chama-nos da selva O cinema de Apichatpong Weerasethakul
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Seixas<br />
Santos<br />
“Sentíamos que era<br />
preciso mostrar o país<br />
e que isso não tinha<br />
sido feito. Estávamos<br />
fartos <strong>de</strong> ver o jornal<br />
<strong>de</strong> actuali<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />
que o Partido<br />
Comunista produzia e que mostrava<br />
invariavelmente os discursos do Vasco<br />
Gonçalves”<br />
José<br />
Nascimento<br />
“Estava sempre tudo<br />
a acontecer, a to<strong>da</strong> a<br />
hora e em todo o lado, e<br />
era muito complicado<br />
conseguirmos<br />
acompanhar. Havia<br />
sempre notícias<br />
cruza<strong>da</strong>s. E isso para<br />
quem quer filmar acontecimentos<br />
é o pior que po<strong>de</strong> acontecer. Não<br />
há maneira <strong>de</strong> saber o que é mais<br />
importante, ou se chegamos lá e já<br />
acabou. Havia essa fragili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> não<br />
se saber se quando chegássemos<br />
ao acontecimento ain<strong>da</strong> haveria<br />
acontecimento.”<br />
António<br />
<strong>da</strong> Cunha<br />
Telles<br />
“Não estive na ocupação<br />
do IPC mas estive na <strong>da</strong><br />
censura. É que, mesmo<br />
<strong>de</strong>pois do 25 <strong>de</strong> Abril,<br />
a censura continua a<br />
existir. Eu ia estrear<br />
‘Jaime’, do António Reis, e<br />
a censura, zelosa, telefonou-me a dizer<br />
que não podia. Agarrei no Zeca Afonso<br />
e no dia seguinte, <strong>de</strong> madruga<strong>da</strong>,<br />
fomos ocupar a censura”<br />
RUI GAUDÊNCIO LUÍS RAMOS/ ARQUIVO<br />
“Conheci<br />
o Portugal rural<br />
e fiquei impressinado<br />
com a diferença<br />
entre a reali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
nas ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s e aquele<br />
tempo parado que<br />
existia nas al<strong>de</strong>ias<br />
do Norte”<br />
Philippe Costantini<br />
“Comecei a filmar assim que cheguei,<br />
ain<strong>da</strong> sem saber o que fazer <strong>de</strong>ssas<br />
imagens”, conta ao Ípsilon por<br />
email. “De início só me interessava o<br />
registo, essa era a principal preocupação,<br />
e a <strong>nos</strong>sa disponibili<strong>da</strong><strong>de</strong> era<br />
total. Sabíamos que estávamos a viver<br />
um período único e que teríamos que<br />
<strong>da</strong>r tudo por tudo para estar <strong>de</strong>ntro<br />
<strong>de</strong>sse processo.”<br />
Não tinham dinheiro, ao princípio<br />
nem sequer tinham película. “As primeiras<br />
filmagens são feitas com restos<br />
<strong>de</strong> película que os meus amigos operadores<br />
traziam <strong>de</strong> filmes on<strong>de</strong> tinham<br />
participado.” O director <strong>de</strong><br />
fotografia Acácio <strong>de</strong> Almei<strong>da</strong> juntouse<br />
ao projecto, o que foi “muito importante”.<br />
A casa dos pais <strong>de</strong> Rui Simões<br />
transformara-se numa “central<br />
que recebia <strong>da</strong>s comissões <strong>de</strong> trabalhadores,<br />
dos militares, <strong>de</strong> militantes<br />
anónimos, informações do que se<br />
passava, as lutas dos trabalhadores,<br />
as ocupações <strong>de</strong> terras, as movimentações<br />
políticas.”<br />
Quando começou a pensar na estrutura<br />
do filme percebeu que queria<br />
fazer “o filme <strong>da</strong> revolução”, mas também<br />
do povo português. Por isso estão<br />
lá “a Santa <strong>da</strong> La<strong>de</strong>ira, a Nossa<br />
Senhora <strong>de</strong> Fátima, o abate <strong>de</strong> animais,<br />
a carneira<strong>da</strong>, as ban<strong>da</strong>s, a agricultura,<br />
as fábricas, o mar, o sol, os<br />
pinheiros mansos, e até há uma família<br />
portuguesa numa consoa<strong>da</strong>, tentando<br />
mostrar que está uni<strong>da</strong>, mas<br />
ain<strong>da</strong> não está, ain<strong>da</strong> há muitos conflitos.”<br />
José Nascimento e os irmãos Fernando<br />
e João Matos Silva tinham entretanto<br />
formado uma cooperativa, a<br />
Cinequipa, e an<strong>da</strong>vam a filmar para<br />
dois programas <strong>de</strong> televisão. “Éramos<br />
um veículo <strong>da</strong> voz popular, <strong>da</strong>s lutas<br />
operárias e outras, sobretudo em multinacionais<br />
que <strong>de</strong>sapareceram, administrações<br />
que se foram embora,<br />
fábricas que ficaram em auto-gestão.<br />
Era o <strong>cinema</strong> possível, enquandrado<br />
naquele processo político.”<br />
Seixas Santos também criara uma<br />
cooperativa, o Grupo Zero, com Acácio<br />
<strong>de</strong> Almei<strong>da</strong>, o encenador Jorge<br />
Silva Melo e a cineasta Solveig Nordlund,<br />
mas o que <strong>de</strong>sejaram era criar<br />
alguma distância e filmar coisas com<br />
outro tempo. “Sentíamos que era preciso<br />
mostrar o país e que isso não tinha<br />
sido feito. Estávamos fartos <strong>de</strong><br />
ver o jornal <strong>de</strong> actuali<strong>da</strong><strong>de</strong>s que o Partido<br />
Comunista produzia e que mostrava<br />
invariavelmente os discursos do<br />
Vasco Gonçalves.”<br />
Foram para o Alentejo e filmaram<br />
“A Lei <strong>da</strong> Terra”. “Descobrimos que<br />
o campo também tem luta <strong>de</strong> classes.<br />
Eu não fazia i<strong>de</strong>ia: os pastores que<br />
encontrei eram muito mais anarquistas<br />
do que comunistas. Não tinham<br />
na<strong>da</strong> a ver com as cooperativas <strong>de</strong><br />
produção agrícola. E era divertido<br />
começar a perceber as diferenças sociais<br />
<strong>de</strong>ntro do campesinato.” À noite,<br />
<strong>nos</strong> barracões <strong>da</strong>s cooperativas,<br />
projectavam filmes. “Mostrávamos<br />
filmes do Eisenstein e <strong>de</strong> vez em quando<br />
havia uns velhotes que vinham ter<br />
con<strong>nos</strong>co e perguntavam, ain<strong>da</strong> a medo:<br />
aquele ali era o Lenine, não<br />
era?”.<br />
Entretanto<br />
em Trás-os-Montes...<br />
Nesses últimos meses <strong>de</strong> 74, a brasileira<br />
Ana Glogowski e o francês Philippe<br />
Costantini instalavam-se em Portugal<br />
on<strong>de</strong> tinham vivido, encantados,<br />
o Verão a seguir ao 25 <strong>de</strong> Abril. Chegaram<br />
primeiro ao Algarve, a casa do<br />
pintor Júlio Pomar, e com o filho <strong>de</strong>ste,<br />
Alexandre, subiram “por Portugal<br />
acima para ver os cantores que estavam<br />
a entrar em Portugal, o Fausto,<br />
o José Mário Branco, que passavam<br />
pelas al<strong>de</strong>ias do Norte e iam cantando”,<br />
recor<strong>da</strong> Anna.<br />
Philippe já conhecia vários cineastas<br />
portugueses e teve uma oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
para trabalhar em “Máscaras”<br />
<strong>de</strong> Noémia Delgado, que o fez <strong>de</strong>scobrir<br />
Trás-os-Montes, on<strong>de</strong> viria a filmar,<br />
com Anna, “Terra <strong>de</strong> Abril – Vilar<br />
<strong>de</strong> Perdizes” (dia 5 às 21h30). “Conheci<br />
o Portugal rural e fiquei impressinado<br />
com a diferença entre a reali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
nas ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s e aquele tempo parado<br />
que existia nas al<strong>de</strong>ias do Norte”, conta.<br />
Numa primeira al<strong>de</strong>ia, o francês,<br />
então <strong>de</strong> barbas e cabelos compridos,<br />
foi olhado com <strong>de</strong>sconfiança. Pensavam<br />
que era cubano. Mas <strong>de</strong>pois,<br />
através do padre António Fontes, foram<br />
parar a Vilar <strong>de</strong> Perdizes on<strong>de</strong><br />
pu<strong>de</strong>ram filmaram o regresso <strong>de</strong> uma<br />
tradição que <strong>de</strong>saparecera há onze<br />
a<strong>nos</strong>, o Auto <strong>da</strong> Paixão <strong>da</strong> Páscoa. Registaram<br />
também a vi<strong>da</strong> <strong>da</strong> al<strong>de</strong>ia on<strong>de</strong><br />
os entusiasmos políticos <strong>de</strong> Lisboa<br />
não chegavam – até porque os poucos<br />
aparelhos <strong>de</strong> televisão que existiam<br />
transmitivam a televisão <strong>de</strong> Espanha,<br />
on<strong>de</strong> Franco ain<strong>da</strong> se mantinha no<br />
po<strong>de</strong>r.<br />
E filmaram a campanha eleitoral<br />
<strong>de</strong> 76, os silêncios <strong>de</strong>sconfiados <strong>da</strong><br />
população a ouvir os políticos vindos<br />
<strong>de</strong> longe e com uma linguagem que<br />
“Deus, Pátria, Autori<strong>da</strong><strong>de</strong>”,<br />
<strong>de</strong> Rui Simões<br />
não lhes dizia na<strong>da</strong>. “A palava colectivo<br />
era muito conota<strong>da</strong> com o PC e<br />
o PC não tinha implantação na zona”,<br />
conta Philippe. “As pessoas tinham<br />
pequenas proprie<strong>da</strong><strong>de</strong>s e tinham medo<br />
<strong>de</strong> as per<strong>de</strong>r.”<br />
Mais colectiva, e utópica, era a reali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
que, entretanto, Cunha Telles<br />
filmava no Algarve, em “Continuar a<br />
Viver ou os Índios <strong>da</strong> Meia-Praia” (dia<br />
2 às 02h00), esse filme em que um<br />
velho pescador diz qualquer coisa<br />
como “<strong>da</strong>ntes estávamos mal, agora<br />
estamos pior mas estamos mais contentes.”<br />
Era no entanto ca<strong>da</strong> vez mais evi<strong>de</strong>nte,<br />
nas imagens que as câmaras<br />
captavam, que a revolução não estava<br />
a correr como muitos sonhavam. A<br />
utopia <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> Meia-Praia<br />
havia <strong>de</strong> chegar ao fim. Em Vilar <strong>de</strong><br />
Perdizes (on<strong>de</strong> haveria <strong>de</strong> voltar para<br />
filmar “Pedras <strong>da</strong> Sau<strong>da</strong><strong>de</strong>” em 1988),<br />
Philippe olhava e pensava que “ia <strong>de</strong>morar<br />
muito tempo para acontecer<br />
uma mu<strong>da</strong>nça <strong>de</strong> mentali<strong>da</strong><strong>de</strong>s” (esta<br />
acabaria por acontecer <strong>nos</strong> a<strong>nos</strong><br />
80 mas mais por influência dos emigrantes<br />
que voltavam nas férias), e<br />
Anna compreendia que “havia um<br />
mundo inteiro entre o sonho dos políticos<br />
nas ruas <strong>de</strong> Lisboa e o que se<br />
passava no campo, on<strong>de</strong>, quem não<br />
tem os meios básicos <strong>de</strong> subsistência<br />
não po<strong>de</strong> pensar em mu<strong>da</strong>r o mundo.”<br />
No Alentejo, Seixas Santos ia também<br />
percebendo que “os principais<br />
ocupantes <strong>de</strong> proprie<strong>da</strong><strong>de</strong>s eram tipos<br />
ricos, que alugavam máquinas<br />
agrícolas e que estimulavam os camponeses<br />
a ocupar as terras porque<br />
assim já tinham hipóteses <strong>de</strong> alugar<br />
as máquinas”. E pensava que gostaria<br />
<strong>de</strong> fazer um filme sobre os militares<br />
e o po<strong>de</strong>r – e fez, no início dos a<strong>nos</strong><br />
80, “Gestos e Fragmentos” (dia 9 às<br />
21h30), obra com a qual, disse um dia<br />
João Bénard <strong>da</strong> Costa, “se fechou<br />
Abril”.<br />
Rui Simões <strong>de</strong>scobria que a RTP<br />
não lhe vendia imagens <strong>de</strong> arquivo e<br />
que tinha que recorrer a cineastas estrangeiros<br />
para as comprar, e “olhava<br />
para aquela reali<strong>da</strong><strong>de</strong> [que filmava] e<br />
já sabia que as coisas iam correr mal,<br />
via-se, sentia-se a ca<strong>da</strong> momento, o<br />
povo era ingénuo e <strong>de</strong>ixava-se levar<br />
pelos malandros <strong>da</strong> história que a ca<strong>da</strong><br />
dia que passava lhe quebravam o<br />
ânimo.”<br />
E José Nascimento, no dia 25 <strong>de</strong> Novembro<br />
<strong>de</strong> 1975, olhava para os amigos<br />
reunidos numa tasca e pensava<br />
“temos que regressar à clan<strong>de</strong>stini<strong>da</strong><strong>de</strong>”.<br />
Mas, recor<strong>da</strong> agora, passados<br />
mais <strong>de</strong> 35 a<strong>nos</strong>, que a partir <strong>de</strong> 76<br />
“as pessoas dos meios <strong>da</strong>s artes começaram-se<br />
a conhecer e esse foi outro<br />
lado, o lado que culminou na vi<strong>da</strong><br />
nocturna lisboeta dos a<strong>nos</strong> 80, em<br />
que a política foi substituí<strong>da</strong> por uma<br />
aproximação mais humana e artística.”<br />
No Bairro Alto, o Frágil abria as portas.<br />
Já não se filmava a revolução.<br />
COLECÇÃO CINEMATECA PORTUGUESA - MUSEU DO CINEMA<br />
14 • Sexta-feira 1 Abril 2011 • Ípsilon