COLECÇÃO CINEMATECA PORTUGUESA - MUSEU DO CINEMA Quando eles filmav Saíram para as ruas <strong>de</strong> câmaras nas mãos logo no dia 25 <strong>de</strong> Abril. Ocuparam o instituto do <strong>cinema</strong> e as notícias não chegavam. Havia todo um país a mostrar. Muitos <strong>de</strong>sses filmes nunca mais foram v 12 • Sexta-feira 1 Abril 2011 • Ípsilon
vam a revolução e a censura, filmaram ocupações, fábricas em auto-gestão, al<strong>de</strong>ias em Trás-os-Montes on<strong>de</strong> vistos. Vamos vê-los no Panorama, a partir <strong>de</strong> hoje, S. Jorge, Lisboa. Alexandra Prado Coelho Tinham pedido a José Nascimento que, aproveitando o facto <strong>de</strong> ir frequentemente montar filmes nas instalações <strong>da</strong> televisão, tentasse perceber como ia ser o golpe que se sabia que estava a ser preparado. O cineasta não soube tudo mas conseguiu algumas informações. “Sabíamos que as rádios iam passar o Grândola Vila Morena e que isso seria o sinal <strong>de</strong> arranque”. Na noite <strong>de</strong> 24 <strong>de</strong> Abril saiu para a rua à procura <strong>de</strong> sinais. Lisboa estava calma. “Andámos até às duas <strong>da</strong> manhã, mas só tar<strong>de</strong> começámos a ver algumas movimentações, sobretudo junto ao Rádio Clube Português.” Decidiram que o melhor seria dormirem algumas horas, e no dia 25 levantaram-se cedo, passaram pela produtora Telecine, conseguiram uma câmara <strong>de</strong> 16 milímetros e foram para o Largo do Carmo filmar a revolução. No Carmo a confusão era já muita. Outro cineasta e produtor, António Cunha Telles, tinha ouvido as notícias na rádio e fora imediatamente para o local. “Por acaso tinha uma câmara <strong>de</strong> filmar e fui com ela <strong>de</strong>baixo do braço. Fiquei à espera que acontecessem coisas importantes.” O ambiente era <strong>de</strong> tensão. Marcelo Caetano <strong>de</strong>ntro do quartel, Salgueiro Maia, à frente <strong>da</strong>s tropas revolucionárias, no exterior. “O Salgueiro Maia “De início só me interessava o registo, essa era a preocupação, e a <strong>nos</strong>sa disponibili<strong>da</strong><strong>de</strong> total. Estávamos a viver um período único e teríamos que <strong>da</strong>r tudo por tudo para estar nesse processo” Rui Simões disse que às três horas abria caminho a fogo”, conta Cunha Telles. “Eu estava <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um cafezinho, saí e <strong>de</strong> um lado estava a GNR e do outro as tropas do Salgueiro Maia. Quando quis voltar para <strong>de</strong>ntro a porta já estava fecha<strong>da</strong>.” Ficou à espera, guar<strong>da</strong>ndo a única bobine <strong>de</strong> filme que tinha para um momento crucial. E o momento aconteceu. “Às três horas o Salgueiro Maia resolve atacar e, ao contrário do que se diz, houve mesmo fogo. Filmei as bazucas que foram dispara<strong>da</strong>s contra a porta do quartel do Carmo, imagens que foram <strong>de</strong>pois usa<strong>da</strong>s em pré-genérico do ‘As Armas e o Povo’”. O filme, <strong>de</strong> 1975, assinado pelo colectivo dos Trabalhadores <strong>da</strong> Activi<strong>da</strong><strong>de</strong> Cinematográfica, é um dos vários que po<strong>de</strong>m ser vistos a partir <strong>de</strong> hoje e até dia 10 no São Jorge, em Lisboa, no Panorama – 5ª Mostra do Documentário Português (“As Armas e o Povo”, dia 2 às 21h30). Numa edição que lança a pergunta “Como se relaciona o documentário português com o mundo hoje?”, e on<strong>de</strong> serão exibidos os mais recentes documentários <strong>de</strong> realizadores portugueses, regressa-se aos dias <strong>da</strong> revolução para <strong>de</strong>scobrir, através <strong>de</strong> filmes que em muitos casos passaram uma vez na televisão e nunca mais foram vistos, como era filmar num momento <strong>de</strong> “urgência”, em que havia todo um país novo a mostrar. “Estava sempre tudo a acontecer, a to<strong>da</strong> a hora e em todo o lado, e era muito complicado conseguirmos acompanhar”, recor<strong>da</strong> José Nascimento. “Havia sempre notícias cruza<strong>da</strong>s. E isso para quem quer filmar acontecimentos é o pior que po<strong>de</strong> acontecer. Não há maneira <strong>de</strong> saber o que é mais importante, ou se chegamos lá e já acabou. Havia essa fragili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> não se saber se quando chegássemos ao acontecimento ain<strong>da</strong> haveria acontecimento.” E o Couraçado Potemkin? Tudo se passava a uma veloci<strong>da</strong><strong>de</strong> alucinante. Os cineastas começaram a organizar-se e a 29 <strong>de</strong> Abril ocuparam as instalações do Instituto Português <strong>de</strong> Cinema, criando as <strong>chama</strong><strong>da</strong>s Uni<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> Produção. “Não estive na ocupação do IPC mas estive na <strong>da</strong> censura”, conta Cunha Telles. “É que, mesmo <strong>de</strong>pois do 25 <strong>de</strong> Abril, a censura continua a existir. Eu ia estrear o filme ‘Jaime’, do António Reis, e a censura, muito zelosa, telefonou-me a dizer que não podia. Agarrei no [músico] Zeca Afonso e no dia seguinte, <strong>de</strong> madruga<strong>da</strong>, juntamente com outros camara<strong>da</strong>s, fomos ocupar a censura.” A cena teve momentos caricatos, como acontecia por aqueles dias. “Quando entrámos <strong>de</strong>scobrimos que havia uma sala fecha<strong>da</strong> on<strong>de</strong> se ouviam uns choros. Eram as secretárias <strong>da</strong> censura que se tinham fechado ali com medo <strong>de</strong> serem fuzila<strong>da</strong>s. Lá as convencemos a abrir a porta e explicámos que iam ficar <strong>de</strong>semprega<strong>da</strong>s porque a censura ia acabar, mas que <strong>de</strong> resto não tinham na<strong>da</strong> a temer porque ninguém as ia fuzilar.” Com as chaves <strong>da</strong> censura na mão, Cunha Telles dirigiu-se para a Cova <strong>da</strong> Moura, o quartel-general <strong>da</strong> Junta <strong>de</strong> Salvação Nacional. Falou com um tenente “ain<strong>da</strong> muito jovem”, que escreveu o documento <strong>de</strong>cretando o fim <strong>da</strong> censura em filmes para adultos. À saí<strong>da</strong>, o militar perguntou ao realizador: “Então, e ‘O Couraçado Potemkin’, quando é que sai?” Na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, Telles tinha já o filme <strong>de</strong> Eisenstein. “Tinha feito um acordo com os russos em que teria os direitos a partir do dia em que fosse possível exibir oficialmente em Portugal, por isso o filme estava na prateleira à espera.” Não esperou muito mais: no primeiro 1º <strong>de</strong> Maio em liber<strong>da</strong><strong>de</strong>, “O Couraçado Potemkin” estreava, em glória, no <strong>cinema</strong> Império, na Alame<strong>da</strong>, em Lisboa. “As pessoas estavam a reunir-se na Alame<strong>da</strong> para comemorar o 1º <strong>de</strong> Maio quando o pano com ‘O Couraçado Potemkin’ começa a ser içado na frontaria imensa do Império. Teve a maior salva <strong>de</strong> palmas <strong>de</strong> que me lembro.” Nesse 1º <strong>de</strong> Maio um grupo <strong>de</strong> cineastas tinha-se juntado com a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> fazer “As Armas e o Povo”. Foram buscar película aos laboratórios <strong>da</strong> Tóbis, dividiram-se em várias equipas e espalharam-se por Lisboa. No filme as imagens são frenéticas – pessoas a serem entrevista<strong>da</strong>s na rua, “o que pensa <strong>da</strong> revolução?”, “qual a sua posição sobre a guerra em África?”, perguntas muitas <strong>de</strong>las dispara<strong>da</strong>s com enorme entusiasmo pelo cineasta brasileiro Glauber Rocha, que entretanto tinha chegado a Portugal. Era o <strong>cinema</strong> possível Quem não estava em Portugal nesses primeiros dias era outro cineasta, Alberto Seixas Santos. “O meu nome aparece sempre que se fala no ‘As Armas e o Povo’ mas não participei nele porque estava na Suécia a ser operado. Lembro-<strong>de</strong> <strong>de</strong> ver aquele célebre travelling com as caras dos membros do Conselho <strong>da</strong> Revolução, que me assustaram imenso. A única coisa que me acalmou foi ver o Spínola. Pensei ‘bem, pelo me<strong>nos</strong> não é o Kaúlza <strong>de</strong> Arriaga’. Na altura achava que íamos ter uma ditadura militar <strong>de</strong> direita.” No início <strong>de</strong> Maio chega também a Portugal, vindo <strong>de</strong> Bruxelas, Rui Simões, autor <strong>da</strong>queles que viriam a ser dois dos filmes mais marcantes <strong>de</strong>ste período: “Deus, Pátria e Autori<strong>da</strong><strong>de</strong>” (dia 2 às 17h no Panorama) e “Bom Povo Português” (dia 7 às 21h30). “Bom Povo Português”, <strong>de</strong> Rui Simões Ípsilon • Sexta-feira 1 Abril 2011 • 13