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Modelos coloniais - O Governo dos Outros

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Cristina Nogueira da Silva (professora auxiliar, Faculdade de Direito da UniversidadeNova de Lisboa)«MODELOS COLONIAIS» NO SÉCULO XIX (FRANÇA, PORTUGAL EESPANHA)FORMS OF COLONIAL GOVERNMENT DURING THE NINETEENTHCENTURY (FRANCE, PORTUGAL AND SPAIN)«MODELOS COLONIALES» EN EL SIGLO XIX (FRANCIA, PORTUGAL YESPAÑA)Publicado em: “«<strong>Modelos</strong> <strong>coloniais</strong>» no século XIX (França, Espanha, Portugal)”, inE-legal History Review, nº 7, 2009.Resumo:Na literatura colonial <strong>dos</strong> finais do século XIX- início do XX, a política colonialportuguesa surgiu, ao lado da francesa e, em geral, da <strong>dos</strong> países “latinos”, como umapolítica de assimilação, por oposição ao regime britânico de autonomia. A investigaçãosobre as políticas <strong>coloniais</strong> destes países mostra, contudo, que esta classificação não só(não) era rigorosa, como obedecia a critérios que estavam muito para além <strong>dos</strong> critérioscientíficos da nova “ciência da administração colonial. O objectivo deste artigo é o demostrar os contextos culturais e políticos em que estas classificações foram construídase os limites da sua força explicativa, por um lado e, por outro, identificar a recepção dasideias francesas nas políticas <strong>coloniais</strong> portuguesa e espanhola durante o século XIX,nomeadamente nos anos que se seguiram às invasões napoleónicas <strong>dos</strong> dois países.Abstract:Portuguese colonial literature written during the last years of the nineteenthcentury and the first years of the next century described Portuguese colonial policy as anassimilationist one, in opposition to the autonomic British model. According to theacademic opinion of those times, the Portuguese source of inspiration would have beenFrench colonial regime, a “model” to all the “latin nations”. Nevertheless, recent1


nacional, dividindo-os administrativamente em províncias (ou departamentos, no casofrancês) em tudo semelhantes às divisões metropolitanas e representando-os noparlamento metropolitano. Nesses territórios vigoravam, por consequência, a mesmaConstituição e as mesmas leis que vigoravam na metrópole, sendo os respectivoshabitantes (incluindo as populações nativas) cidadãos com direitos iguais aos dametrópole; (ii) Portugal como a França, seguia uma política centralizadora naadministração desses territórios, na qual quase todas as decisões eram tomadas emLisboa/Paris; (iii) Finalmente, os portugueses tendiam a praticar, como os franceses, a“assimilação” administrativa e cultural das populações nativas <strong>dos</strong> seus ultramares.Neste sistema, as autoridades tradicionais nativas, quando eram chamadas a colaborarna administração, convertiam-se em simples agentes do governo central.Pelas suas características, este modelo, que os autores associavam ao “regime deassimilação”, distinguia-se do modelo “de autonomia” seguido nas colónias britânicas.Aí, pelo contrário, as colónias eram territórios juridicamente distintos e tinham os seuspróprios órgãos representativos, com poderes legislativos (“… as colónias governam-sepor si próprias, regendo-se por leis feitas in loco pelos seus habitantes ou representantesidóneos” 3 ). No que diz respeito às relações com as populações nativas, nas colóniasbritânicas admitia-se o auto governo local por meio das instituições e autoridadestradicionais, respeitando-se os interesses e a cultura dessas populações.Esta forma de classificar as políticas <strong>coloniais</strong> encontra-se nas lições escritas porJosé Ferreira Marnoco e Souza (1869-1916), o primeiro professor da cadeira de Direitocolonial criada na Faculdade de Direito de Coimbra, em 1905 4 . E foi, depois,sistematicamente reproduzida (embora com alterações e uma redução assinalável dareflexão crítica que caracterizou estas primeiras lições) em obras posteriores sobreadministração colonial, nomeadamente em lições transcritas por alunos das Faculdadesde Direito, como as que atrás citámos 5 . De acordo com os académicos, mas tambémcom os administradores e os políticos que cultivavam a “ciência” da administraçãocolonial da época e, em geral, to<strong>dos</strong> os que reflectiam sobre o tema da colonização,havia no regime de assimilação seguido pelos portugueses uma forte influência das3 v. Marnoco e Souza, Administração colonial, prelecções feitas ao curso do 4º ano jurídico doano de 1906-1907, 1906, p. 103.4v. Marnoco e Souza, Administração colonial, prelecções feitas ao curso do 4º ano jurídico doano de 1906-1907, cit.5 v. Adriano Duarte Silva e Carlos Miranda, Lições de administração colonial, cit., p. 120 e ss.4


ideias igualitárias da revolução francesa e do “génio assimilador de Roma”, que povoslatinos como a França, a Espanha ou Portugal teriam herdado. Marnoco e Souza, porexemplo, explicou que “a política de assimilação tem sido seguida pelas nações da raçalatina, como herdeiras do génio assimilador de Roma. Portugal, Espanha e França são asnações colonizadoras que representam esta política. As ideias da revolução francesafavoreceram profundamente esta política. Efectivamente, a revolução francesaproclamou a igualdade de to<strong>dos</strong> os cidadãos, considerou os direitos proclama<strong>dos</strong> por elacomo pertencendo a to<strong>dos</strong> os homens, sem distinção de raça ou de latitude. Aconsequência natural e lógica era tratar os habitantes das colónias como os dametrópole, transportando para além <strong>dos</strong> mares os direitos do homem […]” 6 . Esta era umdas ideias que o professor tinha recolhido no livro de Arthur Girault, que tambémdescrevia a França como uma nação latina herdeira do espírito de “assimilaçãoromana”. A narrativa que lhe estava associada passava pela referência à preocupação dacolonização romana com o estatuto <strong>dos</strong> estrangeiros e <strong>dos</strong> “bárbaros” e também aoEdito de Caracala, o Imperador romano que, em 212 d.C., estendeu a cidadania romanaa to<strong>dos</strong> os habitantes do Império. Esta última referência já tinha surgido, em 1843, nadoutrina jurídica portuguesa, para caracterizar a relação da metrópole lusitana com osseus domínios e conquistas ultramarinos. Nesse ano, em comentário à obra doconhecido publicista Pascoal José de Mello Freire (1738-1798, Institutiones iuris civilisLusitaniae), António Liz Teixeira explicava aos alunos de Direito da Universidade deCoimbra que “[...] A Lusitânia, ou o nosso território, compreende Lisboa, as provínciase Domínios ultramarinos ou Conquistas” e que “o nosso Jus Civitatis se conservou,uniforme e igual para to<strong>dos</strong> os Cidadãos, não variando segundo a diversidade das partesdo território, o que já se observava entre os romanos desde Antonino Pio Caracala[...]” 7 .Era também comum que ao “espírito geométrico” da Revolução francesa e àlatinidade se juntasse a natureza ecuménica do cristianismo, enquanto factor que teriafavorecido o “assimilacionismo” nas políticas <strong>coloniais</strong> na França, Espanha e Portugal 8 .6 V. Marnoco e Souza, Administração colonial …, cit., p. 110.7 António Ribeiro de Liz Teixeira, Curso de Direito Civil portuguez para o ano lectivo de 1843-44, ouComentário às Instituições do Sr. Paschoal José de Mello Freire sobre o mesmo direito, Coimbra,Imprensa da Universidade, 1845, p. 129.8 v. Raymond F., Assimilation and Association in French Colonial Theory, 1890-1914, Lincolnand London, University of Nebraska Press, 2005 (1ª ed: 1960), p. 20 e ss.5


As classificações atrás descritas e as imagens que lhes estavam associadas eramsimplificadoras em vários senti<strong>dos</strong> e por vários motivos. Em primeiro lugar porque,como se referiu no início deste texto, é difícil falar de modelos de colonização, nãoobstante ser possível falar de “tendências” que caracterizaram, com maior ou menorevidência, as políticas <strong>coloniais</strong> seguidas por cada país. Por outro lado, as classificações<strong>dos</strong> regimes <strong>coloniais</strong> prosseguiam, muitas vezes, para além <strong>dos</strong> objectivos científicosinerentes à construção destas tipologias, o objectivo de enaltecer as capacidadescolonizadoras/civilizadoras das Nações, num discurso onde cada uma se apresentavacomo seguidora do modelo mais justo ou mais eficaz. Esse efeito estava desde logopresente no facto de surgir sempre, ao lado <strong>dos</strong> regimes legítimos da assimilação e daautonomia, um outro, menos aceitável nos “tempos modernos”, que era o da sujeição.Este último, que to<strong>dos</strong> remetiam para o passado colonial da Europa e admitiam serainda praticado, numa versão moderada, pela Holanda, era menos legítimo, porqueenvolvia a exploração das colónias em favor exclusivo da metrópole, nãocontemplando, ao contrário <strong>dos</strong> dois primeiros, um <strong>dos</strong> objectivos mais nobres dacolonização, a civilização <strong>dos</strong> povos “atrasa<strong>dos</strong>” 9 . Apreciada à luz do regime desujeição, a administração colonial francesa podia ser descrita como o regime ideal,porque “corresponde melhor ao fim superior da colonização, de expandir a civilizaçãoda mãe pátria em regiões bárbaras e selvagens” 10 .Outras vezes, as mesmas classificações foram usadas para favorecer discursos deautocrítica, que fundamentassem alterações nas políticas <strong>coloniais</strong> seguidas, por meio dadenúncia das fragilidades <strong>dos</strong> “modelos”, ainda que legítimos, segui<strong>dos</strong> até então. Apartir <strong>dos</strong> finais do século XIX, por exemplo, o regime de assimilação foisistematicamente criticado, nas literaturas <strong>coloniais</strong> francesa e portuguesa (sobretudoem relatórios de governadores, de militares e de ministros, mas também na literaturaacadémica), em todas as suas dimensões teóricas: por ser um modelo uniformizador,9 Para haver colonização, torna-se necessário[…] que os emigrantes exerçam uma acçãocivilizadora sobre as coisas e as pessoas, utilizando os recursos do solo em que se estabelecem,explorando as suas riquezas, abrindo vias de comunicação, educando os indígenas e promovendo odesenvolvimento económicos e social” (v. Marnoco e Souza, Administração colonial…, cit.p. 43). Pelocontrário, “a política de sujeição inspira-se simplesmente no interesse egoísta da metrópole. Nestaconcepção, o Estado que coloniza trabalha unicamente para si próprio. O fim da obra colonial é aumentara riqueza da nação e a influência política do seu governo. Os interesses, as aspirações, as necessidades dascolónias são completamente postos de lado”, v. Marnoco e Souza, Administração colonial…, cit., p. 100.A utilização destas observações de Marnoco e Souza com o objectivo de desvalorizar a governo colonial<strong>dos</strong> países que praticavam regimes de sujeição foi sendo crescente na literatura colonial do século XX.10 V. Marnoco e Souza, Administração colonial…, cit., p. 123.6


contrariava a exigência de adaptação às circunstâncias particulares de cada territórioultramarino; por ser centralizador, destruía a iniciativa e a responsabilidade <strong>dos</strong> agentesda colonização; por não respeitar os costumes e instituições tradicionais <strong>dos</strong> povosnativos, gerava a desconfiança e a resistência à colonização, frustrando os seusobjectivos económicos e culturais. Finalmente, ao converter os indivíduos nativos emcidadãos, submetia-os a um regime jurídico - político que não podiam compreender econferiam-lhe direitos que eram incapazes de compreender ou de exercer 11 . É certo queesta última afirmação, particularmente enfatizada nos seus aspectos negativos, de que aassimilação envolvia o acesso das populações nativas à cidadania, não foi sempreafirmada de forma tão clara. Nem Marnoco e Souza, nem a sua principal fonte deinspiração, Arthur Girault, consideravam que assimilação política e jurídica daspopulações nativas fosse característica definidora do regime político da assimilação.Pelo contrário, ambos sublinharam que a assimilação das colónias não envolvianecessariamente a assimilação <strong>dos</strong> indígenas, com a qual não concordavam 12 . O certo,porém, é que rapidamente se divulgou, nas lições de direito como nos manuais deadministração colonial, a ideia de que a assimilação política das colónias envolvia aassimilação <strong>dos</strong> povos nativos 13 . Deste discurso crítico do regime assimilacionista feztambém parte o elogio do modelo britânico, descentralizador, atento à diversidade dascircunstâncias concretas e adaptando-se a elas, respeitador <strong>dos</strong> interesses, <strong>dos</strong> costumese das instituições nativas, junto de quem promovia formas “indirectas” deadministração. A associação entre a autonomia das colónias britânicas e o respeito pelastradições jurídicas e políticas das populações nativas deu mesmo origem a discursosequivoca<strong>dos</strong>, que se divulgaram de forma “massiva”, nomeadamente nas Faculdades de11 V., entre muitos outros, Ayres de Ornellas (Ministro da Marinha e Ultramar em 1907), ANossa Administração Colonial. O que é, o que deve ser (Conferência apresentada no primeiro CongressoColonial Nacional), Lisboa, Imprensa Nacional, 1903; Albano de Magalhães, Estu<strong>dos</strong> <strong>coloniais</strong>.Legislação colonial, seu espírito, sua formação, seus defeitos, Coimbra, França Amado Editor, 1907. Esteúltimo autor, que tinha sido juiz em territórios ultramarinos, descreveu exaustivamente as desvantagensde exportar para aqueles territórios instituições e direitos que os seus povos nativos não podiam, na suaideia, compreender.12 V. Arthur Girault, Príncipes de Colonisation et de Législation Coloniale .., cit., p. 5113 “…no regime liberal o sistema de assimilação foi por nós seguido, o que de resto se compreende emvirtude da grande influência que exerceram no nosso país as ideias liberais da Revolução francesa. Éassim que a Carta Constitucional dispunha, no art. 7, que os indígenas nasci<strong>dos</strong> no territórios colonialtivessem os mesmo direitos que os cidadãos portugueses”, v. Adriano Duarte Silva e Carlos Miranda,Lições de Administração…, cit., p. 128, subl. nossos. Albano de Magalhães exprimia-se em termossemelhantes (“[…] não nos contentamos em dar a liberdade completa ao preto, fazemos dele um cidadãocom os mesmos direitos que têm os habitantes da metrópole”, v. Estu<strong>dos</strong> <strong>coloniais</strong>[…], cit., p. 223, subl.nossos, o mesmo acontecendo no pequeno ensaio atrás citado de Aires de Ornellas “A NossaAdministração Colonial…”, cit.) e numa multiplicidade de obras escritas na época.7


Direito e nas Escolas <strong>coloniais</strong> (“Poderemos mesmo afirmar que este sistema [deautonomia] se desenvolveu, uma vez que as ideias utópicas da Revolução francesafracassaram. Ninguém poderá pensar em igualar os homens. Em primeiro lugar erapreciso resgatar as arestas que diferenciam as raças, tornar homogéneas as condições deexistência <strong>dos</strong> indivíduos, implantar na terra um só regime climatérico, etc. Cada povotem um fundo próprio, e é esse fundo que deve servir de alicerce à sua civilização. Tudoque for fora disso será contrariar as tendências naturais da humanidade. E para isso sóhá um sistema, o da autonomia, que contribui para a solidariedade humana” 14 ). Estanarrativa de oposição entre o assimilacionismo latino e o respeito britânico pelasparticularidades culturais, políticas e jurídicas das populações nativas e pelasautoridades que tradicionalmente os representavam foi, finalmente, reapropriada pelaciência da administração colonial <strong>dos</strong> anos ’30 do século XX, num contexto políticointernacional marcado pela adopção da indirect rule britânica como doutrina oficial porparte da Comissão permanente <strong>dos</strong> Mandatos 15 . Nessa altura, os ingleses insistiram naideia da sua particular vocação para a prática da administração indirecta, por oposição àadministração <strong>dos</strong> franceses. E os franceses, ao contrário do que haviam feito nos finaisdo século XIX, passaram a relativizar a diferença entre o seu e o modelo colonialbritânico, demarcando-se da ideia de que alguma vez a França tivesse sido uma naçãopuramente “assimilacionista” 16 .Convém ainda salientar, sem que se vá aqui desenvolver muito este aspecto, quea apreciação que se fez de um ou de outro destes “regimes” não variou somente ao sabor<strong>dos</strong> contextos internacionais e das rivalidades entre as nações europeias pela posse <strong>dos</strong>territórios ultramarinos, mas também à medida que conceitos gera<strong>dos</strong> pelo encontrocolonial – como os de raça e a sua fundamentação, ou os de civilização e de “progresso14 V. José Fortes, Martinho Simões e Ambrósio Neto, Curso de Administração Colonial: segundo asprelecções do Ex.mo. Sr. Rocha Saraiva ao curso jurídico português, Coimbra, Liv. Neves, 1914, p. 218-19.15Indirect rule é a designação da doutrina colonial teorizada por Frederick Lugard (1858-1945),nos anos ’20 do século XX, na qual ponteava a ideia de uma administração colonial indirecta, mediadapela colaboração <strong>dos</strong> chefes africanos e pela rejeição da imposição “por decreto” da cultura europeia aospovos coloniza<strong>dos</strong> (sobre os seus fundamentos teóricos mais longínquos v. Karuna Mantena, “Law and«Tradition»: Henry Maine and the Theoretical Origins of Indirect rule”, in Andrew Lewis and MichaelLobban (eds.), Law and History, Current Legal Issues, Oxford, Oxford University Press, 2003). Aadopção dessa doutrina pela Comissão <strong>dos</strong> Mandatos fundou-se no artº 22 do Pacto da Sociedade dasNações, artigo no qual se determinou a forma de “garantir o bem estar e o desenvolvimento <strong>dos</strong> povosainda não capazes de se dirigir si mesmos nas condições particularmente difíceis do mundo moderno”.16 V. Véronique Dimier, Le Discours idéologique de la méthode coloniale chez les Français et leBritanniques de l’entre deus guerres à la décolonisation (1920-1960), IEP Bordeaux, Cean, 1998,« Travaux et documents nº 58-59 (http://www.cean.u-bordeaux.fr), p. 6 e ss e pp 19 e ss.).8


civilizacional” - se foram alterando, e gerando culturas políticas e científicas diversas.Culturas políticas e antropológicas mais ligadas a ideias racionalistas e universalistasvalorizaram a dimensão assimiladora da colonização no que às populações nativas diziarespeito, por ser a mais adequada a levar as “Luzes” a povos considera<strong>dos</strong>civilizacionalmente atrasa<strong>dos</strong>. Culturas políticas e científicas mais sociologistas,fundadas na observação “empírica” da diversidade humana e da sua irredutibilidade,desvalorizaram o lado “assimilador” da colonização, transformando-o em sinal desuperficialidade teórica e em símbolo da violência cultural e da ineficácia dacolonização.Identifica<strong>dos</strong> alguns <strong>dos</strong> contextos e <strong>dos</strong> significa<strong>dos</strong> das classificações que, naliteratura colonial tardo-oitocentista e novecentista, aproximavam a França e Portugalno que às suas formas de colonizar dizia respeito, é importante recordar, finalmente, quea referência à França como modelo, que caracterizou fortemente o discurso crítico daassimilação a partir <strong>dos</strong> finais do século XIX, não tem equivalente em anos anteriores.Durante o período de que aqui vou falar, o período da monarquia constitucionalportuguesa (1820-1910), só na fase final, a partir <strong>dos</strong> anos ’80, é que essa referência setornou marcante e unívoca, precisamente nos discursos críticos da assimilação que atrásidentificámos. Até essa altura, as referências à França como modelo foram esporádicas,além de terem revestido senti<strong>dos</strong> contraditórios. Assim, para dar um exemplo, quando,em 1869, se mandou aplicar o Código Civil português de 1867 nos territóriosultramarinos, o governo, orientando-se pelo que dizia ser o exemplo das “Nações maisadiantadas” relativamente ao direito <strong>dos</strong> povos nativos – nomeadamente, pelo exemplodas colónias francesas da Argélia, do Senegal e da Cochinchina - ressalvou os “usos ecostumes” de alguns grupos da população nativa, desde que não contrariassem a “morale ordem pública”, critério clássico para a limitação da validade <strong>dos</strong> ordenamentosjurídicos nativos 17 . Esta tolerância legislativa em relação aos ”usos e costumes” nãoimpediu que, dez anos mais tarde, num decreto que reformou a administração da justiçanos territórios <strong>coloniais</strong> portugueses, em 1878, o então Secretário de Estado da Marinhae Ultramar, apoiando-se novamente no exemplo francês, tivesse traçado um retratooposto quanto às opções <strong>dos</strong> governos <strong>dos</strong> dois países relativamente à tolerância para17 V. Colecção de Decretos promulga<strong>dos</strong> pelo Ministério <strong>dos</strong> Negócios da Marinha e Ultramarem virtude da Faculdade concedida pelo § 1 do art. 15º do Acto Adicional à Carta Constitucional daMonarquia, Lisboa, Imprensa Nacional, 1870, p. 35.9


com as tradições jurídicas nativas. No relatório que antecedeu este decreto o entãoSecretário de Estado observou que os portugueses, tal como os franceses, ofereciam aospovos nativos uma “justiça civilizada”, porque os sujeitavam ao mesmo direito e aosmesmos tribunais a que estavam sujeitos os cidadãos da metrópole. Esta opção,afirmava-se ainda, fazia <strong>dos</strong> dois países um exemplo a seguir, por contraposição ao <strong>dos</strong>ingleses, holandeses e até espanhóis, em cujas colónias se transigia com as “instituiçõesdecrépitas” e com os “preconceitos seculares” <strong>dos</strong> nativos e <strong>dos</strong> colonos, com fórmulasprocessuais diversificadas, com a interferência de autoridades tradicionais africanas e<strong>dos</strong> funcionários administrativos na administração da justiça. A justiça praticada pelosportugueses no seu ultramar era, por isso, a “verdadeira justiça, a humanitária, afraternal, a cristã […]”, e só encontrava paralelo em algumas colónias francesas 18 .Como se verá mais à frente, a evocação do exemplo francês no decreto de 1869 eramuito mais rigorosa do que neste último, de 1878, embora referisse como equivalentesexemplos distintos entre si (os da Argélia, do Senegal e da Cochinchina).Durante o período da monarquia constitucional a França surgiu também, porvezes, como “contra-modelo”. Em 1843, por exemplo, durante uma discussão sobre sedevia ou não conceder-se poderes de natureza legislativa ao governo metropolitano egovernadores gerais das províncias ultramarinas, alguns deputa<strong>dos</strong> manifestaram-sefavoráveis a essa possibilidade, chamando a atenção para o exemplo de outros paísesque tinham colónias (na verdade, quase to<strong>dos</strong> esses países podiam ser referi<strong>dos</strong>, comotambém se verá mais à frente). Sá da Bandeira, o nome mais importante da políticacolonial portuguesa da primeira metade do século XIX, explicou, para contrariar aproposta, que Portugal era, em matéria de política colonial, diferente de to<strong>dos</strong> os outrospaíses que tinham colónias. A Carta Constitucional (1826), recordou nessa altura, tinhaigualado as províncias ultramarinas portuguesas às províncias do Reino, e, por essarazão, o território ultramarino estava representado no Parlamento português.Consequentemente, não era aceitável que a legislação fosse elaborada fora doParlamento (“para que quer a Constituição, que venham deputa<strong>dos</strong> do Ultramar, se elesnão são chama<strong>dos</strong>... para ilustrar e esclarecer os negócios daquelas províncias? Que18“Ao passo que encontramos os estabelecimentos franceses na Índia com uma legislação análoga à dametrópole e tribunais constituí<strong>dos</strong>, pouco mais ou menos, segundo os tribunais franceses, o que prova oseu espírito de unificação; ao passo que encontramos, com uma organização muito parecida aquela, oSenegal (conquanto ainda em 20 de Maio de 1857 fosse criado um tribunal especial muçulmano, e àsautoridades militares fossem cometidas importantes funções judiciais)”, v. Decreto de 14 de Novembro de1878 em Entre as mais urgentes necessidades <strong>dos</strong> povos, entre os deveres mais sagra<strong>dos</strong> do governo,está a recta administração da justiça, Ministério <strong>dos</strong> Negócios da Marinha e Ultramar, Direcção Geral doultramar, 1ª Repartição, Lisboa, Imprensa Nacional, 1878, p. 3.10


vêm cá fazer?” 19 ). Para contrariar os deputa<strong>dos</strong> que davam como exemplo outros paísescom colónias, Sá da Bandeira chamou então a atenção para a especificidade portuguesa,mesmo em relação à França: “Os países, que gozam do sistema representativo, como aHolanda, a França, e a Inglaterra, e que tem colónias, não admitem deputa<strong>dos</strong> denenhuma delas no corpo legislativo da metrópole; e nós temos os seus representantes nacâmara <strong>dos</strong> deputa<strong>dos</strong>...” 20 . Mais à frente ver-se-á que também esta afirmação eraequivocada; sendo verdadeira no momento em que foi proferia, não tinha a validadegenérica que Sá da Bandeira lhe queria atribuir.A França foi ainda referida como exemplo pelo seu radicalismo republicano,como aconteceu, em 1852, durante a discussão de um Acto Adicional à CartaConstitucional de 1826, a propósito do estatuto <strong>dos</strong> libertos nas colónias portuguesas. Amaioria <strong>dos</strong> deputa<strong>dos</strong> que, nessa discussão, se manifestou contra a concessão daplenitude <strong>dos</strong> direitos políticos aos libertos, chamou a atenção para os vários perigosque essa opção envolvia. A sensibilidade sociológica <strong>dos</strong> habitantes das colónias e osconflitos gera<strong>dos</strong> pela legislação que anteriormente abolira o tráfico da escravaturadesaconselhavam a atribuição de direitos políticos a essa “classe de cidadãos”, porque“no Ultramar há uma desconsideração tão grande, há um desprezo tão profundo pelohomem que tem sido escravo, que a dizer a verdade seria de um péssimo efeito paraaquelas províncias, se acaso lá vissem entrar, e chegar à urna eleitoral juntamente com oCidadão livre, aquele que ainda há pouco era açoitado quase publicamente comoescravo” 21 . A estes argumentos os deputa<strong>dos</strong> favoráveis à concessão <strong>dos</strong> direitospolíticos aos libertos responderam recordando que a lei podia desempenhar um papel namudança social, como demonstrava o exemplo da emancipação civil e política <strong>dos</strong>libertos nas colónias francesas. A experiência francesa podia ainda servir para afastar osreceios quanto aos efeitos da emancipação na ordem e na paz social (“Houve tempo emque se receou que a paz pública fosse perturbada, porque quando houve em França aRevolução de 1790, houve Revoluções espantosas nas colónias francesas, e esperou-seque em 1830, quando caiu o trono de Carlos X, essas desordens se repetissem;realmente alguma coisa houve, mas já não tanto como em 1790, e quando agora em1848 o <strong>Governo</strong> Provisório não hesitou em dar a liberdade aos escravos, que aindahavia nas colónias francesas, algumas desordens apareceram na Martinica e Guadalupe,19 V. Diário da Câmara <strong>dos</strong> Pares, 1843, sessão de 18 Abril, p. 281.20 Diário da Câmara <strong>dos</strong> Pares, 1843, sessão de 18 Abril, p. 290, sublinha<strong>dos</strong> nossos.21 V. Diário da Câmara <strong>dos</strong> Deputa<strong>dos</strong>, sessão de 13 de Março de 1852, Fontes Pereira de Melo, p. 169.11


mas na Guiana, no Senegal, e em outras Possessões já não apareceram; o que prova queos ânimos se prepararam gradualmente para receber a medida. As desordens foramgrandes na primeira Revolução francesa, foram menores em 1830, e foram quasenenhumas em 1848. Daqui concluo eu, que se formos dar aos Libertos o direito devotar, a paz pública não há-de sofrer; e que eles hão-se receber com alegria, masprudentemente, essa notícia[...]”) 22 . O exemplo francês (que abstraía muita da realcomplexidade e <strong>dos</strong> impasses que o abolicionismo francês enfrentava na altura) serviaentão para demonstrar que a legislação tinha uma função libertadora, podendoantecipar-se aos factos e condicioná-los; que a lei podia ser instrumento de mudança, enão apenas um reflexo das circunstâncias sociológicas; um instrumento programático,capaz antecipar o futuro das sociedades.Francês foi, finalmente, o autor citado para sustentar a proposta oposta a estaúltima. Esse autor foi Alexis Tocqueville, alguém cujo papel no processo abolicionistafrancês é conhecido 23 . Na leitura que um <strong>dos</strong> deputa<strong>dos</strong> portugueses fez da Democraciana América (1835), eram grandes as desvantagens de uma legislação radicalmenteemancipacionista em sociedades onde os preconceitos raciais era ainda muito vivos,porque, explicava, o que Tocqueville tinha observado era que, na América, ospreconceitos contra os negros aumentavam à medida que estes deixavam de serescravos, agravando-se a desigualdade nos costumes à mesma proporção com quedesaparecia das leis 24 . Importava, por isso, evitar que o mesmo sucedesse nassociedades <strong>coloniais</strong> portuguesas.22 V. Diário da Câmara <strong>dos</strong> Deputa<strong>dos</strong>, sessão de 13 de Março de 1852, Dep. Rodrigues Cordeiro, p.169. A data referida pelo deputado foi a de 1831, o que coincide, de facto, com a obtenção, pelos libertosfranceses, da plenitude <strong>dos</strong> direitos civis. As outras coincidem com as reformas legislativas da monarquiade Julho (1830-48), cujo sentido foi o de facilitar as emancipações, melhorar a condição <strong>dos</strong> escravos epreparar a emancipação geral. Em 1848, como é conhecido, Victor Schoelcher aboliu definitivamente aescravatura nas colónias francesas e a República instituiu o sufrágio universal.23 Foi membro da comissão para o exame das questões relativas à escravatura e à constituiçãopolítica das colónias constituída pelo governo francês a 26 de Maio de 1840, e redactor do respectivorelatório, em 1843, tendo aí sido confrontado com as duas principais dificuldades colocadas pelo processoabolicionista: a indemnização <strong>dos</strong> senhores e a organização do trabalho <strong>dos</strong> libertos, v. AlexisTocqueville, Writings on Empire and Slavery, Baltimore & London, The John Hopkins University Press,2001.24 V. Diário da Câmara <strong>dos</strong> Deputa<strong>dos</strong>, sessão de 13 de Março, p. 170. Era esse, de facto, o sentido demuitas afirmações de Tocqueville: “Em quase to<strong>dos</strong> os Esta<strong>dos</strong> onde a escravatura foi abolida deu-sedireitos eleitorais ao negro; mas, se ele se apresenta para votar, corre risco de vida. Oprimido, podequeixar-se, mas não encontra senão brancos entre os seus juízes. A lei permite-lhe sentar-se no banco <strong>dos</strong>jura<strong>dos</strong>, mas o preconceito rejeita-o. O seu filho é excluído da escola onde se instrui o descendente <strong>dos</strong>Europeus [...]. Desta forma, o negro é livre, mas não pode partilhar os direitos, prazeres, trabalhos oudores, nem mesmo o túmulo daquele relativamente a quem foi declarado igual [...]. No Sul, onde aescravatura ainda existe, é menor o empenho em por os negros à parte; eles participam, por vezes, nostrabalhos <strong>dos</strong> brancos e nos seus prazeres [...]. A legislação é mais dura com eles; os hábitos são mais12


Terminadas estas considerações iniciais, podemos então descrever e reflectirsobre os elementos de identidade que de facto existiram na forma como a França,Portugal e também a Espanha pensaram e concretizaram as suas políticas <strong>coloniais</strong>, bemcomo situar essa identidade no tema que aqui nos interessa, o da recepção das ideiasfrancesas em Espanha e Portugal na viragem para o século XIX. Um desses elementosfoi, de facto, a adopção do princípio teórico da igualdade como princípio orientador dasrelações entre a metrópole e os territórios ultramarinos. A divulgação desse princípiocoincidiu com a emergência, desde os finais do século XVIII, de discursos críticos sobrea natureza não igualitária da relação colonial, que acompanhou as reivindicações daselites <strong>coloniais</strong> 25 , e ganhou, de facto, uma força renovada, pelo menos no plano <strong>dos</strong>argumentos, durante a Revolução francesa 26 . O que pretendo mostrar é que as políticas<strong>coloniais</strong> portuguesas se identificaram com as ideias francesas quer na proclamaçãodesse princípio, quer, muitas vezes, nas soluções adoptadas, sempre que, em virtude danatureza facticamente hierárquica das relações formais entre a metrópole e os territóriosultramarinos e as respectivas populações, se viu na necessidade de se afastar dele.Foram três os aspectos das políticas <strong>coloniais</strong> <strong>dos</strong> dois países nos quais oprincípio teórico da igualdade actuou e se institucionalizou. O primeiro deles foi aigualisação jurídica <strong>dos</strong> territórios metropolitano e ultramarino. Na doutrina colonialfrancesa, como na portuguesa, os territórios ultramarinos foram doutrinalmentedescritos como extensões do território da metrópole, ao contrário do que sucedeu comoutros Impérios, nomeadamente com o britânico ou o belga, onde a separação jurídica<strong>dos</strong> territórios ultramarinos foi mais completa 27 . Esta forma de integrar os territóriosteve como consequência quase natural dois elementos que foram comuns à políticacolonial portuguesa e francesa: a representação política <strong>dos</strong> territórios ultramarinos nostolerantes e bran<strong>dos</strong>”, v. Alexis de Tocqueville, De la Démocratie en Amérique (ed. Jean ClaudeLamberti), Paris, Robert Laffont, 1986, p. 319.25Sobre o conceito de elite colonial e os problemas que suscita enquanto objecto da investigaçãohistórica, problemas nos quais não nos vamos deter, v. Ângela Barreto Xavier e Catarina Madeira Santos,“Cultura intelectual das elites <strong>coloniais</strong>”, in Cultura, Revista de História e Teoria das Ideias, Vol. 24, IISérie, 2007, pp. 9-37.26 Sobre o conteúdo destes discursos v. a obra clássica de Anthony Pagden, Lords of All TheWorld, ideologies of Empire in Spain, Britain and France c. 1500-c- 1800, New Haven and London, YaleUniversity Press, 1995 e também Sankar Muthu, Enlightenment against Empire, Princeton and Oxford,Princeton University Press, 2003.27 Sobre a maior separação constitucional <strong>dos</strong> territórios ultramarinos britânicos e belgas v. CrawfordYoung, The African Colonial State in Comparative Perspective, Haven and London, Yale UniversityPress, 1994, p. 121.13


parlamentos metropolitanos e a extensão da legislação metropolitana a esses territórios.Assim, em 1789, a revolução francesa transformou as suas “antigas possessões”, naAmérica e em África, em parte integrante do território francês, designando o conjuntopor “Império francês” 28 . A representação dessas antigas colónias no Parlamento, a partirde 1790, foi descrita como a consequência <strong>dos</strong> “laços de igualdade” que uniam oterritório ultramarino ao metropolitano, embora ela não tenha sido instituída de imediatomas, pelo contrário, na sequência da pressão de representantes <strong>dos</strong> interesses <strong>dos</strong>proprietários das plantações das Antilhas francesas, como se verá mais detidamente.O mesmo princípio orientador da igualdade foi depois recebido em Espanha,com as invasões napoleónicas e a divulgação <strong>dos</strong> princípios liberais na Espanhapeninsular e americana. Em 1808, na Constituição outorgada em Bayonne por JoséBonaparte (José I, “Rei das Espanhas e das Índias”), declarou - se a igualdade jurídica<strong>dos</strong> “Reinos e províncias espanholas da América e Ásia” e articulou-se esse princípiocom a liberalização do comércio e o princípio da representação <strong>dos</strong> territóriosamericanos nas Cortes e no Conselho de Estado 29 . A mesma solução foi depoisacolhida pelos primeiros regimes liberais espanhóis. Em 1810 (a 15 de Outubro)declarou-se por decreto a igualdade entre espanhóis europeus e espanhóis americanos,recomendando-se às Cortes que “tratassem com particular interesse tudo o querespeitasse à felicidade <strong>dos</strong> povos do Ultramar”, e particularmente à sua representaçãopolítica 30 . Em 1812 o mesmo princípio foi acolhido na Constituição de Cádis, para cujaelaboração contribuíram os deputa<strong>dos</strong> americanos que estavam presentes nas Cortesconstituintes.Finalmente, oito anos mais tarde, na sequência da revolução liberal portuguesa,as Cortes constituintes de Lisboa socorreram-se de soluções idênticas para lidar com oproblema das capitanias brasileiras e comprometeram-se, seguindo o exemplo de Cádis,28Designação que nunca obteve estatuto oficial, e que os republicanos viriam a rejeitar, porcausa das suas conotações negativas, v. Denise Bouche, Histoire de la Colonization française, Paris,Fayard, 1991, T. II: “Flux et reflux (1815-1962)”, p. 100.29 v. Ignacio Fernández Sarasola, La Constitución de Bayona (1808), Madrid, Iustel, 2007, p. 94 e ss. O titX da Constituição de Bayona (“Dos Reinos e províncias espanholas da América e Ásia”), ao determinar aigualdade de direitos entre a metrópole e as províncias ultramarinas, contrastava com o regimeestabelecido pela Constituição napoleónica de 1799 para a França, onde se que estabelecia, no art. 91, que“o regime das colónias francesas é determinado por leis especiais”, uma diferença que sugere que, defacto, a opção napoleónica em Bayonne se relacionou mais com a necessidade de obter o apoio daAmérica espanhola para o seu projecto político e militar do que com uma ideologia igualitária sobre asrelações com os territórios ultramarinos, v. Ignacio Fernández Sarasola, La Constitución…, cit, , p. 93.30 V. Carlos Petit Calvo, "Una Constitución Europea para América: Cadiz, 1812", in AndreaRomano (a cura di), Alle origini del costituzionalismo Europeo, Messina, Accademia Peloritana deiPericolanti, 1991, pp. 59-60.14


a abolir o “sistema colonial”, por meio de um regime político representativo queconcedesse direitos iguais à metrópole e às “antigas colónias” (não só na América, mastambém em África e Ásia), que prometiam transformar em províncias (ultramarinas) deuma Nação única, espalhada por vários continentes 31 . Também em Lisboa, como emCádis, a representação política do ultramar se transformou numa componente essencialdo projecto de união. Ela seria a expressão da unidade do Reino e da igualdade das suaspartes, metropolitana e ultramarina.Comum a França e a Portugal (e Espanha) foi também a natureza muitas vezesretórica, ou apenas simbólica, que o princípio da igualdade assumiu. Desde logo, emFrança, ao contrário do que sucedeu em Portugal e em Espanha, o princípio darepresentação não foi uma consequência imediata <strong>dos</strong> princípios igualitários daRevolução francesa. Pelo contrário, foi o resultado, nem sempre pacífico, da pressão deinteresses muito concretos. Num primeiro regulamento, o Regulamento Real de 24 deJaneiro de 1789, para a eleição de deputa<strong>dos</strong> para os Esta<strong>dos</strong> Gerais, o tema daparticipação política das colónias foi silenciado, e quando, em 1788 (11 de Setembro)chegaram a Paris nove comissários eleitos por uma assembleia de colonos residente emParis para representar a colónia americana de S. Domingos na Assembleia, o Conselhode Estado recusou-se a reconhecê-los. Só no ano seguinte é que esses deputa<strong>dos</strong>obtiveram, já junto da assembleia constituinte, o direito de participar nas sessõesparlamentares. Ao fazê-lo, aquela assembleia criou um precedente para a admissão dedeputa<strong>dos</strong> de outras antigas colónias, por ser esse um princípio coerente com osprincípios da soberania nacional e da igualdade de to<strong>dos</strong> os cidadãos. A representaçãopolítica das colónias francesas começou, portanto, por ser uma representação da vontadepolítica <strong>dos</strong> plantadores (sobretudo brancos) das Antilhas, Guiana e Reunião 32 . Poroutro lado, a actuação desses deputa<strong>dos</strong> na assembleia foi quase sempre contrária àconcretização imediata de outros princípios, como o da abolição da escravidão ou aconcessão de direitos políticos às populações livres de cor (hommes de coleur libres)31 Sobre a emergência destas propostas, no momento em que as Cortes portuguesas decidiram apoiar osmovimentos liberais das capitanias brasileiras, v. Maria Beatriz Nizza da Silva, MovimentoConstitucional e Separatismo no Brasil (1821-1823), Porto, Livros Horizonte, 1988; Valentim Alexandre,Os Senti<strong>dos</strong> do Império. Questão Nacional e Questão Colonial na Crise do Antigo Regime Português,Porto, Afrontamento, 1993, p. 580 e ss.; Márcia Regina Berbel, A Nação como artefacto, Deputa<strong>dos</strong> doBrasil nas Cortes Portuguesas de 1821-1822, S. Paulo, Hucitec, 1999; e Cristina Nogueira da Silva, Acidadania nos Trópicos. O Ultramar no constitucionalismo monárquico português (c. 1820-1880),Dissertação de doutoramento apresentada à Universidade Nova de Lisboa (Faculdade de Direito), Lisboa,2004.32 V. Yves Benot, La Révolution française et la fin des colonies, Paris, Éditions La Découverte, 1989, p.43.15


que residiam nas colónias francesas, princípios que só viriam a concretizar-se nos anosseguintes, como se verá mais à frente. Antes dessa concretização acontecer, eexactamente por causa do problema da escravidão, as Constituições francesas (de 1791e de 1793), apesar de terem consagrado o princípio da representação política <strong>dos</strong>territórios ultramarinos, não vigoraram, por exclusão explícita ou por omissão, nessesterritórios 33 .Em Portugal, como em Espanha, e apesar da adesão imediata e da quasesacralização do princípio da igualdade de direitos e de representação, a atitude <strong>dos</strong>deputa<strong>dos</strong> peninsulares nas Cortes constituintes (de Cádis, em 1812, e de Lisboa, em1820) foi a de se concentrarem na ideia de assegurar a supremacia da representaçãopeninsular nas Cortes da metrópole. Em Cádis esse problema foi em parte resolvidocom a exclusão <strong>dos</strong> afro-espanhóis (descendentes de africanos, fossem escravos, libertosou livres) relativamente à cidadania espanhola. Por serem “espanhóis originários deÁfrica” (e não do território nacional, fosse peninsular ou americano), não podiam sercidadãos, de acordo com o art. 22 da Constituição. Este grupo de espanhóis nãocidadãos também não contava como base eleitoral, para o cálculo do número dedeputa<strong>dos</strong> (art. 29) 34 , opção que ajudou a subrepresentar o território americano e que foiainda favorecida pelo real desconhecimento que havia sobre acerca desse território e daspopulações que nele residiam 35 . Já na Constituição portuguesa de 1822, os libertosforam integra<strong>dos</strong> na cidadania portuguesa, mas não o foram os índios, como se verámais à frente. Por outro lado, o mesmo artigo onde se reconheceu a cidadania aoslibertos portugueses excluiu os escravos da mesma, e a este se juntou um outro,33 A Constituição de 1791 excluiu explicitamente, no art. 8, a sua vigência nos territóriosultramarinos, por causa do problema da escravidão. Depois, a Constituição do Ano I foi absolutamenteomissa no que ao problema da escravatura dizia respeito, o mesmo sucedendo com a Constituição de1793, v. Yves Benot, La Révolution française et la fin des colonies […], cit., p. 167.34 Não sem a contestação <strong>dos</strong> deputa<strong>dos</strong> da América, para quem a nacionalidade sem cidadania <strong>dos</strong>homens livres de cor exigia que fossem contabiliza<strong>dos</strong> entre os representa<strong>dos</strong> ou que, em vez disso,fossem declara<strong>dos</strong> inferiores aos loucos, ladrões vagabun<strong>dos</strong> e criminosos, os quais, apesar de terem a suacidadania suspensa, eram contabiliza<strong>dos</strong>, v. James F. King, “The Colored castes and AmericanRepresentation in the Cortes of Cadiz”, in The Hispanic American Historical Review, vol. 33, 1953, p. 61.Na verdade, “estando os afro-espanhóis somente radica<strong>dos</strong> no continente americano, a Espanhaamericana, muito mais povoada (mais de 15000000 habitantes) que a europeia (menos de 10000000)ficava fatalmente subrepresentada”, v. Carlos Petit Calvo, "Una Constitución Europea para América... ,cit., p. 64. Sobre este problema e sua discussão v. também Javier Alvarado Planas, Constitucionalismo ycodificación en las provincias de Ultramar. La supervivencia del Antiguo Régimen en la España de XIX,Madrid, Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2001, pp. 17-38.35 Sobre o desconhecimento da realidade territorial e populacional americana, bem como sobre osproblemas que isso suscitou no cálculo da representação nas Cortes de Cádis, v. Marta Lorente, “Américaen Cadiz (1808-1812)”, in A.A.V.V., Los Orígenes del Constitucionalismo Liberal en España eIberoamérica: un estúdio comparado, Sevilha, Junta de Andalucia, 1993, pp. 36 e ss.16


excluindo-os <strong>dos</strong> cálculos que determinariam o número de deputa<strong>dos</strong> eleitos naAmérica 36 . Não obstante, a subrepresentação da América portuguesa foi sobretudoexplicada pela falta de conhecimentos que se tinha acerca da população das capitaniasbrasileiras. Os deputa<strong>dos</strong> eleitos nessas capitanias tiveram consciência dessadesvantagem e alguns deles propuseram que se considerassem outros elementos,capazes de compensar a desvantagem relativa, como a maior dimensão do territórioamericano ou a ignorância relativa à real dimensão da sua população 37 . Não colocaram,contudo, a hipótese de contar com a população nativa livre ou com os escravos comobase eleitoral.Estas e outras opções, nomeadamente as posições centralizadoras no que diziarespeito à organização administrativa <strong>dos</strong> territórios - opções nas quais se espelhava odesejo <strong>dos</strong> deputa<strong>dos</strong> metropolitanos (espanhóis, em 1812, e portugueses, em 1822) emconservar uma hierarquia favorável à parte europeia (peninsular) do território dasmonarquias, e com a qual se articulou a sua insistência em excluir da discussão asespecificidades americanas – , estiveram relacionadas, num contexto cuja complexidadenão faria sentido reconstituir aqui, com as declarações de independência que seseguiram 38 .A representação política <strong>dos</strong> territórios ultramarinos (franceses, portugueses eespanhóis) permaneceu, depois das independências do Brasil e <strong>dos</strong> territórios espanhóis36 No artigo da Constituição de 1822 que regulava as eleições, fez-se corresponder a cadadeputado trinta mil habitantes livres (art. 37).37 V. Diário Cortes Gerais Extraordinárias e Constituintes da Nação Portuguesa, sessão de 14Novembro de 1821, p. 3076, Dep. Vilela: “se Portugal abunda mais de pessoas livres, e por isso deu maisrepresentantes, no ultramar é muito maior a extensão territorial”. O facto é que não se chegaram sequer aelaborar mapas de eleitores no Brasil, v. Joel Serrão e A.H. de Oliveira Marques (dir.), Nova História daExpansão Portuguesa, vol. VIII (coord. Maria Beatriz Nizza da Silva), “O Império Luso-brasileiro (1750-1822), Lisboa, Estampa, 1986, p. 414-15.38 Sobre esta recusa v. Marta Lorente, “América en Cadiz (1808-1812)”, cit., p. 22 e ss. Sobre a naturezade facto não igualitária do constitucionalismo de Cádis v. também Roberto Luís Blanco Valdês, “El«problema americano» en las primeras Cortes Liberales espanolas (1810-1814)”, in AAVV, Los Orígenesdel Constitucionalismo Liberal en España e Iberoamérica: un estúdio comparado, Sevilha, Junta deAndalucía, 1993. As palavras mais recentes de Josep M. Fradera resumem bem o problema com que seconfrontaram os deputa<strong>dos</strong> espanhóis eleitos pela metrópole: “Las Cortes se habían impuesto una arduatarefa que acabaria en naufragio político: declarar la igualdad de derechos y representación, pero crear almismo tiempo una situación de hecho que evitara cualquier transferencia de poder efectivo a larepresentación americana, a la que se reservaba la función de minoría permanente en las Cortes. Algunosde los más destaca<strong>dos</strong> portavoces del liberalismo peninsular en las Cortes expresaron la impresión deestar andando sobre el filo de la navaja, arapa<strong>dos</strong> entre la necesidad de conceder derechos políticos y deasegurar, al mismo tiempo, la preeminencia de la metropoli”, v. Josep M. Fradera, “Por qué no sepromulgaron las «leyes especiales» de Ultramar?”, in Richard L. Kagan e Geoffrey Parker, España,Europa y el Mundo Atlántico (Homnaje a John H. Elliot), Madrid, Marcial Pons, 2001, pp. 439-461, p.446.17


na América, ao longo de todo o século XIX, com algumas interrupção, no caso francês 39e espanhol 40 , de forma constante (até à descolonização), no caso português 41 . Noentanto, foi comum aos três países o facto de boa parte da legislação para as colóniasnão ter realmente sido feita no Parlamento, mas pelos governos (ou até pelosgovernadores gerais), daí resultando uma nova distorção relativamente ao princípioigualitário. O direito constitucional <strong>dos</strong> três países favoreceu a formação de sistemasespeciais de produção de legislação, também especial, para o Ultramar, o que poderiaenvolver, em algumas interpretações, a ideia de que as Constituições não deviamvigorar em território ultramarino. Assim, em França as colónias foram exceptuadas doregime comum logo na Constituição de 1799 42 e, depois, pelo art. 73 da CartaConstitucional de Luís XVIII, de 1814, que previa que as colónias se regessem “por leise regulamentos particulares”, determinação que foi recuperada em quase todas asposteriores constituições e, nomeadamente, na de 1848 (art. 109) 43 . Depois disso umSenatus-consulte de 3 de Maio de 1854, votado pelo mesmo regime que suprimiu arepresentação colonial nas câmaras metropolitanas, em 1852, estabeleceu o sistema degoverno por meio de decretos do executivo, que permaneceu durante a III República 44 .Neste contexto, o direito metropolitano não se aplicava no ultramar senão fosse a eleexplicitamente entendido por decreto presidencial. O direito colonial era, assim,ordenado pelo Presidente e era, na prática, exercido por ordenanças promulgadas pelos39 Em França, ao contrário do que sucedeu em Portugal, a representação política das colónias não foi defacto constante. Em 1848 tinha-se recuperado a representação das colónias, que Napoleão havia abolido,mas em 1852 ela foi de novo suprimida, na sequência do golpe de Estado de Luís Napoleão Bonaparte(Dezembro de 1851), para apenas ser restabelecida em 1870, v. André Lebon, Louis Ayral, Jules Grenard,Gilbert Gidel et Louis Salaun, Du mode d’administration des Possessions coloniales, Congrés desSciences Politiques de 1900, Paris, Sociètè Française d’Imprimerie et de Librairie, 1901, pp. 144-146.40 Na Constituição espanhola de 1837 rompeu-se com a tradição instituída pela Constituiçãogaditana, suprimindo-se a representação política <strong>dos</strong> territórios ultramarinos (agora, somente Cuba, PortoRico e Filipinas), o mesmo sucedendo na de 1845. A Constituição de 1869 devolveu a representação aosdeputa<strong>dos</strong> das Antilhas (mas não às Filipinas), que permaneceu também na Constituição de 1876, v.Maria Paz Alonso Romero, Cuba en la España liberal, Madrid, CEC, 2002, pp. 17-20.41 Em Portugal, a perenidade da representação política do Ultramar esteve, durante a monarquiaconstitucional, muito ligada à recusa de qualquer solução que passasse por uma maior autonomia dascolónias no que à formação da legislação diz respeito, nomeadamente pela formação de assembleiasrepresentativas locais com poderes legislativos. O grande argumento contra qualquer uma destaspossibilidades foi o facto de estarem as colónias representadas no parlamento, v. Cristina Nogueira daSilva, A cidadania nos Trópicos…, cit., Caps. VI e X. Neste plano, as coisas passaram-se de mododiferente nos territórios ultramarinos franceses e espanhóis.42 Constituição de 22 frimaire ano VIII (13 Dezembro de 1799), que determinava, no art. 91, que “oregime das colónias francesas é determinado por leis especiais”.43 Essas leis e decretos seriam decidi<strong>dos</strong> em Paris e, de acordo com isso, Luís XVIII e Carlos Xregeram-nas através de Ordonances reais e Napoleão III através de Sénatus-consultes.18


governadores-gerais. O mesmo sucedeu em Espanha, pelo menos a partir de 1876, poisa Constituição aprovada nesse ano autorizou o governo “para aplicar á las [Provínciasde Ultramar], com las modificaciones que juzgue convenientes y dando cuenta a lasCortes, las leys promulgadas ó que se promulguen para la Península” (art. 89) 45 . Alémdisso, desde 1837 que as Constituições espanholas determinavam que as províncias doultramar fossem governadas por leis especiais. Estabelecido na Constituição de 1837(disposição adicional 2.1), este regime jurídico especial para as colónias foi conservadona de 1845 (art. 80), na de 1869 (art. 108) e, finalmente, na de 1876 46 .Em Portugal concebeu-se também um sistema especial de produção legislativapara o ultramar, de acordo com o qual o território ultramarino seria governado por leisespeciais, podendo essas leis, em determinadas circunstâncias, ser feitas pelos governosou pelos governadores-gerais. No artigo 137 da Constituição de 1838, integralmentededicado ao governo das províncias ultramarinas, declarou-se que “as ProvínciasUltramarinas poderão ser governadas por leis especiais segundo exigir a conveniênciade cada uma delas”; que o governo podia, “não estando as Cortes reunidas, decretar, emConselho de Ministros, as providências indispensáveis para ocorrer a algumanecessidade urgente de qualquer província ultramarina”; e que também osGovernadores-gerais das províncias ultramarinas podiam tomar, “ouvido o Conselho de<strong>Governo</strong>, as providências indispensáveis para acudir a necessidade tão urgente que nãopossa esperar pela decisão das Cortes ou do Poder executivo”. Todas as providênciastomadas pelo governo ou governadores seriam “submetidas” às Cortes, quando estasreunissem. Este quadro constitucional desapareceu em 1842, com a restauração da CartaConstitucional de 1826 47 , mas por muitos breves meses, já que, nesse mesmo ano, o art.44 v. Denise Bouche, Histoire de la Colonization Française, cit., e Martin Deming Lewis, "One HundredMillion Frenchmen: the «Assimilation» Theory in French Colonial Policy", in Comparative Studies inSociety and History, vol. IV, nº 2, Jan. 1962, p. 136.45V. Maria Paz Alonso Romero, Cuba en la España liberal…, cit., p. 19.46 V. Javier Alvarado Planas, “El Régimen de Legislación especial para Ultramar y la CuéstionAbolicionista en España Durante el Siglo XIX” (http://www.bibliojuridica.org/libros/1/133/3.pdf[2004.04.18], p. 2, versão impressa em Cuadernos del Instituto de Investigaciones Jurídicas, nº 2, 1998.A tese do autor é a de que o sistema de legislação especial se destinou a subtrair o ultramar ao programade reformas liberais (v. Javier Alvarado, Constitucionalismo…, cit., p. 18) e a perpetuar o sistemaesclavagista (v. Idem, “El Régimen …”, cit., p. 2).47 O silêncio da Carta Constitucional relativamente à natureza da legislação que deveria vigorar noultramar ou à sua formação permitia deduzir que nelas vigoraria a mesma lei metropolitana e o mesmomodo de legislar; embora fosse possível interpretar o seu art. 132 num sentido diferente, maisdiferenciador, como também aconteceu.19


137 da Constituição abolida foi reposto por um decreto do governo 48 . Depois, no anoseguinte, as Cortes votaram uma lei que recuperou o essencial do mesmo artigo,“legalizando” o anterior decreto 49 . Finalmente, em 1852, o Acto Adicional à Cartaconstitucional, então em vigor, reproduziu praticamente, no seu art. 15, o art. 137 daConstituição de 1838, constitucionalizando a lei anterior.Como se verá, além desta possibilidade de produzir legislação especial, emPortugal, como em França, o direito metropolitano só vigorou nos territóriosultramarinos depois da sua extensão por decreto do governo. Sendo assim, se aespecificidade do sistema de assimilação, tal como viria a ser formalizado nos finais <strong>dos</strong>éculo, consistia no facto de a legislação colonial ser feita nos parlamentosmetropolitanos, sendo isso que o diferenciava do sistema de sujeição, onde ela era feitapelo governo, então quer Portugal quer a França (e a Espanha) se aproximaram, nesteaspecto, mais deste último “regime” do que daquele a que foram tradicionalmenteassocia<strong>dos</strong> pela doutrina colonial tardo-oitocentista, o da assimilação 50 .A igualdade de direitos e de representação trazia consigo a igualdade jurídicadas populações que residiam nas colónias, outra consequência da afirmação teórica doprincípio da igualdade pelos governos <strong>dos</strong> três países. Mas também no que diz respeitoà concretização deste princípio, os três oscilaram entre medidas de maior inclusão emedidas de exclusão que eram problemáticas do ponto de vista daqueles princípios,como em parte já se viu atrás. Assim, em França, os dois problemas com que arevolução se debateu, desde o início, nas “velhas colónias” (Antilhas (Guadaloupe eMartinique), Reunião e Guyane) foram os da igualdade civil entre brancos e hommes decoleur libres (mulatos e negros liberta<strong>dos</strong>, que souberam apropriar-se <strong>dos</strong> princípios darevolução para conseguir obter direitos que não tinham até então) e a abolição daescravidão. Estes problemas, que foram omiti<strong>dos</strong> na Constituição de 1791,inviabilizando a sua vigência no ultramar, foram sendo resolvi<strong>dos</strong> ao longo da primeira48 Decreto de 2 de Maio de 1842, autorizando os governadores das Províncias a providenciarem em casosurgentes, v. Boletim do Conselho Ultramarino, Legislação Novíssima, Lisboa, Imprensa Nacional, 1867,vol. I (1834-1851), p. 206.49 Lei de 2 de Maio de 1843, V. Boletim do Conselho Ultramarino, Legislação Novíssima, cit., pp. 308-310.50 Fazia parte do sistema de sujeição que a legislação fosse feita pelo Ministro das Colónias; no sistemade assimilação, a legislação seria feita pelo parlamento da metrópole, no qual teriam assentorepresentantes das colónias; no sistema de autonomia “é a própria colónia que legisla para si”, nãonecessitando, por isso, de ter representantes seus no parlamento metropolitano, v. José Fortes, MartinhoSimões e Ambrósio Neto, Curso de Administração Colonial, segundo as prelecções do Sr. Dr. RochaSaraiva ao curso jurídico de 1912-1914, Coimbra, Livraria Neves, 1914, p. 219-20.20


metade do século XIX, por meio de reformas legislativas que, com avanços e recuossuscita<strong>dos</strong> pela pressão <strong>dos</strong> interesses <strong>dos</strong> plantadores franco-descendentes, acabarampor desenhar uma tendência geral de sentido universalista. Assim, depois de algunsepisódios e diplomas ambíguos ou de sentido contraditório – ambiguidades e incertezasque contribuíram para a revolução em S. Domingos -, os direitos políticos e civis daspopulações livres de cor foram consagra<strong>dos</strong>, primeiro num decreto de 4 de Abril de1792 (reconhecendo a cidadania a essas populações), e depois, num outro, de 23 deAgosto de 1792, determinando que “to<strong>dos</strong> os cidadãos livres, de qualquer cor e dequalquer estado, à excepção daqueles que se encontram num estado de domesticidade,pudessem votar para formar a Convenção Nacional 51 . Depois, já durante a primeiraRepública, e também sob pressão de acontecimentos vivi<strong>dos</strong> nos territórios <strong>coloniais</strong>,aprovou-se a primeira abolição da escravidão (4 de Fevereiro de 1794) e a população decor acedeu à plenitude da cidadania (“A escravatura <strong>dos</strong> negros em todas as colónias éabolida; por consequência, to<strong>dos</strong> os homens, sem distinção de cor, domicilia<strong>dos</strong> nascolónias, são cidadãos franceses e gozarão de to<strong>dos</strong> os direitos garanti<strong>dos</strong> pelaConstituição”). A Constituição de 1795, finalmente, considerou as colónias como parteintegrante da República, em situação de absoluta igualdade relativamente a to<strong>dos</strong> osseus outros departamentos (“As colónias francesas são partes integrantes da República,e ficam sujeitas à mesma lei constitucional”, art. 6) 52 , tendo sido esse o momento emque ao “universalismo territorial” se juntou o que Pierre Rosanvallon designou por“universalismo racial” 53 . Esta situação formal foi alterada com o restabelecimentonapoleónico da escravidão (1802), mas recuperada, em 1848, com a abolição definitivada escravidão (27 de Abril de 1848). O sufrágio universal instituído pela constituiçãoaprovada nesse ano veio, no entanto, recolocar o problema <strong>dos</strong> direitos políticos daspopulações nativas das colónias, sobretudo nos territórios recentemente conquista<strong>dos</strong>,no Senegal e na Argélia. Como se verá, a universalização do sufrágio, conjugada com adimensão demográfica das populações nativas destes territórios, teve como resultado a51 Sobre o papel das populações de cor livres das colónias e <strong>dos</strong> seus representantes na votação destesdecretos, que em 1792 obtiveram, por motivos circunstanciais relaciona<strong>dos</strong> com a revolta de escravos, oapoio contra natura <strong>dos</strong> colonos brancos, v. William B. Cohen, Français et Africains, Les Noirs dans leregard des Blancs, 1530-1880, Paris, Ed. Gallimard, 1981, p. 166 e ss.52 V. Martin Deming Lewis, "One Hundred Million Frenchmen: the «Assimilation» Theory [ …]”, cit, p.134 e Collecção de Constituições Constituições antigas e modernas, com o projecto de outras seguidasde um exame comparativo de todas elas (por 2 bacharéis), Lisboa, Tip. Rollandiana, 1820-1822, vol. IV,p. 43.53 V. Pierre Rosanvallon, Le Sacre du Citoyen, Histoire du Suffrage Universel en France, Paris,Gallimard, 1992, p. 425.21


interrupção da tendência universalista das reformas da primeira metade do século noque aos direitos <strong>dos</strong> territórios e populações ultramarinas diz respeito.O universalismo das políticas francesas da primeira metade do século XIX nãose reproduziu de forma absoluta nas políticas seguidas pelos governos portugueses eespanhóis. Como se viu atrás, a primeira Constituição aprovada pelo regime saído darevolução liberal portuguesa (1820-22) consagrou, depois de uma discussão onde ofantasma <strong>dos</strong> acontecimentos ocorri<strong>dos</strong> na ex. colónia francesa de S. Domingos foiconstantemente convocado, a plena cidadania <strong>dos</strong> libertos (que, simplificando, podemosconsiderar, sob o ponto de vista jurídico, o grupo equivalente, nos territórios damonarquia portuguesa na América, aos hommes de coleur libres da América francesa) 54 .Por outro lado, no mesmo artigo onde se reconheceu a cidadania <strong>dos</strong> libertos excluiu-seimplicitamente dela os escravos. O que se declarou nesse artigo foi a cidadaniaportuguesa <strong>dos</strong> “escravos que alcançarem carta de alforria” (art. 21, § IV), o quesignificava que os que não alcançassem a alforria não eram nem cidadãos, nemportugueses, já que o constitucionalismo português, ao contrário do francês e doespanhol, nunca fez essa distinção 55 . O facto da delicada questão do estatuto <strong>dos</strong>escravos ter sido tratada pela Constituição vintista permitiu a sua (curtíssima) vigêncianos territórios ultramarinos na América (Brasil) e em África. Muito menos clarificadofoi, contudo, o estatuto <strong>dos</strong> índios do Brasil, que nunca foram integra<strong>dos</strong> na cidadaniaportuguesa, ao contrário do que sucedeu com a Constituição espanhola de Cádis. O queresultou das discussões e projectos que surgiram permite-nos afirmar que os índiosforam considera<strong>dos</strong> “sujeitos do Império português” pela maioria <strong>dos</strong> deputa<strong>dos</strong>vintistas e que se antevia a possibilidade de acederem à cidadania, mas à medida que secristianizassem e se civilizassem. Nesse sentido, o último artigo da Constituição (art.240) comprometia o governo português a “cuidar” da “civilização <strong>dos</strong> Índios” 56 .54Convém no entanto lembrar que a conservação do esquema censitário afastasse a maior parte<strong>dos</strong> libertos (ainda que nem to<strong>dos</strong>) do acesso ao voto55Alguns juristas portugueses consideravam que a Carta Constitucional portuguesa era, por isso,mais liberal do que a francesa (“e tanto basta para que nós, respeitando aliás a opinião contrária de algunssábios, mas respeitando mais a Carta e os princípios da hermenêutica, não ousemos distinguir, paraencurtar o favor, com que o imortal Outorgador da nossa lei fundamental contemplou os portugueses,fazendo-os to<strong>dos</strong> cidadãos[…]. Em resultado, todo o português é cidadão, mas dividem-se os cidadãos emactivos e não activos – ou passivos – sendo aqueles os que se acham no exercício <strong>dos</strong> seus direitospolíticos e estes os que os têm suspensos”), v. António Ribeiro de Liz Teixeira, Curso de Direito Civilportuguez […], cit., p. 147.56 O deputado vintista Trigoso, dizia, em relação aos índios, que deviam ser “[...] catequiza<strong>dos</strong>, e aindaque sejam sujeitos ao império português, a Constituição mesma [...] manda prover na sua conversão e22


A escravidão nas colónias portuguesas foi abolida por decreto, mas mais tarde,em 1869, na sequência de uma política abolicionista igualmente conturbada, moderada,progressiva e com características que evocam o processo abolicionista francês,nomeadamente no achamento de soluções para questões que se tornaram centrais emambos os países: primeiro, a indemnização <strong>dos</strong> senhores de escravos, através depolíticas que adiavam a abolição definitiva do trabalho obrigatório, depois, aorganização/regulamentação do trabalho <strong>dos</strong> escravos liberta<strong>dos</strong> 57 .Em Espanha os índios da América foram, como se referiu já, considera<strong>dos</strong>cidadãos na primeira Constituição (1812), por serem espanhóis “naturais e origináriosda América” (art. 22). O mesmo não sucedeu, por o não serem, com as populações deorigem africana: escravos e libertos foram afasta<strong>dos</strong> da cidadania espanhola pelo art. 22daquela Constituição 58 . No respeitante à escravidão e sua abolição, problemas esoluções idênticas colocaram-se aos governos espanhóis, igualmente dividi<strong>dos</strong> entre a“imposição” moral e política do abolicionismo e, simultaneamente, o desejo de evitarconflitos insanáveis com os plantadores cubanos que, nos perío<strong>dos</strong> em que isso foipossível, se fizeram representar no parlamento espanhol e aí defenderam posiçõesesclavagistas 59 . Assim, a escravidão só viria a ser abolida em Cuba em 1880.Finalmente, em to<strong>dos</strong> os territórios ultramarinos (franceses, portugueses eespanhóis) a ordem esclavagista foi, depois das abolições definitivas, substituída poruma “ordem colonial” marcada pela regulamentação do trabalho africano que passou,quase sempre, pela imposição mais ou menos assumida de regimes de trabalhoobrigatório.Como referimos atrás, a tendência universalista da política francesa na primeirametade do século, que teve como objecto as antigas colónias das Antilhas e do Senegalcivilização” (v. Diário Cortes Gerais Extraordinárias e Constituintes da Nação Portuguesa, sessão de 6Agosto 1821, p. 1803, Dep. Trigoso, subl. nossos.57Sobre o processo abolicionista português v. os trabalho de João Pedro Marques,nomeadamente a sua dissertação de doutoramento, Os Sons do Silêncio: o Portugal de Oitocentos e aAbolição do Tráfico de Escravos, Lisboa, ICS, 1999 e Portugal e a escravatura <strong>dos</strong> africanos, Lisboa,ICS, 2004. Sobre os aspectos jurídicos do abolicionismo e sua interpretação v. Cristina Nogueira da Silva,A cidadania nos Trópicos…,cit., particularmente o cap. 9.3: “Graduando os cidadãos: os libertos”.58 Sobre o estatuto <strong>dos</strong> Índios na Constituição de Cádis e os seus possíveis significa<strong>dos</strong> v. B.Clavero, José Maria Portillo e Marta Lorente, Pueblos, Nación, Constitución (en torno a 1812), IkusagerEdiciones, 2004. Uma interpretação diferente pode encontrar-se em Tamar Herzog, Defining Nations,Immigrants and Cititizens in Early Modern Spain and Spanish America, New Haven and London, YaleUniversity Press, 2003, onde se integra a solução gaditana no contexto da tradição anterior, de AntigoRegime, sobre o modo de pensar o estatuto <strong>dos</strong> índios na América espanhola.59 V. Javier Alvarado Planas, “El Régimen de Legislación especial para Ultramar y la CuéstionAbolicionista en España Durante el Siglo XIX”, cit.23


(Saint-Louis e Gorée), não perdurou nos territórios ocupa<strong>dos</strong> pela França ao longo <strong>dos</strong>éculo XIX, nomeadamente em África e na Ásia. A partir de 1848, sob efeito conjugadodo sufrágio universal, da abolição definitiva da escravidão, e, além disso, derepresentações sobre a distância cultural e “civilizacional” em que se encontravam ospovos mais recentemente conquista<strong>dos</strong>, na Argélia, em África e no Extremo Oriente,foram outras, e muito menos claras, as soluções encontradas pelos republicanosfranceses. Como se sabe, a resolução do problema do acesso das populações nativasdestes últimos territórios à cidadania passou pela invenção de categorias jurídicasambíguas, como as de “franceses não cidadãos”, “indígenas não cidadãos” ou “súbditosfranceses”, categorias que encerraram a maioria dessas populações num estatuto demenoridade sem prazo claramente definido. No caso da Argélia, para o período que nosinteressa, a fronteira que separava o francês não cidadão do francês cidadão passou aser clara a partir da publicação do Sénatus-Consulte que, a 14 de Julho de 1865,consagrou a nacionalidade francesa do “indígena muçulmano”, admitindo que elecontinuasse a ser regido pela lei muçulmana, mas recusando-lhe, por isso mesmo, acidadania francesa. A partir daquela data os argelinos passaram a ser, juridicamente,franceses mas, em virtude da diferença da sua religião e <strong>dos</strong> seus usos e costumes, nãopodiam ser cidadãos franceses. Para o serem tinham que requerer a naturalização,renunciar em bloco ao direito civil muçulmano e ser regi<strong>dos</strong> pelas leis civis francesas.Só assim seria observado, como então se argumentou, o princípio da igualdade perante alei 60 . A situação <strong>dos</strong> habitantes nativos <strong>dos</strong> outros territórios <strong>coloniais</strong> era muito maisambígua, porque não foi criado, durante o século XIX, nenhum procedimento denaturalização para esses indígenas, semelhantes ao criado para os indígenas argelinos.Sendo assim, eles “não eram considera<strong>dos</strong> como estrangeiros, mas também não podiamtornar-se plenamente franceses”. A situação jurídica <strong>dos</strong> que eram nativos daquelesterritórios caracterizou-se então, ao longo de todo o século, por um hibridismo quenunca foi doutrinal ou legislativamente esclarecido 61 . Isso aconteceu porque havia umarelação implícita entre “civilidade” e cidadania que relegava as populações com hábitose costumes diferentes <strong>dos</strong> europeus para um tempo histórico anterior e para ocorrespondente “grau civilizacional” (inferior) 62 . Foi essa também a situação da maioriadas populações nativas do ultramar português durante o século XIX e primeiros anos do60 V. P. Rosanvalon, Le Sacre du citoyen [...], cit.,p. 428.61 Idem, ibid., p. 424.62 Idem, ibid., p. 431.24


século XX. Neste aspecto, a recepção das opções políticas francesas em Portugal podeser concretamente aferida num decreto de 1869 onde o Ministro português do Ultramardeclarou inspirar-se, para a (in)definição do estatuto civil das populações ultramarinas,no exemplo francês da Argélia, do Senegal e da Cochinchina. De acordo com essediploma, que já aqui citámos, os indivíduos nativos <strong>dos</strong> territórios ultramarinosportugueses podiam optar, de comum acordo, por um <strong>dos</strong> ordenamentos jurídicos quevigorassem no território, o do Código Civil português de 1867 ou os <strong>dos</strong> “usos ecostumes”. Contudo, além de o fazerem individualmente, faziam-no caso a caso, e semque isso tivesse qualquer consequência formal do ponto de vista do seu estatuto face àcidadania portuguesa, pois não se previa, como tinha feito a legislação francesa emrelação aos argelinos muçulmanos, que pudessem renunciar em bloco ao seu direitocivil, para se tornarem cidadãos portugueses.A menoridade política e civil <strong>dos</strong> povos nativos das colónias francesas foiconfirmada pelo Code d’indigénat francês de 1881, no qual os indivíduos nativospassaram à condição de súbditos, que os diferenciava da de cidadão francês 63 . Nascolónias portuguesas a indefinição formal do estatuto das populações nativas só foidefinitivamente resolvida com a publicação, já em 1926, do primeiro Estatuto doIndígena, no qual se distinguiu, de forma sempre ambígua, os nativos portugueses queeram indígenas <strong>dos</strong> que podiam ser cidadãos, estabelecendo-se os critérios pelos quaisos primeiros poderiam aceder à cidadania 64 .63Publicado pelo governo francês a 28 de Julho de 1881, para ser aplicado na Argélia, este Código veio aser oficialmente aplicado a todas as colónias francesas em 1887 e só viria a ser formalmente abolido em1946. Através das suas determinações os indígenas foram, entre outras coisas, submeti<strong>dos</strong> a um regimepenal especial e ao trabalho forçado64Dec. lei nº 12.533 de 23 de Outubro de 1926, a Carta básica que estabeleceu o Estatuto político, civil ecriminal <strong>dos</strong> indígenas de Angola e Moçambique. Neste estatuto eram indígenas “os indivíduos de raçanegra ou dela descendentes que, pela sua ilustração e costumes, se não distingam do comum daquelaraça” (art. 3), a quem se negaram direitos políticos ou de participação em outras instituições que nãoapenas as suas, as “tradicionais”. Data no entanto de 1914 o primeiro diploma legislativo português ondefoi pensado um estatuto pessoal (civil, político e criminal) próprio para o indígena, que nele podia ser ou“cidadão da República”, com to<strong>dos</strong> os direitos civis e políticos, desde que falasse português ou qualqueroutra “língua culta”, não praticasse os usos e costumes característicos do meio indígena, exercesseprofissão, comércio ou indústria, ou possuísse bens de que se mantivesse, sendo os outros apenas“súbditos da República portuguesa”, v. Bases nº 16 a 18 da Lei nº 277 de 15 de Agosto de 1914 (Leiorgânica da administração civil das províncias ultramarinas) em Artur R. de Almeida Ribeiro,Administração Civil das Províncias Ultramarinas, proposta de Lei Orgânica e Relatório apresentado aoCongresso pelo Ministro das Colónias, Lisboa, Imprensa Nacional, 1914, p. 20. Sobre o Estatuto de 1926e os que se lhe seguiram, até à sua derrogação, v. A.D.S., “Estatuto <strong>dos</strong> Indígenas” in Fernando Rosas eJ.M. Brandão de Brito (orgs.), Dicionário de História do Estado Novo, Lisboa, Bertrand, 1996, vol. I, p.320.25


Não era então rigorosa a afirmação, tantas vezes repetida, a partir <strong>dos</strong> finais <strong>dos</strong>éculo XIX, na literatura colonial, de que Portugal seguia a França na concessão dedireitos políticos a to<strong>dos</strong> os habitantes nativos das colónias, porque tal não sucedeu emqualquer uma das políticas <strong>coloniais</strong>. Como se viu nas palavras iniciais desse texto,alguns autores afastaram-se desta afirmação, nomeadamente Marnoco e Souza, querecorreu mesmo ao exemplo argelino para mostrar que se podia “[…] seguir numacolónia a política de assimilação sem assimilar os indígenas. Assim a França tem feitoassimilação política, de um modo excessivo, na Argélia, mas não tem procuradoassimilar os indígenas. Têm sido conservadas, efectivamente, nesta colónia, as leis e asinstituições indígenas, ao mesmo tempo que os Árabes têm continuado a gozar dodireito muçulmano” 65 . O professor da universidade de Coimbra chegou mesmo aidentificar a fonte desse equívoco nos ensinamentos de Henri Hubertus van Kol (1852-1925): “Van Kolm nota que por onde as raças anglo-saxónicas e germânicas têmcolonizado se tem mantido a administração indígena. As raças latinas, pelo contrário,impulsionadas por um grande sentimento de fraternidade, procuraram assimilar oshabitantes de países longínquos aos da metrópole. Ora isto não é exacto, porquanto asraças latinas têm seguido a política da assimilação, mas nunca chegaram até àassimilação <strong>dos</strong> indígenas” 66 ).Não era também rigorosa, portanto, a ideia de que os indivíduos nativos teriamsido sujeitos, no regime colonial português e francês, sujeitos ao direito metropolitano.Pelo contrário, a menoridade do seu estatuto foi, em ambas as políticas <strong>coloniais</strong>,associada à tolerância para com os seus “usos e costumes”, designação que remetedesde logo para a inferiorização da ordem normativa tolerada. É certo, no entanto, quehavia uma intenção, subjacente aos discursos sobre o estatuto das populações nativasdas colónias, de conseguir uma “assimilação progressiva”, discurso no qual estavasubentendido – e, às vezes, explicitado - que as populações nativas acederiam àcidadania no momento em que se sujeitassem, voluntariamente, à justiça e aos Códigoseuropeus, sendo essa uma consequência natural da obra colonizadora. O próprio acto defazer códigos de “usos e costumes” era descrito, pela administração portuguesa, como65 V. Marnoco e Souza, “Regime Jurídico das populações [ …]”, cit., p. 101.66 V. Marnoco e Souza, “Regime Jurídico das Populações indígenas”, in Antologia Colonial Portuguesa,Lisboa, Agência Geral das Colónias, 1946, vol. I: “Política e Administração”, p. 101. Mas o facto é queele mesmo acabou por afirmar, a certa altura, que os portugueses tinham praticado ambas as formas deassimilacionismo, “…leva<strong>dos</strong> pelo “[…] desejo de alargar as prerrogativas liberais, [pela] ignorância <strong>dos</strong>costumes e das instituições <strong>dos</strong> indígenas, [e pela] grande facilidade de obter leis para o Ultramar[…]”, V.Administração Colonial[…], cit., p. 201.26


um meio de impulsionar essa mudança 67 . Nisso, de facto, fazia-se jus à tradição romana,que conjugava o desprezo pelos “bárbaros” com a sua integração no Império, mas sódepois de absorverem o direito romano e a civilização clássica 68 .Portugal, como a França, exportou para os territórios <strong>coloniais</strong> a sua legislação eos seus Códigos legislativos, embora sempre mediante aprovação do governo, tal comoem França o foi mediante a aprovação presidencial 69 . E, seguindo também o exemplofrancês, admitiu sempre que se introduzissem neles as modificações necessárias,nomeadamente para permitir a preservação de instituições que era contrárias aosprincípios que esses Códigos positivavam, como foi, durante algum tempo, o caso daescravidão ou, depois da abolição, do trabalho forçado.Esta exportação da legislação e <strong>dos</strong> Códigos, e nomeadamente osadministrativos, fez com que a organização administrativa do Ultramar português, comodo francês (sobretudo nas antigas colónias de Martinique, Guadaloupe e Reunion e naGuyane), fosse, formalmente, um espelho da organização administrativa dasmetrópoles. A França dividiu o seu ultramar em departamentos, governou-o através degovernadores (depositários do poder real ou da República) assisti<strong>dos</strong> por Conselhos(normalmente integra<strong>dos</strong> por europeus, mas tendencialmente, sobretudo a partir definais do século, com presença de representantes das populações nativas), governadoresesses com poderes semelhantes (embora tendencialmente mais alarga<strong>dos</strong>) aos <strong>dos</strong>prefeitos em França. Criou Conselhos gerais (em algumas ocasiões designa<strong>dos</strong> comoConselhos <strong>coloniais</strong>) organiza<strong>dos</strong> e forma<strong>dos</strong> de forma equivalente aos Conselhosgerais <strong>dos</strong> departamentos franceses, primeiro nas antigas colónias, depois também naArgélia, no Senegal, na Índia e na Cochinchina. Exportou, finalmente, o regimemunicipal francês, o que fez com que as três ilhas (Antilhas, Reunião e Guadaloupe) seassemelhassem muito aos departamentos franceses, embora o poder <strong>dos</strong> respectivos67V. Cristina Nogueira da Silva, “«Missão civilizacional» e Codificação de «usos e costumes» nadoutrina colonial portuguesa (séculos XIX-XX)”, in Quaderni Fiorentini per la Storia del PensieroGiuridico Moderno, nºs 33-34, t. II, 2004-2005, pp. 899-921.68 V. Michael W Doyle, Empires, Ithaca and London, Cornell University Press, 1986, p. 12169 Em 1838, o governo português publicou um decreto que proibiu os governadores e os governosprovisórios <strong>dos</strong> Domínios ultramarinos de pôr em execução qualquer lei, decreto, portaria ou regulamentosem prévia autorização do Ministério da Marinha e Ultramar, tendo sido esta a situação formal durantetodo o século de oitocentos, v. Decreto de 27 de Setembro de 1838, Legislação Novíssima, cit., vol.I, p.61.27


governadores tenha sido sempre maior do que o <strong>dos</strong> perfeitos. A introdução do princípioelectivo na formação <strong>dos</strong> órgãos departamentais e municipais foi, finalmente, umatendência que acompanhou também as alterações introduzidas pelas reformasadministrativas da metrópole. Nos territórios ultramarinos portugueses as opçõesadministrativas foram semelhantes às da França: à semelhança da organizaçãoadministrativa da metrópole, as províncias ultramarinas dividiram-se em distritos e osdistritos em concelhos. Haveria governadores-gerais em Cabo Verde, Angola,Moçambique e Índia, governadores nas outras duas províncias e governadoressubalternos nos distritos. No que diz respeito aos órgãos da administração provincial,previa-se, em decretos <strong>dos</strong> anos ’30 e <strong>dos</strong> anos ’60 70 , que existissem, ao lado de umGovernador-geral com poderes alarga<strong>dos</strong> (mas sucessivamente delimita<strong>dos</strong> face àsCortes e ao <strong>Governo</strong> central), órgãos da administração provincial semelhantes aos quefuncionavam junto do governador civil na metrópole. Esses órgãos eram os Conselhosde <strong>Governo</strong>, presidi<strong>dos</strong> pelo governador e com atribuições meramente consultivas, e asJuntas Gerais (de Distrito, ou de Província), semelhantes às Juntas Gerais de Distritoque funcionavam junto <strong>dos</strong> governadores civis <strong>dos</strong> distritos metropolitanos e com asatribuições consultivas, deliberativas e de fiscalização que estavam codificadas no art.216 do Código Administrativo português de 1842 71 .Mas os governos <strong>dos</strong> dois países comungaram também da ideia de que só deforma restrita e em zonas geográficas circunscritas, onde houvesse um volumesignificativo de população europeia, se podiam aplicar os códigos metropolitanos noultramar. O que se pensava, em geral, era que os Códigos se estendiam ao Ultramar pararegular as relações entre europeus ou populações europeizadas ou para organizar aadministração em regiões onde a presença dessas populações o permitisse. Depois, àmedida que a “civilização” se espalhasse, o âmbito de aplicação <strong>dos</strong> códigos“civiliza<strong>dos</strong>” alargar-se-ia. Assim, por exemplo, o decreto que mandou aplicar o CódigoCivil português de 1867 ao Ultramar admitia, no seu art. 6, que “Todas as disposiçõesdo Código Civil, cuja execução depender absolutamente da existência de repartiçõesjurídicas, ou de outras instituições, que ainda não estiverem criadas, só obrigarão desdeque tais instituições funcionarem”, condição que subtraía uma parte substancial do70V. Decreto de 7 de Dezembro de 1836, Legislação Novíssima, cit., vol. I, p. 16 e V. Decreto de 1 deDezembro de 1869, Carta Orgânica das Instituições Administrativas das Províncias Ultramarinasanotada por Ismael Gracias, Nova Goa, Imprensa Nacional, 1894, p. 102.71 V. Lei orgânica e Regulamentos da Junta geral de província (Decreto de 1 de Dezembro de 1869), p.2.28


território ultramarino à vigência do Código 72 . Nos outros territórios, as duas as opçõesseguidas mostram que as ideias francesas em matéria de colonização também passaram,como as portuguesas, pela adopção de formas indirectas de administração e pela criaçãode jurisdições especiais.Uma dessas opções foi a da adaptação <strong>dos</strong> Códigos às “circunstâncias locais”.Foi esse, por exemplo, o modelo seguido na Argélia, onde os franceses distinguiram,numa Ordonance de 1845, entre zonas de administração civil, quando houvesse númerosuficiente de europeus para que os serviços públicos pudessem ser organiza<strong>dos</strong> e odireito comum introduzido, e zonas de administração militar, nas quais se procurougovernar as populações por intermédio <strong>dos</strong> seus chefes naturais e se admitiram asjurisdições nativas e os “usos e costumes” vigentes 73 .Em Portugal a aplicação <strong>dos</strong> Códigos também devia variar “segundo o grau econdição da civilização” 74 e, por esse motivo, admitia-se que, quando transporta<strong>dos</strong> parao espaço ultramarino, os códigos sofressem adaptações. Os princípios e regrasadministrativas, por exemplo, podiam ser os mesmos, mas havia que introduzirmodificações capazes de os “particularizar segundo os usos, índole, carácter, interessese até erros de tão diversas gentes, com diferentes práticas e modo de viver, para as quaismuitos daqueles erros são dogmas de crença religiosa”, como se explicava no relatórioque acompanhou o Decreto de 7 de Dezembro de 1836, o primeiro a reformar a justiçano ultramar 75 . Consciente disso, o legislador – quase sempre o governo, com aautorização anterior das Cortes e o apoio de pareceres de um Conselho Ultramarino –introduzia modificações nos Códigos, em to<strong>dos</strong> os diplomas que os punham em vigorno ultramar. Mais do que isso, admitia sempre que os governadores-gerais em Conselho72 A execução <strong>dos</strong> Códigos dependia, como explicava um funcionário da administração colonialem Angola, “[...] da existência de entidades e instituições que, em grande parte, por enquanto nãoexistem aqui[...], transcrito em Joaquim d’Almeida da Cunha, Estudo acerca <strong>dos</strong> usos e costumes <strong>dos</strong>Banianes, bathiás, parses, Mouros, gentios e indígenas, cit., p. X. Sobre este tema e, em geral, sobre aextensão da legislação metropolitana ao ultramar e a sua adaptação, v. Cristina Nogueira da Silva, Acidadania nos Trópicos…, cit., Cap. 11.2: “Aplicação da legislação metropolitana ao ultramar”.73 V. Denise Bouche, cit., p. 110 A tarefa primordial <strong>dos</strong> bureau árabes, por exemplo, era, naArgélia, a de manter a segurança com o mínimo de meios, o que fez com que se administrasse aspopulações por intermédio <strong>dos</strong> chefes que se identificavam como naturais. Na descrição de DeniseBouche, os oficiais <strong>dos</strong> bureau árabes esforçavam-se por encontrar, entre a aristocracia indígena,elementos de um partido francês a quem pudessem confiar as funções de khalifas, bachaghas, caids etc..74 Bases em que devem assentar os projectos de leis orgânicas para cada uma das Colónias Portuguesas,cit. em Henrique Ferreira Lima, “Garrett Colonialista”, in Congresso do Mundo Português,Comunicações Apresentadas aos Congressos de História Moderna e Contemporânea de Portugal (V e VICongresso), Vol. VIII, 1940, p. 431.75 V. Legislação Novíssima, cit., vol. I, p. 18.29


fizessem as suas próprias propostas de alteração, embora condicionadas à sua posterioraprovação 76 .Assim, também a administração portuguesa distinguiu entre o territórioultramarino considerado civilizacionalmente preparado para gozar das vantagens do“estado municipal” - território onde as autoridades judiciais e administrativasdesempenhavam as respectivas atribuições de acordo com a lei metropolitana -, e, poroutro lado, os “estabelecimentos indígenas”. Nestas zonas a administração devia estarentregue a chefes militares, que acumulavam funções administrativas com funçõesmilitares e judiciais e que se deviam orientar, no exercício dessas actividades, pelos“usos e costumes” <strong>dos</strong> povos. Assim, num <strong>dos</strong> primeiros documentos oficiais que sereferem à exportação do regime municipal metropolitano para o ultramar, uma consultado Conselho Ultramarino que precedeu um Regimento de Justiça de 1852, consideravaseque nem todo o território ultramarino estava civilizacionalmente preparado paragozar das vantagens do “estado municipal”. No decreto que resultou dessa consulta eraexplicito que as “zonas de município” coincidiam com as zonas de “colónia”,correspondendo as outras – como os presídios e distritos, em Angola e na Guiné – aos“estabelecimentos indígenas”. Estas últimas eram, então, zonas cuja administraçãodevia estar entregue a chefes militares, que acumulavam funções administrativas comfunções militares e judiciais 77 .Finalmente, no território ultramarino francês e português foram cria<strong>dos</strong> tribunaisfranceses e portugueses, semelhantes aos metropolitanos. Mas em ambos os casos estestribunais não só aplicaram direito não europeu, como conviveram com tribunaisespeciais, onde se administrava justiça aos nativos de acordo com formas híbridas que,na verdade, se distanciavam tanto das formas europeias como das formas “tradicionais”.Em outros casos preservaram-se as jurisdições nativas, por vezes com a possibilidade dese recorrer das respectivas sentenças para os tribunais europeus 78 . Consagrava-se, assim,76 Essa prática, sancionada nos decretos que faziam aplicar os Códigos ao Ultramar, seria codificada noDecreto de 1 de Dezembro de 1869, em relação a toda a legislação. O governador podia, ouvindo oConselho de governo, propor a revogação, modificação ou substituição de qualquer lei ou disposiçãolegislativa, decreto ou disposição do governo, remetendo ao Ministério da Marinha e Ultramar a proposta.Estas propostas podiam ainda ser por ele postas em execução nos casos de urgência previstos no Art. 15do Acto Adicional (art. 17).77V. Novíssima reforma judiciária: contida no decreto de 21 de Maio de 1841 segundo aautorização concedida ao <strong>Governo</strong>[...]. Com um apêndice contendo leis, decretos e portarias que têminterpretado, complementado e revogado algumas das suas disposições, tanto em relação ao continentecomo em relação ao Ultramar, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1888, p. 614-15.78V. Denise Bouche, cit., pp. 140-41 e Cristina Nogueira da Silva, “A codificação…”, cit., ebibliografia aí citada.30


uma separação entre a justiça que podia ser praticada em zonas com algum povoamentoeuropeu ou europeizado e a justiça que podia ser praticada em zonas quaseexclusivamente habitadas por populações nativas, formalizando-se um sistema separadoe próprio para estas últimas 79 .Comum à política colonial <strong>dos</strong> dois países foi, finalmente, a ideia de que estasdistinções que se faziam na aplicação do direito e das leis seriam transitórias. Com avinda de colonos europeus e o progresso económico introduzir-se-iam “hábitoseuropeus” e, com eles, formas de administração cada vez mais próximas dasmetropolitanas 80 . Em consonância com estas ideias criaram-se instituições de“transição”, que se adequavam a esse propósito. Nas colónias portuguesas, por exemplo,a ideia de um acesso geográfico e temporal diferenciado a um regime municipalpróximo do metropolitano foi acompanhada pela criação de instituições locais quepromovessem a extensão gradual daquele regime a todo o território. Foi com esseobjectivo que, em 1857, Sá da Bandeira ordenou ao Governador-geral da província deAngola a execução de uma reforma da organização municipal do interior da província,cujo sentido era, exactamente, o de preparar alguns territórios do interior para oestabelecimento futuro da administração municipal. A reforma envolvia uma fase“intermédia” na administração de algumas destas circunscrições, fase na qual já nãoficariam sujeitas a um chefe militar, cujo poder se pretendia atenuar, mas que não era,ainda, a do governo pelas câmaras municipais. Em vez de uma ou outra modalidade, ogovernador devia estabelecer, em alguns distritos, comissões municipais, compostas porhomens escolhi<strong>dos</strong> por ele próprio entre os habitantes que, por sua “inteligência,indústria ou fortuna”, lhe parecessem idóneos (art. 1). Ao fim de um ano, a experiênciadevia ser avaliada e, nessa altura, cabia também ao governador decidir da transformaçãodestas comissões em câmaras municipais idênticas às metropolitanas, bem como sobre“a forma da sua eleição, e todas as demais disposições que entenda necessáriopromulgarem-se para a boa organização da administração municipal no interior daprovíncia” 81 .79Esta divisão foi comum a quase to<strong>dos</strong> os territórios coloniza<strong>dos</strong>, como se mostra na tipologiaproposta por V. Crawford Young, The African Colonial State in Comparative Perspective…, cit., p. 115.80V., sobre essa ideia aplicado aos bureau árabes na Argélia, Denise Bouche, Histoire de laColonization Française, cit , p. 111-112.81 V. Portaria de 10 de Janeiro de 1857, in Annaes do Conselho ultramarino, Parte Oficial, série I(Fevereiro de 1854 a Dezembro de 1858), Lisboa, Imprensa Nacional, 1867, p. 353.31


O mesmo raciocínio terá presidido à criação, na Ordonance de 1845, de umregime “intermédio” na administração local argelina, as communes mixtes, a meiocaminho entre as communes de plein exercice, em zonas de povoamento europeu e cujofuncionamento era similar as comunas francesas, e as communes indigénes, em zonasnão pacificadas, de administração militar. As communes mixtes desenvolviam-se emzonas de maioria muçulmana e eram governadas por oficiais nomea<strong>dos</strong> e eleitos,incluindo representantes <strong>dos</strong> que eram identifica<strong>dos</strong> como chefes nativos, e por umadministrador francês 82 .Outras vezes optou-se ainda por formas administrativas mais indirectas, comoaconteceu sempre que, ao longo de todo o século XIX, a administração francesa, como aportuguesa, assinaram “contratos de vassalagem” ou “trata<strong>dos</strong> de amizade e comércio”com chefes africanos ou, na caso francês, trata<strong>dos</strong> de protectorado, no Senegal e,sobretudo, na Tunísia e Marrocos, a partir <strong>dos</strong> anos ’80 do século XIX 83 . Além deenvolverem o respeito pelas tradições jurídicas nativas, filtra<strong>dos</strong> pelo critério da moral eda ordem pública, como sucedia sempre, estes trata<strong>dos</strong> mantinham a soberania (ou partedela) das autoridades nativas, dando origem, na terminologia colonial portuguesa, àidentificação, no espaço ultramarino africano, de terras avassaladas, “territórios em quenão está estabelecida autoridade da nomeação do governo, mas cujos chefes indígenasprestam obediência à autoridade portuguesa mais próxima ou ao governo-geral[...]” 84 .A intenção, a um prazo ainda mais longo, era que também estas populaçõesviessem a ser “europeizadas”, à medida que o progresso civilizacional, que seconsiderava ser favorecido pela presença europeia, avançasse. Contudo, esse foitambém o ideal que norteou a política da indirect rule tal como foi concebida pelo seuprimeiro teorizador, Lord Lugard, já em 1922. Também para Lugard o fim dacolonização era o de “activar a marcha natural da evolução social” em direcção a umestado superior de evolução que considerava ser o da civilização europeia. O respeitopelos costumes e instituições era apenas temporário, visto como a melhor e mais82Em 1870 os bureau árabes situa<strong>dos</strong> nos territórios submeti<strong>dos</strong> à administração militar foramsubstituí<strong>dos</strong> por estas communes mixtes. Nestas o administrador era assistido por uma comissão municipalformada por europeus, eleitos pelos seus concidadãos, e por caïds, chefes hereditários que lentamente seforam convertendo em pequenas funcionários da administração francesa, v. Denise Bouche, Histoire de laColonization Française, cit , p. 11883Já em 1840, no Senegal, os comandantes particulares de Gorée assinavam trata<strong>dos</strong> de amizade ecomércio com os chefes locais, v. Denise Bouche, cit., p. 50.84V. Joaquim d’Almeida da Cunha, Os indígenas nas colónias portuguesas d’África, e especialmente naProvíncia de Angola, Luanda, Imprensa Nacional, 1900, p. 21. O mesmo autor explicava que nessasterras “[…]o poder existe todo no régulo, que o exerce segundo os usos cafreais e as tradições do país”, v.idem, ibidem, pp. 13-14.32


prudente forma de obter o efeito da “assimilação”. O que os teóricos da indirect rulerejeitavam era a imposição violenta, “por decreto”, da cultura europeia. Mesmo asposições mais relativistas, que se desenvolveram sobretudo nos anos ’30 do século XX,nas quais se concebia uma evolução “dentro da tradição”, eram muito ambíguas quantoao resultado dessa evolução, pois nunca esclareceram sobre o grau de absorção devalores europeus que esse modelo da evolução “na linha indígena” envolvia 85 .É também certo que a tendência, em muitas das situações atrás descritas, foi paraque os chefes que se identificavam como sendo autoridades tradicionais seconvertessem em funcionários da administração directa francesa, muitas vezesescolhi<strong>dos</strong> por causa da sua fidelidade à nação colonizadora. Porém, sabe-se quefenómenos semelhantes aconteceram com a aplicação da indirect rule, política quemuitas vezes redundou na recriação de uma organização tribal que não existia antes e noapoio a autoridades tradicionais que, na verdade, resultavam de uma selecção mediadapela necessidade de garantir o apoio dessas autoridades nos territórios coloniza<strong>dos</strong> 86 .Finalmente, já nos finais do século, a doutrina francesa da association, queintegrava quase to<strong>dos</strong> os elementos da indirect rule britânica (autonomia, cooperaçãocom as elites nativas, respeito pelas instituições e religião nativas, partilha <strong>dos</strong>benefícios da colonização) tornou-se hegemónica nos meios <strong>coloniais</strong> franceses. E,nessa altura, a França surgiu novamente como modelo na literatura colonial portuguesa,já não por causa da (muito criticada) vocação igualitária da sua política colonial, maspelos motivos exactamente opostos. Em 1917, Artur Ribeiro <strong>dos</strong> Santos, Ministroportuguês das colónias, elogiou a criação, pela terceira República francesa, em 1894, deum Ministério das Colónias, considerando essa novidade como um sinal, positivo, deque os “princípios abstractos”, que o Ministro considerava serem próprios da tradicionalpolítica “assimilacionista” <strong>dos</strong> republicanos franceses, tinham perdido o seu antigopredomínio, em favor do “modelo inglês”: “Sente-se que o governo central é compostode homens novos, educa<strong>dos</strong> na escola moderna da ciência positiva, avessa a utopias, osquais têm a seu lado [...] os grandes trata<strong>dos</strong> de colonização, cheios de ensinamentos85Sobre estes temas e as ambiguidades que os envolveram v. Véronique Dimier, Le Discoursidéologique de la méthode coloniale chez les Français et le Britanniques…, cit., p. 15-16. Reflexõessemelhantes foram as de Raymond Betts para a doutrina francesa da association; também esta nuncaabandonou o ideal assimilador mas, por outro lado, não soube explicar bem a diferença entre o progressoque consistia em “desenvolver os povos nativos no quadro da sua própria civilização” e o“assimilacionismo puro”, v. Raymond F., Assimilation and Association in French Colonial Theory… ,cit., p. 131 e pp. 167-69.86V. Mahmood Mamdani, Citizen and Subject, Contemporary Africa and the legacy of late colonialism,Princeton, New Jersey, Princeton University Press, 1996, p. 4-5.33


[...] e de recomendações práticas derivadas do estudo do modelo inglês” 87 . Com isso,dizia ainda o Ministro, insistindo num olhar sobre a realidade mediado pelas grelhas declassificação da literatura colonial que vinha <strong>dos</strong> fins do século XX, os republicanosfranceses tinham posto termo ao “[…] pensamento simpático, mas irrealizável, de asamalgamar [as colónias] com o continente em um mesmo e único organismo nacional,em que pretos e brancos, irmana<strong>dos</strong>, gozassem da pura doutrina da Déclaration desDroits” 88 .87 V. Administração financeira das províncias ultramarinas, proposta de lei orgânica e relatórioapresenta<strong>dos</strong> ao Congresso pelo Ministro das Colónias Artur R. de Almeida Ribeiro, e leis nº 277 e 278,Coimbra, Imprensa da Universidade, 1917, p. 32.88 V. Artur R. de Almeida Ribeiro, “Descentralização na Legislação e na Administração das Colónias”, inAntologia Colonial Portuguesa, Lisboa, Agência Geral das Colónias, 1946, vol. I: “Política eAdministração”, p. 153.34

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