chama-nos da selva O cinema de Apichatpong Weerasethakul
chama-nos da selva O cinema de Apichatpong Weerasethakul
chama-nos da selva O cinema de Apichatpong Weerasethakul
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
O que po<strong>de</strong>m um senhor e uma senhor<br />
ita fazer <strong>nos</strong> seus dias <strong>de</strong> lazer<br />
para se entreter? Entre outras hipóteses,<br />
é aceitável assumir que se <strong>de</strong>diquem<br />
a pregar parti<strong>da</strong>s um ao outro.<br />
Como exemplo, mencione-se<br />
Ricardo e Ricardina. Ricardo foi “orfanado<br />
em tenra i<strong>da</strong><strong>de</strong>” e posterior<br />
mente recolhido “na casa <strong>de</strong> uma<br />
generosa parenta”, D. Eulália (Titi<br />
para os mais próximos), viúva “a<br />
quem ficara uma filha”, Ricardina.<br />
Como Ricardo e Ricardina se entretiveram<br />
na infância pouco importa,<br />
mas, contando ele 16 a<strong>nos</strong> e ela 14,<br />
<strong>de</strong>u-lhes, pelo Carnaval, para a brinca<strong>de</strong>ira.<br />
Ricardina resolveu <strong>de</strong>stapar<br />
Ricardo durante o sono <strong>de</strong>ste e em<br />
resposta Ricardo <strong>de</strong>u-lhe aquilo a que<br />
se po<strong>de</strong> <strong>chama</strong>r “uma pirraça” ou<br />
“um clister”.<br />
Por acasos do acaso Titi surgiu no<br />
quarto no momento em que “os ma<strong>nos</strong>”,<br />
como se tratavam mutuamente<br />
os meni<strong>nos</strong>, experimentavam o clister.<br />
Titi não quis cá <strong>de</strong>ssas coisas e<br />
exigiu a Ricardo que lhe entregasse<br />
“a seringa” do clister.<br />
Sendo impossível a Ricardo entregar<br />
a seringa, quando muito este,<br />
embaraçado, podia <strong>de</strong>ixar a Titi apalpar<br />
a dita, mas “sem a ver”. A Titi<br />
achou a seringa elástica e pediu-lha<br />
empresta<strong>da</strong> caso precisasse <strong>de</strong> um<br />
clister. Ricardo assentiu e Titi sentiu<br />
logo ali necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> um, embora<br />
– e curiosamente – não tivesse usado<br />
a seringa na abertura habitual dos<br />
clisteres.<br />
Este pe<strong>da</strong>gógico exemplo <strong>de</strong> ludismo<br />
correspon<strong>de</strong> ao início <strong>de</strong> “Entre<br />
Lençóis”, novela que abre “Entre Lençóis,<br />
Episódios Inocentes para Educação<br />
e Recreio <strong>de</strong> Pessoas Casadoiras”,<br />
o primeiro livro <strong>de</strong> uma nova<br />
colecção <strong>da</strong> Tinta-<strong>da</strong>-China <strong>de</strong>dica<strong>da</strong><br />
à pornografia portuguesa <strong>de</strong> finais do<br />
século XIX, início do século XX.<br />
A colecção – cujo formato é, apropria<strong>da</strong>mente,<br />
<strong>de</strong> bolso – inicia-se com<br />
outros dois volumes, “O Pauzinho do<br />
Matrimónio – Almanaque Perpétuo<br />
– Nova Edição Aumenta<strong>da</strong> com uma<br />
substanciosa Arte <strong>de</strong> Gozar e Fazer<br />
Gozar, Várias poesias e <strong>de</strong>scobertas<br />
imp or tantes” e “O Vício em Lisboa<br />
– Antigo e Mo<strong>de</strong>rno”, mas não se ficará<br />
por estes três compêndios.<br />
O acesso a esta literatura permite<strong>nos</strong>,<br />
segundo António Ventura, professor<br />
<strong>de</strong> História na Universi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
Clássica <strong>de</strong> Lisboa e compilador, um<br />
olhar único sobre a socie<strong>da</strong><strong>de</strong> portuguesa<br />
<strong>da</strong> época, ou pelo me<strong>nos</strong> sobre<br />
as classes que tinham acesso aos livros.<br />
Não será exagero consi<strong>de</strong>rar<br />
que, ao contrário <strong>da</strong> imagem que se<br />
criou no século XX dos portugueses<br />
como sendo <strong>de</strong> brandos costumes, a<br />
<strong>nos</strong>sa morali<strong>da</strong><strong>de</strong> íntima “era exactamente<br />
igual à dos espanhóis, franceses,<br />
etc”.<br />
O achado é tão mais gratificante se<br />
tivermos em conta um par <strong>de</strong> <strong>da</strong>dos<br />
extra: por um lado é sabido que os<br />
autores <strong>da</strong>s obras são gente respeitável<br />
(escritores conhecidos, governantes)<br />
que assinava sob pseudónimo;<br />
por outro a pornografia <strong>da</strong> época é<br />
uma <strong>da</strong>s zonas mais recônditas <strong>da</strong><br />
edição nacional – segundo António<br />
Ventura, e “para se ter uma i<strong>de</strong>ia do<br />
pouco que sabemos sobre este território”,<br />
a Biblioteca Nacional é “paupérrima<br />
neste tipo <strong>de</strong> livros”, não<br />
constando do seu acervo mais do que<br />
escassas uni<strong>da</strong><strong>de</strong>s.<br />
“Não há qualquer estudo sobre este<br />
tipo <strong>de</strong> literatura em Portugal”, não<br />
há “sequer levantamentos <strong>da</strong> literatura<br />
pornográfica que existiu” em<br />
Portugal.<br />
E não é certamente por falta <strong>de</strong><br />
objectos: só António Ventura, que,<br />
admite, é um coleccionador compulsivo<br />
<strong>de</strong> todo o tipo <strong>de</strong> literatura, possui<br />
“umas <strong>de</strong>zenas ou centenas largas<br />
<strong>de</strong>stes livros”.<br />
Há outros <strong>da</strong>dos que fazem Ventura<br />
ter certeza <strong>de</strong> que a pornografia<br />
tinha um universo <strong>de</strong> leitores alargado:<br />
“Tenho um catálogo que encontrei”,<br />
conta, “e só esse catálogo tem<br />
<strong>de</strong>zenas <strong>de</strong> títulos <strong>de</strong> livros e fotos”.<br />
ANTÓNIO CARRAPATO<br />
O acesso a esta<br />
literatura<br />
permite-<strong>nos</strong>, segundo<br />
António Ventura,<br />
professor <strong>de</strong> História<br />
na Universi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
Clássica <strong>de</strong> Lisboa<br />
e compilador,<br />
um olhar único<br />
sobre a socie<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
portuguesa <strong>da</strong> época,<br />
ou pelo me<strong>nos</strong> sobre<br />
as classes que tinham<br />
acesso aos livros<br />
Facto esclarecedor sobre o circuito<br />
pornográfico: do mencionado catálogo<br />
estão omissos os nomes <strong>da</strong>s<br />
editoras, bem como <strong>da</strong>s gráficas – e<br />
o mesmo acontece <strong>nos</strong> livros originais.<br />
“Estes objectos eram vendidos à<br />
socapa em livrarias <strong>de</strong> Lisboa, Porto<br />
e Coimbra”, assinala, lembrando que<br />
foi em Coimbra que se encontrou o<br />
primeiro livro pornográfico, “A Martinha<strong>da</strong>”,<br />
do século XVIII, que também<br />
vai ser editado nesta colecção.<br />
O gozo <strong>da</strong> classe média alta<br />
Os mais incautos po<strong>de</strong>rão ser levados<br />
a pensar que a literatura pornográfica<br />
<strong>de</strong> fins do século XIX, inícios do século<br />
XX, estará atrasa<strong>da</strong> ou será ingénua.<br />
Adverte-se então que aqui há <strong>de</strong><br />
tudo e que é certo que os vivos não<br />
saberão mais que os mortos.<br />
Trata-se portanto <strong>de</strong> pornografia<br />
“tout court”, com lesbianismo, protoincesto,<br />
prostitutas e “lava” pelo pescoço<br />
<strong>de</strong> empregaditas.<br />
Nestas obras fica à mostra que a<br />
sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> em Portugal não era<br />
campo em poisio – muito me<strong>nos</strong> que<br />
houvesse uma só forma <strong>de</strong> a experimentar.<br />
“Entre Lençóis – Episódios Inocentes<br />
para Educação e Recreio <strong>de</strong> Pessoas<br />
Casadoiras”, que “parece ser <strong>de</strong><br />
1900”, é o mais novelesco dos três.<br />
“O Pauzinho do Matrimónio” será <strong>de</strong><br />
1879 ou 1880 e assume a forma <strong>de</strong><br />
almanaque, reunindo brejeirices,<br />
conselhos <strong>de</strong> alpaca, opúsculos sobre<br />
o beijo, a apalpa<strong>de</strong>la ou mesmo a<br />
bimba<strong>de</strong>la – forma <strong>de</strong> coito que consiste<br />
em tentar evitar o rompimento<br />
do hímen. Tanto um como outro<br />
usam bastante do humor – refinado<br />
aqui, liminarmente porco acolá.<br />
Quanto a “O Vício Em Lisboa”, esse<br />
po<strong>de</strong> ser <strong>da</strong>tado com precisão: é<br />
<strong>de</strong> 1912, constituindo “uma espécie<br />
<strong>de</strong> radiografia <strong>da</strong> prostituição <strong>da</strong> época”.<br />
Hoje temos na net críticas <strong>de</strong> prostituição<br />
que incluem não só um olhar<br />
sobre as capaci<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>da</strong>s/dos profissionais<br />
mas também quão atenciosa<br />
foi a reccepção, quão higiénico era o<br />
lugar. Este tipo <strong>de</strong> informação já existia<br />
antigamente – e está recolhi<strong>da</strong><br />
n’”O Vício”.<br />
De acordo com António Ventura,<br />
“<strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1840 que há livros sobre a<br />
prostituição em Lisboa e Porto”.<br />
A prostituição, na época, não sendo<br />
inteiramente legal, era “tolera<strong>da</strong>”.<br />
Daí vem o termo “casa <strong>de</strong> tolerância”<br />
ou “casa tolera<strong>da</strong>” que equivale a “lupanar”<br />
ou “bor<strong>de</strong>l”. O que se faz em<br />
Uma nova colecção resgata a<br />
pornografia nacional <strong>da</strong> viragem<br />
do século XIX para o XX: e assim<br />
(re)<strong>de</strong>scobrimos que não éramos<br />
<strong>de</strong> brandos costumes, mas tão<br />
malandros, liberais,<br />
sofisticados e <strong>da</strong>dos<br />
ao prazer como<br />
“os<br />
espanhóis ou os<br />
franceses”, diz António<br />
Ventura, organizador.<br />
João Bonifácio<br />
Eles sabiam-na<br />
16 • Sexta-feira 1 Abril 2011 • Ípsilon