(Saint-Louis e Gorée), não perdurou nos territórios ocupa<strong>dos</strong> pela França ao longo <strong>dos</strong>éculo XIX, nomeadamente em África e na Ásia. A partir de 1848, sob efeito conjugadodo sufrágio universal, da abolição definitiva da escravidão, e, além disso, derepresentações sobre a distância cultural e “civilizacional” em que se encontravam ospovos mais recentemente conquista<strong>dos</strong>, na Argélia, em África e no Extremo Oriente,foram outras, e muito menos claras, as soluções encontradas pelos republicanosfranceses. Como se sabe, a resolução do problema do acesso das populações nativasdestes últimos territórios à cidadania passou pela invenção de categorias jurídicasambíguas, como as de “franceses não cidadãos”, “indígenas não cidadãos” ou “súbditosfranceses”, categorias que encerraram a maioria dessas populações num estatuto demenoridade sem prazo claramente definido. No caso da Argélia, para o período que nosinteressa, a fronteira que separava o francês não cidadão do francês cidadão passou aser clara a partir da publicação do Sénatus-Consulte que, a 14 de Julho de 1865,consagrou a nacionalidade francesa do “indígena muçulmano”, admitindo que elecontinuasse a ser regido pela lei muçulmana, mas recusando-lhe, por isso mesmo, acidadania francesa. A partir daquela data os argelinos passaram a ser, juridicamente,franceses mas, em virtude da diferença da sua religião e <strong>dos</strong> seus usos e costumes, nãopodiam ser cidadãos franceses. Para o serem tinham que requerer a naturalização,renunciar em bloco ao direito civil muçulmano e ser regi<strong>dos</strong> pelas leis civis francesas.Só assim seria observado, como então se argumentou, o princípio da igualdade perante alei 60 . A situação <strong>dos</strong> habitantes nativos <strong>dos</strong> outros territórios <strong>coloniais</strong> era muito maisambígua, porque não foi criado, durante o século XIX, nenhum procedimento denaturalização para esses indígenas, semelhantes ao criado para os indígenas argelinos.Sendo assim, eles “não eram considera<strong>dos</strong> como estrangeiros, mas também não podiamtornar-se plenamente franceses”. A situação jurídica <strong>dos</strong> que eram nativos daquelesterritórios caracterizou-se então, ao longo de todo o século, por um hibridismo quenunca foi doutrinal ou legislativamente esclarecido 61 . Isso aconteceu porque havia umarelação implícita entre “civilidade” e cidadania que relegava as populações com hábitose costumes diferentes <strong>dos</strong> europeus para um tempo histórico anterior e para ocorrespondente “grau civilizacional” (inferior) 62 . Foi essa também a situação da maioriadas populações nativas do ultramar português durante o século XIX e primeiros anos do60 V. P. Rosanvalon, Le Sacre du citoyen [...], cit.,p. 428.61 Idem, ibid., p. 424.62 Idem, ibid., p. 431.24
século XX. Neste aspecto, a recepção das opções políticas francesas em Portugal podeser concretamente aferida num decreto de 1869 onde o Ministro português do Ultramardeclarou inspirar-se, para a (in)definição do estatuto civil das populações ultramarinas,no exemplo francês da Argélia, do Senegal e da Cochinchina. De acordo com essediploma, que já aqui citámos, os indivíduos nativos <strong>dos</strong> territórios ultramarinosportugueses podiam optar, de comum acordo, por um <strong>dos</strong> ordenamentos jurídicos quevigorassem no território, o do Código Civil português de 1867 ou os <strong>dos</strong> “usos ecostumes”. Contudo, além de o fazerem individualmente, faziam-no caso a caso, e semque isso tivesse qualquer consequência formal do ponto de vista do seu estatuto face àcidadania portuguesa, pois não se previa, como tinha feito a legislação francesa emrelação aos argelinos muçulmanos, que pudessem renunciar em bloco ao seu direitocivil, para se tornarem cidadãos portugueses.A menoridade política e civil <strong>dos</strong> povos nativos das colónias francesas foiconfirmada pelo Code d’indigénat francês de 1881, no qual os indivíduos nativospassaram à condição de súbditos, que os diferenciava da de cidadão francês 63 . Nascolónias portuguesas a indefinição formal do estatuto das populações nativas só foidefinitivamente resolvida com a publicação, já em 1926, do primeiro Estatuto doIndígena, no qual se distinguiu, de forma sempre ambígua, os nativos portugueses queeram indígenas <strong>dos</strong> que podiam ser cidadãos, estabelecendo-se os critérios pelos quaisos primeiros poderiam aceder à cidadania 64 .63Publicado pelo governo francês a 28 de Julho de 1881, para ser aplicado na Argélia, este Código veio aser oficialmente aplicado a todas as colónias francesas em 1887 e só viria a ser formalmente abolido em1946. Através das suas determinações os indígenas foram, entre outras coisas, submeti<strong>dos</strong> a um regimepenal especial e ao trabalho forçado64Dec. lei nº 12.533 de 23 de Outubro de 1926, a Carta básica que estabeleceu o Estatuto político, civil ecriminal <strong>dos</strong> indígenas de Angola e Moçambique. Neste estatuto eram indígenas “os indivíduos de raçanegra ou dela descendentes que, pela sua ilustração e costumes, se não distingam do comum daquelaraça” (art. 3), a quem se negaram direitos políticos ou de participação em outras instituições que nãoapenas as suas, as “tradicionais”. Data no entanto de 1914 o primeiro diploma legislativo português ondefoi pensado um estatuto pessoal (civil, político e criminal) próprio para o indígena, que nele podia ser ou“cidadão da República”, com to<strong>dos</strong> os direitos civis e políticos, desde que falasse português ou qualqueroutra “língua culta”, não praticasse os usos e costumes característicos do meio indígena, exercesseprofissão, comércio ou indústria, ou possuísse bens de que se mantivesse, sendo os outros apenas“súbditos da República portuguesa”, v. Bases nº 16 a 18 da Lei nº 277 de 15 de Agosto de 1914 (Leiorgânica da administração civil das províncias ultramarinas) em Artur R. de Almeida Ribeiro,Administração Civil das Províncias Ultramarinas, proposta de Lei Orgânica e Relatório apresentado aoCongresso pelo Ministro das Colónias, Lisboa, Imprensa Nacional, 1914, p. 20. Sobre o Estatuto de 1926e os que se lhe seguiram, até à sua derrogação, v. A.D.S., “Estatuto <strong>dos</strong> Indígenas” in Fernando Rosas eJ.M. Brandão de Brito (orgs.), Dicionário de História do Estado Novo, Lisboa, Bertrand, 1996, vol. I, p.320.25