chama-nos da selva O cinema de Apichatpong Weerasethakul
chama-nos da selva O cinema de Apichatpong Weerasethakul
chama-nos da selva O cinema de Apichatpong Weerasethakul
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
A estrutura é elíptica e não <strong>nos</strong><br />
é dito muito do que po<strong>de</strong> ser percebido<br />
ou interpretado. Daí nasce a sequência<br />
em que Boonmee, já embrenhado<br />
na <strong>selva</strong> e no mundo animista<br />
<strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as coisas vivas e transformáveis,<br />
fala <strong>de</strong> um sonho que teve – outra<br />
vez com os olhos rubros a observarem-no<br />
a partir <strong>da</strong>s trevas. A voz do<br />
velho que se apresta a morrer para<br />
nascer <strong>de</strong> novo é pinta<strong>da</strong> por fotografias<br />
<strong>da</strong> al<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> Nabua, em que aparecem<br />
adolescentes com uniformes<br />
militares acompanhados do macaco<br />
que percorre o filme. “São as minhas<br />
memórias <strong>de</strong> ter trabalhado com os<br />
adolescentes <strong>da</strong>quela al<strong>de</strong>ia. O sonho<br />
<strong>de</strong> Boonmee é sobre o futuro e ao<br />
mesmo tempo sobre <strong>cinema</strong>. Estão<br />
lá to<strong>da</strong>s as referências, que vão dos<br />
filmes <strong>de</strong> ficção científica <strong>de</strong> Chris<br />
Marker a Antonioni e ‘Blow Up’”, refere.<br />
DAMIR SAGOLJ/ REUTERS<br />
“Os problemas que<br />
tive [na Tailândia]<br />
fizeram-me perceber<br />
o contexto geral e não<br />
apenas a questão do<br />
<strong>cinema</strong>. São limites<br />
<strong>de</strong> expressão que<br />
existem, porque se<br />
vive numa socie<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
conservadora que age<br />
através <strong>da</strong> violência.<br />
Sufoca-se a liber<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> expressão em<br />
nome <strong>da</strong> tradição”<br />
são em nome <strong>da</strong> tradição. É com isso<br />
que tenho lutado”, <strong>de</strong>nuncia.<br />
A religião budista, comum à larga<br />
maioria <strong>da</strong> população, é um assunto<br />
sensível para aquela monarquia constitucional.<br />
E, ao mesmo tempo, um<br />
dos temas recorrentes em <strong>Apichatpong</strong>.<br />
“Fui criado num ambiente budista<br />
mas a minha família não era<br />
louca por todos os rituais. Claro que<br />
íamos a templos mas, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> o<br />
meu pai morrer em 2003, senti-me<br />
mais próximo do budismo como um<br />
caminho para estar com os meus sentimentos<br />
e a minha mente.”<br />
Ao contrário do que se escreveu<br />
muitas vezes <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> o cineasta<br />
agra<strong>de</strong>cer a “todos os espíritos e todos<br />
os fantasmas <strong>da</strong> Tailândia” quando<br />
venceu a Palma <strong>de</strong> Ouro, <strong>Apichatpong</strong><br />
não é assim tão místico. “Hoje olho<br />
para a religião <strong>de</strong> um ponto <strong>de</strong> vista<br />
mais científico. Mesmo a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> reencarnação,<br />
não posso dizer que acredito<br />
nisso, mas é possível, só precisamos<br />
<strong>de</strong> alguma prova”, conce<strong>de</strong>.<br />
Fala com o compasso repousado<br />
dos seus filmes. Vive fora <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />
a 30 quilómetros <strong>de</strong> Chiang Mai, uma<br />
<strong>da</strong>s principais urbes do norte do país,<br />
“numa al<strong>de</strong>ia muito tranquila”. A <strong>selva</strong><br />
continua a ser a sua preferência.<br />
“Mesmo assim não estou acostumado.<br />
Quando vamos à <strong>selva</strong> temos medo<br />
<strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as coisas que não <strong>nos</strong> são<br />
familiares. Os sons, a repetição do<br />
ver<strong>de</strong>, a camuflagem que faz as coisas<br />
não parecerem claras – é por isso que<br />
temos medo. Os meus filmes são uma<br />
tentativa <strong>de</strong> me relacionar com essa<br />
reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, ain<strong>da</strong> que continue a ser<br />
um homem <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong>”, admite.<br />
Foi <strong>da</strong> <strong>selva</strong> que bebeu um dos principais<br />
elementos do seu trabalho: o<br />
som, que em “Tio Boonmee” é uma<br />
massa espessa que enche a sala. “Para<br />
mim o som é tão importante como<br />
as imagens, e às vezes mais. É como<br />
uma orquestração, é conduzir música.<br />
Eu sou obcecado com o som, é por<br />
isso que adoro o sistema ‘dolby surround’,<br />
porque estimula a <strong>nos</strong>sa percepção.”<br />
E é também por isso que já<br />
disse mais <strong>de</strong> uma vez que os seus<br />
filmes não funcionam em DVD.<br />
A orquestra <strong>de</strong> <strong>Apichatpong</strong> po<strong>de</strong><br />
ser a mesma <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> Cannes, mas<br />
tem outro peso. O sucesso não o faz<br />
trabalhar com sofreguidão. Quer<br />
manter-se tranquilo e lançar-se na<br />
produção, ao mesmo tempo que explora<br />
outras vertentes artísticas. “Se<br />
não conseguir ter o financiamento<br />
necessário para voltar a fazer filmes,<br />
estou <strong>de</strong> bem com isso. Contenta-me<br />
o que tenho. Por isso é que às vezes<br />
me dizem ‘por que és tão preguiçoso?’<br />
E eu posso sempre respon<strong>de</strong>r que<br />
estou a viajar”.<br />
“O Tio Boonmee que se Lembra <strong>da</strong>s<br />
Suas Vi<strong>da</strong>s Anteriores” acabou por<br />
ser bem aceite na Tailândia, on<strong>de</strong> foi<br />
o filme escolhido na hora <strong>de</strong> indicar<br />
um título para os Óscares. O reconhecimento<br />
<strong>de</strong>ixa <strong>Apichatpong</strong> contente,<br />
principalmente por lhe permitir chegar<br />
às pessoas. “É um encorajamento<br />
DAMIR SAGOLJ/ REUTERS<br />
Quando Cannes <strong>da</strong>va a Palma<br />
a “Tio Boonmee”, os “camisas<br />
vermelhas” rurais protestavam<br />
contra o governo tailandês<br />
e as elites que governam o país,<br />
espelho real dos fantasmas<br />
políticos do filme<br />
Cinema honesto<br />
Não foi <strong>de</strong> fácil digestão para alguma<br />
crítica a consagração em Cannes <strong>de</strong><br />
um tipo que põe os créditos a meio<br />
do filme (por acaso até não faz isso<br />
neste filme), que trabalha com actores<br />
não profissionais, que faz longas sequências<br />
<strong>de</strong> pla<strong>nos</strong> sem diálogos nem<br />
aquilo a que <strong>nos</strong> acostumámos a <strong>chama</strong>r<br />
acção, entrecruzando-as com<br />
uma componente quase esotérica ou<br />
transcen<strong>de</strong>ntal.<br />
<strong>Apichatpong</strong> começou a mostrar-se<br />
em Cannes em 2002, na secção Un<br />
Certain Regard, com “Blissfully<br />
Yours”, e prosseguiu com “Tropical<br />
Malady”, que mereceu o Prémio do<br />
Júri dois a<strong>nos</strong> <strong>de</strong>pois. É duro resumir<br />
os filmes numas quantas frases, mas<br />
<strong>de</strong>stes po<strong>de</strong> dizer-se que são ambos<br />
sobre relações amorosas, os trabalhadores<br />
migrantes (no caso do primeiro)<br />
e a homossexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> (no segundo).<br />
E isto é extremamente redutor.<br />
“Penso que os filmes são sempre<br />
pessoais, são sobre como sermos honestos<br />
con<strong>nos</strong>co próprios. E claro que<br />
quando se é honesto não se po<strong>de</strong><br />
agra<strong>da</strong>r to<strong>da</strong> a gente. Claro que estou<br />
a falar <strong>de</strong> um tipo particular <strong>de</strong> <strong>cinema</strong>.<br />
Depois há outro tipo que todos<br />
conhecemos, que é o ‘mainstream’.<br />
Mas para mim, com o meu interesse<br />
pelas artes visuais e a minha boa sorte<br />
– porque tenho um bom produtor,<br />
que me compreen<strong>de</strong> e me dá liber<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
– consigo ser honesto comigo <strong>nos</strong><br />
meus filmes.”<br />
Não há gran<strong>de</strong>s segredos no modo<br />
como trabalha. Em 1999 criou a sua<br />
produtora, Kick The Machine, e a partir<br />
<strong>da</strong>í tratou <strong>de</strong> olhar em volta e encontrar<br />
as pessoas com quem lhe interessava<br />
fazer caminho.<br />
“Acho sempre que há muitas pessoas<br />
mais interessantes que eu”, ri-se.<br />
“Escolho sempre alguém com quem<br />
possa apren<strong>de</strong>r. Muitas <strong>da</strong>s vezes mudo<br />
o guião para que possa encaixar<br />
os ensinamentos que vou recebendo.<br />
Isso permite que <strong>nos</strong> encontremos a<br />
meio caminho.”<br />
No essencial, continua a olhar para<br />
um país e uma região que têm não<br />
uma mas várias histórias <strong>de</strong> violência.<br />
“A Tailândia é um país violento, tem<br />
passado por intermináveis regimes<br />
opressivos. Mesmo que quando se é<br />
turista se vá lá e tudo pareça livre e<br />
natural, quando se lá vive há imensas<br />
limitações”, lamenta.<br />
Já teve seu quinhão <strong>de</strong> problemas<br />
com as autori<strong>da</strong><strong>de</strong>s. E qualifica <strong>de</strong><br />
“inocentemente brutais” os regimes<br />
do Su<strong>de</strong>ste Asiático e a própria China.<br />
“Os problemas que tive fizeram-me<br />
perceber o contexto geral e não apenas<br />
a questão do <strong>cinema</strong>. São limites<br />
<strong>de</strong> expressão que existem, porque se<br />
vive numa socie<strong>da</strong><strong>de</strong> conservadora<br />
que age através <strong>da</strong> violência. Há censura<br />
e sufoca-se a liber<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> exprespara<br />
os realizadores in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes.<br />
A Tailândia percebeu que há um público<br />
para este tipo <strong>de</strong> <strong>cinema</strong>. Não<br />
temos <strong>cinema</strong>tecas mas temos locais<br />
que agora abrem as suas portas para<br />
os cineastas in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes falarem<br />
com o público.”<br />
Paralelamente, tem um percurso<br />
na instalação e na ví<strong>de</strong>o-arte. Ca<strong>da</strong><br />
vez trabalha mais com projectos como<br />
“Primitive”, que <strong>de</strong>pois se ramificam<br />
e on<strong>de</strong> o <strong>cinema</strong> é apenas uma<br />
<strong>da</strong>s formas <strong>de</strong> expressão. Para Julho,<br />
apresentará já a primeira parte <strong>de</strong> um<br />
estudo que parte do gran<strong>de</strong> rio<br />
Mekong, que nasce nas montanhas<br />
do Tibete para atravessar a província<br />
<strong>de</strong> Yunnan, na China, o Myanmar,<br />
Laos, Tailândia, Camboja e Vietname.<br />
O resultado será exposto no Irish Museum<br />
of Mo<strong>de</strong>rn Art, em Dublin.<br />
“Quero focar-me na escuridão. A escuridão<br />
no <strong>cinema</strong>, na História e também<br />
a escuridão à volta <strong>da</strong>quele rio”,<br />
diz.<br />
Está concentrado <strong>nos</strong> fenóme<strong>nos</strong><br />
naturais, e avisa que isto em na<strong>da</strong> tem<br />
que ver com a tragédia que se abateu<br />
sobre o Japão. “Estou interessado há<br />
muito tempo na i<strong>de</strong>ia <strong>da</strong> mãe natureza<br />
e <strong>de</strong> quando falamos nela ser aparentemente<br />
uma coisa boa. Mas na<br />
ver<strong>da</strong><strong>de</strong> esta mãe é muito cruel, é má<br />
às vezes. Quero olhar para a natureza<br />
sob essa perspectiva, <strong>de</strong> qualquer coisa<br />
que po<strong>de</strong> catastrófica.” E, no<br />
Mekong, a principal catástrofe são as<br />
recorrentes cheias.<br />
Também este novo projecto terá o<br />
seu braço <strong>de</strong> <strong>cinema</strong>, no qual participará<br />
a actriz Til<strong>da</strong> Swinton, que <strong>de</strong>ve<br />
visitar a Tailândia ain<strong>da</strong> este ano.<br />
“Sou fascinado por ela <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que vejo<br />
<strong>cinema</strong> <strong>de</strong> um modo mais sério,<br />
logo a partir dos filmes que ela fez<br />
com Derek Jarman. Soube que ela<br />
gosta do meu trabalho e começámos<br />
a comunicar. Fico sensibilizado por<br />
estar disposta a quebrar esta fronteira.<br />
Gosto <strong>de</strong> quebrar fronteiras no<br />
<strong>cinema</strong> e na arte, e acho que ela é<br />
uma <strong>da</strong>s poucas que percebe essa<br />
vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> partilhar.”<br />
Para já, continua a seguir com gran<strong>de</strong><br />
interesse o trabalho <strong>de</strong> Tsai Mingliang<br />
e Hou Hsiao-Hsien, por quem<br />
tem “muita admiração”, e <strong>de</strong> Jacques<br />
Rivette, Terrance Davis ou Manoel <strong>de</strong><br />
Oliveira. “Não o digo por ele ser português,<br />
e nem quero falar <strong>da</strong> i<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
que tem. Mas o facto <strong>de</strong> conseguir<br />
fazer filmes tão maravilhosos uma e<br />
outra vez é <strong>de</strong> loucos e ao mesmo<br />
tempo é muito bom.”<br />
<strong>Apichatpong</strong> <strong>Weerasethakul</strong> quer<br />
encontrar meios <strong>de</strong> contornar o impacto<br />
díspar que um filme visto numa<br />
sala e as obras que estão num museu<br />
têm nas pessoas. “Para mim é muito<br />
interessante po<strong>de</strong>r usar diferentes<br />
meios, <strong>de</strong>safiar as tais fronteiras <strong>de</strong><br />
que falava. Claro que o <strong>cinema</strong> é arte<br />
mas o modo como o percepcionamos<br />
ain<strong>da</strong> é muito diferente. Quero encontrar<br />
caminhos para criar qualquer<br />
coisa... Qualquer coisa que mostre<br />
tudo.”<br />
Mesmo que sejam fantasmas.<br />
10 • Sexta-feira 1 Abril 2011 • Ípsilon