chama-nos da selva O cinema de Apichatpong Weerasethakul
chama-nos da selva O cinema de Apichatpong Weerasethakul
chama-nos da selva O cinema de Apichatpong Weerasethakul
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
ERIC GAILLARD/ REUTERS<br />
“Blissfully<br />
Yours”,<br />
“Tropical<br />
Malady”<br />
e “Sindromes<br />
and a<br />
Century”,<br />
obras<br />
anteriores<br />
LUCAS JACKSON/ REUTERS<br />
um monge budista, sobre um homem<br />
(Boonmee) que certo dia apareceu no<br />
templo garantindo que, enquanto<br />
meditava, podia recor<strong>da</strong>r ao <strong>de</strong>talhe<br />
as suas vi<strong>da</strong>s passa<strong>da</strong>s. “Tio Boonmee”<br />
não é uma a<strong>da</strong>ptação <strong>da</strong> obra<br />
<strong>de</strong> 1983, porque <strong>Apichatpong</strong> percebeu<br />
que não seria capaz <strong>de</strong> fazê-lo. É,<br />
antes, um “diário pessoal” em que o<br />
realizador armazena algumas <strong>da</strong>s suas<br />
próprias memórias.<br />
“O livro é incrível, porque tem uma<br />
linha temporal cheia <strong>de</strong> saltos, entre<br />
várias vi<strong>da</strong>s e memórias. Sou fascinado<br />
pelo acto <strong>de</strong> recor<strong>da</strong>r, <strong>de</strong> como <strong>nos</strong><br />
conseguimos lembrar <strong>da</strong>s coisas. E<br />
sou uma pessoa muito esqueci<strong>da</strong>. Foi<br />
por isso que quis fazer um filme sobre<br />
as minhas memórias – eu quero recor<strong>da</strong>r”,<br />
vinca. Depois <strong>de</strong> ler o livro,<br />
percebeu que estava perante um homem<br />
que “era uma máquina <strong>de</strong> memórias”,<br />
que voltava a vi<strong>da</strong>s passa<strong>da</strong>s<br />
como se fossem sonhos. “Num certo<br />
sentido é como o <strong>cinema</strong>, on<strong>de</strong> po<strong>de</strong>mos<br />
saltar no tempo.”<br />
O realizador, que ao mesmo tempo<br />
que faz projectos como este já trabalhou<br />
em peque<strong>nos</strong> filmes para a Dior<br />
e a Louis Vuitton, começou então a<br />
pensar que seria <strong>de</strong>safiante fazer um<br />
filme a partir <strong>da</strong>li. Hoje não tem dúvi<strong>da</strong>s:<br />
“Acho que falhei”. Porquê?<br />
“Quando li o livro foi tão fantástico…<br />
De ca<strong>da</strong> vez que o leio tenho imagens<br />
diferentes. Boonmee chegou mesmo<br />
a ser um fantasma. E como é que se<br />
põe isso em imagens?” Explica que<br />
com o livro “a imaginação solta-se<br />
mais, não tem amarras”. Já o <strong>cinema</strong><br />
“é limitação”. “E é por isso que ponho<br />
tanto <strong>de</strong> mim e me<strong>nos</strong> do livro.” Entre<br />
as criações narrativas <strong>de</strong> <strong>Apichatpong</strong>,<br />
está o tomo em que uma princesa<br />
(também retira<strong>da</strong> do imaginário<br />
<strong>da</strong> TV e <strong>da</strong>s telenovelas tailan<strong>de</strong>sas)<br />
faz sexo com um peixe-gato num lago.<br />
É uma alegoria do belo e <strong>da</strong> i<strong>de</strong>ologia<br />
do belo, “<strong>de</strong> como as pessoas querem<br />
manter a mesma aparência” e seguir<br />
os padrões.<br />
Til<strong>da</strong><br />
Swinton tem<br />
já encontro<br />
marcado com<br />
o cineasta<br />
tailandês num<br />
projecto sobre<br />
o rio Mekong<br />
Comentário<br />
Vasco<br />
Câmara<br />
Tim Burton, e o regresso ao planeta dos<br />
macacos: “Uma <strong>da</strong>s coisas que gosto <strong>de</strong>ste<br />
festival [Cannes] é ver coisas que não vemos<br />
habitualmente. Vemos muitos filmes, sabem, o<br />
mundo está a ficar ca<strong>da</strong> vez mais pequeno e os<br />
filmes tornam-se mais oci<strong>de</strong>ntalizados ou<br />
hollywoodizados e com este filme senti que estava a ver<br />
[alguma coisa] <strong>de</strong> outro país, <strong>de</strong> outra perspectiva. Pelos<br />
temas, usando elementos <strong>de</strong> fantasia <strong>de</strong> uma forma que<br />
nunca tinha visto antes. Por isso senti que era um bonito<br />
e estranho sonho que não se vê com frequência.”<br />
Isto era Tim Burton, citado pelo “Toronto Star”, na<br />
conferência <strong>de</strong> imprensa do Palmarés <strong>de</strong> Cannes 2010,<br />
cujo júri, que ele presidiu, atribuiu a Palma <strong>de</strong> Ouro a “O<br />
Tio Boonmee que se lembra <strong>da</strong>s suas vi<strong>da</strong>s anteriores”,<br />
<strong>de</strong> <strong>Apichatpong</strong> <strong>Weerasethakul</strong>. Foi <strong>da</strong>queles palmarés<br />
em que um festival se mostra à frente, <strong>da</strong>queles palmarés<br />
que, para além <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r fazer bem a um filme, faz bem<br />
a um festival – até porque, no caso concreto, elevou<br />
para uma fasquia <strong>de</strong> excelência uma competição que na<br />
reali<strong>da</strong><strong>de</strong> foi só sofrível – e ao <strong>cinema</strong>.<br />
E foi um abanão – como<br />
aquele outro, em 1999, em<br />
que o júri presidido por David<br />
Na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />
isto é <strong>cinema</strong> em 3D.<br />
Mas neste caso,<br />
para o ver, é preciso<br />
tirar os óculos<br />
<strong>Apichatpong</strong> <strong>Weerasethakul</strong> cumprimenta o presi<strong>de</strong>nte do júri Tim Burton na noite do Palmarés<br />
<strong>de</strong> Cannes 2010 – ro<strong>de</strong>ados pelos outros premiados, como Juliette Binoche ou Javier Bar<strong>de</strong>m<br />
Para sermos melhores espectadores<br />
Cronenberg se <strong>de</strong>ixou invadir<br />
pela correria <strong>de</strong> “Rosetta”,<br />
dos irmãos Dar<strong>de</strong>nne, e, para<br />
cúmulo dos seus pecados,<br />
premiou os não-actores <strong>de</strong><br />
“L’Humanité”, <strong>de</strong> Bruno<br />
Dumont, que tinha irritado<br />
muita gente e que ain<strong>da</strong> ficou<br />
com o Gran<strong>de</strong> Prémio do Júri.<br />
Para alguns a <strong>selva</strong> <strong>de</strong><br />
<strong>Apichatpong</strong> foi uma epifania,<br />
para outros uma agressão. Aplausos entusiasmados<br />
perante o anúncio do júri (aquilo que se ouviu na sala<br />
em que a imprensa seguia a cerimónia dos prémios),<br />
entusiasmos no “Mon<strong>de</strong>” ou no “Libération” (e no<br />
PÚBLICO), um “vi-o duas vezes e aborreci-me duas<br />
vezes” (“L’Express”, mas ca<strong>da</strong> um aborrece-se com<br />
aquilo que po<strong>de</strong>) e um “grotesca Palma <strong>de</strong> Ouro” no “El<br />
País”, título e artigo que sintetizaram, como lhe <strong>chama</strong>r?,<br />
o medo, a intimi<strong>da</strong>ção, perante o <strong>de</strong>sconhecido. Uma<br />
guerrilha cultural, o “mainstream” feita virgem ofendi<strong>da</strong><br />
pelo “alternativo”? O que quer que ca<strong>da</strong> uma <strong>de</strong>ssas<br />
categorias seja...<br />
O último filme <strong>de</strong> <strong>Weerasethakul</strong>, “ou o que quer<br />
que essa coisa seja”, escrevia-se nesse artigo do diário<br />
espanhol, seria uma invenção dos festivais, “do ridículo<br />
gueto dos festivais”. Mas que outra coisa po<strong>de</strong> ser um<br />
festival, <strong>de</strong> <strong>cinema</strong>, <strong>de</strong> música, <strong>de</strong> teatro, <strong>de</strong> literatura,<br />
<strong>de</strong> qualquer coisa, a não ser um gueto (mais ou me<strong>nos</strong><br />
ridículo) on<strong>de</strong> – é isso que se espera – se tacteia o futuro<br />
e às vezes se encontra e outras vezes se vê miragens a<br />
ca<strong>da</strong> esquina?<br />
Acusações, ao júri, na pessoa do seu presi<strong>de</strong>nte,<br />
<strong>de</strong> fascínio pelo “vanguardismo”, pelo “rebuscado<br />
hermetismo” por uma “poética difícil <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificar”,<br />
pela “patética linguagem expressiva” <strong>de</strong> <strong>Weerasethakul</strong>?<br />
Sim, isso tudo. Mas a palavra que aqui interessa é<br />
“fascínio”. Ou esse é um pecado, na perspectiva <strong>de</strong><br />
quem se <strong>de</strong>scobre incapaz <strong>de</strong> aí chegar?<br />
Não passou <strong>de</strong>spercebido o facto <strong>de</strong> no ano do seu<br />
“blockbuster” “Alice no País <strong>da</strong>s Maravilhas” – filme<br />
tão normalizado pelos efeitos digitais e pelo 3D... – Tim<br />
Burton ter sido seduzido pela estranheza artesanal,<br />
ele que em tempos já foi cineasta <strong>selva</strong>gem e estranho<br />
(também <strong>de</strong> “poética difícil <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificar”?). Foram-lhe<br />
feitos juízos <strong>de</strong> intenções: o americano quis fazer-se<br />
“cool” ao <strong>da</strong>r o prémio ao tailandês, o gesto terá sido<br />
calculista (até se escreveu: se ele gosta <strong>de</strong>sses filmes,<br />
porque é que não os faz em Hollywood?). Preferimos<br />
esta versão, me<strong>nos</strong> cínica embora subjectiva como as<br />
outras: os fantasmas (e não só a criatura felpu<strong>da</strong> saí<strong>da</strong><br />
<strong>de</strong> uma versão barata <strong>de</strong> “Star Wars”) recor<strong>da</strong>ram a Tim<br />
Burton o cineasta que ele já foi, sem CGI e sem 3D. Como<br />
quem recor<strong>da</strong> vi<strong>da</strong>s passa<strong>da</strong>s. O Tio Burton lembrou-se<br />
<strong>da</strong>s suas vi<strong>da</strong>s anteriores.<br />
Não é outro o <strong>de</strong>safio <strong>de</strong> <strong>Apichatpong</strong> <strong>Weerasethakul</strong><br />
com este filme que faz o levantamento <strong>da</strong> memória <strong>de</strong><br />
uma cultura específica, a do Noroeste <strong>da</strong> Tailândia,<br />
que (<strong>nos</strong>) mergulha numa floresta animista – a curta<br />
“Letter do Uncle Boonmee”, exibi<strong>da</strong> o ano passado no<br />
IndieLisboa, foi um preliminar, um agitar <strong>da</strong> memória<br />
para a natureza começar a falar – mas, sobretudo, que<br />
<strong>nos</strong> confronta no lugar universal <strong>de</strong> espectadores:<br />
lembra-<strong>nos</strong> aquilo que já fomos, nesta e noutras vi<strong>da</strong>s <strong>de</strong><br />
espectadores.<br />
É uma experiência <strong>de</strong> estados alterados “O Tio<br />
Boonmee que se lembra <strong>da</strong>s suas vi<strong>da</strong>s anteriores”,<br />
uma reserva <strong>de</strong> sensações, <strong>de</strong> energia e <strong>de</strong> imaginação<br />
que o espectador <strong>de</strong>scobre existir (e feliz o que assim<br />
se <strong>de</strong>scobre) e que o filme nele vai apurando. Numa<br />
entrevista à revista “Cinemascope”, <strong>Weerasethakul</strong><br />
falava <strong>da</strong> diferença entre as suas instalações e os seus<br />
filmes. No primeiro caso, no espaço <strong>de</strong> uma galeria,<br />
espectador e instalação seriam como dois animais que se<br />
farejam mutuamente, o espectador estando activo; numa<br />
sala <strong>de</strong> <strong>cinema</strong> o espectador seria como um “zombie”,<br />
subjugado e hipnotizado perante o po<strong>de</strong>r “extremo” do<br />
filme. Ficámos subjugados perante o que disse o senhor<br />
<strong>Weerasethakul</strong>. E ficámos subjugados perante o filme. O<br />
ecrã po<strong>de</strong> tornar-se “branco”, aberto a que projectemos<br />
nele as <strong>nos</strong>sas memórias. É experiência física: um filme,<br />
uma câmara, os animais e a natureza permitindo esta<br />
sensação <strong>de</strong> estar sujeito à transformação.<br />
Coisa <strong>de</strong> “pureza”? Na<strong>da</strong> disso, como po<strong>de</strong> ser “puro”<br />
o <strong>cinema</strong> <strong>de</strong> um arquitecto <strong>de</strong> formação, tailandês,<br />
que estudou <strong>cinema</strong> em Chicago e que cita Antonioni,<br />
Jacques Tourneur, o <strong>cinema</strong> <strong>de</strong> ficção científica ou os<br />
subprodutos <strong>da</strong> TV tailan<strong>de</strong>sa?<br />
Coisa “primitiva”? Sim, no sentido — na<strong>da</strong> elitista,<br />
já agora – do <strong>cinema</strong> como espectáculo que <strong>nos</strong> <strong>de</strong>ixa<br />
boquiabertos <strong>de</strong> espanto. Como já estivemos. Como já<br />
fomos, espectadores me<strong>nos</strong> formatados.<br />
Na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, isto é <strong>cinema</strong> em 3D. Mas neste caso, para<br />
o ver, é preciso tirar os óculos.<br />
Ípsilon • Sexta-feira 1 Abril 2011 • 9