<br />
<strong>de</strong>pois do trabalho <strong>de</strong>saparecer”.<br />
A mesma experiência <strong>de</strong> introduzir<br />
um elemento <strong>de</strong> estranheza na reali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
acontece na peça (também exposta<br />
em Lisboa, mas só para quem<br />
estiver muito atento) “This area is un<strong>de</strong>r<br />
23 hour vi<strong>de</strong>o and audio surveillance”<br />
(2009). Um cartaz, exactamente<br />
igual aos oficiais, é colocado<br />
em locais públicos avisando que a<br />
área está sob vigilância - 23 horas por<br />
dia. “Houve pessoas que quando o<br />
viram acharam que havia uma falha<br />
<strong>de</strong> segurança, que alguém se tinha<br />
enganado.” Ou então as pessoas po<strong>de</strong>m<br />
simplesmente ficar a pensar qual<br />
será a única hora do dia em que o local<br />
está sem vigilância.<br />
Questionar a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> que tomamos<br />
como “a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira” – é esse um<br />
dos objectivos <strong>de</strong> Ögüt. “Se vives numa<br />
<strong>de</strong>termina<strong>da</strong> geografia, isso cria<br />
uma reali<strong>da</strong><strong>de</strong> à tua volta e começas<br />
a pensar ‘isto é a reali<strong>da</strong><strong>de</strong>’, mas é<br />
apenas a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> em que tu vives.<br />
E há reali<strong>da</strong><strong>de</strong>s que coexistem em diferentes<br />
lugares. O que é normal? O<br />
que é real?”. E porque é que há coisas<br />
que, apesar <strong>de</strong> existirem, não vemos?<br />
Por exemplo, os rapazes que atiram<br />
pedras em Diyarbakir. Às vezes é preciso<br />
criar peque<strong>nos</strong> <strong>de</strong>svios na reali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
– como transformar um carro<br />
ou introduzir uma subtil alteração<br />
num aviso <strong>de</strong> vigilância – para levar<br />
as pessoas a ver o que não viam.<br />
É por isso que o título <strong>de</strong>ste texto<br />
não é ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro. Estas pedras só vão<br />
<strong>de</strong>saparecer se virmos a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> a<br />
partir <strong>de</strong> Lisboa.<br />
Se a virmos a partir <strong>de</strong> Diyarbakir,<br />
elas vão aparecer.<br />
Estas pedras<br />
vão <strong>de</strong>saparecer<br />
O artista turco Ahmet Ögüt apresenta na Kunsthalle Lissabon uma exposição que vai<br />
<strong>de</strong>saparecendo ao longo do tempo – usa pedras <strong>da</strong> rua pinta<strong>da</strong>s com os <strong>de</strong>senhos que os<br />
pilotos <strong>de</strong> guerra usam <strong>nos</strong> seus aviões, e envia-as, a pouco e pouco, para a sua ci<strong>da</strong><strong>de</strong> natal<br />
<strong>de</strong> Diyarbakir. O que acontecerá com elas <strong>de</strong>pois já não é com ele. O que em Lisboa é arte, em<br />
Diyarbakir será uma arma simbólica. Alexandra Prado Coelho<br />
28 • Sexta-feira 1 Abril 2011 • Ípsilon
MIGUEL SILVA/ARQUIVO<br />
Lídia Jorge<br />
revisita o Portugal dos a<strong>nos</strong> 80; “A Noite <strong>da</strong>s<br />
Mulheres Cantoras” <strong>de</strong>ve, por isso, ser lido<br />
ao som <strong>da</strong>s Doce. Pág. 30 e segs.<br />
O Prémio Literário Revelação Agustina Bessa-Luís<br />
<strong>de</strong>stina-se a distinguir, anualmente, um romance inédito <strong>de</strong> autor<br />
português, premiando-o com um prémio <strong>de</strong> 25 mil euros<br />
e a edição do romance. O prazo <strong>de</strong> recepção<br />
dos originais termina no próximo dia 14 <strong>de</strong> Maio.<br />
Mais informações: www.casino-estoril.com | www.casino-lisboa.com<br />
Contactos: Tel: 21 466 78 20 | 21 466 78 98 | 21 466 77 91<br />
Fax: 21 466 79 90 | e-mail: gabimprensa.casinoestoril@estoril-sol.com<br />
Ípsilon • Sexta-feira 1 Abril 2011 • 29
Livros<br />
MIGUEL SILVA/ ARQUIVO<br />
Lídia Jorge:<br />
um romance<br />
contemporâneo<br />
sobre<br />
a construção<br />
do êxito<br />
Ficção<br />
A ban<strong>da</strong><br />
Como era Portugal antes <strong>da</strong><br />
Europa? Seria mesmo Bembom?<br />
A caverna <strong>de</strong> Ali Bábá?<br />
Cinco mulheres à procura <strong>de</strong><br />
um país. Eduardo Pitta<br />
A Noite <strong>da</strong>s Mulheres Cantoras<br />
Lídia Jorge<br />
Dom Quixote<br />
mmmmn<br />
O sucesso <strong>de</strong> Lídia<br />
Jorge (n. 1946)<br />
<strong>de</strong>ve-se à lufa<strong>da</strong><br />
<strong>de</strong> ar fresco que<br />
representou a<br />
publicação <strong>de</strong><br />
livros como “O<br />
Dia dos Prodígios”<br />
(1980), primeiro<br />
<strong>de</strong> uma obra hoje<br />
canónica, e “A Costa dos<br />
Murmúrios” (1988),<br />
simultaneamente ponto <strong>de</strong> chega<strong>da</strong><br />
e “<strong>de</strong>slaçamento” <strong>de</strong>sse modo <strong>de</strong><br />
ficcionalizar a História com as<br />
Festival<br />
O cubano Leonardo<br />
Padura, o chileno Luís<br />
Sepúlve<strong>da</strong>, o brasileiro<br />
Marcelo Ferroni (Brasil),<br />
o uruguaio Mario Delgado<br />
Aparaín (Uruguai) e o<br />
marroquino Mohammed<br />
Berra<strong>da</strong> são alguns dos<br />
escritores estrangeiros<br />
que estarão na 6ª edição<br />
do LEV - Literatura em<br />
Viagem. Este festival <strong>de</strong><br />
literatura que se realiza<br />
ferramentas do realismo fantástico<br />
(<strong>de</strong>senganem-se os que o reduzem à<br />
evasão do real). Lídia, que terá lido<br />
Carpentier com ele <strong>de</strong>ve ser lido,<br />
assimilou bem a lição do caribenho.<br />
E, assim que pô<strong>de</strong>, criou uma língua<br />
nova.<br />
Diria que o ponto <strong>de</strong> viragem se<br />
<strong>de</strong>u com “O Vento Assobiando nas<br />
Gruas” (2002), mas é convicção<br />
priva<strong>da</strong>, sem propósito doutrinal,<br />
apenas corrobora<strong>da</strong> com o que<br />
chegou <strong>de</strong>pois.<br />
“A Noite <strong>da</strong>s Mulheres Cantoras”<br />
<strong>de</strong>ve ser lido ao som <strong>da</strong>s Doce, a<br />
“girl band” (1980-84) que<br />
revolucionou a pop portuguesa no<br />
tempo pré-europeu que acicatou as<br />
cicatrizes <strong>da</strong> borrasca imperial: “A<br />
certa altura [...] apenas possuíamos<br />
umas malas que abríamos à noite e<br />
fechávamos <strong>de</strong> manhã, à medi<strong>da</strong> <strong>de</strong><br />
um corredor <strong>de</strong> hotel on<strong>de</strong> ficámos<br />
alojados durante seis meses. [...] Era<br />
o que <strong>nos</strong> restava <strong>de</strong> um tremendo<br />
erro <strong>de</strong> cálculo, um apego<br />
extemporâneo do meu pai a uma<br />
fábrica <strong>de</strong> chá <strong>nos</strong> campos do<br />
Gurué.” Solange <strong>de</strong> Matos não<br />
esquece.<br />
Lídia compõe os retratos<br />
minuciosos <strong>de</strong>ssas cinco raparigas<br />
“com histórias e naturali<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />
distintas, atraí<strong>da</strong>s em simultâneo<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> várias partes <strong>de</strong> África pelo<br />
som <strong>de</strong> um piano.” A narradora é<br />
Solange <strong>de</strong> Matos: usa quatro<br />
heterónimos e faz o “patchwork” <strong>da</strong><br />
intriga. Ma<strong>da</strong>lena Micaia, a voz do<br />
grupo, sobrevivendo em África<br />
ro<strong>de</strong>a<strong>da</strong> <strong>de</strong> “si<strong>da</strong> e peste”. As irmãs<br />
Alci<strong>de</strong>s, Maria Luísa e Nani, duas<br />
raparigas bem nasci<strong>da</strong>s com quem<br />
Solange mantinha uma “ligação<br />
subterrânea” <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os bancos do<br />
Anfiteatro Um <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Nova<br />
<strong>de</strong> Lisboa. Têm voz <strong>de</strong> soprano,<br />
simétrica à violência dos insultos<br />
(“Vão cantar para o Huambo.”) e<br />
pichagens que provocam. Querem<br />
que Solange lhes escreva “lyrics”,<br />
sublinham “lyrics” em inglês,<br />
embora Nani, a mais nova, também<br />
queira “gerar um movimento, um<br />
grito, uma interrupção qualquer.” E<br />
<strong>de</strong>pois Gisela Batista, a “maga” prépunk<br />
que <strong>de</strong>sconstrói a socie<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
burguesa sem prescindir <strong>da</strong><br />
segurança material <strong>da</strong>s classes<br />
possi<strong>de</strong>ntes. Cinco mulheres à<br />
procura <strong>de</strong> um país.<br />
Lídia segura o “plot” sem per<strong>de</strong>r<br />
<strong>de</strong> vista a História. Ficou dito, ou<br />
pelo me<strong>nos</strong> intuído, que a<br />
<strong>de</strong>scolonização uniu o grupo.<br />
Solange é filha <strong>de</strong> um regente<br />
agrícola nas terras do chá, guar<strong>da</strong><br />
recor<strong>da</strong>ção dos picos azuis do<br />
Namuli, em pleno Gurué<br />
(Moçambique), em especial <strong>da</strong>quele<br />
dia profético em que o “aluno<br />
dilecto” do pai lhes mostrou o<br />
panfleto in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntista: “Expulsálos-emos<br />
até à sua última pega<strong>da</strong>.”<br />
Dali ao retorno foi um passo, pela<br />
rota <strong>de</strong> Joanesburgo, após a parti<strong>da</strong><br />
dos contingentes. Tinham à sua<br />
espera o Sobradinho.<br />
Romance contemporâneo sobre a<br />
construção do êxito, po<strong>de</strong>-se dizer,<br />
sem risco <strong>de</strong> controvérsia, que “A<br />
Noite <strong>da</strong>s Mulheres Cantoras”<br />
revisita o Portugal dos “eighties”.<br />
Tudo aí vai <strong>da</strong>r, mesmo o Mahler que<br />
“incen<strong>de</strong>ia” certa casa <strong>da</strong> Praça <strong>da</strong>s<br />
Flores, entalado entre Grieg e um<br />
sucesso <strong>da</strong> ban<strong>da</strong>: “Ah! Afortuna<strong>da</strong>,<br />
afortuna<strong>da</strong> / Por isso esta canção /<br />
Te dá tudo / E não quer na<strong>da</strong>…”<br />
Muito interessante o modo como<br />
Lídia ilustra o <strong>de</strong>spertar <strong>da</strong><br />
“libertinagem” pequeno-burguesa,<br />
estoca<strong>da</strong> final nas convenções:<br />
“Todos nus à piscina! [...] O slip do<br />
José Alexandre era escuro, mas o do<br />
Lucena era claro, e quando saltava e<br />
se movia era como se estivesse nu...”<br />
Com o estar<strong>da</strong>lhaço próprio <strong>de</strong><br />
iniciados, as pessoas comuns<br />
tomavam prerrogativas dos “eleitos”<br />
(alta socie<strong>da</strong><strong>de</strong>, artistas). Chegando<br />
na hora certa, aquela ban<strong>da</strong> <strong>de</strong><br />
mulheres talentosas, altas e bonitas<br />
trouxe o ímpeto do futuro.<br />
Mais-valia: Lídia escreve com<br />
lineari<strong>da</strong><strong>de</strong> (vantagem <strong>de</strong> quem tem<br />
voz própria), sugestionando o leitor<br />
com <strong>de</strong>lica<strong>da</strong>s incursões no universo<br />
psicológico <strong>da</strong>s suas personagens.<br />
Não se po<strong>de</strong> dizer o mesmo <strong>de</strong><br />
muitos.<br />
Filofinklerismo<br />
primário<br />
“A Questão Finkler”<br />
vai reduzindo to<strong>da</strong>s as<br />
personagens à dimensão<br />
<strong>de</strong> estereótipos, realçando<br />
apenas as características<br />
mais protuberantes <strong>de</strong> um<br />
arquétipo “Ju<strong>de</strong>u”.<br />
Rogério Casanova<br />
A Questão Finkler<br />
Howard Jacobson<br />
(tradução <strong>de</strong> Alcin<strong>da</strong> Marinho)<br />
Porto Editora<br />
mmmnn<br />
<strong>de</strong> 16 a 19 <strong>de</strong> Abril na<br />
Biblioteca Municipal<br />
Florbela Espanca, em<br />
Matosinhos, terá ain<strong>da</strong><br />
a participação <strong>de</strong> CS<br />
Richardson (Canadá),<br />
Carmen Yanez (Chile),<br />
Eduardo Sacheri<br />
(Argentina), Hubert<br />
Had<strong>da</strong>d (Tunísia),<br />
Karla Suarez (Cuba),<br />
Laurent Binet (França),<br />
Ondjaki (Angola), Reif<br />
Num episódio<br />
clássico <strong>da</strong> série<br />
com o mesmo<br />
nome, Seinfeld<br />
suspeita que um<br />
<strong>de</strong>ntista seu<br />
conhecido se<br />
converteu ao<br />
ju<strong>da</strong>ísmo apenas<br />
para po<strong>de</strong>r ace<strong>de</strong>r<br />
com legitimi<strong>da</strong><strong>de</strong> ao humor ju<strong>da</strong>ico.<br />
Ao confessar (ou “confessar”) a sua<br />
indignação a um padre católico, este<br />
pergunta-lhe: “E isso ofen<strong>de</strong>-o como<br />
ju<strong>de</strong>u?”. “Não, ofen<strong>de</strong>-me como<br />
comediante”.<br />
A sequência po<strong>de</strong>ria servir <strong>de</strong><br />
Larsen (EUA) e Richard<br />
Zimmler (EUA). Já estão<br />
também confirmados<br />
os portugueses Gonçalo<br />
M. Tavares, José Luís<br />
Peixoto, valter hugo mãe,<br />
Teolin<strong>da</strong> Gersão, Afonso<br />
Cruz, Ricardo Adolfo, José<br />
Rentes <strong>de</strong> Carvalho, João<br />
Tordo, Joel Neto, Miguel<br />
Miran<strong>da</strong>, Rui Zink, Rosa<br />
Alice Branco, entre outros.<br />
Howard Jacobson: não tanto<br />
escrever um romance como<br />
golpear um reportório <strong>de</strong><br />
elementos literários até estes<br />
saberem a algo<br />
epígrafe ao mais recente romance <strong>de</strong><br />
Howard Jacobson (Man Booker Prize<br />
2010), que explora ansie<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />
semelhantes sobre os emblemas<br />
apropriáveis <strong>de</strong> uma cultura<br />
estranha. O protagonista <strong>de</strong> “A<br />
Questão Finkler”, Julian Treslove, é<br />
um gentio que procura converter-se<br />
ao ju<strong>da</strong>ísmo não só pelas pia<strong>da</strong>s,<br />
mas pela Tragédia.<br />
Tecnicamente, aliás, Treslove não<br />
preten<strong>de</strong> converter-se a uma religião,<br />
mas a uma cultura; o que ele quer<br />
não é tornar-se ju<strong>de</strong>u (no sentido <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> ser protestante), mas sim<br />
ter sido sempre ju<strong>de</strong>u (no sentido <strong>de</strong><br />
nunca ter sido apenas Treslove). A<br />
necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> preencher o vazio<br />
com as cores berrantes <strong>de</strong> uma<br />
cultura assimila<strong>da</strong> é explica<strong>da</strong> <strong>nos</strong><br />
primeiros capítulos do romance<br />
como um sintoma <strong>de</strong> vácuo<br />
i<strong>de</strong>ntitário.<br />
Treslove é uma tabula rasa, uma<br />
i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> informe,<br />
<strong>de</strong>sespera<strong>da</strong>mente à procura <strong>de</strong> um<br />
mol<strong>de</strong>. Na Universi<strong>da</strong><strong>de</strong>, acumulara<br />
ca<strong>de</strong>iras tão diversas que ao<br />
terminar o curso acha-se “<strong>de</strong>tentor<br />
<strong>de</strong> um diploma tão vago que a única<br />
coisa que podia fazer era aceitar um<br />
estágio para licenciados na BBC”.<br />
Conta no seu currículo emocional<br />
com dois casamentos e dois filhos<br />
- Alfredo e Rodolfo - que mal<br />
consegue distinguir. Depois <strong>de</strong> meia<br />
dúzia <strong>de</strong> ensaios vocacionais<br />
inconclusivos, ganha agora a vi<strong>da</strong><br />
como sósia <strong>de</strong> celebri<strong>da</strong><strong>de</strong>s: não por<br />
se parecer especificamente com<br />
uma, mas por se parecer<br />
genericamente com várias.<br />
O seu filosemitismo remonta aos<br />
tempos <strong>de</strong> estu<strong>da</strong>nte e ao seu<br />
primeiro amigo ju<strong>de</strong>u, Sam Finkler,<br />
hoje um filósofo popular, autor <strong>de</strong><br />
livros como “O Existencialista na<br />
Cozinha” e “O Guia Resumido do<br />
Estoicismo Doméstico”. Finkler<br />
substitui-se na mente <strong>de</strong> Treslove à<br />
i<strong>de</strong>ia pré-<strong>de</strong>termina<strong>da</strong> <strong>de</strong> um ju<strong>de</strong>u:<br />
“Se todos os ju<strong>de</strong>us eram assim,<br />
pensou Treslove, então Finkler (…)<br />
era uma <strong>de</strong>signação melhor para<br />
eles que ‘ju<strong>de</strong>u’. Assim, isto era o<br />
que lhes <strong>chama</strong>va em privado -<br />
finklers. (…) No próprio instante em<br />
que se falasse <strong>da</strong> Questão<br />
Finkleraica, digamos, ou <strong>da</strong><br />
Conspiração dos Finklereus,<br />
30 • Sexta-feira 1 Abril 2011 • Ípsilon
aMaumMedíocremmRazoávelmmmBommmmmMuito BommmmmmExcelente<br />
Norberto Puentes, que repartiu a vi<strong>da</strong><br />
entre a literatura e o regime, foi <strong>de</strong> qualquer<br />
modo um observador privilegiado <strong>de</strong> Fi<strong>de</strong>l<br />
sugavam-se as toxinas ao assunto”.<br />
Treslove, como é evi<strong>de</strong>nte,<br />
essencializou o seu fascínio por<br />
Finkler, transformando-o num<br />
estereótipo alternativo - e imune à<br />
volatili<strong>da</strong><strong>de</strong> do próprio Finkler, que<br />
o romance também submete à sua<br />
<strong>de</strong>rrapagem i<strong>de</strong>ntitária. O que<br />
Jacobson parece sugerir é que, tal<br />
como o antisemitismo, o<br />
filosemitismo é um preconceito: um<br />
atavismo proveniente <strong>da</strong>s mesmas<br />
bases frívolas e irracionais.<br />
O filofinklerismo <strong>de</strong> Treslove<br />
ganha <strong>de</strong>nsi<strong>da</strong><strong>de</strong> dramática através<br />
<strong>de</strong> dois inci<strong>de</strong>ntes, que servem <strong>de</strong><br />
catalizadores para a segun<strong>da</strong> meta<strong>de</strong><br />
do livro. O primeiro é a morte <strong>da</strong>s<br />
respectivas esposas <strong>de</strong> Finkler e<br />
Libor Sevcik (o terceiro membro do<br />
círculo <strong>de</strong> amigos). Treslove, que<br />
sempre sentira uma atracção<br />
mórbi<strong>da</strong> por mulheres con<strong>de</strong>na<strong>da</strong>s,<br />
com a aura <strong>da</strong> “doença terminal”,<br />
fica obcecado pela mágoa alheia:<br />
“Como se continua a viver sabendo<br />
que nunca - mas nunca, nunca<br />
mesmo - vamos voltar a ver a pessoa<br />
que amamos? Como se sobrevive<br />
uma só hora, um só minuto, um só<br />
segundo a esse conhecimento?<br />
Como <strong>nos</strong> mantemos inteiros?” O<br />
segundo inci<strong>de</strong>nte ocorre <strong>de</strong>pois <strong>de</strong><br />
um jantar <strong>de</strong> luto: Treslove é vítima<br />
<strong>de</strong> um assalto, on<strong>de</strong>, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> lhe<br />
esvaziar os bolsos, a assantante<br />
balbucia uma frase indistinta que,<br />
após alguns dias <strong>de</strong> recapitulação<br />
ten<strong>de</strong>nciosa, é interpreta<strong>da</strong> como<br />
um insulto antisemita: “Seu ju<strong>de</strong>u!”.<br />
Confrontado com um ataque<br />
inexistente a uma i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
inexistente, Treslove <strong>de</strong>ci<strong>de</strong>, para<br />
todos os efeitos, tornar-se alguém<br />
que merecesse aquela ofensa, e<br />
começa um burlesco processo <strong>de</strong><br />
conversão, encarnando um<br />
ju<strong>da</strong>ísmo <strong>de</strong>sprovido <strong>de</strong> conteúdo<br />
genético ou espiritual, um mero<br />
compêndio <strong>de</strong> memes culturais, <strong>de</strong><br />
Maimoni<strong>de</strong>s a Woody Allen.<br />
Refém <strong>da</strong>s percepções do seu<br />
protagonista, “A Questão Finkler”<br />
vai reduzindo to<strong>da</strong>s as personagens<br />
à dimensão <strong>de</strong> estereótipos,<br />
realçando apenas as características<br />
mais protuberantes <strong>de</strong> um arquétipo<br />
“Ju<strong>de</strong>u”; uma a uma, to<strong>da</strong>s tombam<br />
em sub-categorias familiares. Po<strong>de</strong><br />
ser um método para testar um dos<br />
argumentos <strong>de</strong> Jacobson - a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong><br />
que, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente <strong>da</strong><br />
bagagem hereditária, qualquer<br />
pessoa que queira <strong>de</strong>finir uma<br />
i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> à força se arrisca a <strong>de</strong>finila<br />
pelo atalho mais visível, que é<br />
enclausurar-se numa tipologia. Mas,<br />
do ponto <strong>de</strong> vista técnico, isto é uma<br />
forma <strong>de</strong> batota: uma licença<br />
constante para o recurso ao<br />
estereótipo. Ao transformar to<strong>da</strong> a<br />
gente em caricaturas por motivos<br />
estruturais, o autor exibe um alibi<br />
perante o leitor que o acusa <strong>de</strong><br />
transformar to<strong>da</strong> a gente em<br />
caricaturas por falta <strong>de</strong> talento.<br />
O problema agrava-se no último<br />
terço do livro, quando o elenco é<br />
arregimentado para travar batalhas<br />
culturais transplanta<strong>da</strong>s do mundo<br />
real. Finkler junta-se a um grupo <strong>de</strong><br />
“Ju<strong>de</strong>us enVERgonhados”, semicelebri<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />
<strong>de</strong>dica<strong>da</strong>s a protestos<br />
anti-sionistas. Apesar <strong>de</strong> alguma<br />
sátira pertinente e bem executa<strong>da</strong>,<br />
essas secções resvalam para a farsa à<br />
clef - caricaturando a golpes <strong>de</strong><br />
trincha que parecem reciclados <strong>de</strong><br />
artigos <strong>de</strong> opinião algumas<br />
personali<strong>da</strong><strong>de</strong>s (Stephen Fry, Ken<br />
Loach, Jacqueline Rose) e<br />
escaramuças mediáticas britânicas<br />
já a meio caminho do esquecimento.<br />
Outro problema técnico é a<br />
fi<strong>de</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Jacobson a um subgénero<br />
específico <strong>de</strong> comédia que<br />
nem sempre é compatível com a<br />
forma literária que escolheu. Uma<br />
comédia que acumula alguns efeitos<br />
locais bem conseguidos (há<br />
observações inspira<strong>da</strong>s em número<br />
suficiente para uma hora <strong>de</strong> “stand<br />
up”) numa escala<strong>da</strong> gradual <strong>de</strong><br />
exageros que acabam por criar<br />
ângulos incómodos. As comparações<br />
com Philip Roth talvez já cansem<br />
Jacobson (que tentou contra-atacar o<br />
rótulo jornalístico <strong>de</strong> “Philip Roth<br />
inglês” com o <strong>de</strong> “Jane Austen<br />
ju<strong>de</strong>u”), mas “A Questão Finkler”<br />
exige uma comparação parcial. A<br />
criação cómica dos “Ju<strong>de</strong>us<br />
enVERgonhados” evoca os<br />
“Antisemitas Anónimos” <strong>de</strong><br />
“Operação Shylock”, tal como a<br />
longa discussão filosófica sobre a<br />
prática <strong>da</strong> circuncisão evoca uma<br />
discussão muito semelhante em<br />
“The Counterlife”. Nesses romances,<br />
Roth eva<strong>de</strong>-se à armadilha <strong>da</strong><br />
incompatibili<strong>da</strong><strong>de</strong> sublimando todo<br />
o seu arsenal cómico num único<br />
apetrecho: o monólogo exasperado.<br />
“A Questão Finkler” é um artefacto<br />
literário diferente, cuja forma evoca<br />
um outro tipo <strong>de</strong> romance, a<br />
meditação interioriza<strong>da</strong>, discursiva<br />
e digressiva, que almeja a uma<br />
caracterização serena e realista mais<br />
difícil <strong>de</strong> compatibilizar com<br />
<strong>de</strong>svarios burlescos e exageros<br />
retóricos. Também aqui, Jacobson se<br />
resguardou com um sólido alibi<br />
estrutural (a comédia ju<strong>da</strong>ica do<br />
livro é uma i<strong>de</strong>ia estereotipa<strong>da</strong> <strong>de</strong><br />
comédia ju<strong>da</strong>ica, etc.), mas quando<br />
ela chega à página já esgota<strong>da</strong> por<br />
prece<strong>de</strong>ntes, o alibi começa a<br />
parecer um ataque preventivo;<br />
como o <strong>de</strong>ntista <strong>de</strong> Seinfeld, o<br />
humor em segun<strong>da</strong> mão po<strong>de</strong> não<br />
ofen<strong>de</strong>r gentios ou ju<strong>de</strong>us, mas<br />
arrisca-se a ofen<strong>de</strong>r apreciadores <strong>de</strong><br />
comédia.<br />
“A Questão Finkler” é melhor na<br />
micro-gestão <strong>de</strong> estilo e técnica do<br />
que na forma como convoca e<br />
organiza os seus gran<strong>de</strong>s temas. A<br />
<strong>da</strong><strong>da</strong> altura, Treslove observa uma<br />
mulher na cozinha e pensa que<br />
“aquilo que [ela] fazia não era tanto<br />
cozinhar como maltratar os<br />
ingredientes, golpeando-os e<br />
aplicando-lhes um tratamento<br />
furioso até saberem a alguma coisa”.<br />
O que Jacobson fez foi mais ou<br />
me<strong>nos</strong> o mesmo: não tanto escrever<br />
um romance como golpear<br />
furiosamente um reportório <strong>de</strong><br />
elementos literários até estes<br />
saberem a alguma coisa (alguma<br />
coisa kosher). E quando isto<br />
acontece, é mais fácil admirar o<br />
cozinheiro do que saborear a<br />
refeição.<br />
Biografia<br />
Fi<strong>de</strong>l,<br />
por quem<br />
o serviu<br />
e <strong>de</strong>ixou<br />
A vantagem: uma biografia<br />
escrita por alguém que<br />
conheceu Fi<strong>de</strong>l <strong>de</strong> muito<br />
perto. A <strong>de</strong>svantagem: o<br />
olhar dissi<strong>de</strong>nte, ressentido.<br />
O leitor que escolha.<br />
Fernando Sousa<br />
Autobiografia <strong>de</strong> Fi<strong>de</strong>l Castro<br />
Norberto Fuentes<br />
Casa <strong>da</strong>s Letras<br />
mmmnn<br />
As melhores<br />
tentativas<br />
biográficas <strong>de</strong><br />
Fi<strong>de</strong>l Castro até<br />
hoje foram notas<br />
consenti<strong>da</strong>s. A<br />
autobiografia do<br />
lí<strong>de</strong>r cubano<br />
assina<strong>da</strong> por<br />
Norberto Fuentes,<br />
acaba<strong>da</strong> <strong>de</strong> sair entre nós, que fala<br />
<strong>de</strong> um homem tão cheio <strong>de</strong> si que o<br />
Universo é insuficiente, tem a<br />
vantagem <strong>de</strong> ter entrado pela porta<br />
do cavalo, já que é escrita por<br />
alguém que o conheceu <strong>de</strong> muito<br />
perto. Mas a <strong>de</strong>svantagem do olhar<br />
dissi<strong>de</strong>nte, ressentido e marcado<br />
pela impotência perante uma figura<br />
<strong>de</strong> facto esmagadora. O leitor que<br />
escolha.<br />
Os aviões (america<strong>nos</strong>)<br />
metralham, matam e retiram. É o dia<br />
15 <strong>de</strong> Abril <strong>de</strong> 1961. Faltam 48 horas<br />
para o <strong>de</strong>sembarque <strong>da</strong> Praia Girón.<br />
Em baixo, no aeroporto <strong>de</strong> Ciu<strong>da</strong>d<br />
Libertad, crivado <strong>de</strong> balas, o jovem<br />
miliciano Eduardo García guar<strong>da</strong>,<br />
exangue, as últimas forças para<br />
meter um <strong>de</strong>do nas vísceras e<br />
escrever com o próprio sangue um<br />
nome numa porta – FIDEL. Ficará na<br />
história.<br />
O coman<strong>da</strong>nte chega a seguir para<br />
saber dos estragos dos ianques.<br />
Pára. Olha para a ma<strong>de</strong>ira on<strong>de</strong> o<br />
seu nome ain<strong>da</strong> escorre, vermelho.<br />
Guar<strong>da</strong> um silêncio curto. Recolhese?<br />
O que é que sente? O que é que<br />
pensa? Que o sol<strong>da</strong>dito morrera a<br />
pensar nele, centro <strong>da</strong> Revolução<br />
cubana e, modéstia à parte, do<br />
próprio Universo, motivo mais do<br />
que justo para lhe <strong>de</strong>dicar a história<br />
<strong>da</strong> própria vi<strong>da</strong>.<br />
E assim começa a “Autobiografia<br />
<strong>de</strong> Fi<strong>de</strong>l Castro”, escrita, não pelo<br />
próprio mas por Norberto Fuentes,<br />
um antigo fi<strong>de</strong>lista obrigado a fugir<br />
para Miami, on<strong>de</strong>, durante a<strong>nos</strong>,<br />
juntou memórias e rancores para<br />
escrever um dos mais azedos libelos<br />
anti-castristas. Dedicatória do livro –<br />
a pensar no jovem artilheiro morto:<br />
“O meu nome é o teu sangue”.<br />
[“Cuando con sangre escribe/<br />
FIDEL, este sol<strong>da</strong>do que por la<br />
Patria muere/no digáis miserere: esa<br />
sangre es el símbolo <strong>de</strong> la Patria que<br />
vive”. Nicolás Guillén no poema “La<br />
Sangre Numerosa”.]<br />
A <strong>de</strong>dicatória é tudo me<strong>nos</strong><br />
inocente – anuncia uma vi<strong>da</strong>, <strong>de</strong><br />
menino a adulto, construí<strong>da</strong> <strong>de</strong><br />
costas para todos excepto para si<br />
mesmo, vivi<strong>da</strong> por etapas entre o<br />
autocentrismo e a sua expressão<br />
máxima, a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> um <strong>de</strong>stino.<br />
fun<strong>da</strong>ção carmona e costa<br />
Edifício Soeiro Pereira Gomes (antigo Edifício <strong>da</strong> Bolsa Nova <strong>de</strong> Lisboa)<br />
Rua Soeiro Pereira Gomes, Lte 1- 6.ºD, 1600-196 Lisboa<br />
(Bairro do Rego / Bairro Santos)<br />
Tel. 217 803 003 / 4<br />
www.fun<strong>da</strong>caocarmonaecosta.pt<br />
Metro: Sete Rios / Praça <strong>de</strong> Espanha / Ci<strong>da</strong><strong>de</strong> Universitária | Autocarro: 31<br />
Vemos claramente um homem que<br />
incha por ca<strong>da</strong> passo que dá.<br />
Fi<strong>de</strong>l apresenta-se como o centro<br />
<strong>da</strong> família, dos colegas, dos amigos<br />
– uma expressão força<strong>da</strong> já que não<br />
apresenta ninguém como um amigo<br />
real. Tem fome <strong>de</strong> na<strong>da</strong> e <strong>de</strong> tudo.<br />
Em princípio é só um rebel<strong>de</strong>, ain<strong>da</strong><br />
sem causa, a caminho <strong>de</strong> se<br />
transformar na sua própria meta, no<br />
seu próprio objectivo.<br />
A infância em Birán, a<br />
Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Havana, as<br />
primeiras lutas políticas, o assalto a<br />
Monca<strong>da</strong>, as primeiras leituras<br />
–Lenine, Napoleão, Gramsci, Marx –,<br />
o exílio no México, a Sierra Maestra,<br />
a entra<strong>da</strong> em Havana, conta-as como<br />
meros capítulos <strong>da</strong> sua afirmação<br />
pessoal, os fuzilamentos, na floresta<br />
ou em Las Cabañas, como o<br />
normalíssimo castigo <strong>de</strong> quem<br />
manchou o bom nome <strong>da</strong> Revolução<br />
– quer dizer, o seu –, a tentou<br />
impedir ou se tornou incómodo, um<br />
escolho, um entrave.<br />
Não fala <strong>da</strong> família com qualquer<br />
afecto, seja <strong>da</strong> mãe, seja do pai, que<br />
trata com aversão, seja dos<br />
ESCREVER PAISAGEM<br />
Manuel Baptista | Desenhos<br />
1960-1970<br />
comissariado: João Pinharan<strong>da</strong><br />
Exposição: <strong>de</strong> 26 <strong>de</strong> Março até 28 <strong>de</strong> Maio<br />
Horário: <strong>de</strong> quarta-feira a sábado, <strong>da</strong>s 15h00 às 20h00<br />
Ciclo <strong>de</strong> conversas:<br />
Prof. José Gil – 9 <strong>de</strong> Abril (sábado) às 17h00<br />
Pedro Cabrita Reis – 27 <strong>de</strong> Abril (quarta-feira) às 18h00<br />
Ípsilon • Sexta-feira 1 Abril 2011 • 31
festivalliterario<strong>da</strong>ma<strong>de</strong>ira.com/)<br />
Livros<br />
Festival<br />
A primeira edição do<br />
Festival Literário <strong>da</strong><br />
Ma<strong>de</strong>ira, organizado<br />
pelos consultores<br />
editoriais Booktailors e<br />
pela editora Nova Delphi,<br />
realiza-se a partir <strong>de</strong><br />
hoje e até domingo no<br />
Funchal. Eduardo Pitta,<br />
Rui Zink, Afonso Cruz,<br />
valter hugo mãe, José<br />
Mário Silva, Pedro Vieira,<br />
Mário Zambujal, Inês<br />
Pedrosa, David Machado,<br />
Violante Saramago,<br />
Isabela Figueiredo,<br />
Miguel Vale <strong>de</strong> Almei<strong>da</strong>,<br />
o italiano Antonio<br />
Scurati são alguns dos<br />
escritores convi<strong>da</strong>dos. O<br />
festival inclui visitas a<br />
escolas <strong>de</strong> ensino básico<br />
do concelho e mesas<br />
redon<strong>da</strong>s com temas como<br />
aMaumMedíocremmRazoávelmmmBommmmmMuito BommmmmmExcelente<br />
“Os escritores que fogem<br />
<strong>da</strong> fama”, “Os escritores<br />
malditos”, “Os escritores<br />
inconstantes”, “Os<br />
escritores esquecidos”.<br />
Haverá ain<strong>da</strong> lançamento<br />
<strong>de</strong> livros e uma<br />
feira do livro<br />
(ver programa<br />
em http://<br />
“Cristo Carregando a Cruz”<br />
(Bosch, 1515-16): o rosto <strong>de</strong> Cristo<br />
e <strong>da</strong> mulher são belos e pacíficos<br />
e os dos restantes, dos ju<strong>de</strong>us,<br />
são feios, quase <strong>de</strong>moníacos<br />
irmãos, <strong>de</strong>stilando ódio em<br />
relação ao mais velho, Ramón, a<br />
quem não perdoa ter levado uma<br />
vi<strong>da</strong> <strong>de</strong> nababo enquanto ele lutava<br />
contra Batista.<br />
Abre talvez uma ligeira excepção<br />
para Raúl, que no entanto <strong>de</strong>screve<br />
como um homem <strong>de</strong> carácter<br />
medieval, em trânsito entre o<br />
<strong>selva</strong>gem e a cultura do<br />
Renascimento”.<br />
Tão pouco encontrou nalguma<br />
<strong>da</strong>s mulheres, <strong>de</strong> Mirta a Dalia,<br />
motivo <strong>de</strong> enlevo, lembrando-as tão<br />
só pelas ancas ou pelo que lhe<br />
<strong>de</strong>ram <strong>nos</strong> momentos <strong>de</strong> aflição<br />
sexual ou revolucionária.<br />
“Não era o mesmo an<strong>da</strong>r não<br />
perturbado pelos tomates a subir e<br />
<strong>de</strong>scer as montanhas quando estava<br />
carregado. Por isso me foi tão<br />
benéfica a sua presença na Sierra;<br />
não só como aju<strong>da</strong>nte executiva, isto<br />
é, também para me manter<br />
<strong>de</strong>scarregado”, escreve sobre Célia<br />
Sánchez, figura maior <strong>da</strong> guerrilha.<br />
Enfim na sua caminha<strong>da</strong> em<br />
direcção à História – on<strong>de</strong> crê que se<br />
sentará, absolvido, sem necessi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> companhia, pois basta-se a si<br />
mesmo, a comer um arroz <strong>de</strong> frango,<br />
seguido <strong>de</strong> um café e <strong>de</strong> umas<br />
chupa<strong>de</strong>las <strong>de</strong> Lancero, a olhar<br />
<strong>de</strong>leitado para a obra <strong>de</strong>ixa<strong>da</strong> –<br />
refere-se a tudo e a todos como<br />
meros episódios.<br />
Quê? Fuzilámos? Mas, claro! Era<br />
impossível poupar a vi<strong>da</strong> a<br />
sabotadores, porque o tinham sido<br />
ou podiam vir a sê-lo, tal como, a<br />
certa altura, a <strong>de</strong>liquentes, que bem<br />
vistas as coisas até <strong>de</strong>viam agra<strong>de</strong>cer<br />
a pena, quase só aplica<strong>da</strong> a<br />
burgueses ou contrarevolucionários.<br />
Sim, o caso <strong>de</strong> Manuel Urrutia foi<br />
uma maça<strong>da</strong>. Mas era ele ou eu –<br />
quer dizer, a Revolução. Pensou que<br />
era mesmo Presi<strong>de</strong>nte? Pensou mal.<br />
Che foi uma questão mais<br />
aborreci<strong>da</strong>. Já an<strong>da</strong>va <strong>de</strong> olho nele<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> a casa <strong>de</strong> D. Antónia; sempre<br />
me cheirou a trotskista. Juntou<br />
<strong>de</strong>masia<strong>da</strong> fama, <strong>de</strong>masiado po<strong>de</strong>r,<br />
o comemier<strong>da</strong>. Foi preciso mandá-lo<br />
fazer revoluções para longe, para<br />
que morresse nalguma <strong>de</strong>las, fosse<br />
no Congo, fosse na Bolívia, para não<br />
chatear mais.<br />
“Vinha com a sua história<br />
própria, com algumas leituras e com<br />
a sua formação e as suas viagens <strong>de</strong><br />
aventuras. Vinha com uma história<br />
anterior a mim. […] Queria a sua<br />
i<strong>de</strong>ia e ser um valor altruísta <strong>nos</strong><br />
processos <strong>de</strong> mu<strong>da</strong>nça, essa imagem<br />
límpi<strong>da</strong> e cândi<strong>da</strong> <strong>da</strong>s mu<strong>da</strong>nças,<br />
<strong>da</strong>s revoluções na América Latina.”<br />
A crise dos mísseis? Sim, não<br />
gostei na<strong>da</strong> do que os soviéticos me<br />
fizeram. Usaram-me. Enganaramme.<br />
Deixaram-me a falar sozinho.<br />
Nós aqui à espera <strong>da</strong> guerra e<br />
Kruschev a consertar a paz com<br />
Kennedy!...<br />
Esta é a mais recente autobiografia<br />
<strong>de</strong> Fi<strong>de</strong>l Castro, apresenta<strong>da</strong> pela<br />
crítica como a mais inspira<strong>da</strong> <strong>de</strong><br />
quantas foram escritas no último<br />
meio século, pelos documentos e<br />
pelos testemunhos em que assenta,<br />
e pelos a<strong>nos</strong> que levou a completar.<br />
Mas não é um auto-retrato, porque<br />
nem chegou pelo punho do próprio<br />
nem é escrito por um observador<br />
<strong>de</strong>sinteressado – pelo contrário.<br />
As coisas po<strong>de</strong>m ter sido assim,<br />
mais ou me<strong>nos</strong> assim ou nem sequer<br />
assim, <strong>de</strong> outro modo estaríamos<br />
perante um ensaio histórico. Quer<br />
dizer, está mais perto do romance,<br />
até pelo estilo, uma comunhão que<br />
se quis perfeita entre a memória e as<br />
palavras, do que do documento,<br />
pelo que será necessário esperar<br />
pela abertura – um dia – dos arquivos<br />
por exemplo do Ministério do<br />
Interior.<br />
Fuentes, que repartiu a vi<strong>da</strong> entre<br />
a literatura e o regime, foi <strong>de</strong><br />
qualquer modo um observador<br />
privilegiado <strong>de</strong> Fi<strong>de</strong>l. Assistiu à sua<br />
entra<strong>da</strong> em Havana e foi seu<br />
colaborador, encarregado <strong>de</strong> tarefas<br />
políticas e <strong>de</strong> informação, até 1989,<br />
quando foi <strong>de</strong>tido no quadro <strong>da</strong><br />
Causa 1, que levaria à morte Arnaldo<br />
Ochoa e Antonio <strong>de</strong> la Guardia,<br />
escapando ao paredón apenas<br />
<strong>de</strong>vido à intervenção <strong>de</strong> Gabriel<br />
García Márquez, amigo do<br />
coman<strong>da</strong>nte.<br />
Exilado em Miami, <strong>de</strong>dicou os<br />
a<strong>nos</strong> que se seguiram à<br />
reconstituição <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> do lí<strong>de</strong>r<br />
cubano, um trabalho ain<strong>da</strong> marcado<br />
pelo fascínio por um homem que,<br />
mesmo que tenha arrombado a<br />
porta à História, entrou nela.<br />
Ensaio<br />
Um crime<br />
constante<br />
Trinta e cinco textos, em<br />
forma <strong>de</strong> ensaio curto,<br />
que <strong>de</strong>screvem alguns<br />
dos episódios centrais <strong>da</strong><br />
história do ódio para com os<br />
ju<strong>de</strong>us. David Teles Pereira<br />
História do Anti-Semitismo<br />
Trond Berg Eriksen, Håkon Harket e<br />
Einhart Lorenz<br />
(trad. João António Correia <strong>de</strong> Sousa<br />
Araújo)<br />
Edições 70<br />
mmmmn<br />
Os ju<strong>de</strong>us foram<br />
responsáveis pela<br />
morte <strong>de</strong> Jesus<br />
Cristo. Morreram<br />
por isso. Os<br />
ju<strong>de</strong>us roubavam<br />
hóstias<br />
consagra<strong>da</strong>s para<br />
reencenar nelas a<br />
morte <strong>de</strong> Jesus<br />
Cristo. Morreram por isso. Os ju<strong>de</strong>us<br />
utilizaram sangue <strong>de</strong> crianças em<br />
rituais <strong>de</strong>moníacos, os ju<strong>de</strong>us<br />
envenenaram poços, os ju<strong>de</strong>us<br />
espalharam a peste negra, o<br />
capitalismo, o bolchevismo.<br />
Morreram por tudo isso. Não é<br />
preciso ler mais que as primeiras<br />
cem páginas <strong>da</strong> “História do Anti-<br />
Semitismo” (Edições 70, 2010) para<br />
perceber que muito antes dos<br />
primeiros centímetros cúbicos <strong>de</strong><br />
gás terem atravessado as<br />
canalizações <strong>de</strong> Treblinka, muito<br />
antes <strong>de</strong> Paul Celan ter escrito<br />
sobre essa morte que foi um mestre<br />
aus Deutchland, já o “ódio que visa<br />
os ju<strong>de</strong>us só por serem ju<strong>de</strong>us” (p.<br />
15) tinha cumprido uma longa e<br />
infame história. Aliás, os próprios<br />
ju<strong>de</strong>us participaram do fenómeno<br />
ao construírem e teorizarem o ódio<br />
auto-referente, a qual o filósofo<br />
alemão Theodor Lessing (1872-1933)<br />
se referiu num livro, editado em<br />
1930, “O ódio ju<strong>da</strong>ico <strong>de</strong> si próprio”<br />
(Der jüdische Selbsthass), que está<br />
na origem <strong>da</strong> categoria do “selfhating<br />
jew”.<br />
“História do Anti-Semitismo” é o<br />
livro mais recente <strong>da</strong> ca<strong>da</strong> vez mais<br />
louvável colecção Lugar <strong>da</strong> História,<br />
<strong>da</strong>s Edições 70 – a juntar à “História<br />
dos Ju<strong>de</strong>us Portugueses”, <strong>de</strong> Carsten<br />
L. Wilke, publicado em 2009 –, que<br />
traduz para português a obra<br />
colectiva “Jø<strong>de</strong>hat: Antisemittismen<br />
historie fra antikken til i <strong>da</strong>g”.<br />
Assina<strong>da</strong> por três historiadores<br />
noruegueses – Trond Berg Eriksen,<br />
Håkon Harket e Einhart Lorenz – é<br />
composta por trinta e cinco textos,<br />
em forma <strong>de</strong> ensaio curto,<br />
apresentados numa sequência mais<br />
ou me<strong>nos</strong> cronológica que procura<br />
<strong>de</strong>screver alguns dos episódios<br />
centrais <strong>da</strong> história do ódio para<br />
com os ju<strong>de</strong>us.<br />
Nesta perspectiva, uma <strong>da</strong>s<br />
críticas que po<strong>de</strong>, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> logo, ser<br />
apontado a esta obra é o parco<br />
<strong>de</strong>senvolvimento <strong>da</strong>do ao período<br />
que vai <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a Antigui<strong>da</strong><strong>de</strong> ao<br />
século XVIII, que cabe em pouco<br />
mais <strong>de</strong> duzentas páginas, contra as<br />
mais <strong>de</strong> 400 páginas <strong>de</strong>dica<strong>da</strong>s aos<br />
últimos três séculos. Contudo, tal<br />
dispari<strong>da</strong><strong>de</strong> seria facilmente<br />
esqueci<strong>da</strong> se a informação forneci<strong>da</strong><br />
nessas duas centenas <strong>de</strong> páginas<br />
ultrapassasse, em <strong>de</strong>nsi<strong>da</strong><strong>de</strong> e em<br />
profundi<strong>da</strong><strong>de</strong>, uma consulta às<br />
várias páginas disponíveis na<br />
wikipédia sobre o tema. Seria útil,<br />
também, que a sequência dos<br />
primeiros ensaios, para além <strong>da</strong><br />
simples cronologia, investisse em<br />
<strong>da</strong>r ao leitor chaves <strong>de</strong> compreensão<br />
histórica do tema, a qual,<br />
infelizmente, aqui é dificulta<strong>da</strong> pelos<br />
saltos temporais, espaciais e, até,<br />
temáticos do narrador que, muitas<br />
vezes, pouco aju<strong>da</strong>m à leitura.<br />
Para <strong>da</strong>r um exemplo, as<br />
importantes disputas medievais<br />
entre os teólogos ju<strong>da</strong>icos e os<br />
teólogos cristãos, mo<strong>de</strong>los<br />
proverbiais do anti-ju<strong>da</strong>ísmo <strong>de</strong><br />
motivação<br />
religiosa, na sua<br />
génese histórica, não merecem mais<br />
que dois parágrafos centrados no<br />
episódio <strong>de</strong> Paris, em 1240, não se<br />
<strong>de</strong>scortinando qualquer referência<br />
às disputas <strong>de</strong> Barcelona (1263; <strong>de</strong><br />
longe a mais importante <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s,<br />
convoca<strong>da</strong> pelo monarca Jaime I <strong>de</strong><br />
Aragão e organiza<strong>da</strong> por Raimundo<br />
<strong>de</strong> Peñafor, tendo a parte ju<strong>da</strong>ica<br />
sido representa<strong>da</strong> pelo teólogo<br />
Nahmani<strong>de</strong>s) e à <strong>de</strong> Tortosa (1413-<br />
1414). No sentido oposto, a tendência<br />
<strong>de</strong>sproporciona<strong>da</strong> para focalizar e<br />
<strong>de</strong>senvolver o conceito <strong>de</strong> antisemitismo<br />
no período que vai <strong>da</strong><br />
Kristalnacht à Solução Final, que<br />
ocupa gran<strong>de</strong> parte dos estudos<br />
históricos <strong>de</strong>dicados a este tema, é<br />
aqui habilmente mo<strong>de</strong>ra<strong>da</strong> pelos<br />
três historiadores sem que, com isso,<br />
tenham corrido o risco <strong>de</strong> confundir<br />
o “assassínio <strong>de</strong> seis milhões <strong>de</strong><br />
ju<strong>de</strong>us” (pp. 497 e ss.) como apenas<br />
um episódio entre muitos, diluindo<br />
na história a singulari<strong>da</strong><strong>de</strong> do<br />
genocídio hitleriano.<br />
O que é o anti-semitismo? O ódio<br />
aos ju<strong>de</strong>us por serem ju<strong>de</strong>us. A<br />
<strong>de</strong>finição convoca<strong>da</strong> pelos três<br />
autores no prefácio à obra é simples,<br />
mas perfeitamente operacional para<br />
um trabalho <strong>de</strong>sta envergadura.<br />
Talvez fosse excessivo e, em certa<br />
medi<strong>da</strong>, <strong>de</strong>scabido exigir a uma obra<br />
que se propõe narrar e interpretar<br />
“a história do ódio europeu aos<br />
ju<strong>de</strong>us (...), uma narrativa sombria<br />
<strong>da</strong>s <strong>nos</strong>sas relações históricas com o<br />
‘outro’” (p. 19) o aperfeiçoamento <strong>de</strong><br />
um conceito <strong>de</strong> anti-semitismo com<br />
horizontes mais restritos. Quanto à<br />
vertente narrativa, esta “História do<br />
Anti-Semitismo” é um trabalho<br />
importante, com uma prosa pouco<br />
florea<strong>da</strong> e ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iramente eficaz –<br />
num estilo conciso próprio <strong>da</strong><br />
historiografia anglo-saxónica –, e<br />
com uma cadência <strong>de</strong> leitura que<br />
nunca é prejudica<strong>da</strong> pelas várias<br />
mãos que tocam no texto. Merece<br />
especial <strong>de</strong>staque o texto <strong>de</strong> Håkon<br />
Harket intitulado “Dinamarca e<br />
Noruega: a chega<strong>da</strong> dos Ju<strong>de</strong>us ao<br />
Reino” (pp. 215 e ss.), um estudo<br />
sobre o impacto do anti-semitismo<br />
no espaço geográfico dos autores.<br />
Refira-se, não obstante, que mesmo<br />
assim esta obra fica um pouco<br />
aquém, por exemplo, <strong>de</strong> uma <strong>da</strong>s<br />
obras <strong>de</strong> referência nesta temática, a<br />
“História do<br />
Anti-Semitismo” <strong>de</strong> Léon<br />
Poliakov, <strong>da</strong> qual é possível<br />
encontrar, traduzido para<br />
português, o volume respeitante aos<br />
a<strong>nos</strong> 1945-1993 (Instituto Piaget,<br />
1997).<br />
Diferentemente, na vertente<br />
interpretativa, isto é, na análise <strong>da</strong>s<br />
causas e efeitos – principalmente dos<br />
efeitos culturais e políticos – do antisemitismo,<br />
a “História dos Anti-<br />
Semitismo” fica algo aquém <strong>da</strong><br />
expectativa <strong>de</strong>sperta<strong>da</strong> no prefácio,<br />
relativamente à interpretação <strong>de</strong>sse<br />
mundo sombrio <strong>da</strong>s relações<br />
históricas com o “outro”. A este<br />
propósito, é útil <strong>chama</strong>r atenção<br />
para algumas passagens do “Tratado<br />
Teológico-Político” <strong>de</strong> Espi<strong>nos</strong>a, que<br />
Trond Berg Eriksen apenas refere <strong>de</strong><br />
passagem, nas quais o filósofo<br />
caracteriza o ódio relativamente aos<br />
ju<strong>de</strong>us como factor <strong>de</strong> unificação e,<br />
curiosamente, <strong>de</strong> i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong><br />
própria comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> ju<strong>da</strong>ica na sua<br />
afirmação i<strong>de</strong>ntitária. A história do<br />
anti-semitismo é, também, uma<br />
história <strong>da</strong> alteri<strong>da</strong><strong>de</strong>, uma história<br />
<strong>da</strong> inimiza<strong>de</strong>. E a inimiza<strong>de</strong> tem<br />
efeitos políticos fortíssimos que o<br />
discurso contemporâneo,<br />
artificialmente neutralizado nessa<br />
dimensão, raramente se atreve a<br />
reconhecer.<br />
Na altura <strong>de</strong> explicar o papel <strong>da</strong><br />
perseguição aos ju<strong>de</strong>us, <strong>da</strong> aposição<br />
a estes <strong>da</strong> tenebrosa figura do “ju<strong>de</strong>u<br />
errante”, nenhum dos autores <strong>de</strong>sta<br />
obra chega o suficientemente longe:<br />
o anti-semitismo não compôs apenas<br />
um retrato <strong>de</strong>monizado do ju<strong>de</strong>u<br />
que até a <strong>nos</strong>sa linguagem corrente,<br />
sabe-se lá vindo <strong>de</strong> on<strong>de</strong>, preserva<br />
– basta pensarmos no significado do<br />
verbo judiar. O anti-semitismo<br />
compôs também a i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> dos<br />
próprios ju<strong>de</strong>us e, por mais estranho<br />
que isso pareça, compôs a<br />
i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> do oci<strong>de</strong>nte não-ju<strong>da</strong>ico<br />
naquilo que, na oposição aos ju<strong>de</strong>us,<br />
este projectava <strong>de</strong> si próprio. Com<br />
efeito, paradoxalmente, foi um<br />
“ódio a si próprio”, ao conceito <strong>de</strong><br />
Humanismo e à raiz ju<strong>da</strong>ico-cristã<br />
do pensamento oci<strong>de</strong>ntal, que<br />
presidiu ao objectivo <strong>de</strong> extermínio<br />
sistemático <strong>da</strong> Judiaria europeia pelo<br />
III Reich.<br />
32 • Sexta-feira 1 Abril 2011 • Ípsilon
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teatro<br />
Benjamin Verdonck<br />
& Willy Thomas<br />
Global Anatomy<br />
“Teatro cru e generoso do it yourself.<br />
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para um público entusiasta e <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> uma digressão nacional,<br />
Ivanov regressa ao <strong>nos</strong>so palco.<br />
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Um <strong>cinema</strong> que fun<strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as or<strong>de</strong>ns <strong>de</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, o vivido e o sonhado, a experiência<br />
e a imaginação, a profundi<strong>da</strong><strong>de</strong> e a ligeireza, a metafísica e o aparte anedótico<br />
Estreiam<br />
Apren<strong>de</strong>r o<br />
<strong>Apichatpong</strong><br />
É um filme tão especial<br />
como são especiais os<br />
momentos em que o <strong>cinema</strong><br />
<strong>de</strong> encontra consigo próprio.<br />
Luís Miguel Oliveira<br />
O Tio Boonmee Que se Lembra<br />
<strong>da</strong>s Suas Vi<strong>da</strong>s Anteriores<br />
Uncle Boonmee Who Can Recall<br />
His Past Lives<br />
De <strong>Apichatpong</strong> <strong>Weerasethakul</strong>,<br />
com Thanapat Saisaymar, Jenjira<br />
Pongpas, Sak<strong>da</strong> Kaewbua<strong>de</strong>e,<br />
Natthakarn Aphaiwong. M/12<br />
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24h Domingo 13h40, 15h55, 18h15, 21h30; UCI<br />
Cinemas - El Corte Inglés: Sala 14: 5ª 6ª Sábado 2ª<br />
3ª 4ª 14h, 16h30, 19h05, 21h30, 24h Domingo 11h30,<br />
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Porto: Arrábi<strong>da</strong> 20: Sala 8: 5ª 6ª Sábado Domingo<br />
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19h10, 21h45, 00h30<br />
Não é preciso muito tempo, bastam<br />
dois ou três pla<strong>nos</strong> (até que o boi<br />
amarrado se solte e se aventure por<br />
uma floresta filma<strong>da</strong> em “noite<br />
americana”, ou que assim parece)<br />
para se ter a sensação, muito clara,<br />
muito níti<strong>da</strong>, mas também, como<br />
dizer, muito calma, <strong>de</strong> que “O Tio<br />
Boonmee que se Lembra <strong>da</strong>s suas<br />
Vi<strong>da</strong>s Anteriores” é uma janela que<br />
alguém abriu, uma corrente <strong>de</strong> ar<br />
fresco sopra<strong>da</strong> sobre a tristíssima<br />
avalanche <strong>de</strong> entulho que<br />
semanalmente se abate sobre o<br />
Jason Schwartzmann e<br />
Bill Murray regressam<br />
para o novo filme do<br />
realizador e argumentista<br />
Wes An<strong>de</strong>rson. Além<br />
<strong>de</strong>stes já recorrentes<br />
actores, participam pela<br />
primeira vez no universo<br />
do cineasta Til<strong>da</strong> Swinton<br />
e Bruce Willis. Ain<strong>da</strong><br />
com um papel mais<br />
secundário, confirma-se<br />
Edward Norton (“Clube<br />
<strong>de</strong> Combate”) e Francis<br />
McDormand (Óscar em<br />
“Fargo”). O filme, que<br />
suce<strong>de</strong> à animação em<br />
técnica “stop motion”<br />
“Fantástico Senhor<br />
Raposo”, é intitulado<br />
“Moonrise Kingdom”.<br />
Descreve a aventura <strong>de</strong><br />
um grupo <strong>de</strong> amigos em<br />
Nova Inglaterra, <strong>nos</strong> EUA,<br />
que <strong>de</strong>sespera<strong>da</strong>mente<br />
procuram um casal <strong>de</strong><br />
jovens que <strong>de</strong>sapareceu.<br />
Bruce Willis é o xerife,<br />
“circuito comercial”. É um filme<br />
extraordinário, em todos os sentidos<br />
<strong>da</strong> palavra, um filme que <strong>de</strong>volve o<br />
<strong>cinema</strong> à sua (quase) esqueci<strong>da</strong><br />
vocação <strong>de</strong>miúrgica. É<br />
ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iramente um filme <strong>de</strong><br />
“criação”, <strong>de</strong> criação <strong>de</strong> um<br />
“mundo”. E se com isto evocamos o<br />
que Go<strong>da</strong>rd escreveu, há muitos<br />
a<strong>nos</strong>, sobre o “Índia” <strong>de</strong> Rossellini<br />
(que se tratava do “filme <strong>da</strong> criação<br />
do mundo”), fazemo-lo porque “O<br />
Tio Boonmee”, no seu trabalho sobre<br />
o folclore, a mitologia, a história,<br />
empregues como maneira <strong>de</strong><br />
“dobrar” a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> sobre a sua<br />
própria fantasia (ou vice-versa), tem<br />
momentos em que <strong>nos</strong> traz o filme <strong>de</strong><br />
Rossellini à cabeça – e evi<strong>de</strong>ntemente<br />
não apenas por, também aqui, os<br />
animais falarem (coisa que<br />
provavelmente <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o filme <strong>de</strong><br />
Rossellini eles não faziam tão bem).<br />
Lembra-<strong>nos</strong> mais coisas: Disney (o<br />
Disney genuíno), Powell/Pressburger,<br />
o “Brigadoon” <strong>de</strong> Minnelli, e claro, os<br />
india<strong>nos</strong>, certas coisas <strong>de</strong> Satyajit Ray<br />
ou Ritwik Ghatak, influência maior<br />
do <strong>cinema</strong> tailandês que talvez<br />
<strong>Apichatpong</strong> <strong>Weerasethakul</strong> nunca<br />
tivesse <strong>de</strong>nunciado <strong>de</strong>sta maneira. É<br />
assim tão especial, como são<br />
especiais os momentos, ca<strong>da</strong> vez<br />
mais raros, em que sentimos o<br />
<strong>cinema</strong> a reencontrar-se consigo<br />
próprio. De resto, <strong>Apichatpong</strong> disse<br />
que “O Tio Boonmee” era a sua<br />
“pequena lamentação” pelo <strong>cinema</strong>.<br />
Voltaremos a ela, porque parece<br />
con<strong>de</strong>nsar-se no <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iro plano.<br />
O observador distante totalmente<br />
alheado do folclore e <strong>da</strong>s tradições<br />
tailan<strong>de</strong>sas, em vez <strong>de</strong> lamentar que<br />
a sua ignorância o con<strong>de</strong>ne a ver “O<br />
Tio Boonmee” como um objecto<br />
hermético, <strong>de</strong>ve congratular-se por<br />
isso mesmo: está em óptima posição<br />
para remeter tudo o que não percebe<br />
para o “folclore e as tradições<br />
personagem que<br />
enquanto procura o casal<br />
tem um caso amoroso<br />
com a mãe <strong>da</strong> rapariga.<br />
<strong>de</strong>sapareci<strong>da</strong> – Francis<br />
McDormand. Bill Murray<br />
será o problemático pai<br />
<strong>da</strong> rapariga. “Moonrise onrise<br />
Kingdom” tem argumento<br />
<strong>de</strong> Wes An<strong>de</strong>rson n e do<br />
filho <strong>de</strong> Francis Coppola,<br />
Roman Coppola.<br />
tailan<strong>de</strong>sas” e limitar-se a apreciar o<br />
que vê. É mais misterioso, e se calhar<br />
ain<strong>da</strong> mais belo, assim. E no entanto,<br />
perfeitamente claro: é como dizia<br />
Jean Douchet <strong>nos</strong> a<strong>nos</strong> 50, não<br />
precisamos <strong>de</strong> “apren<strong>de</strong>r japonês”<br />
para perceber Mizoguchi, basta que<br />
“apren<strong>da</strong>mos Mizoguchi”.<br />
Precisaremos, <strong>de</strong> facto, <strong>de</strong> saber<br />
alguma coisa <strong>da</strong> Tailândia para<br />
perceber o fabuloso intróito <strong>da</strong><br />
princesa <strong>de</strong>sfigura<strong>da</strong> à procura <strong>da</strong><br />
sua imagem “redimi<strong>da</strong>” pelo reflexo<br />
nas águas do lago? Ou por que razão<br />
foi o Tio Boonmee, numa vi<strong>da</strong><br />
anterior, um peixe-gato? Ou porque é<br />
que os homens-macacos <strong>de</strong> olhos que<br />
brilham no escuro confraternizaram<br />
e tiraram fotografias com os sol<strong>da</strong>dos<br />
que an<strong>da</strong>vam pela floresta a matar<br />
comunistas? Claro que não, basta que<br />
saibamos “apren<strong>de</strong>r <strong>Apichatpong</strong>”. E<br />
o “<strong>Apichatpong</strong>”, aqui, é um <strong>cinema</strong><br />
que fun<strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as or<strong>de</strong>ns <strong>de</strong><br />
reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, o vivido e o sonhado, a<br />
experiência e a imaginação, a<br />
profundi<strong>da</strong><strong>de</strong> e a ligeireza, a<br />
metafísica e o aparte anedótico (a<br />
não negligenciar, o seu sentido <strong>de</strong><br />
humor, que já conhecíamos pelo<br />
me<strong>nos</strong> <strong>de</strong>s<strong>de</strong> “Síndromas e um<br />
Século”), com uma graça, uma<br />
<strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za e um equilíbrio pouco<br />
me<strong>nos</strong> que perfeitos. O Tio Boonmee,<br />
que está moribundo (mal dos rins),<br />
evi<strong>de</strong>ntemente não morre; ou por<br />
outra, a morte entrega-o ao que foi a<br />
sua vi<strong>da</strong>, aos seus fantasmas, aos seus<br />
remorsos, aos seus <strong>de</strong>sejos, às suas<br />
memórias, que se materializam por<br />
acção combina<strong>da</strong> do <strong>cinema</strong> e <strong>da</strong><br />
natureza. É isto “O Tio Boonmee”, é<br />
isto “o <strong>Apichatpong</strong>”. E os que ficam<br />
<strong>de</strong>pois <strong>de</strong>le, pobres diabos, ficam<br />
especados em frente a um minúsculo<br />
ecran <strong>de</strong> televisão. É o <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iro<br />
plano.<br />
O homem<br />
<strong>da</strong> maratona<br />
“O Assaltante” reinventa<br />
o filme <strong>de</strong> género à luz do<br />
novo <strong>cinema</strong> alemão, com<br />
resultados francamente<br />
conseguidos. Jorge<br />
Mourinha<br />
O Assaltante<br />
Der Räuber<br />
De Benjamin Heisenberg<br />
Com Florian Wotruba, Andreas Lust,<br />
Franziska Weisz<br />
MMMnn<br />
“O Assaltante” não seria meta<strong>de</strong> do filme que<br />
é sem a performance do austríaco Andreas Lust<br />
Lisboa: Teatro do Bairro. Domingo 21h30<br />
É um feliz reencontro com o regresso<br />
à exibição comercial regular <strong>da</strong> Zero<br />
em Comportamento, já longe <strong>da</strong>s<br />
sessões semanais do Cine 222 e<br />
<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> um interregno forçado pela<br />
concentração na organização do<br />
IndieLisboa. “O Assaltante” esteve a<br />
concurso no Indie 2010, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter<br />
feito parte <strong>da</strong> selecção competitiva <strong>de</strong><br />
Berlim 2010, e é assinado por<br />
Benjamin Heisenberg, cineasta<br />
alemão, colega <strong>de</strong> geração <strong>da</strong> “escola<br />
<strong>de</strong> Berlim” e <strong>de</strong> cineastas como<br />
Angela Schanelec ou Christoph<br />
Hochhäusler (e, já agora, também<br />
neto do físico Werner Heisenberg).<br />
Mas é também um filme que faz uma<br />
“ponte” entre os “novos alemães” e<br />
os “novos austríacos” (como Jessica<br />
Hausner, cujo “Lour<strong>de</strong>s” chegará em<br />
breve às salas, ou Ulrich Seidl), sendo<br />
uma co-produção austríaca<br />
(<strong>de</strong>senvolvi<strong>da</strong> pelo documentarista<br />
Nikolaus Geyrhalter) basea<strong>da</strong> num<br />
caso verídico.<br />
Na Áustria dos a<strong>nos</strong> 1980, um<br />
34 • Sexta-feira 1 Abril 2011 • Ípsilon
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Sexta, 01<br />
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Pygmalion<br />
De Anthony Asquith, Leslie Howard.<br />
Com Leslie Howard, Wendy Hiller,<br />
Wilfrid Lawson. 95 min. M12.<br />
15h30 - Sala Félix Ribeiro<br />
Blackmail<br />
De Alfred Hitchcock. Com Anny<br />
Ondra, John Long<strong>de</strong>n, Sara Algood.<br />
85 min.<br />
19h - Sala Félix Ribeiro<br />
A Cor do Dinheiro<br />
The Color of Money<br />
De Martin Scorsese. Com Mary<br />
Elizabeth Mastrantonio, Paul<br />
Newman, Tom Cruise.120 min.<br />
21h30 - Sala Félix Ribeiro<br />
Sábado, 02<br />
Sarilhos <strong>de</strong> Fral<strong>da</strong>s<br />
De Constantino Esteves. Com<br />
António Calvário, António Silva,<br />
Cremil<strong>da</strong> Gil, Ma<strong>da</strong>lena Iglésias.111<br />
min. M12.<br />
15h30 - Sala Félix Ribeiro<br />
O Homem <strong>da</strong> Câmara <strong>de</strong> Filmar<br />
Chelovek s kinoapparatom<br />
De Dziga Verto. 66 min.<br />
19h - Sala Félix Ribeiro<br />
O Denunciante<br />
The Informer<br />
De John Ford. Com Heather Angel,<br />
Margot Grahame, Preston Foster,<br />
Victor McLaglen. 91 min.<br />
21h30 - Sala Félix Ribeiro<br />
Segun<strong>da</strong>, 04<br />
China’s Little Devils<br />
De Monta Bell. Com Harry Carey,<br />
Paul Kelly, ‘Ducky’ Louie. 74 min.<br />
15h30 - Sala Félix Ribeiro<br />
A Noiva Vendi<strong>da</strong><br />
Die Verkaufte<br />
Braut<br />
De Max Ophüls.<br />
Com Max Nadler,<br />
Jarmila Novotna,<br />
Otto Wernicke,<br />
Hermann Kner. 76<br />
min.<br />
19h - Sala Félix Ribeiro<br />
Os Homens<br />
Preferem as<br />
Loiras<br />
Gentlemen Prefer r<br />
Blon<strong>de</strong>s<br />
De Howard Hawks. Com<br />
Charles Coburn, Jane<br />
Russell, Marilyn Monroe.<br />
91 min.<br />
21h30 - Sala Félix Ribeiro<br />
Terça, 05<br />
O Olho do Diabo<br />
Djävulens öga<br />
De Ingmar Bergman.<br />
Com Jarl Kulle, Bibi i<br />
An<strong>de</strong>rsson, Stig<br />
Järrel. 87 min.<br />
15h30 - Sala Félix Ribeiro<br />
Wall Street<br />
De Oliver Stone.<br />
Com Charlie Sheen,<br />
Michael Douglas, Martin Sheen.126<br />
min.<br />
19h - Sala Félix Ribeiro<br />
Como Roubar Um Milhão<br />
How to Steal a Million<br />
De William Wyler. Com Audrey<br />
Hepburn, Peter O’Toole, Eli<br />
Wallach.123 min.<br />
21h30 - Sala Félix Ribeiro<br />
Quarta, 06<br />
Uma Rapariga sem Nome<br />
It Should Happen to You<br />
De George Cukor. Com Judy Holli<strong>da</strong>y,<br />
Kack Lemmon, Peter Lawford. 87<br />
min. M12.<br />
15h30 - Sala Félix Ribeiro<br />
Aves <strong>de</strong> Rapina<br />
Greed<br />
De Erich von Stroheim. Com Gibson<br />
Gowland, Jean Hersholt, Zasu<br />
Pitts.120 min. M16.<br />
19h - Sala Félix Ribeiro<br />
Haverá Sangue<br />
There Will Be Blood<br />
De Paul Thomas An<strong>de</strong>rson. Com<br />
Daniel Day-Lewis, Martin Stringer,<br />
Kevin J. O’Connor.158 min. M12.<br />
21h30 - Sala Félix Ribeiro<br />
Quinta, 07<br />
As You Like It<br />
De Paul Czinner. Com Henry Ainley,<br />
Elisabeth Bergner, Felix Aylmer. 96<br />
min.<br />
15h30 - Sala Félix Ribeiro<br />
Uma Mulher e Sete Milhões<br />
Brewster’s Millions<br />
De Allan Dwan. Com Dennis O’Keefe,<br />
Helen Walker, June Havoc. 79 min.<br />
19h - Sala Félix Ribeiro<br />
Peixe Lua<br />
De José Álvaro Morais.<br />
Com Afonso o Melo,<br />
Beatriz Batar<strong>da</strong>,<br />
Luis Miguel<br />
Cintra,<br />
Marcello l<br />
Urgeche,<br />
e,<br />
Ricardo<br />
Aibéo,<br />
Ruth.124<br />
min. M12.<br />
21h30 - Sala<br />
Félix<br />
Ribeiro<br />
Marilyn<br />
e Jane<br />
Russell em<br />
“Os Homens<br />
Preferem<br />
as Loiras”<br />
ilustração Cristina Reis, <strong>de</strong>sign Joana Monteiro<br />
ENTRADA<br />
LIMITADA À<br />
LOTAÇÃO DOS<br />
ESPAÇOS<br />
MECENAS CASA DA MÚSICA<br />
APOIO INSTITUCIONAL<br />
tradução<br />
Daniel Jonas<br />
cenografia<br />
e figuri<strong>nos</strong><br />
Cristina Reis<br />
<strong>de</strong>senho <strong>de</strong> luz<br />
Nuno Meira<br />
música<br />
Bernardo Sassetti<br />
interpretação<br />
Albano Jerónimo<br />
Bruno Nogueira<br />
Dinarte Branco<br />
Elsa Oliveira<br />
Leonor Salgueiro<br />
Luísa Cruz<br />
Nuno Nunes<br />
um projecto<br />
Arena Ensemble<br />
co-produção<br />
TNDM II, TNSJ,<br />
Culturproject,<br />
Centro <strong>da</strong>s Artes<br />
– Casa <strong>da</strong>s Mu<strong>da</strong>s<br />
qua-sáb 21:30<br />
dom 16:00<br />
M/12 a<strong>nos</strong><br />
dur. aprox. 1:20<br />
bilhetes<br />
Fnac, TNSJ, TeCA,<br />
www.ticketline.pt<br />
www.tnsj.pt<br />
LINHA VERDE 800-10-8675<br />
MECENAS PRINCIPAL CASA DA MÚSICA<br />
SEJA UM DOS PRIMEIROS A APRESENTAR HOJE ESTE JORNAL COMPLETO NA CASA DA MÚSICA E GANHE UM CONVITE DUPLO PARA ESTE<br />
CONCERTO. OFERTA LIMITADA AOS PRIMEIROS 10 LEITORES E VÁLIDA APENAS PARA UM CONVITE POR JORNAL E POR LEITOR.<br />
PATROCÍNIO<br />
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Ípsilon • Sexta-feira 1 Abril 2011 • 35
Cinema<br />
As estrelas do Público<br />
Jorge<br />
Mourinha<br />
Luís M.<br />
Oliveira<br />
Vasco<br />
Câmara<br />
O Assaltante mmmnn nnnnn nnnnn<br />
Camino mmmMn mnnnn mnnnn<br />
Copacabana mmnnn mmnnn mmnnn<br />
Mel mmnnn mmmnn nnnnn<br />
Micmacs - Uma Brilhante Confusão mmnnn nnnnn nnnnn<br />
Poesia mmmmn mmmnn mmmnn<br />
Potiche- Minha Rica Mulherzinha mmmnn mmnnn mmnnn<br />
Sucker Punch - O Mundo Surreal mmnnn nnnnn nnnnn<br />
O Tio Boonmee que se lembra... mmmmn mmmmn mmmmn<br />
Somewhere-Algures mmmnn nnnnn mnnnn<br />
maratonista que acaba <strong>de</strong> cumprir<br />
sete a<strong>nos</strong> <strong>de</strong> ca<strong>de</strong>ia bate o recor<strong>de</strong><br />
nacional <strong>da</strong> maratona, ao mesmo<br />
tempo que, sem que ninguém faça a<br />
ligação, comete assaltos a banco<br />
disfarçado com uma máscara <strong>de</strong><br />
Ronald Reagan – <strong>da</strong>í a <strong>de</strong>signação que<br />
a imprensa <strong>de</strong>u à personagem,<br />
“Pumpgun Ronnie”. É essa história<br />
que “O Assaltante” conta com<br />
precisão e eficácia, ficcionando-a a<br />
partir <strong>de</strong> um romance <strong>de</strong> Martin<br />
Prinz (que colaborou no argumento).<br />
Heisenberg filma o seu herói,<br />
Johannes Rettenberger, como um<br />
homem com uma missão, que vive<br />
para a corri<strong>da</strong>, que está sempre a<br />
olhar para a frente, em busca do<br />
próximo recor<strong>de</strong>, do próximo tempo,<br />
<strong>da</strong> próxima emoção. Mas que, ao<br />
fazê-lo, não é capaz <strong>de</strong> se concentrar<br />
no tempo presente, <strong>de</strong> focar-se<br />
naquilo que é importante, correndo<br />
o risco <strong>de</strong> per<strong>de</strong>r a única pessoa que<br />
realmente lhe interessa na sua vi<strong>da</strong>,<br />
Erika, uma antiga namora<strong>da</strong> com<br />
quem retoma contacto quase por<br />
acaso.<br />
A câmara, cinética e precisa,<br />
consegue equilibrar elegantemente<br />
as figuras <strong>de</strong> estilo do thriller<br />
(pequenas explosões <strong>de</strong> acção que<br />
acabam tão abruptamente como<br />
começam) com o silêncio tenso <strong>de</strong><br />
um homem que se exprime e se<br />
realiza apenas na corri<strong>da</strong>. Mas “O<br />
Assaltante” não seria meta<strong>de</strong> do<br />
filme que é sem a performance do<br />
austríaco Andreas Lust,<br />
simultaneamente emocionalmente<br />
conti<strong>da</strong> e fisicamente empenha<strong>da</strong> -<br />
Lust fez durante meses treino <strong>de</strong><br />
maratona para lhe <strong>da</strong>r a resistência<br />
física <strong>de</strong> que a personagem<br />
necessitava.<br />
O resultado, à imagem do recente<br />
(e magnífico) “Im Schatten” <strong>de</strong><br />
Thomas Arslan (mostrado no Estoril<br />
Film Festival), reinventa o filme <strong>de</strong><br />
género para os <strong>nos</strong>sos tempos com<br />
gran<strong>de</strong> inteligência e apenas<br />
confirma o bom nível médio do<br />
actual <strong>cinema</strong> germânico.<br />
Os anjos <strong>de</strong> Charlie<br />
no manicómio<br />
Sucker Punch - Mundo Surreal<br />
Sucker Punch<br />
De Zack Sny<strong>de</strong>r,<br />
com Emily Browning, Abbie Cornish,<br />
Jena Malone, Vanessa Hudgens, Scott<br />
Glenn. M/12<br />
MMnnn<br />
Lisboa: Castello Lopes - Loures Shopping: Sala 6: 5ª<br />
Domingo 2ª 3ª 4ª 13h20, 16h, 18h30, 21h30 6ª<br />
Sábado 13h20, 16h, 18h30, 21h30, 24h; CinemaCity<br />
Alegro Alfragi<strong>de</strong>: Cinemax: 5ª 6ª 2ª 3ª 4ª 14h,<br />
16h10, 18h25, 21h30, 23h40 Sábado Domingo 11h50,<br />
14h, 16h10, 18h25, 21h30, 23h40; CinemaCity Beloura<br />
Shopping: Cinemax: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª<br />
4ª 14h05, 16h15, 18h30, 21h30, 23h40; CinemaCity<br />
Campo Pequeno Praça <strong>de</strong> Touros: Sala 2: 5ª 6ª<br />
Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 14h, 16h10, 18h20, 21h30,<br />
24h; UCI Cinemas - El Corte Inglés: Sala 9: 5ª 6ª<br />
Sábado 2ª 3ª 4ª 14h10, 16h40, 19h15, 21h55, 00h30<br />
Domingo 11h30, 14h10, 16h40, 19h15, 21h55,<br />
00h30; ZON Lusomundo Alvaláxia: 5ª 6ª Sábado<br />
Domingo 2ª 3ª 4ª 13h45, 16h40, 19h10, 21h40,<br />
Sucker Punch - Mundo Surreal<br />
00h10; ZON Lusomundo Amoreiras: 5ª 6ª Sábado<br />
Domingo 2ª 3ª 4ª 13h40, 16h, 18h50, 21h20,<br />
24h; ZON Lusomundo CascaiShopping: 5ª 6ª<br />
Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 12h40, 15h40, 18h20,<br />
21h, 23h40; ZON Lusomundo Colombo: 5ª 6ª<br />
Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 12h55, 15h35, 18h10,<br />
21h30, 00h10; ZON Lusomundo Odivelas Parque: 5ª<br />
2ª 3ª 4ª 15h30, 18h30, 21h30 6ª 15h30, 18h30,<br />
21h30, 00h05 Sábado 12h50, 15h30, 18h30, 21h30,<br />
00h05 Domingo 12h50, 15h30, 18h30, 21h30; ZON<br />
Lusomundo Oeiras Parque: 5ª 6ª Sábado Domingo<br />
2ª 3ª 4ª 12h50, 15h20, 18h05, 21h10, 23h50; ZON<br />
Lusomundo Torres Vedras: 5ª 6ª Sábado Domingo<br />
2ª 3ª 4ª 13h30, 16h, 18h30, 21h, 23h35; ZON<br />
Lusomundo Vasco <strong>da</strong> Gama: 5ª 6ª Sábado<br />
Domingo 2ª 3ª 4ª 13h20, 15h50, 18h30, 21h30,<br />
24h; Castello Lopes - Fórum Barreiro: Sala 4: 5ª 2ª<br />
3ª 4ª 15h40, 18h30, 21h30 6ª 15h40, 18h30, 21h30,<br />
24h Sábado 13h10, 15h40, 18h30, 21h30, 24h<br />
Domingo 13h10, 15h40, 18h30, 21h30; Castello Lopes<br />
- Rio Sul Shopping: Sala 2: 5ª 2ª 3ª 4ª 15h50,<br />
18h40, 21h40 6ª 15h50, 18h40, 21h40, 00h10 Sábado<br />
13h10, 15h50, 18h40, 21h40, 00h10 Domingo 13h10,<br />
15h50, 18h40, 21h40; Castello Lopes - Setúbal: Sala 2:<br />
5ª 2ª 3ª 4ª 16h, 18h30, 21h20 6ª 16h, 18h30, 21h20,<br />
23h40 Sábado 13h20, 16h, 18h30, 21h20, 23h40<br />
Domingo 13h20, 16h, 18h30, 21h20; ZON Lusomundo<br />
Alma<strong>da</strong> Fórum: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª<br />
13h05, 15h40, 18h20, 21h, 24h; ZON Lusomundo<br />
Fórum Montijo: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª<br />
13h, 15h50, 18h40, 21h20, 24h<br />
Porto: Arrábi<strong>da</strong> 20: Sala 15: 5ª 6ª Sábado<br />
Domingo 2ª 13h55, 16h30, 19h15, 22h, 00h40 3ª 4ª<br />
16h30, 19h15, 22h, 00h40; ZON Lusomundo Dolce<br />
Vita Porto: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª<br />
13h20, 15h50, 18h30, 21h30, 00h10; ZON<br />
Lusomundo GaiaShopping: 5ª Domingo 2ª 3ª 4ª<br />
13h10, 15h40, 18h30, 21h20 6ª Sábado 13h10, 15h40,<br />
18h30, 21h20, 00h20; ZON Lusomundo<br />
MaiaShopping: 5ª Domingo 2ª 3ª 4ª 13h20,<br />
16h05, 18h55, 21h40 6ª Sábado 13h20, 16h05,<br />
18h55, 21h40, 00h25; ZON Lusomundo<br />
Marshopping: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª<br />
13h10, 15h50, 18h30, 21h30, 00h10; ZON<br />
Lusomundo NorteShopping: 5ª 6ª Sábado<br />
Domingo 2ª 3ª 4ª 13h10, 16h, 19h, 22h,<br />
00h45; ZON Lusomundo Parque Nascente: 5ª 6ª<br />
Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 13h10, 15h50, 18h30,<br />
21h30, 00h25; Castello Lopes - 8ª Aveni<strong>da</strong>: Sala 2:<br />
5ª 2ª 3ª 4ª 15h40, 18h50, 21h50 6ª 15h40, 18h50,<br />
21h50, 00h10 Sábado 13h10, 15h40, 18h50, 21h50,<br />
00h10 Domingo 13h10, 15h40, 18h50, 21h50; ZON<br />
Lusomundo Glicínias: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª<br />
3ª 4ª 13h40, 16h25, 19h, 21h40, 00h20<br />
Um bicho como “Mundo Surreal” é<br />
coisa tão esquisita e estranha que a<br />
sua simples existência enquanto<br />
aspirante a “blockbuster”<br />
hollywoodiano financiado por um<br />
gran<strong>de</strong> estúdio é digna <strong>de</strong> atenção.<br />
Uma fantasia barroca e surreal a meio<br />
caminho entre Terry Gilliam, “Os<br />
Anjos <strong>de</strong> Charlie” e a “Matrix”,<br />
ro<strong>da</strong><strong>da</strong> como se Baz Luhrmann<br />
tivesse <strong>de</strong>cidido que “A Origem” iria<br />
ser um musical à la “Moulin Rouge”,<br />
cujas sequências <strong>de</strong> acção “girlpower”<br />
retro-futuristas parecem uma<br />
encarnação vi<strong>de</strong>o-jogo dos sonhos<br />
dos “tira<strong>nos</strong>sáurios em F-16” que<br />
Calvin tinha nas aulas? A primeira<br />
reacção é que quem teve esta i<strong>de</strong>ia<br />
<strong>de</strong>ve ter tomado drogas <strong>de</strong> altíssima<br />
quali<strong>da</strong><strong>de</strong>. A segun<strong>da</strong> é que nem Zack<br />
Sny<strong>de</strong>r, o virtuoso visual <strong>de</strong> “300” e<br />
“Watchmen – Os Guardiões”, a<br />
consegue levar a bom termo, mas a<br />
tentativa é só por si estimulante.<br />
“Mundo Surreal” parte <strong>de</strong> uma<br />
premissa do melodrama gótico<br />
clássico – a órfã <strong>de</strong>sgraça<strong>da</strong> que o<br />
pérfido padrasto atira para o<br />
manicómio para po<strong>de</strong>r usufruir do<br />
testamento <strong>da</strong> viúva – para se<br />
transformar numa meditação<br />
escapista e rococó sobre o po<strong>de</strong>r <strong>da</strong><br />
narrativa e <strong>da</strong> imaginação. A dita cuja<br />
orfãzinha refugia-se no seu próprio<br />
mundo interior, seguindo os<br />
preceitos <strong>da</strong> psiquiatra polaca que<br />
gere a instituição, para transfigurar a<br />
reali<strong>da</strong><strong>de</strong> e, ao fazê-lo, atingir a<br />
liber<strong>da</strong><strong>de</strong>. As interna<strong>da</strong>s impotentes<br />
tornam-se em guerreiras imbatíveis<br />
transporta<strong>da</strong>s pela sua força interior,<br />
tornando o filme numa espécie <strong>de</strong><br />
odisseia “<strong>de</strong>scobre a leoa que há em<br />
ti”, “girl power” alimentado a<br />
<strong>de</strong>terminação.<br />
O que estaria tudo muito bem se<br />
não se <strong>de</strong>sse o caso <strong>de</strong> Zack Sny<strong>de</strong>r<br />
ter uma imaginação visual muito<br />
mais fervilhante do que jeito para<br />
escrever histórias. O seu guião é uma<br />
cor<strong>da</strong> <strong>da</strong> roupa atabalhoa<strong>da</strong>, feita <strong>de</strong><br />
citações cola<strong>da</strong>s com cuspo e ata<strong>da</strong>s<br />
com nós lassos, reduzindo a<br />
progressão narrativa <strong>de</strong> “Mundo<br />
Surreal” a uma sucessão <strong>de</strong> tarefas <strong>de</strong><br />
vi<strong>de</strong>o-jogo, on<strong>de</strong> dragões e<br />
bombar<strong>de</strong>iros, dirigíveis e mortosvivos<br />
coexistem num universo quase<br />
<strong>de</strong>mencial que <strong>de</strong>ve tanto ao<br />
surrealismo non-sense <strong>de</strong> Terry<br />
Gilliam como às distopias “steampunk”<br />
dos jogos vi<strong>de</strong>o. O todo<br />
envolvido, primeiro, num musical <strong>de</strong><br />
bastidores estilizado a meio caminho<br />
entre “Burlesque” e “Moulin Rouge”<br />
e um melodrama gótico <strong>de</strong>snaturado<br />
saidinho dos primórdios do mundo.<br />
A salganha<strong>da</strong> resultante per<strong>de</strong>-se<br />
por ser um abstracto construído a<br />
partir <strong>de</strong> citações e referências, tão<br />
superficial e vácuo como as suas<br />
“Mel” imerge-<strong>nos</strong> numa espécie<br />
<strong>de</strong> É<strong>de</strong>n intocado on<strong>de</strong>, apesar<br />
<strong>da</strong> luz eléctrica e dos telefones,<br />
é a tradição que coman<strong>da</strong><br />
36 • Sexta-feira 1 Abril 2011 • Ípsilon
aMaumMedíocremmRazoávelmmmBommmmmMuito BommmmmmExcelente<br />
personagens, arquétipos sem<br />
substância que preenchem os<br />
requisitos exigidos pelo teatro <strong>de</strong><br />
marionetas que Sny<strong>de</strong>r montou. Que<br />
as suas actrizes consigam emprestarlhes<br />
espessura e emoção é algo que<br />
só fica bem, sobretudo a Emily<br />
Browning, Abbie Cornish, Jena<br />
Malone e Carla Gugino; que o filme,<br />
apesar <strong>de</strong>ssa frieza quase<br />
arquitectural que se admira sem <strong>nos</strong><br />
agarrar, se aguente ain<strong>da</strong> assim como<br />
um objecto íntegro é ain<strong>da</strong> mais<br />
espantoso. Não fazemos i<strong>de</strong>ia do que<br />
vai acontecer nas bilheteiras a<br />
“Mundo Surreal”, mas o que<br />
po<strong>de</strong>mos dizer para já é que<br />
dificilmente Hollywood vai correr<br />
outro risco tão fora do baralho como<br />
esta fantasia esgrouvia<strong>da</strong> que traz<br />
“culto” estampado em tudo o que é<br />
imagem. Jorge Mourinha<br />
Continuam<br />
Mel<br />
Bal<br />
De Semih Kaplanoglu,<br />
com Bora Altas, Er<strong>da</strong>l Besikçioglu,<br />
Tülin Özen . M/12<br />
MMnnn<br />
Lisboa: Me<strong>de</strong>ia King: Sala 1: 5ª Domingo 3ª 4ª<br />
13h10, 15h15, 17h20, 19h25, 21h30 6ª Sábado 2ª<br />
13h10, 15h15, 17h20, 19h25, 21h30, 24h<br />
Porto: Me<strong>de</strong>ia Cine Estúdio do Teatro Campo<br />
Alegre: Cine-Estúdio: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª<br />
4ª 18h30, 22h 3ª 18h30<br />
Urso <strong>de</strong> Ouro em Berlim 2010, “Mel”<br />
revela em Portugal o cineasta turco<br />
Semih Kaplanoglu, que encerra com<br />
este filme uma trilogia livremente<br />
autobiográfica inicia<strong>da</strong> com<br />
“Yumurta” (2007) e “Süt” (2008).<br />
Percebe-se que o júri <strong>de</strong> Werner<br />
Herzog se tenha <strong>de</strong>ixado levar pela<br />
natureza contemplativa, idílica, com<br />
que Kaplanoglu conta a sua história<br />
<strong>de</strong> uma infância rural <strong>de</strong> um menino<br />
<strong>de</strong> seis a<strong>nos</strong>, filho <strong>de</strong> camponeses:<br />
“Mel” imerge-<strong>nos</strong> numa espécie <strong>de</strong><br />
É<strong>de</strong>n intocado on<strong>de</strong>, apesar <strong>da</strong> luz<br />
eléctrica e dos telefones, é a tradição<br />
que coman<strong>da</strong>. Mas o olhar ao nível<br />
<strong>da</strong> criança que Kaplanoglu consegue<br />
recuperar, o lado quase etnográfico<br />
que, em conjunto, criam por<br />
acumulação um ambiente quase<br />
mágico, sensorial, com algo <strong>da</strong><br />
inocência pastoral <strong>de</strong> um Terrence<br />
Malick, embate na vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
construir uma narrativa para<br />
“segurar as pontas” - e é aí que o<br />
filme se afun<strong>da</strong>, com a sensação <strong>de</strong><br />
que Kaplanoglu sabe exactamente o<br />
que quer filmar, mas não sabe<br />
exactamente o que quer contar. Isso<br />
não invali<strong>da</strong> que haja aqui<br />
belíssimos momentos <strong>de</strong> <strong>cinema</strong>,<br />
sobretudo quando se projecta uma<br />
memória sensorial <strong>da</strong> <strong>de</strong>scoberta do<br />
mundo. J. M.<br />
Camino<br />
De Javier Fesser,<br />
com Nerea Camacho, Carme Elias,<br />
Mariano Venancio, Manuela Vellés.<br />
M/12<br />
Mnnnn<br />
Lisboa: Me<strong>de</strong>ia Monumental: Sala 1: 5ª 6ª Sábado<br />
Domingo 2ª 3ª 4ª 13h30, 16h20, 19h, 21h40, 00h15<br />
Citando um <strong>nos</strong>so mestre, “não me<br />
importo que me manipulem, <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />
que o façam com jeitinho”. Ora,<br />
jeitinho é coisa que “Camino”<br />
dispensa: do primeiro ao último<br />
plano é manipulação, manipulação,<br />
manipulação, e à bruta. Por ca<strong>da</strong> vez<br />
que Javier Fesser mostra um gran<strong>de</strong><br />
plano <strong>da</strong> miu<strong>da</strong> protagonista a sorrir<br />
estabelece-se um novo padrão para a<br />
pornografia sentimental; e nem o<br />
facto <strong>de</strong> “Camino” tratar <strong>de</strong> uma<br />
história basea<strong>da</strong> num tipo <strong>de</strong><br />
chantagem semelhante (chamemoslhe:<br />
um caso <strong>de</strong> pornografia religiosa)<br />
serve <strong>de</strong> atenuante, pelo contrário.<br />
Espécie <strong>de</strong> “Amélie Poulain nas<br />
Garras <strong>da</strong> Opus Dei”, o filme <strong>de</strong><br />
Fesser não dá tréguas: voltefaces<br />
dig<strong>nos</strong> <strong>de</strong> telenovela, beatas e padres<br />
sinistos, e muitos “sonhos” como<br />
medi<strong>da</strong> <strong>da</strong> “inocência” <strong>da</strong> miu<strong>da</strong>. A<br />
intenção, parece, era contribuir para<br />
o mau nome <strong>da</strong> Opus Dei, mas quem<br />
sai pior é o <strong>cinema</strong>, e especialmente<br />
um dos seus géneros mais nobres, o<br />
melodrama. L.M.O.<br />
Potiche - Minha Rica<br />
Mulherzinha<br />
Potiche<br />
De François Ozon,<br />
com Catherine Deneuve, Gérard<br />
Depardieu, Fabrice Luchini, Karin<br />
Viard, Judith Godrèche, Jérémie<br />
Rénier. M/12<br />
MMnnn<br />
Lisboa: Atlânti<strong>da</strong>-Cine: Sala 1: 5ª 6ª 2ª 3ª 4ª<br />
15h30, 21h30 Sábado Domingo 15h30, 18h15,<br />
21h30; Castello Lopes - Cascais Villa: Sala 5: 5ª 2ª<br />
3ª 4ª 15h50, 18h40, 21h40 6ª 15h50, 18h40, 21h40,<br />
00h20 Sábado 13h30, 15h50, 18h40, 21h40, 00h20<br />
Domingo 13h30, 15h50, 18h40, 21h40; CinemaCity<br />
Classic Alvala<strong>de</strong>: Sala 2: 5ª Domingo 2ª 3ª 4ª<br />
13h30, 15h35, 17h40, 19h45, 21h45 6ª Sábado 13h30,<br />
15h35, 17h40, 19h45, 21h45, 23h50; UCI Cinemas - El<br />
Corte Inglés: Sala 13: 5ª 6ª Sábado 2ª 3ª 4ª<br />
14h10, 16h40, 19h10, 21h35, 00h05 Domingo 11h30,<br />
14h10, 16h40, 19h10, 21h35, 00h05; ZON<br />
Lusomundo Amoreiras: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª<br />
3ª 4ª 12h50, 15h20, 17h50, 20h50, 23h20<br />
Porto: Arrábi<strong>da</strong> 20: Sala 17: 5ª 6ª Sábado<br />
“Camino”: espécie<br />
<strong>de</strong> “Amélie Poulain<br />
nas Garras <strong>da</strong> Opus Dei”...<br />
Domingo 2ª 13h50, 16h35, 19h20, 21h55, 00h45 3ª<br />
4ª 16h35, 19h20, 21h55, 00h45; Arrábi<strong>da</strong> 20: Sala<br />
18: 5ª 6ª 2ª 13h50, 16h35, 19h20, 21h55, 00h45<br />
Sábado Domingo 21h55, 00h45 3ª 4ª 16h35, 19h20,<br />
21h55, 00h45; ZON Lusomundo Dolce Vita Porto: 5ª<br />
6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 18h, 21h, 23h40<br />
Se Ozon tem alguma gran<strong>de</strong><br />
habili<strong>da</strong><strong>de</strong>, ela está na pré-fabricação<br />
(mais até do que na pre-visão) dos<br />
espectadores dos seus filmes e,<br />
sobretudo, na condução do percurso<br />
que ele <strong>de</strong>seja que os espectadores<br />
façam através dos filmes.<br />
Continuamos a dizer: Ozon é um<br />
hitchcockiano (mas um<br />
hitchcockiano barato). “Minha Rica<br />
Mulherzinha” continua a ser isso:<br />
sinais cui<strong>da</strong>dosamente distribuídos,<br />
reenvio permanente, “referências” e<br />
cotoveladinhas, um filme que se faz<br />
pelas pistas <strong>de</strong> leitura que ele próprio<br />
cria (e sem as quais não seria na<strong>da</strong>).<br />
Não é nem mais nem me<strong>nos</strong> grotesco<br />
do que outras coisas que Ozon já fez,<br />
embora, <strong>de</strong> facto, num registo<br />
cómico minimamente<br />
<strong>de</strong>sempoeirado a coisa se suporte um<br />
pouco melhor. Ain<strong>da</strong> que em<br />
ambivalência: é tão fácil elogiar a<br />
maneira como Deneuve e Depardieu<br />
se prestam a brincar com o seu<br />
estatuto simbólico no <strong>cinema</strong> francês<br />
como ter vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> gritar “basta, já<br />
fizeram isto 50 vezes, inventem lá<br />
outra coisa”. L.M.O.<br />
Copacabana<br />
De Marc Fitoussi,<br />
com Isabelle Huppert, Lolita<br />
Chammah, Aure Atika, Jurgen<br />
Delnaet. M/12<br />
MMnnn<br />
Lisboa: Me<strong>de</strong>ia King: Sala 3: 5ª Domingo 3ª 4ª<br />
13h20, 15h30, 17h40, 19h50, 22h 6ª Sábado 2ª<br />
13h20, 15h30, 17h40, 19h50, 22h, 00h15; Me<strong>de</strong>ia<br />
Sal<strong>da</strong>nha Resi<strong>de</strong>nce: Sala 5: 5ª 6ª Sábado<br />
Domingo 2ª 3ª 4ª 14h20, 16h50, 19h20, 21h50,<br />
00h20<br />
Ou <strong>de</strong> como um filme anódino se<br />
torna um bocadinho me<strong>nos</strong> anódino<br />
por causa <strong>de</strong> uma actriz. Sem Isabelle<br />
Huppert não se <strong>da</strong>ria na<strong>da</strong> por<br />
“Copacabana”, exemplo <strong>de</strong> um<br />
<strong>cinema</strong> correcto e “profissional” que<br />
não tem mais para <strong>da</strong>r, nem <strong>de</strong>seja<br />
mais, do que reiterar e reproduzir as<br />
suas características – o que não tem<br />
na<strong>da</strong> <strong>de</strong> mal, nem na<strong>da</strong> <strong>de</strong> bom. Com<br />
Huppert, mesmo a trabalhar em<br />
modo prazenteiro, acrescenta-se uma<br />
cama<strong>da</strong> extra, ao filme e à sua<br />
protagonista (e até o “gimmick” <strong>de</strong> a<br />
pôr a contracenar com a filha traz<br />
algum sentido). E “Copacabana”<br />
torna-se, até certo ponto ou a partir<br />
<strong>de</strong> certo ponto, num filme sobre o<br />
trabalho <strong>de</strong> uma actriz. Que se possa<br />
vê-lo como tal não é, apesar <strong>de</strong> tudo,<br />
uma quali<strong>da</strong><strong>de</strong> negligenciável. L.M.O.<br />
Somewhere - Algures<br />
Somewhere<br />
De Sofia Coppola,<br />
com Stephen Dorff, Elle Fanning. M/12<br />
Mnnnn<br />
Lisboa: Me<strong>de</strong>ia Sal<strong>da</strong>nha Resi<strong>de</strong>nce: Sala 6: 5ª 6ª<br />
Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 13h30, 15h30, 17h30,<br />
19h30, 21h30, 24h; UCI Cinemas - El Corte<br />
Inglés: Sala 5: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 4ª 22h,<br />
00h20 3ª 00h20<br />
Porto: Arrábi<strong>da</strong> 20: Sala 5: 5ª 6ª Sábado Domingo<br />
2ª 3ª 4ª 19h<br />
A questão com Sofia po<strong>de</strong> continuar<br />
a colocar-se: um filme sobre o vazio<br />
ou um filme vazio?; um filme<br />
superficial ou um filme sobre<br />
superfícies? Mas julgamos que<br />
“Algures” respon<strong>de</strong>. Quer dizer:<br />
expõe Sofia. Que aqui, tentanto ir<br />
para além <strong>da</strong> bolha atmosférica – e é<br />
justo dizer que ela aguentou todo um<br />
filme, “As Virgens Suici<strong>da</strong>s”, numa<br />
espécie <strong>de</strong> leveza doentia, e isso é<br />
obra –, aventurando-se pela<br />
“malaise” existencialista, em modo<br />
Wen<strong>de</strong>rs ou Antonioni, dá um passo<br />
maior do que as pernas, nunca<br />
levantando o filme acima <strong>da</strong><br />
caricatura e do “cliché”. Há pe<strong>da</strong>ços<br />
<strong>de</strong>sastrosos (todo o episódio<br />
italiano), a <strong>de</strong>ambulação pai/filha é<br />
uma oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong> perdi<strong>da</strong><br />
(passámos o filme a pensar em “Alice<br />
nas Ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s”, <strong>de</strong> Wen<strong>de</strong>rs), o<br />
Chateau Marmont <strong>de</strong> Los Angeles é<br />
apenas um cenário, nunca inquieta a<br />
câmara. Lembrámo-<strong>nos</strong> <strong>de</strong> Sofia,<br />
actriz no “Padrinho III”, exposta pelo<br />
pai, Francis: qualquer coisa próximo<br />
do incómodo. Vasco Câmara<br />
Ípsilon • Sexta-feira 1 Abril 2011 • 37
Discos<br />
aMaumMedíocremmRazoávelmmmBommmmmMuito BommmmmmExcelente<br />
Murray traça um po<strong>de</strong>roso e vibrante retrato<br />
<strong>da</strong>s ligações cubanas <strong>de</strong> Nat King Cole, na tradição<br />
do melhor jazz cubano, com a participação<br />
lumi<strong>nos</strong>a <strong>da</strong> Sinfonieta <strong>de</strong> Sines<br />
Jazz<br />
De Cuba para<br />
Sines<br />
Com uma ligação fortíssima<br />
à ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Sines, David<br />
Murray <strong>de</strong>dica o seu mais<br />
recente projecto à música <strong>de</strong><br />
Nat King Cole. Em espanhol.<br />
Rodrigo Amado<br />
David Murray Cuban Ensemble<br />
Plays Nat King Cole<br />
3D Family, Universal<br />
mmmmn<br />
David Murray é um<br />
dos gigantes do<br />
saxofone. Membro<br />
fun<strong>da</strong>dor dos<br />
World Saxophone<br />
Quartet e com<br />
cerca <strong>de</strong> uma centena <strong>de</strong> álbuns<br />
editados em nome próprio, é um dos<br />
gran<strong>de</strong>s estilistas do saxofone tenor e<br />
possui um som inconfundível que<br />
tem tanto <strong>de</strong> Albert Ayler e Archie<br />
Shepp como <strong>de</strong> Ben Webster ou<br />
Coleman Hawkins. Nome<br />
incontornável quando se falava em<br />
jazz <strong>de</strong> vanguar<strong>da</strong> <strong>nos</strong> a<strong>nos</strong> 70 e 80,<br />
passou a ser progressivamente mais<br />
influenciado pelo swing e pelo bop,<br />
revelando enorme talento como<br />
compositor e arranjador. Para este<br />
novo projecto, uma interpretação <strong>de</strong><br />
algumas <strong>da</strong>s canções grava<strong>da</strong>s por<br />
Nat King Cole <strong>nos</strong> seus dois álbuns <strong>de</strong><br />
58 e 62, cantados em Espanhol,<br />
Murray seguiu uma sugestão <strong>da</strong> sua<br />
mulher. “A i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong>ste disco foi <strong>da</strong><br />
minha mulher, Valérie. Ela procurava<br />
conhecer um pouco mais <strong>da</strong>s suas<br />
raízes e fomos a Cuba, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> é<br />
originário o seu avô. Nos estúdios<br />
Egrem vimos uma foto <strong>de</strong> Nat King<br />
Cole, tira<strong>da</strong> lá em 1958. Foi aí que<br />
<strong>de</strong>cidimos avançar com o projecto.”<br />
Reunindo alguns dos melhores<br />
instrumentistas cuba<strong>nos</strong> <strong>da</strong> nova<br />
geração – entre eles, Roman Filiu,<br />
Mario Felix Hernan<strong>de</strong>z Morrejon ou<br />
Jose “Pepe” Rivero – e juntando-lhes<br />
a Sinfonieta <strong>de</strong> Sines e o carismático<br />
vocalista Melingo, Murray traça um<br />
po<strong>de</strong>roso e vibrante retrato <strong>da</strong>s<br />
ligações cubanas <strong>de</strong> Nat King Cole, no<br />
qual surpreen<strong>de</strong> sobretudo a<br />
naturali<strong>da</strong><strong>de</strong> dos arranjos, na<br />
tradição do melhor jazz cubano, e a<br />
participação lumi<strong>nos</strong>a <strong>da</strong> Sinfonieta<br />
<strong>de</strong> Sines, ci<strong>da</strong><strong>de</strong> com a qual Murray<br />
mantém uma ligação estreita. Nas<br />
palavras do próprio; “A minha ligação<br />
a Sines é antiga. Tenho lá muito bons<br />
amigos e acabei por comprar casa na<br />
ci<strong>da</strong><strong>de</strong>. Vivo em Paris, mas quando<br />
“Chopped & Screwed” não causa espanto.<br />
A espaços soa algo insular, distante. Mas recompensa<br />
quero passar um bom bocado,<br />
<strong>de</strong>scontrair, vou para Sines.” Mas a<br />
ligação do saxofonista a Sines não se<br />
resume a uns momentos bem<br />
passados. Murray encontrou na<br />
ci<strong>da</strong><strong>de</strong> uma comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> dinâmica,<br />
na qual <strong>de</strong>staca o excelente trabalho<br />
<strong>de</strong>senvolvido durante a<strong>nos</strong> pelo<br />
Presi<strong>de</strong>nte <strong>da</strong> Câmara, Manuel<br />
Coelho. Um trabalho <strong>de</strong> referência<br />
que <strong>de</strong>u origem à Escola <strong>da</strong>s Artes e à<br />
primeira Sinfonieta <strong>de</strong> Sines, para<br />
além, está claro, do mais famoso dos<br />
festivais <strong>de</strong> músicas do mundo do<br />
<strong>nos</strong>so país. “A razão pela qual<br />
optámos por incluir a Sinfonieta é<br />
exactamente para que as pessoas<br />
saibam que há algo <strong>de</strong> novo e especial<br />
a acontecer em Sines.”<br />
E há realmente uma energia<br />
especial que se espalha por versões<br />
notáveis <strong>de</strong> “El bo<strong>de</strong>guero”, “Quizás,<br />
quizás, quizás”, ou “A media luz”,<br />
com solos exuberantes <strong>de</strong> Murray,<br />
Filiu ou Morrejon, e po<strong>de</strong>rosas<br />
interpretações vocais <strong>de</strong> Melingo (nas<br />
2 últimas). Mas é em “No me<br />
platiques”, instrumental marcado<br />
pelos arranjos expressivos <strong>da</strong><br />
Sinfonieta, que explo<strong>de</strong> to<strong>da</strong> a<br />
expressivi<strong>da</strong><strong>de</strong> e criativi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
Murray, num fenomenal solo que<br />
evoca o melhor <strong>da</strong> sua obra.<br />
Pop<br />
Etno fantasia<br />
Devaneios <strong>de</strong> um produtor<br />
alemão convertido em<br />
explorador dos sons<br />
tradicionais do Quénia. Luís<br />
Maio<br />
Sven Kacirek<br />
The Kenya Sessions<br />
Pingipung, distri. Compact<br />
mmmmn<br />
Percussionista e<br />
produtor <strong>de</strong> música<br />
electrónica, o<br />
alemão Sven Kacirek<br />
<strong>de</strong>sembarcou pela<br />
primeira vez em<br />
Nairobi há dois a<strong>nos</strong>. Foi participar<br />
num espectáculo <strong>de</strong> <strong>da</strong>nça, mas a sua<br />
actuação a solo encantou os locais,<br />
Sven Kacirek<br />
ao ponto <strong>de</strong> convencer Johannes<br />
Hossfeld, director do Goethe Institut<br />
Kenia, <strong>de</strong> que era o homem indicado<br />
para um projecto que tinha em<br />
mente. A sua i<strong>de</strong>ia era gravar<br />
reportório ancestral <strong>da</strong>s tribos<br />
Nyanza, instala<strong>da</strong>s à beira do lago<br />
Victoria, mas o projecto evoluiu para<br />
uma viagem mais ampla entre essa<br />
ponta oci<strong>de</strong>ntal do país e a oriental,<br />
que beija o oceano Pacífico, assim<br />
cobrindo os dois extremos <strong>da</strong> música<br />
e <strong>da</strong> cultura do país <strong>da</strong> África <strong>de</strong><br />
Leste.<br />
Esse trabalho <strong>de</strong> campo foi a base,<br />
mas as resultantes “The Kenya<br />
Sessions”, subintitula<strong>da</strong>s “Barabara”<br />
(“Na Estra<strong>da</strong>”), não têm na<strong>da</strong> <strong>de</strong><br />
recolha etnográfica, nem se pautam<br />
por qualquer purismo tradicionalista.<br />
No lugar disso, Sven Kacirek pegou<br />
no material recolhido no Quénia,<br />
sobretudo vozes, gaitas e percussões<br />
e empregou-o como um interlocutor<br />
para a sua própria música. Uma<br />
música acústica, singela e <strong>de</strong>lica<strong>da</strong>,<br />
<strong>de</strong>sempenha<strong>da</strong> em piano, xilofone e<br />
percussões, que parece repercutir e<br />
está no mesmo comprimento <strong>de</strong><br />
on<strong>da</strong> – antes dizia-se “vibração” – dos<br />
quenia<strong>nos</strong> que entretanto foi<br />
gravando. É evi<strong>de</strong>nte a bagagem<br />
electrónica <strong>de</strong> Sven, que faz entrar e<br />
sair na mistura as gravações <strong>de</strong><br />
campo numa lógica <strong>de</strong> corte e<br />
colagem e vai construindo os temas à<br />
luz <strong>de</strong> uma dinâmica <strong>de</strong> sucessivos<br />
picos <strong>da</strong>nçantes.<br />
“The Kenya Sessions” não é,<br />
porém, um disco <strong>de</strong> baile <strong>de</strong> fusão,<br />
mas um em que a sensibili<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
<strong>da</strong>nçante está sempre implícita,<br />
oferecendo novas asas à música <strong>da</strong>s<br />
raízes do Quénia. Nesse sentido é<br />
me<strong>nos</strong> Fre<strong>de</strong>ric Galliano que Michael<br />
Hart ou Stewart Copeland: um disco<br />
que parte <strong>de</strong> sonori<strong>da</strong><strong>de</strong>s étnicas<br />
para alimentar a fantasia, ou melhor,<br />
que sonha na mesma medi<strong>da</strong> em que<br />
contempla e integra a alteri<strong>da</strong><strong>de</strong>. E<br />
funciona excelentemente, tanto<br />
como narrativa sónica, como uma<br />
espécie <strong>de</strong> ban<strong>da</strong> sonora para um<br />
romance <strong>de</strong> viagem passado algures<br />
na África Oriental, como um disco<br />
ambiental, que proporciona<br />
<strong>de</strong>scanso e massaja o espírito, na<br />
medi<strong>da</strong> em que combina loops e<br />
texturas com sabores exóticos.<br />
A orquestra Micachu<br />
Micachu & The Shapes<br />
Chopped & Screwed<br />
Rough Tra<strong>de</strong>; distri. Popstock<br />
mmmnn<br />
“Chopped &<br />
Screwed” não é o<br />
sucessor oficial <strong>de</strong><br />
“Jewellery”, o<br />
álbum <strong>de</strong> estreia <strong>de</strong><br />
Micachu & The<br />
Shapes que tanta alegria <strong>nos</strong> <strong>de</strong>u em<br />
2009: uma tangente pop <strong>de</strong>linea<strong>da</strong><br />
com tanta imaginação e espírito<br />
38 • Sexta-feira 1 Abril 2011 • Ípsilon
inventivo que <strong>nos</strong> ren<strong>de</strong>mos a Mica<br />
Levi, a mentora do trio, mulher que é<br />
guitarrista punk e produtora hip hop<br />
e compositora vanguardista e, tudo<br />
reunido, autora <strong>de</strong> canções que,<br />
como poucas outras, absorvem e<br />
reflectem, com i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> vinca<strong>da</strong>, o<br />
pulsar contemporâneo.<br />
“Chopped & Screwed”, tal como as<br />
mixtapes que Mica Levi vai<br />
disponibilizando online, é mais um<br />
capítulo na construção <strong>de</strong> um corpo<br />
<strong>de</strong> obra multifacetado. Nasceu <strong>de</strong> um<br />
convite <strong>da</strong> London Sinfonietta para a<br />
apresentação <strong>de</strong> um trabalho<br />
conjunto. A primeira apresentação<br />
aconteceu em Maio <strong>de</strong> 2010 e<br />
“Chopped & Screwed” é o registo<br />
<strong>de</strong>sse concerto.<br />
Micachu e os Shapes, armados <strong>de</strong><br />
instrumentos inventados, como a<br />
espécie <strong>de</strong> sanfona em contraplacado<br />
cria<strong>da</strong> por Mica Levi, e a Sinfonietta,<br />
fugindo <strong>de</strong> lugares confortáveis,<br />
entregue a pizzicatos <strong>de</strong>moníacos e<br />
arrufos <strong>de</strong> atonali<strong>da</strong><strong>de</strong>. Nove canções<br />
em cerca <strong>de</strong> meia hora, sem espaço<br />
para a bizarra e contagiante euforia<br />
<strong>de</strong> “Jewellery”. Música nocturna,<br />
tétrica a espaços, que sobrevive mais<br />
pela coerência e sentido <strong>de</strong> dinâmica<br />
do ambiente criado que pelas<br />
canções elas mesmas. Em “Unlucky”,<br />
parece-<strong>nos</strong> que os Looney Tunes<br />
musicados por Carl Stalling<br />
emergem, perversos, <strong>de</strong> uma<br />
qualquer cave on<strong>de</strong> os fecharam há<br />
déca<strong>da</strong>s. Em “Everything” a mancha<br />
sonora cria<strong>da</strong> evoca o prazer<br />
<strong>da</strong>nçante que <strong>de</strong>scobrimos em<br />
“Jewellery”. E há essa magnífica<br />
cenografia que é “Low dogg”, com as<br />
cor<strong>da</strong>s silvando, com os violoncelos<br />
em marcha psicótica e um órgão<br />
divagando, tentando atenuar a tensão<br />
que a letra não resolve: “every<strong>da</strong>y’s<br />
the same / stays the same”.<br />
“Chopped & Screwed” não causa<br />
espanto. A espaços soa algo insular,<br />
distante. Mas recompensa.<br />
Recompensa porque algo como a<br />
cita<strong>da</strong> “Low dogg” vale to<strong>da</strong> a viagem<br />
e, porque, mesmo no contexto muito<br />
específico <strong>da</strong> gravação com a<br />
Sinfonietta, Mica Levi revela-se,<br />
novamente, uma <strong>da</strong>s mentes mais<br />
interessantes <strong>da</strong> música popular<br />
urbana dos <strong>nos</strong>sos dias. M.L.<br />
Iron & Wine<br />
Kiss Each Other Clean<br />
Warner; distri. Coop<br />
mmmmn<br />
É extraordinária a<br />
entra<strong>da</strong> <strong>de</strong> “Kiss<br />
Each Other Clean”:<br />
“Walking far from<br />
home” não só está<br />
prenhe <strong>de</strong><br />
simbologia epifânica como emula as<br />
ascensões características <strong>da</strong> música<br />
religiosa. É uma simples linha<br />
melódica circular, à qual vão sendo<br />
adicionados coros, pia<strong>nos</strong>, órgãos,<br />
tarolas com <strong>de</strong>lay, efeitos <strong>de</strong> guitarra,<br />
um sem número <strong>de</strong> elementos que<br />
O melhor disco <strong>de</strong> Sam<br />
Beam e se não for dos<br />
melhores que 2011 vai<br />
conhecer será certamente<br />
dos mais belos<br />
vão engran<strong>de</strong>cendo a canção até que<br />
esta – que ao início era um simples<br />
lalala a zumbir no ouvido – enche as<br />
veias, inun<strong>da</strong> os pulmões e instala<br />
aqui que há tanto <strong>nos</strong> falta e é quase<br />
feio sentir: fé. Não obrigatoriamente<br />
no Senhor que Beam nomeia, mas<br />
em qualquer coisa. Dizer que a<br />
fasquia <strong>de</strong>sce com “Me and Lazarus”<br />
é <strong>de</strong>magogia: construí<strong>da</strong> em redor <strong>de</strong><br />
uma bela linha <strong>de</strong> baixo, e com<br />
metais e zunir <strong>de</strong> guitarra acústica<br />
pelo meio, seria excelente acen<strong>da</strong>lha<br />
para começar a ignição do disco não<br />
fora este abrir logo em estado <strong>de</strong><br />
incêndio. E porque não consta que<br />
uma gran<strong>de</strong> abertura tenha <strong>de</strong> se ater<br />
a um mero par <strong>de</strong> canções, segue-se<br />
“Tree by the river”, gospel ligeiro<br />
com xilofones, pan<strong>de</strong>iretas, a-has,<br />
que <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>riva no refrão para uma<br />
folk rica, antes <strong>de</strong> uma figura <strong>de</strong><br />
guitarra eléctrica se juntar ao coro<br />
num momento <strong>de</strong> mãos-ao-alto-istoé-um-colosso-<strong>de</strong>-canção.<br />
Daqui para<br />
o fim há <strong>de</strong> tudo para todos os gostos:<br />
canções finca<strong>da</strong>s em linhas <strong>de</strong> baixo<br />
sombrias, wurlitzers a <strong>de</strong>bitar<br />
groove, folk sinfónica her<strong>de</strong>ira <strong>da</strong><br />
(enorme) Ju<strong>de</strong>e Sill (notório na<br />
<strong>de</strong>sci<strong>da</strong> antes do refrão <strong>de</strong> “Brother<br />
in love”, com o seu registo <strong>de</strong> quem<br />
prefere tropeçar a olhar para os céus<br />
que caminhar recto a tactear o chão),<br />
flautas e muitos coros, brinca<strong>de</strong>iras<br />
ao xilofone vagamente in<strong>de</strong>scritíveis<br />
e até algo <strong>de</strong> jazzístico e <strong>de</strong><br />
psicadélico. Mais que tudo, um elogio<br />
<strong>da</strong> melodia enquanto estrutura que<br />
suporta tudo. O melhor disco <strong>de</strong> Sam<br />
Beam e se não for dos melhores que<br />
2011 vai conhecer será certamente<br />
dos mais belos. João Bonifácio<br />
Munch Munch<br />
Double Visions<br />
Upset The Rhythm; distri. Flur<br />
mmmmn<br />
Quando o álbum<br />
começa, ouve-se um<br />
vibrafone, um piano<br />
e vozes subindo ao<br />
agudo <strong>da</strong> escala.<br />
Tudo muito<br />
oceânico, muito sereno. Isso, porém,<br />
são apenas os primeiros dois<br />
minutos. Porque os Munch Munch,<br />
eles que dizem procurar na música o<br />
“escapismo”, a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> do<br />
sonho, portanto, revelam-se <strong>de</strong>pois<br />
disso. Depois, ouvem-se teclados<br />
fervilhantes em turbilhão e vozes que<br />
são guia por viagem alucina<strong>da</strong> espaço<br />
fora. Vozes que têm o tom grave <strong>de</strong><br />
conto <strong>de</strong> terror ou que são grito <strong>de</strong><br />
ritualista urbano que ouviu Wyatt e<br />
os Grizzly Bear e os Animal Collective<br />
e os Floyd. Música que preten<strong>de</strong><br />
<strong>da</strong>nçar como ban<strong>da</strong> rock e explorar<br />
como pesquisador sonoro: por isso<br />
rugem tarolas sobre visões<br />
quimicamente altera<strong>da</strong>s dos tempos<br />
<strong>de</strong> Madchester e dos Inspiral Carpets.<br />
Por isso, ouvimo-los numa canção<br />
como “Autumn mask”, saltitando<br />
sobre o arpeggio <strong>da</strong>s teclas, e<br />
<strong>de</strong>scobrimos que <strong>nos</strong> surpreen<strong>de</strong>m<br />
<strong>da</strong> melhor forma possível –<br />
sonhadores fervorosos, ocupados a<br />
<strong>de</strong>smontar e remontar pe<strong>da</strong>ços <strong>de</strong><br />
canções com um entusiasmo<br />
contagiante. “Wolfman’s wife” é<br />
terror <strong>de</strong> conto popular<br />
transformado em filme sci-fi, “Bold<br />
man of the sea” começa planando em<br />
sintetizadores, muito Floydiana,<br />
antes <strong>de</strong> explodir em percussão<br />
irrequieta e vozes em falsete – não<br />
sabemos para on<strong>de</strong> <strong>nos</strong> levam, mas<br />
<strong>da</strong>nçamos com eles - e “Night corner”<br />
é a actualização Soft Machine que os<br />
Klaxons (com quem os Munch Munch<br />
são por vezes comparados) não<br />
querem ou não conseguiram ser. Um<br />
primeiro disco tão frenético quanto<br />
promissor que <strong>nos</strong> <strong>de</strong>ixa a sensação<br />
que o futuro dos Munch Munch será<br />
ain<strong>da</strong> melhor. Assim continuem<br />
explorando, viajando, com o mesmo<br />
fervor que ouvimos em “Double<br />
Visions”. M.L.<br />
Munch Munch: continuem explorando...<br />
Ípsilon • Sexta-feira 1 Abril 2011 • 39
Discos<br />
aMaumMedíocremmRazoávelmmmBommmmmMuito BommmmmmExcelente<br />
Cuca Roseta<br />
Cuca Roseta<br />
Surco; distri. Universal<br />
mmmnn<br />
Cuca chega formosa e bem<br />
segura; veremos agora<br />
se conseguirá convocar<br />
quali<strong>da</strong><strong>de</strong>s sísmicas para<br />
os fados que se seguem<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
PRO.DANÇA<br />
Companhia<br />
Olga Roriz<br />
“Cuca Roseta” po<strong>de</strong><br />
ser ouvido e<br />
pensado assim –<br />
como quem acaba<br />
<strong>de</strong> travar<br />
conhecimento com<br />
uma pessoa sobre a qual na<strong>da</strong> sabe. E<br />
a primeira impressão é<br />
consistentemente boa. Um sorriso<br />
natural e pouco esforçado do outro<br />
lado, <strong>de</strong>scobrindo uma <strong>de</strong>ntição sem<br />
restos do almoço ou do jantar à<br />
espreita, umas palavras <strong>de</strong><br />
circunstância não reveladoras <strong>de</strong><br />
ansie<strong>da</strong><strong>de</strong> social ou tão-pouco <strong>de</strong><br />
familiari<strong>da</strong><strong>de</strong> excessiva. Intriga o<br />
suficiente, quer-se conhecer mais,<br />
mas fica também o medo <strong>de</strong> que não<br />
seja mais do que isto. O medo <strong>de</strong> que<br />
Cuca Roseta nunca ouse mais do que<br />
aquilo que se ouve já no disco <strong>de</strong><br />
estreia.<br />
Porque há no seu primeiro álbum<br />
um compromisso que, <strong>de</strong> futuro, se<br />
po<strong>de</strong> revelar castrador. O fado <strong>de</strong><br />
Cuca é um fado com clara inclinação<br />
para a canção, suficientemente<br />
confortável com a sua imagem ao<br />
espelho para aceitar que não há<br />
promiscui<strong>da</strong><strong>de</strong> alguma em convi<strong>da</strong>r a<br />
guitarra portuguesa para a sua<br />
intimi<strong>da</strong><strong>de</strong> e, ao mesmo tempo, não<br />
fechar a porta ao passado pop (foi<br />
ain<strong>da</strong> <strong>nos</strong> Toranja que começou a<br />
cantar fado em concerto). Essa<br />
característica, bem explora<strong>da</strong>,<br />
po<strong>de</strong>rá vir a ser a maior quali<strong>da</strong><strong>de</strong> do<br />
caminho <strong>de</strong> Cuca. A produção do<br />
oscarizado Gustavo Santaolalla (pelas<br />
ban<strong>da</strong>s sonoras <strong>de</strong> “Babel” e<br />
“Brokeback Mountain”) era (e é) uma<br />
opção inteligente nesse <strong>de</strong>marcar <strong>de</strong><br />
território. Mas <strong>de</strong>via ter-se permitido<br />
arriscar mais, per<strong>de</strong>r mais o pé. Claro<br />
que corria o risco <strong>de</strong> se estampar<br />
logo ao primeiro disco e sair <strong>de</strong>le<br />
irremediavelmente chamusca<strong>da</strong> – e<br />
Santaolalla, evi<strong>de</strong>ntemente, não<br />
quereria mexer <strong>de</strong>masiado num<br />
género <strong>de</strong> que não conhece as<br />
entranhas –, mas fica a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que,<br />
mesmo avançando com um disco<br />
seguro e com tudo no sítio, po<strong>de</strong>rá<br />
não haver muito mais para lá <strong>de</strong>sta<br />
simpática primeira impressão.<br />
Se é ver<strong>da</strong><strong>de</strong> que “Cuca Roseta”fica<br />
claramente acima <strong>da</strong>s estreias<br />
recentes <strong>de</strong> Luísa Rocha ou Cristina<br />
Nóbrega, não se consegue ain<strong>da</strong><br />
perceber-se que lugar ocupará o<br />
canto virginal <strong>de</strong> Cuca entre as outras<br />
vozes. Chega a ser ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iramente<br />
tocante – como na “Rua do Capelão”<br />
que a revelou sublime no filme <strong>de</strong><br />
Carlos Saura, “Fados” – mas revela-se<br />
incapaz <strong>de</strong> ombrear com, por<br />
exemplo, a natureza vulcânica <strong>de</strong><br />
Carminho – essa que abre a boca e as<br />
<strong>nos</strong>sas fun<strong>da</strong>ções parecem feitas <strong>de</strong><br />
papel. Cuca chega formosa e bem<br />
segura. Muito bem. Veremos agora se<br />
conseguirá convocar quali<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />
sísmicas para os fados que se<br />
seguem. Gonçalo Frota<br />
Clássica<br />
O sonho do<br />
virtuoso<br />
Como num pesa<strong>de</strong>lo, os<br />
estudos <strong>de</strong> referência<br />
do repertório pianístico<br />
misturam-se revelando uma<br />
espécie <strong>de</strong> subconsciente<br />
colectivo do virtuoso.<br />
Rui Pereira<br />
Marc-André Hamelin<br />
Obras para piano solo<br />
Marc-André Hamelin, piano<br />
Hyperíon CDA 67789<br />
mmmmn<br />
Marc-André<br />
Hamelin é um dos<br />
gran<strong>de</strong>s pianistas <strong>da</strong><br />
actuali<strong>da</strong><strong>de</strong>, um<br />
monstro do<br />
virtuosismo. O seu<br />
repertório tem abor<strong>da</strong>do peças<br />
me<strong>nos</strong> conheci<strong>da</strong>s do gran<strong>de</strong><br />
público, revelando obras-primas<br />
envoltas numa aura <strong>de</strong> gran<strong>de</strong><br />
dificul<strong>da</strong><strong>de</strong> técnica. Em recital, inclui<br />
regularmente obras originais ou<br />
arranjos seus prosseguindo a tradição<br />
romântica do compositor-intérprete<br />
na linha <strong>de</strong> Liszt ou Chopin. Mas, ao<br />
contrário <strong>de</strong>stes gran<strong>de</strong>s<br />
compositores que viveram num<br />
tempo em que as duas activi<strong>da</strong><strong>de</strong>s,<br />
compositor e intérprete, ain<strong>da</strong> não se<br />
distinguiam e, até mesmo, se<br />
confundiam, Hamelin vive num<br />
tempo em que poucos são os<br />
compositores que interpretam as<br />
suas obras. A própria atitu<strong>de</strong><br />
compositiva <strong>de</strong> Hamelin é muito<br />
diferente <strong>da</strong> maior parte dos seus<br />
pares, visto que as suas obras partem<br />
<strong>da</strong> sua experiência como intérprete<br />
<strong>de</strong> um repertório marca<strong>da</strong>mente<br />
Romântico. Dessa forma, as suas<br />
obras não têm qualquer preocupação<br />
em afirmar uma linguagem <strong>de</strong><br />
contemporanei<strong>da</strong><strong>de</strong> e são cria<strong>da</strong>s a<br />
partir <strong>de</strong> fortes referências do<br />
repertório oitocentista. É nesse<br />
registo, muito mais próximo <strong>da</strong><br />
transcrição, que <strong>de</strong>vem ser avalia<strong>da</strong>s.<br />
O próprio nome dos seus 12 estudos,<br />
que agora apresenta em disco numa<br />
interpretação absolutamente<br />
estonteante, remete-<strong>nos</strong> para o<br />
universo <strong>da</strong> tonali<strong>da</strong><strong>de</strong> e para o<br />
registo <strong>de</strong> múltiplas homenagens a<br />
compositores do passado.<br />
Chopin, Paganini, Liszt,<br />
Tchaikovsky, Schubert ou Rossini<br />
aparecem em referências quase<br />
<strong>de</strong>moníacas perante a dificul<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
transcen<strong>de</strong>nte dos estudos. Gabe-se a<br />
clareza <strong>da</strong> escrita pianística que <strong>nos</strong><br />
revela uma <strong>de</strong>streza absoluta e um<br />
domínio do teclado como poucos<br />
compositores terão alcançado.<br />
Alguns rasgos <strong>de</strong> invenção rítmica e<br />
influências <strong>de</strong> música popular<br />
permitem vislumbrar alguma<br />
actuali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> uma música que<br />
quase po<strong>de</strong>ria ser escrita no final do<br />
século XIX ou início do século XX<br />
mas que irá conquistar os<br />
melóma<strong>nos</strong> que encontram neste<br />
disco uma espécie <strong>de</strong> repertório i<strong>de</strong>al<br />
para o encore perfeito após um<br />
recital <strong>de</strong> piano. Resta saber se<br />
Hamelin ficará para a história como<br />
compositor. Penso que não.<br />
40 • Sexta-feira 1 Abril 2011 • Ípsilon
Concertos<br />
AGENDA CULTURAL FNAC<br />
entra<strong>da</strong> livre<br />
AO VIVO<br />
THE GIFT<br />
03.04. 15H00 FNAC ALMADA<br />
Todos os eventos culturais FNAC em http://cultura.fnac.pt<br />
Sara Serpa tem novo álbum, “Mobile”<br />
Jazz<br />
Viajar <strong>nos</strong><br />
labirintos <strong>da</strong><br />
voz<br />
As maiores expectativas<br />
para a apresentação <strong>de</strong> Sara<br />
Serpa. Rodrigo Amado<br />
Sara Serpa Quinteto<br />
Com Sara Serpa (voz), André Matos<br />
(guitarra), Masa Kamaguchi<br />
(contrabaixo), Kris Davis (piano),<br />
Tommy Crane (bateria).<br />
Porto. Casa <strong>da</strong> Música. Pç. Mouzinho <strong>de</strong><br />
Albuquerque. 3ª às 19h30. Tel.: 220120220. €7,50<br />
(sujeito a <strong>de</strong>sconto). Jantar-concerto: €22,50. Na<br />
Sala 2.<br />
Ciclo Jazz Galp. Apresentação <strong>de</strong><br />
“Praia”.<br />
Sara Serpa tem novo álbum,<br />
“Mobile”, acabado <strong>de</strong> editar na Inner<br />
Circle, label dirigi<strong>da</strong> pelo saxofonista<br />
Greg Osby, músico com o qual<br />
mantém uma longa colaboração,<br />
participando mesmo em alguns dos<br />
seus projectos. Suce<strong>de</strong>ndo-se a<br />
“Camera Obscura”, notável registo<br />
em duo com Ran Blake, consi<strong>de</strong>rado<br />
por nós um dos melhores do ano<br />
passado, “Mobile” promete reafirmar<br />
Serpa como uma <strong>da</strong>s mais<br />
interessantes vocalistas <strong>da</strong><br />
actuali<strong>da</strong><strong>de</strong>. Inspirando-se na leitura<br />
<strong>de</strong> clássicos <strong>de</strong> viagem, <strong>de</strong> autores<br />
como John Steinbeck, V.S. Naipaul ou<br />
Ryzard Kapuscinki, e reflectindo uma<br />
enorme paixão pelo contar <strong>de</strong> uma<br />
história, Serpa constrói um álbum<br />
que é uma narrativa imaginária,<br />
repleta <strong>de</strong> mistério e aventura - o<br />
contexto perfeito para as suas<br />
imaginativas explorações vocais.<br />
Fazendo-se acompanhar por<br />
quatro excelentes músicos - André<br />
Matos na guitarra, Kris Davis no<br />
piano, Masa Kamaguchi no<br />
Último<br />
concerto<br />
contrabaixo e Tommy Crane na<br />
bateria – Serpa apresenta o novo<br />
álbum na Festa do Jazz do São Luiz e<br />
na Casa <strong>da</strong> Música. As maiores<br />
expectativas para dois concertos a<br />
não per<strong>de</strong>r.<br />
Pop<br />
P’ra meni<strong>nos</strong> e p’ra<br />
gente cresci<strong>da</strong><br />
Agora é a sério. Os LCD<br />
Soundsystem <strong>da</strong>rão<br />
o seu último concerto<br />
amanhã, no Madison<br />
Square Gar<strong>de</strong>n, em Nova<br />
Iorque. Na primeira<br />
parte estarão os Liquid<br />
Liquid, a influente<br />
ban<strong>da</strong> do pós-punk <strong>da</strong><br />
Big Apple. A distância é<br />
gran<strong>de</strong> e os bilhetes estão<br />
esgotados, mas o mundo<br />
B Facha<strong>da</strong> é P’ra Meni<strong>nos</strong><br />
Com B Facha<strong>da</strong> (voz; guitarras e<br />
teclados), Francisca Cortesão<br />
(guitarras e voz), Martim<br />
(contrabaixo e voz), Mariana<br />
(bateria e percussão).<br />
Lisboa. Teatro Municipal Maria Matos. Av. Frei<br />
Miguel Contreiras, 52. 2ª e Dom. às 22h00.Sáb. e<br />
Dom. às 16h00 (crianças e famílias). Tel.: 218438801.<br />
Sessões 16h: €5 (adulto); €2,50 (criança). Sessão<br />
22h: €12 (sujeito a <strong>de</strong>sconto). Na Sala Principal.<br />
B Facha<strong>da</strong> “É P’ra Meni<strong>nos</strong>”. Assim<br />
reza a capa do último álbum <strong>de</strong><br />
Facha<strong>da</strong>, e assim o veremos no Maria<br />
Matos, em Lisboa, numa saga <strong>de</strong><br />
cinco concertos com início marcado<br />
para a tar<strong>de</strong> <strong>de</strong> amanhã. “É P’ra<br />
Meni<strong>nos</strong>” é o álbum em que a<br />
morali<strong>da</strong><strong>de</strong> (“a” gran<strong>de</strong> questão na<br />
música do autor <strong>de</strong> “Há Festa na<br />
Moradia) é trata<strong>da</strong> <strong>de</strong> forma mais<br />
<strong>de</strong>clara<strong>da</strong>. Um álbum <strong>de</strong> ban<strong>da</strong>, o<br />
primeiro <strong>da</strong> sua ain<strong>da</strong> curta mas<br />
muito produtiva carreira, em que<br />
surge acompanhado <strong>de</strong> baixo e<br />
bateria e em que as canções se<br />
suce<strong>de</strong>m como se<br />
<strong>de</strong> uma<br />
caixinha <strong>de</strong><br />
música se<br />
tratasse, ora<br />
em modo<br />
À tar<strong>de</strong> para meni<strong>nos</strong>,<br />
à noite galga-se a faixa etária<br />
não vai per<strong>de</strong>r o concerto,<br />
marcado para as 20h<br />
<strong>de</strong> Nova Iorque, 15h em<br />
Portugal Continental. O<br />
site Pitchfork vai<br />
transmitir em<br />
exclusivo as três<br />
horas <strong>de</strong> música<br />
que os LCD<br />
prometeram - e<br />
já avisou que não<br />
irá repeti-las.<br />
provocador/brincalhão, ora<br />
melancólico.<br />
“É P’ra Meni<strong>nos</strong>”, ciclo <strong>de</strong> canções<br />
que começa com sopa na mesa <strong>da</strong><br />
criança e que segue a criança que<br />
cresce até chegarem as <strong>de</strong>silusões a<br />
que vi<strong>da</strong> obriga, não ensina<br />
morali<strong>da</strong><strong>de</strong>zinhas <strong>de</strong> pacotilha. “Tó-<br />
Zé tu tem cui<strong>da</strong>do / Não sejas pau<br />
man<strong>da</strong>do”, eis o mote para um<br />
álbum que as crianças po<strong>de</strong>m cantar<br />
e com que os adultos apren<strong>de</strong>m um<br />
par <strong>de</strong> coisas nas artes <strong>da</strong> educação<br />
dos futuros alicerces <strong>da</strong> nação.<br />
No Maria Matos teremos, na tar<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> Sábado e Domingo, dois concertos<br />
<strong>de</strong> trinta e cinco minutos para<br />
crianças, <strong>de</strong>vi<strong>da</strong>mente cenografados.<br />
À noite, galgar-se-ão faixas etárias e B<br />
Facha<strong>da</strong> subirá a palco na companhia<br />
<strong>de</strong> Martim e Mariana, o<br />
contrabaixista e a baterista que o<br />
acompanharam na gravação do<br />
disco, e com as convi<strong>da</strong><strong>da</strong>s Francisca<br />
Cortesão (Minta) e Lula Pena, duas<br />
vozes que colaboraram em “É P’ra<br />
Meni<strong>nos</strong>”.<br />
A eleva<strong>da</strong> procura <strong>de</strong> bilhetes<br />
levou entretanto à marcação <strong>de</strong> uma<br />
<strong>da</strong>ta extra. Para além dos concertos<br />
noctur<strong>nos</strong> <strong>de</strong> Sábado e Domingo, foi<br />
marcado outro para segun<strong>da</strong>. Para<br />
adultos. M.L.<br />
O Brasil do frio<br />
também aquece<br />
Vitor Ramil<br />
Com Vitor Ramil (voz e violão).<br />
Lisboa. Culturgest. Rua Arco do Cego - Edifício Se<strong>de</strong><br />
<strong>da</strong> CGD. 2ª às 21h30. Tel.: 217905155. €15 (sujeito a<br />
<strong>de</strong>sconto). No Gran<strong>de</strong> Auditório. M/12.<br />
Apresentação <strong>de</strong> “Délibád”.<br />
Quem vir o novo trabalho <strong>de</strong> Vitor<br />
Ramil po<strong>de</strong> pensar que ele só<br />
trabalha com anagramas. Depois <strong>de</strong><br />
“Satolep Sambatown”, que<br />
apresentou em Portugal em 2009,<br />
surge agora com “Délibáb”,<br />
consi<strong>de</strong>rado no Brasil como um dos<br />
melhores espectáculos <strong>de</strong> 2010. Mas<br />
não é ver<strong>da</strong><strong>de</strong>: “Satolep” é o nome <strong>da</strong><br />
ci<strong>da</strong><strong>de</strong> on<strong>de</strong> ele nasceu em 1962<br />
(Pelotas, no Rio Gran<strong>de</strong> do Sul) mas<br />
escrito ao contrário; e “Délibáb” é<br />
uma palavra húngara que o fascinou,<br />
como ele explica ao Ípsilon:<br />
“Encontrei-a numa<br />
enciclopédia<br />
organiza<strong>da</strong><br />
pelo<br />
Ernesto<br />
Sábato. O<br />
Vitor Ramil: o Brasil<br />
frio vai mostrar<br />
que também aquece<br />
que é? É uma miragem que ocorre na<br />
planície húngara. Ele diz: imagine um<br />
trem no horizonte mas sem ruídos <strong>da</strong><br />
máquinas, sem trilhos. Porque ele<br />
está a 100 quilómetros <strong>da</strong>li, foi<br />
arrastado pelo délibáb, um fenómeno<br />
óptico”. De viagem por Bu<strong>da</strong>peste,<br />
ele encontrou essa mesma palavra<br />
numa rua, num hotel. Mais tar<strong>de</strong>, já<br />
no Brasil, quando procurava um<br />
nome para o seu novo disco, achou<br />
“délibáb” a<strong>de</strong>quado. Porque o disco é<br />
feito <strong>de</strong> milongas compostas por ele a<br />
partir <strong>de</strong> milongas-poemas <strong>de</strong> Jorge<br />
Luis Borges (1899-1986) e <strong>de</strong> um<br />
poeta brasileiro seu contemporâneo,<br />
João <strong>da</strong> Cunha Vargas (1900-1980) e<br />
isso, na cabeça <strong>de</strong> Ramil, configura<br />
também “um jogo <strong>de</strong> espelhos”. Mas<br />
sempre no universo gaúcho, o Brasil<br />
do Sul e a Argentina. “Para<br />
completar, eu fiz uma análise<br />
etimológica <strong>da</strong> palavra e <strong>de</strong>scobri que<br />
‘báb’ significa ilusão e ‘déli’ significa<br />
do sul. E o sul que eu estou pensando<br />
neste trabalho é o sul do meu<br />
imaginário.” Nos a<strong>nos</strong> 90, ele tinhase<br />
<strong>da</strong>do conta <strong>de</strong> que to<strong>da</strong> a gente<br />
falava do Brasil como lugar <strong>de</strong> calor,<br />
quando no sul on<strong>de</strong> ele nasceu há<br />
neblina, neve. “Dei-me conta que<br />
havia uma estética que unia o Brasil<br />
do calor, tropical, com essa música<br />
<strong>de</strong> festa, <strong>de</strong> rua, <strong>de</strong> alegria. Aí eu<br />
pensei que não havia uma estética do<br />
frio, que falasse <strong>de</strong> nós.” Os poemas<br />
<strong>de</strong> Borges, “homem <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong> que<br />
escreveu sobre o campo”, e <strong>de</strong><br />
Vargas, “homem do campo que usava<br />
o linguajar próprio do lugar”, ambos<br />
gaúchos, unem-se por isso na<br />
milonga, “um género intimista,<br />
reflexivo”. Hoje, na voz e no violão <strong>de</strong><br />
Vitor Ramil, o Brasil do frio vai<br />
mostrar que também aquece. Nuno<br />
Pacheco<br />
To<strong>da</strong> uma outra<br />
“ópera” com Rene<br />
Hell<br />
Rene Hell<br />
Lisboa. Galeria Zé dos Bois. Rua <strong>da</strong> Barroca, 59 –<br />
Bairro Alto. Hoje às 23h. Tel.: 213430205. 8€.<br />
Clubbing: Roy Ayers<br />
Porto. Casa <strong>da</strong> Música. Pç. Mouzinho <strong>de</strong><br />
Albuquerque. Sáb. às 22h30. Tel.: 220120220. €10.<br />
Na Sala Suggia.<br />
Sala 2: Plastician, MC Nomad, Link,<br />
Shaolin Temple Defen<strong>de</strong>rs.<br />
Cybermusica: Álvaro Costa, Tiago<br />
Sousa Trio, Rene Hell. Bares 1 e 2:<br />
Pedro Santos. Restaurante: A<strong>da</strong>m<br />
Ficek, Aeroplane.<br />
Ouvimos Rene Hell e é como se a<br />
vertigem exploratória <strong>de</strong> criadores<br />
entregues a drones e à composição<br />
solitária, concretiza<strong>da</strong> em paisagem<br />
electrónica ou em sintetizadores<br />
analógicos, ganhasse uma dimensão<br />
orquestral. Porque Hell procura um<br />
sentido para o som, procura dirigi-lo<br />
em vez <strong>de</strong> se per<strong>de</strong>r livremente <strong>nos</strong><br />
caminhos que este aponta.<br />
Ípsilon • Sexta-feira 1 Abril 2011 • 41
Concertos<br />
Quintafeira<br />
As Pocahaunted eram<br />
duas xamãs arma<strong>da</strong>s <strong>de</strong><br />
loops, sintetizadores e<br />
vozes evanescentes.<br />
Beth Consentino<br />
saiu e formou os<br />
Best Coast que todos<br />
conhecemos. Diva<br />
Bompé, simplesmente<br />
Diva no percurso<br />
a solo, continua<br />
a oferecer-<strong>nos</strong> uma<br />
visão caleidoscópica<br />
e electrónica <strong>de</strong><br />
psica<strong>de</strong>lismo, agora<br />
mais íntima e me<strong>nos</strong><br />
xamânica, ain<strong>da</strong> mágica.<br />
Depois <strong>de</strong> uma digressão<br />
com Os Mutantes e Ariel<br />
Pink, chega ao Lounge,<br />
em Lisboa, na próxima<br />
quinta-feira.<br />
Rene Hell é o nome artístico <strong>de</strong><br />
Jeff Witshcher, homem atarefado que<br />
se foi distinguindo no un<strong>de</strong>rground<br />
americano pelas várias edições em<br />
cassete que lança enquanto Secret<br />
Abuse, Abelar Scout ou Marble Sky.<br />
Colocado ao lado <strong>de</strong> outros estetas<br />
sonoros contemporâneos como os<br />
Emeralds ou Oneothrix Point Never,<br />
editou o ano passado o seu primeiro<br />
disco, “Porcelain Opera”. É esse que<br />
apresentará na ZDB, esta noite, e<br />
amanhã na Casa <strong>da</strong> Música, no Porto,<br />
incluído no Clubbing que terá como<br />
cabeça <strong>de</strong> cartaz a len<strong>da</strong> funk jazz<br />
Roy Ayers e on<strong>de</strong> assistiremos a<br />
concertos <strong>de</strong> Tiago Sousa ou Link.<br />
“Porcelain Opera” é um álbum<br />
on<strong>de</strong> a noção <strong>de</strong> viagem, tão cara por<br />
exemplo a Klaus Schulze, <strong>de</strong> quem<br />
<strong>nos</strong> recor<strong>da</strong>mos ao ouvi-lo, se<br />
concretiza com uma exigente atenção<br />
ao pormenor e com um sentido <strong>de</strong><br />
cenografia – as vozes processa<strong>da</strong>s, as<br />
bati<strong>da</strong>s que assaltam<br />
esporadicamente a paisagem <strong>de</strong><br />
loops e sintetizadores – tão<br />
envolvente quanto fantasmagórico.<br />
Na ZDB, a primeira parte do<br />
concerto tem como protagonistas<br />
Luís Lopes e Filipe Felizardo. “Place<br />
Your Bets And Pray For Blood”: duas<br />
telas on<strong>de</strong> são projecta<strong>da</strong>s imagens<br />
monta<strong>da</strong>s a partir <strong>de</strong> DVDs <strong>de</strong><br />
campeonatos <strong>de</strong> lutas <strong>de</strong> grilos na<br />
China (por António Júlio Duarte e<br />
Filipe Felizardo), e, à sua frente,<br />
outro tipo <strong>de</strong> combate – o <strong>de</strong> duas<br />
guitarras que marcaram duelo para a<br />
noite <strong>de</strong> 1 Abril. M.L.<br />
Clássica<br />
Espirituali<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />
barrocas e<br />
contemporâneas<br />
A música <strong>de</strong> Vivaldi,<br />
Ferrandini e Alexandre<br />
Delgado pela soprano Maria<br />
Bayo. Cristina Fernan<strong>de</strong>s<br />
Maria Bayo (soprano)<br />
Divino Sospiro<br />
Massimo Mazzeo (direção)<br />
Obras <strong>de</strong> Vivaldi, Ferrandini e<br />
Alexandre Delgado<br />
Santiago do Cacém, Igreja Matriz, dia 2, às 21h30.<br />
A soprano espanhola Maria Bayo e a<br />
orquestra barroca Divino Sospiro,<br />
sob a direcção <strong>de</strong> Massimo Mazzeo,<br />
abrem amanhã (às 21h30, na Igreja<br />
Matriz <strong>de</strong> Santiago <strong>de</strong> Cacém), a 7ª<br />
edição do Festival <strong>de</strong> Música Sacra do<br />
Baixo Alentejo - Terras sem Sombra,<br />
uma iniciativa do Departamento do<br />
Património Histórico e Artístico <strong>da</strong><br />
A soprano Maria Bayo<br />
Diocese <strong>de</strong> Beja, que preten<strong>de</strong><br />
combinar a música com a<br />
dinamização do património edificado<br />
e com acções <strong>de</strong> preservação <strong>da</strong><br />
biodiversi<strong>da</strong><strong>de</strong>. A programação <strong>de</strong>ste<br />
ano, intitula<strong>da</strong> “Peregrinação Interior<br />
– Momentos <strong>da</strong> Espirituali<strong>da</strong><strong>de</strong> na<br />
Música Oci<strong>de</strong>ntal (Séculos XVII-<br />
XXI)”, é a primeira assina<strong>da</strong> por<br />
Paolo Pinamonti, que suce<strong>de</strong> à<br />
produtora Arte <strong>da</strong>s Musas na<br />
direcção artística. O diálogo com a<br />
contemporanei<strong>da</strong><strong>de</strong> será uma marca<br />
distintiva <strong>da</strong> maior parte <strong>da</strong>s<br />
propostas que vão ter lugar entre 2<br />
<strong>de</strong> Abril e 9 <strong>de</strong> Junho nas locali<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />
<strong>de</strong> Santiago do Cacém, Almodôvar,<br />
Grândola, Beja, Vila <strong>de</strong> Fra<strong>de</strong>s e<br />
Castro Ver<strong>de</strong> com intérpretes como o<br />
cravista Pierre Hantaï, os pianistas<br />
Miguel Borges Coelho e Marta<br />
Zabaleta, a violoncelista Irene Lima<br />
ou o Coro <strong>da</strong> Arena <strong>de</strong> Verona.<br />
Na abertura, páginas barrocas <strong>de</strong><br />
Vivaldi e Giovanni Ferrandini<br />
alternam com a estreia absoluta <strong>de</strong><br />
“Peregrinação Interior: Cinco<br />
Sonetos Quinhentistas”, <strong>de</strong><br />
Alexandre Delgado, uma encomen<strong>da</strong><br />
do festival. Por ocasião <strong>da</strong><br />
apresentação do programa, o<br />
compositor (que também irá actuar<br />
como violetista na peça “Rothko<br />
Chapel”, <strong>de</strong> Morton Feldman a 30 <strong>de</strong><br />
Abril) sublinhou o facto <strong>de</strong> apenas<br />
um dos Sonetos ser <strong>de</strong> Camões e <strong>de</strong><br />
ter apostado em autores como<br />
António Ferreira, D. Manuel <strong>de</strong><br />
Portugal e Antonio Rodrigues <strong>de</strong><br />
Castro, bem como “a honra <strong>de</strong><br />
escrever para uma cantora como<br />
Maria Bayo”. A soprano, cuja<br />
importante carreira internacional<br />
inclui repertório operático <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o<br />
Barroco ao século XX e a recuperação<br />
<strong>de</strong> muitas páginas esqueci<strong>da</strong>s <strong>da</strong><br />
música espanhola, interpreta<br />
também a cantata “Il Pianto di<br />
Maria”, durante muitos a<strong>nos</strong><br />
atribuí<strong>da</strong> a Han<strong>de</strong>l, mas na reali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
<strong>da</strong> autoria do veneziano Giovanni<br />
Ferrandini (c. 1710-1791). Trata-se <strong>de</strong><br />
uma obra marca<strong>da</strong> pelo dramatismo<br />
e pela espirituali<strong>da</strong><strong>de</strong> e por uma forte<br />
relação texto-música. A Sonata e a<br />
Sinfonia “Al Sancto Sepolcro” (RV 130<br />
e RV 169) antecipam a atmosfera<br />
pungente <strong>da</strong> peça <strong>de</strong> Ferrandini, a<br />
qual constitui uma a<strong>da</strong>ptação livre <strong>da</strong><br />
temática do “Stabat Mater”.<br />
Agen<strong>da</strong><br />
sexta 1<br />
Cristina Branco<br />
Santarém. Teatro Municipal Sá <strong>da</strong> Ban<strong>de</strong>ira. R.<br />
João Afonso, 7/9. 6ª às 21h30. Tel.: 243309460. €15.<br />
Apresentação <strong>de</strong> “Não Há Só Tangos<br />
em Paris”.<br />
9.ª Festa do Jazz do São Luiz<br />
- Dia 1<br />
Lisboa. Teatro Municipal <strong>de</strong> S. Luiz. R. Antº Maria<br />
Cardoso, 38-58. 6ª às 21h30. Tel.: 213257650.<br />
Passes: €15 (1 dia); €25 (2 dias); €30 (3 dias). Passe<br />
Júnior (6-18 a<strong>nos</strong>): €7,50 (1 dia).<br />
Sala Principal: Bernardo Sassetti<br />
Motion Trio (21h30), Maria João +<br />
Orquestra Jazz <strong>de</strong> Matosinhos (23h).<br />
Jardim <strong>de</strong> Inverno: JazzPoll NRW<br />
(00h15), Jam Session (01h).<br />
A 1 <strong>de</strong> Abril, a festa no São Luiz<br />
(Lisboa) começa com Bernardo<br />
Sassetti Trio, passa por Maria João<br />
com a Orquestra <strong>de</strong> Jazz <strong>de</strong><br />
Matosinhos, toca no colectivo<br />
Jazzpoll NRW e <strong>de</strong>sagua numa “jam<br />
session”.<br />
Dazkarieh<br />
Ton<strong>de</strong>la. Cine Tejá - Novo Ciclo ACERT. R. Dr.<br />
Ricardo Mota. 6ª às 21h45. Tel.: 232814400. €7,50<br />
(sujeito a <strong>de</strong>sconto).<br />
Apresentação <strong>de</strong> “Ruído do<br />
Silêncio”.<br />
Crookers + Zombies For Money +<br />
Cpt Luvlave + What DJ?<br />
Lisboa. The Loft. R. do Instituto Industrial, 6. 6ª às<br />
00h00. Tel.: 213964841. €20. Pré-ven<strong>da</strong>: €15. No<br />
Salão Miralago.<br />
Miss Lava + Marbles + Maize<br />
Évora. Espaço Celeiros - PéDeXumbo. R. do Eborim<br />
- Ex-Celeiros <strong>da</strong> EPAC. 6ª às 22h30. Tel.:<br />
266732504.<br />
Noiserv<br />
São João <strong>da</strong> Ma<strong>de</strong>ira. Paços <strong>da</strong> Cultura. R. 11 <strong>de</strong><br />
Outubro, 89. 6ª às 21h45. Tel.: 256827783. €8.<br />
Martina Topley-Bird<br />
Beja. Teatro Pax-Júlia. Largo São João. 6ª às 21h30.<br />
Tel.: 284315090. €5 (sujeito a <strong>de</strong>sconto).<br />
Lula Pena + The Correspon<strong>de</strong>nts<br />
Lisboa. MusicBox. R. Nova do Carvalho, 24 - Cais do<br />
Sodré. 6ª às 23h30. Tel.: 213430107. €10.<br />
sábado 2<br />
Mariza<br />
Guimarães. Pavilhão Multiusos. Alam. Ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
Lisboa. Sáb. às 22h00. Tel.: 253520300. 15€ a 35€.<br />
Apresentação <strong>de</strong> “Fado Tradicional”.<br />
Manowar<br />
Lisboa. PÇ. <strong>de</strong> Touros do Campo Pequeno. Campo<br />
Pequeno. Sáb. às 21h30. Tel.: 217820575. €39. M/16.<br />
Apresentação <strong>de</strong> “Battle Hymns<br />
2011”.<br />
Orquestra Sinfónica do<br />
Porto Casa <strong>da</strong><br />
Música<br />
Direcção Musical:<br />
Olari Elts. Com Claire<br />
Booth (soprano), o),<br />
Susan Bickley<br />
(meio-soprano). o).<br />
Porto. Casa <strong>da</strong> Música. Pç.<br />
Mouzinho <strong>de</strong> Albuquerque. uerque.<br />
Sáb. às 18h00. Tel.:<br />
220120220. €16 (sujeito a<br />
<strong>de</strong>sconto). Jantarconcerto:<br />
€30. Na Sala<br />
Suggia.<br />
EUA 2011.<br />
Obras <strong>de</strong><br />
Ives-<br />
Schumann,<br />
Chin e Tredici.<br />
Cristina Branco<br />
em Santarém<br />
Martina em digressão nacional<br />
Martina Topley-Bird<br />
Portalegre. Centro <strong>de</strong> Artes do Espectáculo. Pç. <strong>da</strong><br />
Republica, 39. Sáb. às 22h00. Tel.: 245307498. €5.<br />
No Gran<strong>de</strong> Auditório. M/4.<br />
Dazkarieh<br />
Torres Vedras. Teatro-Cine. Av. Tenente Valadim,<br />
19. Sáb. às 21h30. Tel.: 261338131. €7,50. M/5.<br />
Apresentação <strong>de</strong> “Ruído do<br />
Silêncio”.<br />
Balla<br />
Cal<strong>da</strong>s <strong>da</strong> Rainha. Centro Cultural e Congressos<br />
<strong>da</strong>s. R. Dr. Leonel Sotto Mayor. Sáb. às 21h30. Tel.:<br />
262889650. €9 a €11 (sujeito a <strong>de</strong>sconto). No Gran<strong>de</strong><br />
Auditório.<br />
Apresentação <strong>de</strong> “Equilíbrio”.<br />
9.ª Festa do Jazz do São Luiz<br />
- Dia 2<br />
Lisboa. Teatro Municipal <strong>de</strong> S. Luiz. R. Antº Maria<br />
Cardoso, 38-58. Sáb. às 16h00. Tel.: 213257650.<br />
Passes: €15 (1 dia); €25 (2 dias); €30 (3 dias). Passe<br />
Júnior (6-18 a<strong>nos</strong>): €7,50 (1 dia).<br />
Spot São Luiz: João Firmino + João<br />
Hasselberg (16h e 18h). Teatro-<br />
Estúdio Mário Viegas: Carlos Martins<br />
Trio (17h), Jeffery Davis/Nuno<br />
Ferreira Quinteto (18h), Hugo<br />
Carvalhais (19h). Sala Principal: No<br />
Project (20h), Joana Machado e Abe<br />
Rába<strong>de</strong> (21h30), L.U.M.E. - Lisbon<br />
Un<strong>de</strong>rground Music Ensemble (23h).<br />
Jardim <strong>de</strong> Inverno: Ensemble Escola<br />
<strong>de</strong> Jazz Luiz Villas-Boas/HCP (00h15),<br />
Jam Session (01h).<br />
A 2 <strong>de</strong> Abril, o São Luiz (Lisboa)<br />
<strong>de</strong>ixa-se invadir pelo jazz <strong>de</strong> No<br />
Project, Joana Machado e L.U.M.E.,<br />
entre muitos outros.<br />
Crookers + Zombies For Money +<br />
Cpt Luvlave + What DJ?<br />
Porto. Teatro Sá <strong>da</strong> Ban<strong>de</strong>ira. R. Sá <strong>da</strong> Ban<strong>de</strong>ira,<br />
108. Sáb. às 23h59. Tel.: 222003595. €20. Préven<strong>da</strong>:<br />
€15.<br />
Hipnótica<br />
Igreja. Kastrus River Klub. Av. Eng. Arantes<br />
Oliveira - Complexo <strong>da</strong>s Piscinas. Sáb.<br />
às 23h00. Tel.: 962557267. €8.<br />
The Fox<br />
Lisboa. R. dos Bacalhoeiros, 125<br />
- 2º. Sáb. às 23h00. Tel.:<br />
218864891.<br />
Apresentação <strong>de</strong><br />
“Hunting Grounds”.<br />
Direcção Musical: Martin<br />
André. Com Otto Pereira<br />
(violino).<br />
Lisboa. Teatro Nacional <strong>de</strong> São<br />
Carlos. Lg. S. Carlos, 17. Sáb. às<br />
21h00. Tel.: 213253045. €10 a<br />
€100. M/3.<br />
Obras <strong>de</strong> Nielsen,<br />
Beethoven e Sibelius.<br />
The Gift<br />
Alcabi<strong>de</strong>che. Fnac (Cascaishopping). Estr. Nacional<br />
9. Sáb. às 17h00. Tel.: 707313435. Grátis.<br />
Apresentação <strong>de</strong> “Explo<strong>de</strong>”.<br />
domingo 3<br />
Concertos Promena<strong>de</strong>: As Bo<strong>da</strong>s<br />
<strong>de</strong> Fígaro, <strong>de</strong> Mozart<br />
Com Orquestra do Norte.<br />
Porto. Coliseu. R. Passos Manuel, 137. Dom. às<br />
11h30. Tel.: 223394947. €5 a €10 (sujeito a<br />
<strong>de</strong>sconto). M/3.<br />
Ciclo Concertos Promena<strong>de</strong> Caixa<br />
Geral <strong>de</strong> Depósitos. Duração: 1h30.<br />
9.ª Festa do Jazz do São Luiz<br />
- Dia 3<br />
Lisboa. Teatro Municipal <strong>de</strong> S. Luiz. R. Antº Maria<br />
Cardoso, 38-58. Dom. às 16h00. Tel.: 213257650.<br />
Passes: €15 (1 dia); €25 (2 dias); €30 (3 dias). Passe<br />
Júnior (6-18 a<strong>nos</strong>): €7,50 (1 dia).<br />
Spot São Luiz: Guto Lucena + Luís<br />
Ruvina (16h e 18h). Teatro-Estúdio<br />
Mário Viegas: Miguel Amado Group<br />
(17h), TGB (18h), Rodrigo Amado<br />
Motion Trio (19h). Sala Principal:<br />
Mário Laginha Trio (20h), Sara Serpa<br />
(21h), Nelson Cascais (23h). Jardim <strong>de</strong><br />
Inverno: Ensemble ESMAE 2010<br />
(00h15), Jam Session (01h).<br />
Martina Topley-Bird<br />
Alcobaça. Cine-Teatro. R. Afonso <strong>de</strong> Albuquerque.<br />
Dom. às 21h30. Tel.: 262580890. €7,50 a €10. No<br />
Gran<strong>de</strong> Auditório. M/12.<br />
terça 5<br />
Artur Pizarro<br />
Lisboa. CCB. Pç. do Império - Fun<strong>da</strong>ção Centro<br />
Cultural <strong>de</strong> Belém. 3ª às 21h00. Tel.: 213612400.<br />
€12,50 (sujeito a <strong>de</strong>sconto). No Pequeno Auditório.<br />
M/12.<br />
Obras <strong>de</strong> Chopin.<br />
quarta 6<br />
Quarteto Vianna <strong>da</strong> Motta<br />
Com Xuan Du (violino), João Paulo<br />
Santos (violino). Com António<br />
Figueiredo (violino), Witold Dziuba<br />
(violino), Hugo Diogo (viola), Irene<br />
Lima (violoncelo).<br />
Lisboa. Teatro Nacional <strong>de</strong> São Carlos. Lg. S.<br />
Carlos, 17. 4ª às 18h00. Tel.: 213253045. Grátis. No<br />
Foyer. M/3.<br />
Música Francesa I - obras <strong>de</strong><br />
Chausson e Debussy.<br />
WTF (What Tha Funk)<br />
Lisboa. On<strong>da</strong> Jazz. Arco <strong>de</strong> Jesus, 7 - ao Campo <strong>da</strong>s<br />
Cebolas. 4ª às 22h30. Tel.: 919184867. Grátis.<br />
quinta 7<br />
Sequeira Costa e Orquestra<br />
Gulbenkian<br />
Lisboa. Fun<strong>da</strong>ção e Museu Calouste Gulbenkian.<br />
Av. <strong>de</strong> Berna, 45A. 5ª às 21h00.6ª às 19h00. Tel.:<br />
217823000. €10 a €20. No Gran<strong>de</strong> Auditório.<br />
Obras <strong>de</strong> Salonen, Rachmaninov e<br />
Bartók.<br />
Ruben Alves + Philip Hamilton<br />
Lisboa. CCB. Pç. do Império - Fun<strong>da</strong>ção Centro<br />
Cultural <strong>de</strong> Belém. 5ª às 22h00. Tel.: 213612400.<br />
Grátis. Na recepção do Centro <strong>de</strong> Reuniões. M/12.<br />
Dose Dupla - Duos <strong>de</strong> Jazz.<br />
Camané<br />
Braga. Theatro Circo. Av. Liber<strong>da</strong><strong>de</strong>, 697. 5ª às<br />
21h30. Tel.: 253203800. €12,50 a €15. Na Sala<br />
Principal. M/6.<br />
Apresentação <strong>de</strong> “Do Amor e dos<br />
Dias”.<br />
Diva<br />
Lisboa. Lounge. R. Moe<strong>da</strong>, 1. 5ª às 23h00. Tel.:<br />
213953204. Grátis.<br />
42 • Sexta-feira 1 Abril 2011 • Ípsilon
Expos<br />
É a África<br />
que envolve e<br />
assombra José<br />
Pedro Cortes<br />
Distância<br />
sem<br />
distanciamento<br />
Em “Moi, un blanc”,<br />
admirável exposição, não é o<br />
gesto do documentarista que<br />
norteia o olhar <strong>de</strong> José Pedro<br />
Cortes. Mas a ficção inquieta,<br />
quase abstracta,<br />
<strong>de</strong> África. José Marmeleira<br />
Moi, un blanc<br />
José Pedro Cortes<br />
Módulo, Calça<strong>da</strong> dos Mestres 34 A/B Lisboa<br />
mmmmn<br />
Formado na Ar.Co, com um mestrado<br />
em fotografia no Kent Institute of Art<br />
and Design (Inglaterra), José Pedro<br />
Cortes é um artista com um percurso<br />
tão reservado quanto impressivo.<br />
Expõe individualmente <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 2005,<br />
gere ao lado <strong>de</strong> André Príncipe uma<br />
respeitosa editora <strong>de</strong> livros <strong>de</strong><br />
fotografia (a Pierre von Kleist editions)<br />
e tem apresentado sobre papel ou nas<br />
pare<strong>de</strong>s belíssimas séries <strong>de</strong> trabalhos<br />
como “Silence” (2006), “Like a empty<br />
yard” (2008) ou “Things here and<br />
things still to come”.<br />
A sua obra é habita<strong>da</strong> por<br />
personagens, situações, lugares,<br />
dispostas numa tensão romântica<br />
entre público e privado, interior e<br />
exterior, paisagem e retrato; tensão<br />
que vai <strong>de</strong>socultando a natureza<br />
<strong>de</strong>spercebi<strong>da</strong> <strong>da</strong>s coisas, <strong>de</strong>rramando<br />
sentidos. Sobre uma qualquer ci<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
europeia, um grupo <strong>de</strong> raparigas<br />
americanas a viver em Israel, um<br />
casal <strong>de</strong> namorados, um quarto <strong>de</strong><br />
uma casa ou uma sombra.<br />
“Moi un Blanc”, a mais recente<br />
exposição individual, não se afasta<br />
<strong>de</strong>ssa tensão (que o encontro com o<br />
real anima), e <strong>de</strong>ixa – a começar pelo<br />
título – adivinhar novas imagens.<br />
Cortes afastou-se (momentaneamente?)<br />
do retrato <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> urbana<br />
oci<strong>de</strong>ntal, <strong>de</strong> figuras que lhe eram<br />
próximas ou familiares (ou que assim<br />
se tornavam diante <strong>da</strong> sua câmara<br />
fotográfica), como acontecia nessas<br />
séries, e entrou no Mali, África. Para<br />
trás, ficaram as cores frias, os azuis<br />
pálidos e noctur<strong>nos</strong>, certa intrusão<br />
comovente (que lembrava <strong>de</strong> uma só<br />
vez Goldin, Richard Billingham e<br />
Wolfgang Tillmans). Tinha à espera<br />
Jean Rouch e Malik Sidibé.<br />
São as imagens do cineasta francês<br />
e do artista do Mali que “Moi un<br />
Blanc” evoca. Vê-se a cor satura<strong>da</strong> do<br />
céu, pressente-se vibração ditosa dos<br />
corpos. E aqui e ali, imaginam-se<br />
homens e mulheres retratados por<br />
Sidibé. Mas logo se percebe que<br />
sujeito principal não é o Mali. Não é o<br />
impulso do documentarista ou do<br />
etnógrafo que guia o gesto <strong>de</strong> José<br />
Pedro Cortes.<br />
Há uma distância que o título<br />
sugere. É <strong>de</strong>la que proce<strong>de</strong>m as<br />
formas que criam a estranheza, a<br />
ficção inquieta <strong>da</strong>s imagens. Um<br />
corpo que se confun<strong>de</strong> com a<br />
superfície <strong>de</strong> um muro, outro corpo<br />
que parece ter perdido a cabeça, um<br />
rosto que se escon<strong>de</strong> <strong>da</strong> objectiva. E<br />
por vezes, nem os corpos se dignam a<br />
aparecer, como na fotografia do<br />
estúdio <strong>de</strong> Sidibé, on<strong>de</strong> vemos apenas<br />
uma ca<strong>de</strong>ira sem retratado (como<br />
uma tela ou fresco vazio), ou a entra<strong>da</strong><br />
<strong>de</strong> um quarto parcialmente <strong>de</strong>svela<strong>da</strong><br />
pelo sopro <strong>de</strong> uma ventoinha. Através<br />
<strong>de</strong> um tríptico, a paisagem também<br />
faz parte <strong>de</strong> “Moi un Blanc”:<br />
superfícies rochosas <strong>de</strong> escarpas,<br />
grutas, “esculturas” monumentais.<br />
Outras fotografias insinuam possíveis<br />
“mise en abimes” (uma face pinta<strong>da</strong><br />
sobre chapa, feli<strong>nos</strong> estampado numa<br />
camisa <strong>de</strong> um homem).<br />
Não significa esta distância (a do<br />
artista face ao seu objecto) um<br />
distanciamento. Porque é a África<br />
que envolve e assombra José Pedro<br />
Cortes. E “Moi un Blanc”, embora<br />
passível <strong>de</strong> ser compreendi<strong>da</strong> na sua<br />
condição mais fragmenta<strong>da</strong> (foto a<br />
foto), é também um conjunto <strong>de</strong><br />
imagens que entrelaça narrativas. Há<br />
um homem que olha para uma<br />
mulher, um casal à beira <strong>da</strong> praia, um<br />
homem numa estra<strong>da</strong>.<br />
aMaumMedíocremmRazoávelmmmBommmmmMuito BommmmmmExcelente<br />
Agen<strong>da</strong><br />
Inauguram<br />
Stones To Throw<br />
De Ahmet Öðüt.<br />
Lisboa. Kunsthalle Lissabon.<br />
R. Rosa Araújo, 7-9. Tel.: 918156919.<br />
De 01/04 a 14/05. 5ª a Sáb. <strong>da</strong>s 15h às 19h.<br />
Inaugura hoje às 22h.<br />
Instalação.<br />
Ver texto na pág. 28<br />
Continuam<br />
Fora <strong>de</strong> Escala - Desenho<br />
e Escultura 1960-70.<br />
De Manuel Baptista.<br />
Lisboa. Museu <strong>da</strong> Electrici<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />
Av. Brasília. T. 210028190.<br />
Até 15/5. 3ª a Dom <strong>da</strong>s 10h às 18h.<br />
Desenho, Escultura.<br />
Escrever Paisagem: Manuel<br />
Baptista - Desenhos 1960-1970<br />
Lisboa. Fun<strong>da</strong>ção Carmona e Costa.<br />
R. Soeiro Pereira Gomes L1 - 6º A/C/D.<br />
Tel.: 217803003. Até 28/05. 4ª a Sáb.<br />
<strong>da</strong>s 15h às 20h.<br />
Desenho.<br />
Snøhetta - Arquitectura -<br />
Paisagem - Interiores.<br />
Lisboa. Museu <strong>da</strong> Electrici<strong>da</strong><strong>de</strong>. Av. Brasília.<br />
T. 210028190. Até 24/4. 3ª a Dom <strong>da</strong>s 10h às 18h.<br />
Arquitectura, Outros.<br />
BES Photo 2010<br />
De Carlos Lobo, Kiluanji Kia Hen<strong>da</strong>,<br />
Manuela Marques, Mário Macilau,<br />
Mauro Restiffe.<br />
Lisboa. Museu Colecção Berardo.<br />
Pç. Império. Tel.: 213612878. Até 13/06. Sáb.<br />
<strong>da</strong>s 10h às 22h. Dom. a 6ª <strong>da</strong>s 10h às 19h.<br />
Fotografia.<br />
Livre Circulação - Obras<br />
<strong>da</strong> Colecção <strong>da</strong> Fun<strong>da</strong>ção<br />
<strong>de</strong> Serralves<br />
De Alberto Carneiro,<br />
Gerhard Richter, Helena Almei<strong>da</strong>,<br />
entre outros.<br />
Algés. Centro <strong>de</strong> Arte Manuel <strong>de</strong> Brito.<br />
Alam. Hermano Patrone. Tel.: 214111400.<br />
Até 30/06. 3ª a Dom. <strong>da</strong>s 11h30 às 18h.<br />
Pintura, Escultura, Desenho,<br />
Ví<strong>de</strong>o, Outros.<br />
Família<br />
De Vasco Araújo.<br />
Lisboa. Ermi<strong>da</strong> <strong>de</strong> Nossa Senhora<br />
<strong>da</strong> Conceição. Tv. Marta Pinto, 12. Tel.: 213637700.<br />
Até 15/05. 3ª a 6ª <strong>da</strong>s 11h às 17h. Sáb. e Dom.<br />
<strong>da</strong>s 14h às 18h.<br />
Desenho.<br />
1+1+1=3<br />
De Hermann Pitz, Michael Snow,<br />
Bernard Voïta.<br />
Lisboa. Culturgest. R. Arco do Cego.<br />
Tel.: 217905155. Até 08/05. 2ª, 4ª, 5ª e 6ª <strong>da</strong>s 11h<br />
às 19h. Sáb., Dom. e Feriados <strong>da</strong>s 14h às 20h.<br />
Fotografia, Ví<strong>de</strong>o.<br />
Gedi Sibony<br />
Lisboa. Culturgest. R. Arco do Cego.<br />
Tel.: 217905155. Até 08/05. 2ª, 4ª, 5ª e 6ª<br />
<strong>da</strong>s 11h às 19h. Sáb., Dom. e Feriados <strong>da</strong>s 14h<br />
às 20h.<br />
Instalação.<br />
Detritos<br />
De Alexandre Farto.<br />
Porto. Galeria Presença. R. Miguel Bombar<strong>da</strong>, 570.<br />
Tel.: 226060188. Até 23/04. 2ª a 6ª <strong>da</strong>s 10h às<br />
19h30. Sáb. <strong>da</strong>s 15h às 19h30.<br />
Instalação, Outros.<br />
Porto Interior<br />
De Inês d’Orey.<br />
Porto. Centro Português <strong>de</strong> Fotografia. Cp. Mártires<br />
<strong>da</strong> Pátria. Tel.: 222076310. Até 15/05. 3ª a 6ª <strong>da</strong>s<br />
10h às 18h. Sáb., Dom. e Feriados <strong>da</strong>s 15h às 19h.<br />
Fotografia.<br />
Ípsilon • Sexta-feira 1 Abril 2011 • 43
BommmmmmExcelente<br />
“A Festa”, <strong>de</strong> Spiro Scimone “Morte <strong>de</strong> Ju<strong>da</strong>s”, pela Cornucópia<br />
Portugal<br />
e o passado<br />
No Aberto, Rui<br />
Herbon anuncia que o<br />
<strong>de</strong>spren<strong>de</strong>r do passado é a<br />
solução para o futuro. Luís<br />
<strong>de</strong> Freitas Branco<br />
O Álbum <strong>de</strong> Família<br />
De Rui Herbon. Pelo Aberto.<br />
Encenação <strong>de</strong> Tiago Torres <strong>da</strong> Silva.<br />
Com Catarina Avelar, Catarina<br />
Wallenstein, Fernan<strong>da</strong> Neves, Jorge<br />
Corrula, José Eduardo.<br />
Lisboa. Aberto - Sala Vermelha. Pç. Espanha.<br />
Até 29/05. 4ª a Sáb. às 21h30. Dom. às 16h. Tel.:<br />
213880089. 7,5€ a 15€.<br />
TeatroaMaumMedíocremmRazoávelmmmBommmmmMuito<br />
No Teatro Aberto, na sala vermelha,<br />
estreia “Álbum <strong>de</strong> Família”, peça<br />
portuguesa original <strong>de</strong> Rui Herbon,<br />
distingui<strong>da</strong> em 2010 com o Gran<strong>de</strong><br />
Prémio do Teatro Português. Numa Uma viagem sensorial ao passado <strong>de</strong> um país<br />
encenação minimalista <strong>de</strong> Tiago<br />
Torres <strong>da</strong> Silva, retrata-se uma<br />
estação <strong>de</strong> comboios, on<strong>de</strong> José Luís<br />
( Jorge Corrula) vagueia e sonha nas<br />
suas memórias, viaja sensorialmente<br />
pelo passado, recor<strong>da</strong>ndo a sua<br />
infância, a sua família, num mundo e<br />
num Portugal diferente.<br />
Perdido no seu espaço, é<br />
assombrado pelas lembranças. Na sua<br />
mala <strong>de</strong> viajem carrega<br />
(simbolicamente) como um fardo o<br />
seu pai (José Eduardo), a mãe<br />
(Fernan<strong>da</strong> Neves), a irmã (Catarina<br />
Wallenstein) e a avó (Catarina Avelar).<br />
“Em breve passará, tudo passa”,<br />
afirmam as vozes do passado. Em<br />
pano <strong>de</strong> fundo, imagens, momentos e<br />
pessoas são retrata<strong>da</strong>s, o médico, o<br />
professor, a vizinha e o tio santo. José<br />
Luís recria em sonho os a<strong>nos</strong> <strong>da</strong> irmã,<br />
as rezas, a já faleci<strong>da</strong> avó e no fundo <strong>da</strong><br />
mala escon<strong>de</strong>-se a sua primeira<br />
experiência sexual. A musica <strong>de</strong> Pedro<br />
Jóia retrata o Portugal perdido no<br />
sonho, memórias difusas <strong>de</strong> fados e<br />
hi<strong>nos</strong> salazaristas. “Temos <strong>de</strong><br />
conseguir partir, sair”, dizem as<br />
personagens. A viagem <strong>de</strong> comboio<br />
representa o percurso <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> que<br />
todos po<strong>de</strong>mos empreen<strong>de</strong>r, o<br />
<strong>de</strong>spren<strong>de</strong>r dos laços familiares e <strong>da</strong><br />
<strong>nos</strong>sa infância, que po<strong>de</strong>rão<br />
i<strong>de</strong>almente fazer-<strong>nos</strong> vivenciar uma<br />
ascensão intelectual e artística. Esta<br />
premissa, já extensivamente <strong>de</strong>scrita<br />
por James Joyce em “Retraro do Artista<br />
Quando Jovem”, dita que um artista<br />
para <strong>de</strong>senvolver a sua autonomia<br />
<strong>de</strong>ve libertar-se <strong>de</strong> qualquer laço<br />
afectivo. Em Joyce tínhamos uma fuga<br />
<strong>da</strong> Irlan<strong>da</strong> e em “Álbum <strong>de</strong> Família”<br />
temos a bolsa <strong>de</strong> estudo simboliza<strong>da</strong><br />
pelo bilhete <strong>de</strong> comboio que José Luís<br />
consegue no instante final receber.<br />
“este José Luís é bom rapaz, vai partir<br />
e <strong>de</strong>ixar-<strong>nos</strong> sozinhos”.<br />
“Queremos partir e não po<strong>de</strong>mos<br />
(...) isto acontece muitas vezes<br />
quando estou a sonhar”, diz José<br />
Luís. Na sala <strong>de</strong> espera observamos<br />
o purgatório, on<strong>de</strong> a família tira o<br />
ultimo retrato e se <strong>de</strong>spe<strong>de</strong> <strong>de</strong> José<br />
Luís. A família não entra no<br />
comboio, não tem bilhete, é força<strong>da</strong><br />
a enfrentar a morte e o<br />
esquecimento. “De quem é a<br />
culpa?”, questiona fervorosamente a<br />
mãe. Com a aceitação <strong>da</strong> morte <strong>da</strong><br />
avó, o jovem estu<strong>da</strong>nte acaba por<br />
libertar-se <strong>da</strong>s suas crenças<br />
religiosas. Contudo, na mala acaba<br />
por levar o álbum <strong>de</strong> família,<br />
“fotografias amarela<strong>da</strong>s e tristes <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>spedi<strong>da</strong>s”.<br />
RUI GAUDÊNCIO<br />
Agen<strong>da</strong><br />
Teatro<br />
Estreiam<br />
A Festa<br />
De Spiro Scimone. Pelo Teatro do<br />
Eléctrico. Encenação <strong>de</strong> Ricardo<br />
Neves-Neves. Com Paula Sousa, Rita<br />
Cruz, Víctor Oliveira.<br />
Massamá. Teatroesfera. R. Ci<strong>da</strong><strong>de</strong> Desportiva. De<br />
07/04 a 08/05. 5ª a Sáb. às 21h30. Dom. às 16h30.<br />
Tel.: 214303404. 10€.<br />
O Libertino Passeia por Braga, a<br />
Idolátrica, o seu Esplendor<br />
De Luiz Pacheco. Encenação <strong>de</strong><br />
António Olaio. Com André Louro.<br />
Alma<strong>da</strong>. Fórum Municipal Romeu Correia. Pç.<br />
Liber<strong>da</strong><strong>de</strong>. Dia 06/04. 4ª às 21h30. Tel.:<br />
212724928. 5€.<br />
Maria, Cavakov e tudo o mais!<br />
A partir <strong>de</strong> Tchékhov. Pela<br />
Companhia Teatral do Chiado.<br />
Encenação <strong>de</strong> Juvenal Garcês. Com<br />
Duarte Grilo, Fábio Sousa, João<br />
Carracedo.<br />
Lisboa. Teatro-Estúdio Mário Viegas. Lg. Pica<strong>de</strong>iro,<br />
40. De 07/04 a 30/07. 6ª e Sáb. às 21h. Tel.:<br />
707302627. 20€.<br />
Continuam<br />
Um Homem Falido<br />
De David Lescot. Pelos Artistas Unidos.<br />
Encenação <strong>de</strong> António Simão. Com<br />
Rúben Gomes, Sylvie Rocha, Américo<br />
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44 • Sexta-feira 1 Abril 2011 • Ípsilon
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Opinião<br />
Modo crítico<br />
Para acabar <strong>de</strong> vez com a OPART<br />
Se Canavilhas tomou algumas importantes <strong>de</strong>cisões e <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong>lineados alguns horizontes <strong>de</strong> relevo,<br />
dos quais se <strong>de</strong>ve <strong>de</strong>stacar o intento <strong>de</strong> concretizar a re<strong>de</strong> nacional <strong>de</strong> cine-teatros, a sua gestão política<br />
foi <strong>de</strong>veras errática, como em todo este folhetim.<br />
A<br />
ministra <strong>da</strong> Cultura, Gabriela Canavilhas,<br />
esteve à altura <strong>da</strong>s suas responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />
quando, em Março do ano passado,<br />
<strong>de</strong>cidiu <strong>de</strong>stituir o catastrófico director<br />
artístico do São Carlos, Christoph<br />
Dammann, não reconduzir o conselho <strong>de</strong><br />
administração <strong>da</strong> malfa<strong>da</strong><strong>da</strong> OPART, EPE, Organismo<br />
<strong>de</strong> Produção Artística, Enti<strong>da</strong><strong>de</strong> Pública Empresarial,<br />
integrando o teatro nacional <strong>de</strong> ópera e a Companhia<br />
Nacional <strong>de</strong> Bailado, e escolhendo para presi<strong>de</strong>nte Jorge<br />
Salavisa e para director artístico Martin André.<br />
Sau<strong>da</strong>ndo a <strong>de</strong>missão <strong>de</strong> Dammann, tive to<strong>da</strong>via a<br />
ocasião <strong>de</strong> dizer que achava que a ministra tinha perdido<br />
uma bela oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> acabar com a OPART<br />
e que Martin André me parecia ter um perfil mais a<strong>de</strong>quado<br />
a maestro director <strong>da</strong> Orquestra, cargo no entanto<br />
ocupado por Julia Jones, que para director artístico.<br />
Poucos meses passaram para a crise se <strong>de</strong>clarar.<br />
Sob a tutela <strong>da</strong> então subsecretária <strong>de</strong> Estado <strong>da</strong><br />
Cultura, Maria José Nogueira Pinto, foi <strong>de</strong> facto André<br />
quem dirigiu o recrutamento <strong>de</strong> músicos para a orquestra<br />
do São Carlos. Suce<strong>de</strong>u logo <strong>de</strong> segui<strong>da</strong> o triste<br />
episódio <strong>da</strong> pala do Estádio <strong>de</strong> Alvala<strong>de</strong>: o secretário<br />
<strong>de</strong> Estado, Pedro Santana Lopes, interviu em interesse<br />
próprio, ou do seu clube, do qual <strong>de</strong> resto em breve viria<br />
a ser presi<strong>de</strong>nte, levando ao abandono <strong>de</strong> Nogueira<br />
Pinto. E logo <strong>de</strong>pois, num <strong>da</strong>queles golpes <strong>de</strong> <strong>de</strong>magogia<br />
em que é pródigo, Santana Lopes “<strong>de</strong>spediu” Martin<br />
André, já que entendia que uma pretendi<strong>da</strong> Orquestra<br />
Sinfónica Portuguesa <strong>de</strong>via ter também um maestro<br />
português, que foi Álvaro Cassuto. O Estado português<br />
como que <strong>de</strong>via a André uma “reparação”: não era contudo<br />
a <strong>de</strong> director artístico do São Carlos, já que por<br />
experiência <strong>de</strong> direcção musical <strong>de</strong> óperas que tenha,<br />
ser o responsável artístico pela programação e orientações<br />
<strong>de</strong> um teatro é matéria distinta.<br />
Mas a questão <strong>de</strong> fundo é <strong>da</strong> OPART e dos teatros nacionais.<br />
O folhetim é conhecido mas convém recor<strong>da</strong>r os<br />
episódios marcantes: em Outubro, no quadro <strong>da</strong>s restrições<br />
orçamentais, Canavilhas anunciou a intenção<br />
<strong>de</strong> integrar na OPART também os teatros nacionais D.<br />
Maria e São João, o que criaria um monstro; a 25 <strong>de</strong> Janeiro<br />
Salavisa <strong>de</strong>mitiu-se evocando “motivos pessoais”,<br />
com a elegância que lhe é característica mas que se<br />
torna irritante quando se ocupam cargos públicos; a 10<br />
<strong>de</strong> Fevereiro foi a vez do vogal Rui Catarino se <strong>de</strong>mitir<br />
também mas <strong>de</strong> modo público invocar que as contas<br />
apresenta<strong>da</strong>s pelo ministério<br />
<strong>da</strong> Cultura resultavam<br />
<strong>de</strong> “argumentos financeiros<br />
falaciosos”, e que a poupança<br />
<strong>de</strong> 1,8 milhões <strong>de</strong> euros<br />
anuncia<strong>da</strong> por Canavilhas<br />
teria antes um “valor real<br />
próximo dos 350 mil euros”;<br />
no dia seguinte foi a vez <strong>da</strong><br />
ministra voltar ao parlamento,<br />
renunciando à integração<br />
do D. Maria e do São João<br />
na OPART, e anunciando<br />
antes um Agrupamento<br />
Complementar <strong>de</strong> Empresas<br />
que ninguém percebeu<br />
exactamente o que seria;<br />
entretanto, André <strong>da</strong>va a sua<br />
primeira entrevista, a este<br />
jornal, on<strong>de</strong> além do óbvio,<br />
a lamentação pela falta <strong>de</strong><br />
um orçamento trienal, em<br />
particular indispensável <strong>nos</strong><br />
teatros <strong>de</strong> ópera, e <strong>de</strong> explicitar<br />
alguns métodos <strong>de</strong><br />
trabalho e intuitos, pouco esclarecia no tocante ao fun<strong>da</strong>mental,<br />
o projecto artístico; enfim no “Expresso” do<br />
último sábado, Salavisa explicou-se, dizendo que não<br />
só não concor<strong>da</strong>va com a OPART como havia este outro<br />
ponto <strong>de</strong>cisivo: “Decidi sair quando o Martin André me<br />
apresentou a programação <strong>de</strong> 2011 e 2012. É uma visão<br />
que não tem arrojo. É preciso arriscar, para colocar o<br />
Teatro Nacional <strong>de</strong> São Carlos num percurso europeu”.<br />
Augusto M. Seabra<br />
Gabriela<br />
Canavilhas<br />
É absur<strong>da</strong> uma<br />
instituição como a<br />
OPART, sobre a qual o<br />
Po<strong>de</strong>r tanto fala em<br />
menores custos<br />
relativos com mais<br />
(mas maus)<br />
espectáculos, sem<br />
esclarecer se a máquina<br />
administrativa terá<br />
diminuído ou se terá<br />
aumentado<br />
DANIEL ROCHA<br />
Sempre me pareceu que o horizonte <strong>de</strong>lineado pelo<br />
fatídico primeiro secretário <strong>de</strong> Estado <strong>da</strong> governação<br />
socrática, Mário Vieira <strong>de</strong> Carvalho, seria qualquer<br />
coisa como uma muita centralista direcção-geral dos<br />
teatros nacionais. Como não ousou tocar no São João<br />
dirigido por Ricardo Pais, embora o tenha transformado<br />
numa <strong>de</strong>ssas miríficas Enti<strong>da</strong><strong>de</strong>s Empresariais do Estado<br />
– o que aliás suscitou na prática um pesado fardo<br />
administrativo -, Vieira <strong>de</strong> Carvalho exerceu a “intendência”<br />
<strong>nos</strong> outros, com os golpes que foram a <strong>de</strong>missão<br />
<strong>de</strong> António Lagarto do D. Maria e a sua substituição<br />
pelo calamitoso Carlos Fragateiro, afastando Paolo Pinamonti<br />
do São Carlos e criando a nefan<strong>da</strong> OPART, por<br />
arrastamento <strong>de</strong>stituindo Ana Pereira Cal<strong>da</strong>s <strong>da</strong> CNB, e<br />
nomeando director Vasco Wellenkamp. O que não esperei<br />
é que, por outras razões ain<strong>da</strong>, e sem preten<strong>de</strong>r a<br />
“intendência” artística directa, fosse Canavilhas a suscitar<br />
directamente um tal horizonte.<br />
Diz agora Jorge Salavisa: “Eu até gosto <strong>da</strong> Gabriela e<br />
acho que ela podia ter feito um bom trabalho”. Subscrevo<br />
por inteiro, esclarecendo que este meu “gosto” não é tanto<br />
<strong>de</strong> or<strong>de</strong>m pessoal, mas <strong>de</strong> imensa admiração pelo que<br />
ela fez na Orquestra Metropolitana <strong>de</strong> Lisboa e as capaci<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />
que mostrou. Outra coisa, emimentemente política,<br />
é ser ministra <strong>da</strong> Cultura, para mais num quadro <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>scalabro e restrições financeiras impostas por Sócrates<br />
e Teixeira dos Santos, a dupla que seguiu uma política <strong>de</strong><br />
arrogância, mentira e por fim abismo, pois que a crise do<br />
capitalismo financeiro não é o único motivo.<br />
Se Canavilhas tomou algumas importantes <strong>de</strong>cisões e<br />
<strong>de</strong>ixa <strong>de</strong>lineados alguns horizontes <strong>de</strong> relevo, dos quais<br />
cabe para o caso <strong>de</strong>stacar o intento <strong>de</strong> concretizar a re<strong>de</strong><br />
nacional <strong>de</strong> cine-teatros, matéria primordial <strong>de</strong>ixado<br />
ao abandono <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o arranque com Carrilho (e houve<br />
no entretanto cinco ministros), ou se conseguiu limitar<br />
os cortes na Cultura e tentar arranjar novas fontes <strong>de</strong> financiamento,<br />
a sua gestão política foi <strong>de</strong>veras errática,<br />
como em todo este folhetim.<br />
O São João é uma instituição sóli<strong>da</strong>, fazendo um triângulo<br />
<strong>de</strong> referência no Porto com Serralves e a Casa<br />
<strong>da</strong> Música, <strong>de</strong>stroçado que foi por Rui Rio o Rivoli implementa<strong>da</strong><br />
pela saudosa Isabel Alves Costa. Numa Região<br />
Norte já tão afecta<strong>da</strong>, era um insulto suplementar<br />
passar aquele teatro nacional para a tutela directa <strong>de</strong><br />
Lisboa.<br />
Destituir no D. Maria Carlos Fragateiro e nomear<br />
Maria João Brilhante para o C.A. e Diogo Infante para<br />
director artístico foi a única <strong>de</strong>cisão do ministro José<br />
António Pinto Ribeiro, que <strong>de</strong> resto se limitou a pavonear.<br />
Com esta dupla directiva, o Dona Maria funciona<br />
diria-se-ia que quase em pleno, com frequência com<br />
salas esgota<strong>da</strong>s, e também tornou regular uma necessária<br />
edição dos textos representados, como ain<strong>da</strong> agora<br />
“A Catatua Ver<strong>de</strong>” <strong>de</strong> Schnitzler e “Azul Longe nas Colinas”<br />
<strong>de</strong> Dennis Potter.<br />
Sem precisar <strong>de</strong> integração numa qualquer OPART,<br />
os dois teatros cooperam enfim <strong>de</strong> forma regular. “O<br />
Ano do Pensamento Mágico”, “O Homem Elefante” e<br />
“1974”, produções ou co-produções do D. Maria, já foram<br />
apresentados no São João, como o será em breve<br />
“Azul Longe nas Colinas”; em sentido inverso, “Tambores<br />
na Noite” já passou do Porto para Lisboa.<br />
Depois do excelente trabalho nela realizado por Jorge<br />
Salavisa, a Companhia Nacional <strong>de</strong> Bailado andou 10<br />
a<strong>nos</strong> à <strong>de</strong>riva. Percebe-se que uma <strong>da</strong>s razões, senão a<br />
primordial, que levou Salavisa a aceitar a presidência<br />
46 • Sexta-feira 1 Abril 2011 • Ípsilon
<strong>da</strong> OPART, organismo com o qual não concor<strong>da</strong>va (e esse<br />
é o ponto que sempre se lhe po<strong>de</strong> objectar), foi a <strong>de</strong><br />
po<strong>de</strong>r nomear Luisa Taveira para a direcção <strong>da</strong> CNB. É<br />
uma escolha certa, pois se à companhia cabe apresentar<br />
o gran<strong>de</strong> reportório, não me<strong>nos</strong> são importantes obras<br />
contemporâneas, como a “Lisbon Piece” que Anna Teresa<br />
<strong>de</strong> Keesmaker concebeu expressamente para a CNB.<br />
To<strong>da</strong>s estas instituições, com o São Carlos, são “nacionais”,<br />
<strong>de</strong>signação que é <strong>de</strong> facto simbólica e em<br />
termos comparativos bastante dispendiosas, se consi<strong>de</strong>rarmos<br />
por exemplo quanto é necessária ao país, no<br />
conjunto do território, a tal re<strong>de</strong> <strong>de</strong> cine-teatros. Têm<br />
também vocações e públicos diferentes, por exemplo<br />
a CNB tendo uma missão <strong>de</strong> itinerância não possível às<br />
outras, tal como o São Carlos está muito mais inserido<br />
numa re<strong>de</strong> <strong>de</strong> teatros e num mercado internacionais.<br />
Devem ser cui<strong>da</strong>dosamente geri<strong>da</strong>s, precisando não só<br />
<strong>de</strong> directores artísticos capazes, como <strong>de</strong> gestores para<br />
ca<strong>da</strong> uma <strong>de</strong>las que tenham a noção <strong>da</strong>s suas vocações<br />
e <strong>de</strong>stinatários específicos.<br />
Tanto mais é assim absur<strong>da</strong> uma instituição como<br />
a OPART, sobre a qual o Po<strong>de</strong>r tanto fala em menores<br />
custos relativos com mais (mas maus) espectáculos,<br />
sem esclarecer por exemplo se o peso <strong>da</strong> máquina administrativa<br />
terá <strong>de</strong> facto diminuído ou se porventura<br />
terá aumentado. Uma OPART em que <strong>de</strong> resto, e com<br />
nefastas consequências, nem sequer está em prática<br />
o legalmente previsto, não funcionando um suposto<br />
“contrato-programa” trienal e pla<strong>nos</strong> <strong>de</strong> activi<strong>da</strong><strong>de</strong>s e<br />
orçamento plurianuais - pois se até não há ain<strong>da</strong> o orçamento<br />
para este ano!<br />
Gestão criteriosa e sentido <strong>da</strong>s responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong>s públicas,<br />
com certeza, enti<strong>da</strong><strong>de</strong>s absur<strong>da</strong>s é que não.<br />
António Pinto Ribeiro<br />
JP LAFFONT/SYGMA/ CORBIS<br />
A i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que hoje<br />
possa haver uma<br />
ci<strong>da</strong><strong>de</strong> que polarize<br />
a Europa em volta<br />
do seu programa é<br />
tão <strong>de</strong>spropositado<br />
quanto inverosímil<br />
Melina<br />
Mercouri,<br />
actriz,<br />
activista e<br />
ministra <strong>da</strong><br />
cultura <strong>da</strong><br />
Grécia: a<br />
autora <strong>da</strong><br />
i<strong>de</strong>ia <strong>da</strong><br />
Capital <strong>da</strong><br />
Cultura<br />
Política cultural<br />
Capitais europeias<br />
<strong>da</strong> cultura: que fazer<br />
com elas?<br />
Uma avaliação <strong>da</strong>s capitais culturais entre 1995 e 2004:<br />
insustentabili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>stas ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s após o ano <strong>de</strong> capital cultural,<br />
as expectativas gora<strong>da</strong>s <strong>da</strong> maioria dos seus ci<strong>da</strong>dãos e a retracção<br />
no apoio à produção que acontece sempre no período pós-capital.<br />
A<br />
i<strong>de</strong>ia era generosa, inédita e culturalmente<br />
ambiciosa. Eleger anualmente uma ci<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
que fosse a ci<strong>da</strong><strong>de</strong> europeia <strong>da</strong> cultura<br />
que, <strong>de</strong> alguma maneira, pu<strong>de</strong>sse ser<br />
uma ci<strong>da</strong><strong>de</strong> a apresentar em ca<strong>da</strong> ano um<br />
novo paradigma cultural. A sua autora<br />
foi a actriz, cantora e activista política e ministra <strong>da</strong><br />
cultura grega, Melina Amalia Mercouri. Estávamos em<br />
1985 e nesse ano foi a ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Atenas a escolhi<strong>da</strong>.<br />
Des<strong>de</strong> então e ao longo <strong>de</strong> 26<br />
a<strong>nos</strong> foram 38 as ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s eleitas<br />
(o mo<strong>de</strong>lo inicial foi alterado e<br />
passou a po<strong>de</strong>r ser possível haver<br />
mais do que uma ci<strong>da</strong><strong>de</strong> eleita<br />
em ca<strong>da</strong> ano). Nesse ano distante<br />
<strong>de</strong> 1985, a Europa comunitária –<br />
a CEE - era constituí<strong>da</strong> por <strong>de</strong>z<br />
países, existiam duas Alemanhas,<br />
o muro <strong>de</strong> Berlim ain<strong>da</strong> não tinha<br />
caído, pouco se sabia do que se<br />
passava culturalmente a Leste<br />
do muro, não havia email, nem<br />
telemóveis, nem “youtube”,<br />
nem festivais “indies”, e esta Europa vivia um momento<br />
crescente <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento económico. Contudo,<br />
termos e expressões como alta e baixa cultura,<br />
<strong>de</strong>scentralização cultural, cultura como distinção <strong>de</strong><br />
classe ain<strong>da</strong> faziam parte <strong>de</strong> uma grelha operativa eficaz<br />
nas análises sociais.<br />
De to<strong>da</strong>s estas capitais umas foram um fracasso,<br />
outras passaram quase <strong>de</strong>spercebi<strong>da</strong>s, e houve duas que<br />
se tornaram exemplares: Glasgow, em 1990, por ter feito<br />
um ponto <strong>de</strong> viragem introduzindo no seu programa<br />
as referências específicas aos objectivos culturais,<br />
económicos e sociais; e Antuérpia, em 1993, por ter<br />
apresentado o programa <strong>de</strong> política cultural e <strong>de</strong> artes<br />
mais radical e mais interventivo <strong>de</strong> sempre, ilustrado<br />
pelo manifesto: “po<strong>de</strong> a arte salvar o mundo?”. E mais<br />
recentemente houve Istambul. A i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> eleger para<br />
capital cultural uma ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> um país candi<strong>da</strong>to a<br />
entrar na União Europeia era interessante. Foi, contudo,<br />
completamente <strong>de</strong>saproveita<strong>da</strong> como uma gran<strong>de</strong><br />
possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> contacto entre o Oci<strong>de</strong>nte e o Oriente,<br />
mormente por parte dos países oci<strong>de</strong>ntais e <strong>da</strong> política<br />
<strong>de</strong> resistência <strong>de</strong> alguns gover<strong>nos</strong> europeus a uma<br />
política <strong>de</strong> entendimento activa.<br />
Neste ano em que há duas capitais culturais – Talin<br />
e Turku - com projectos <strong>nos</strong> antípo<strong>da</strong>s do espírito<br />
inicial <strong>da</strong> capital cultural, é oportuno perguntar: que<br />
fazer às capitais europeias <strong>da</strong> cultura? Tem algum<br />
sentido criar uma capital europeia <strong>da</strong> cultura que se<br />
justifica por “querer mostrar que é mais do que lugar<br />
<strong>de</strong> peregrinação” – Santiago <strong>de</strong> Compostela (2000) – ou<br />
“re<strong>de</strong>finir-se como ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> muitas vocações on<strong>de</strong><br />
coexistem portos, indústria e activi<strong>da</strong><strong>de</strong>s culturais” -<br />
Génova (2004)?<br />
O relatório Palmer, que fez uma avaliação <strong>de</strong>stas<br />
capitais culturais entre 1995 e 2004, apesar <strong>de</strong> na<br />
conclusão recomen<strong>da</strong>r a sua continui<strong>da</strong><strong>de</strong>, sugere<br />
um conjunto vastíssimo <strong>de</strong> alterações no formato,<br />
nas formas <strong>de</strong> governança, <strong>de</strong> financiamento, etc. E<br />
nele as avaliações negativas mais <strong>de</strong>staca<strong>da</strong>s vão para<br />
a insustentabili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>stas ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s após o ano <strong>de</strong><br />
capital cultural, as expectativas gora<strong>da</strong>s <strong>da</strong> maioria dos<br />
seus ci<strong>da</strong>dãos e a retracção no apoio à produção que<br />
acontece sempre no período pós-capital. Mesmo o caso<br />
<strong>de</strong> Antuérpia, que <strong>de</strong>senvolveu um programa original<br />
com a intenção <strong>de</strong> refrear a ascensão <strong>da</strong> extremadireita<br />
xenófoba, viu as suas expectativas frustra<strong>da</strong>s<br />
por ver, <strong>de</strong>z a<strong>nos</strong> <strong>de</strong>pois, uma subi<strong>da</strong> <strong>de</strong>stes partidos<br />
xenófobos.<br />
O mundo <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1985 mudou muito e a Europa<br />
também. O que era pertinente no tempo <strong>de</strong> Melina<br />
Mercouri ou se cumpriu ou tomou outras cambiantes<br />
na cultura <strong>da</strong>s ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s. A i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que hoje possa haver<br />
uma ci<strong>da</strong><strong>de</strong> que em ca<strong>da</strong> ano polarize to<strong>da</strong> a Europa<br />
em volta do seu programa e por isso ser sua capital<br />
é tão <strong>de</strong>spropositado quanto inverosímil. Se existem<br />
capitais culturais europeias elas são Londres, Paris,<br />
Berlim e Madrid. As capitais europeias <strong>da</strong> cultura têm<br />
sobretudo aproveitado um período <strong>de</strong> excepção <strong>de</strong><br />
financiamento para fazer obras públicas, restauro <strong>de</strong><br />
património, e impor-se com os seus valores turísticos<br />
muitas vezes com apelos nacionalistas ao contrário do<br />
que seria <strong>de</strong>sejável. Esperava-se que se constituíssem<br />
como lugares <strong>de</strong> incentivo à ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia europeia e <strong>de</strong><br />
inovação <strong>de</strong> políticas culturais, modos <strong>de</strong> produção<br />
e inovação artística que sau<strong>da</strong>velmente <strong>de</strong>veriam<br />
recusar as programações basea<strong>da</strong>s nas agen<strong>da</strong>s e<br />
catálogos dos artistas “mainstream” que se po<strong>de</strong>m<br />
apresentar em qualquer tempora<strong>da</strong> em qualquer<br />
ci<strong>da</strong><strong>de</strong>. Neste aspecto pouco mu<strong>da</strong>rá concerteza nas<br />
167 ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s que esperam ser capitais culturais até<br />
2019 e que criaram mesmo a Associação <strong>da</strong>s Ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />
Candi<strong>da</strong>tas à Capital europeia <strong>da</strong> cultura. E, contudo,<br />
po<strong>de</strong>r-se-ia resgatar o espírito <strong>de</strong> generosi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
Melina Mercouri e <strong>de</strong> experimentação cultural e,<br />
com parte <strong>de</strong>sses recursos financeiros e huma<strong>nos</strong><br />
excepcionais, incentivar as ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s a evoluírem para<br />
ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s hospitaleiras, acolhedoras, ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s-asilo, com<br />
programas <strong>de</strong> cooperação multilateral com países<br />
terceiros, <strong>de</strong>senvolver a integração, produzir programas<br />
<strong>de</strong> produção continua<strong>da</strong> e não episódica, criar contra o<br />
populismo, <strong>de</strong>senvolver a <strong>de</strong>mocracia para um estádio<br />
mais cosmopolita e fazer com que sintamos que as<br />
ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s on<strong>de</strong> vivemos <strong>nos</strong> afectam, positivamente!<br />
Ípsilon • Sexta-feira 1 Abril 2011 • 47