chama-nos da selva O cinema de Apichatpong Weerasethakul
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ma instalação ví<strong>de</strong>o <strong>de</strong> 11 minutos,<br />
disponível em www.animateprojects.<br />
org.<br />
“Sinto necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> olhar para a<br />
região on<strong>de</strong> cresci. Normalmente<br />
foco-me em pessoas, <strong>nos</strong> meus sentimentos<br />
em relação a elas. Mas a situação<br />
política na Tailândia <strong>nos</strong> últimos<br />
cinco a<strong>nos</strong> tem sido muito tensa e sinto<br />
que as regiões do nor<strong>de</strong>ste têm<br />
uma forte relação com isso”, começa<br />
<strong>Apichatpong</strong>.<br />
Quis tocar o presente olhando o<br />
passado. Reflectir sobre as revoltas<br />
dos “camisas vermelhas”, que marcaram<br />
a Tailândia <strong>nos</strong> últimos a<strong>nos</strong> e<br />
particularmente em 2010, com um<br />
<strong>de</strong>senlace sangrento poucos dias antes<br />
<strong>de</strong> <strong>Apichatpong</strong> receber a Palma<br />
<strong>de</strong> Ouro. Descobriu Nabua enquanto<br />
viajava pelo nor<strong>de</strong>ste me<strong>nos</strong> turístico<br />
<strong>de</strong> um país que fervilha enquanto copia<br />
as práticas <strong>da</strong>s socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s capitalistas<br />
mantendo forte base tradicionalista<br />
e religiosa.<br />
A al<strong>de</strong>ia foi, entre os a<strong>nos</strong> 1960 e<br />
1980, i<strong>de</strong>ntifica<strong>da</strong> pelo regime como<br />
um bastião comunista. A violência<br />
apertou, os homens foram perseguidos<br />
e os que não morreram fugiram<br />
para a <strong>selva</strong>. Sobraram as viúvas e os<br />
<strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes que <strong>Apichatpong</strong> retrata<br />
em “Primitive”. Descreve o lugar<br />
como uma al<strong>de</strong>ia tipicamente tailan<strong>de</strong>sa,<br />
povoa<strong>da</strong> por velhos e crianças.<br />
Os jovens trabalham na ci<strong>da</strong><strong>de</strong> e regressam<br />
apenas para o período <strong>da</strong><br />
colheita do arroz.<br />
“Fui atingido por esta al<strong>de</strong>ia e pela<br />
sua história <strong>de</strong> <strong>de</strong>saparecimento”,<br />
conta. Hoje com 40 a<strong>nos</strong>, não sentiu<br />
na pele as convulsões políticas do país.<br />
Mas viveu-as indirectamente. “Não<br />
tive a experiência directa que no passado<br />
as pessoas <strong>da</strong>s ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s tiveram.<br />
Com estes adolescentes passa-se o<br />
mesmo, eles experimentam este processo<br />
em segun<strong>da</strong> mão. Por isso sintome<br />
mais próximo <strong>de</strong>les do que se<br />
trabalhasse com as ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iras vítimas.<br />
Tive uma experiência distante e<br />
i<strong>de</strong>ntifico-me com a forma como eles<br />
vivem os acontecimentos <strong>de</strong> hoje.”<br />
A maior crise política <strong>da</strong>s últimas<br />
duas déca<strong>da</strong>s na Tailândia fez <strong>de</strong>zenas<br />
<strong>de</strong> mortos durante os protestos<br />
dos “camisas vermelhas” em Banguecoque,<br />
em Abril e Maio do ano passado.<br />
A população do norte e nor<strong>de</strong>ste<br />
rural <strong>de</strong>sceu à capital para enfrentar<br />
aquelas que vêem como as elites<br />
do país, que acusam <strong>de</strong> terem tomado<br />
o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>pois do golpe <strong>de</strong> Estado<br />
que <strong>de</strong>stituiu o primeiro-ministro<br />
Thaksin Shinawatra, em 2006. Dias<br />
<strong>de</strong>pois, os jornais tailan<strong>de</strong>ses largavam<br />
a tragédia para <strong>da</strong>r lugar ao feito<br />
histórico logrado por <strong>Apichatpong</strong><br />
para o <strong>cinema</strong> <strong>da</strong>quele país. Foi uma<br />
espécie <strong>de</strong> orgulho nacional <strong>de</strong> uma<br />
ban<strong>de</strong>ira com feri<strong>da</strong>s renova<strong>da</strong>s.<br />
“Se olhar para as pessoas, elas vêm<br />
do mesmo tipo <strong>de</strong> regime opressor,<br />
do Exército e <strong>de</strong> outras instituições.<br />
E até hoje não houve nenhum pedido<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>sculpas a este povo”, refere <strong>Apichatpong</strong><br />
sobre os conflitos. Para o<br />
artista, a Tailândia “continua agora<br />
mesmo a ver a violência a acontecer,<br />
o apontar <strong>de</strong> <strong>de</strong>do. Ninguém é suficientemente<br />
corajoso para pedir <strong>de</strong>sculpa,<br />
preferem ficar com as mãos<br />
sujas <strong>de</strong> sangue”.<br />
No filme, a personagem Boonmee<br />
(interpreta<strong>da</strong> por Thanapat Saisaymar)<br />
também refere directamente a<br />
perseguição feita aos comunistas. Ou<br />
se estava com os vermelhos ou contra<br />
eles e, com a morte a aproximar-se,<br />
Boonmee, servo do regime, recor<strong>da</strong><br />
os homens que silenciou. A referência<br />
“não foi planea<strong>da</strong> no início” e surgiu<br />
“<strong>da</strong> necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> ligar a história<br />
<strong>da</strong>quela região à história <strong>de</strong> Boonmee”,<br />
que <strong>Apichatpong</strong> encontrou<br />
num pequeno livro inspirador.<br />
“Tudo está a mu<strong>da</strong>r.<br />
Isso acontece<br />
também no modo<br />
como fazemos filmes,<br />
em que tudo está<br />
a tornar-se digital.<br />
Este filme é uma<br />
<strong>de</strong>spedi<strong>da</strong>, foi filmado<br />
em 16 milímetros<br />
e tem quali<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />
muito artesanais”<br />
Tributos<br />
<strong>Apichatpong</strong> <strong>Weerasethakul</strong> vê “Tio<br />
Boonmee...” – <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iro elemento<br />
do projecto “Primitive” que começou<br />
a mostrar em 2009 – como “um tributo<br />
a to<strong>da</strong> as coisas que estão a morrer”,<br />
a começar pelo protagonista.<br />
Tributo esse que se esten<strong>de</strong> a uma<br />
maneira <strong>de</strong> fazer <strong>cinema</strong>. “Tudo está<br />
a mu<strong>da</strong>r, a transformar-se. Isso acontece<br />
também no modo como fazemos<br />
filmes, em que tudo está a tornar-se<br />
digital. Depois, a forma como trabalhamos,<br />
o mercado, os meios <strong>de</strong> distribuição...<br />
Este filme, nesse sentido,<br />
é uma <strong>de</strong>spedi<strong>da</strong>, foi filmado em 16<br />
milímetros e tem quali<strong>da</strong><strong>de</strong>s muito<br />
artesanais.”<br />
A <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong> ro<strong>da</strong>r em 16 milímetros<br />
ajudou a reduzir o orçamento e serviu<br />
para <strong>da</strong>r ao filme uma textura que recor<strong>da</strong><br />
<strong>da</strong> TV tailan<strong>de</strong>sa que via em<br />
adolescente. “Ain<strong>da</strong> sou <strong>de</strong>sse tempo<br />
em que os programas eram filmados<br />
assim, em estúdio, e em que os monstros<br />
estavam sempre no escuro, para<br />
que não se visse como a caracterização<br />
e o guar<strong>da</strong>-roupa eram maus. Por<br />
isso quis mostrar o modo como me<br />
sentia em relação a essa coisas com<br />
que cresci”, diz. Comenta uma <strong>da</strong>s<br />
cenas mais fala<strong>da</strong>s, em que o fantasma<br />
<strong>da</strong> mulher <strong>de</strong> Boonmee e o filho <strong>de</strong>saparecido<br />
surgem no ecrã. O segundo<br />
está vestido <strong>de</strong> macaco, com um<br />
fato que tem semelhanças a Chewbacca,<br />
<strong>de</strong> “Star Wars”, e uns olhos vermelhos<br />
flamejantes. Uma <strong>da</strong>s personagens,<br />
com a maior serie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>ste<br />
mundo e do outro, pergunta-lhe por<br />
que <strong>de</strong>ixou crescer tanto o cabelo.<br />
<strong>Apichatpong</strong> ri-se do nonsense.<br />
“Quando olho para o <strong>cinema</strong> antigo,<br />
tenho sempre um sentimento duplo,<br />
que por um lado é <strong>de</strong> tristeza por<br />
todos aqueles actores que já <strong>de</strong>sapareceram.<br />
Por outro é <strong>de</strong> divertimento,<br />
porque eles são muito sérios em relação<br />
ao seu papel <strong>de</strong> intérpretes. Queria<br />
que o público tivesse esta sensação<br />
esquisita entre ter vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> chorar<br />
ou <strong>de</strong> rir”, continua.<br />
A personagem do macaco nasceu<br />
<strong>de</strong> um compêndio <strong>de</strong> influências que<br />
vão dos “comics” tailan<strong>de</strong>ses à televisão,<br />
passando pela ficção científica.<br />
Estas e outras homenagens ao passado<br />
fazem com que <strong>Apichatpong</strong> <strong>de</strong>sconfie<br />
quando lhe dizem que está a fazer algo<br />
<strong>de</strong> novo com o <strong>cinema</strong>. “Não sei o que<br />
é novo. Há tantos tipos <strong>de</strong> <strong>cinema</strong> experimental...<br />
É como um universo em<br />
que é impossível i<strong>de</strong>ntificar tudo o que<br />
as pessoas têm vindo a fazer. Não penso<br />
em como inventar qualquer coisa<br />
mas em como posso fazer filmes que<br />
estejam relacionados com os meus<br />
sentimentos. Esse é o meu ângulo. Como<br />
se po<strong>de</strong> ver, o ‘Tio Boonmee’ tem<br />
imensas referências a <strong>cinema</strong> clássico.<br />
Na<strong>da</strong> há <strong>de</strong> inventivo ali.”<br />
Quero recor<strong>da</strong>r<br />
Para <strong>Apichatpong</strong>, “o conceito é o<br />
mais importante” e, no caso <strong>de</strong>ste<br />
filme, começou a construir-se <strong>de</strong>pois<br />
<strong>de</strong> ter encontrado um livro escrito por<br />
O realizador e os actores na ro<strong>da</strong>gem <strong>de</strong> uma<br />
<strong>da</strong>s mais belas sequências do filme: os fantasmas à mesa<br />
O Tio<br />
Boonmee<br />
está a morrer<br />
e a sua vi<strong>da</strong> -<br />
as suas outras<br />
vi<strong>da</strong>s e os<br />
seus<br />
fantasmas -<br />
sentam-se<br />
à sua mesa<br />
8 • Sexta-feira 1 Abril 2011 • Ípsilon