Exigência, precisa-se!Apesar <strong>de</strong> acharmos que nunca é suficiente, a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>é que têm surgido, um pouco por todo o País, planos e estruturascapazes <strong>de</strong> proporcionar oferta artística/cultural queaté recentemente só era possível encontrar nas principaisci<strong>da</strong><strong>de</strong>s portuguesas. Há infra-estruturas a nascer, <strong>da</strong>ndoorigem <strong>ao</strong> início <strong>de</strong> alguma <strong>de</strong>scentralização. No entanto,tal facto não se po<strong>de</strong> constatar <strong>ao</strong> olhar para a MarinhaGran<strong>de</strong> que, hoje, nem sequer tem um cinema ou teatromunicipal em funcionamento.Ninguém, mais que uma autarquia, se <strong>de</strong>verá sentir naresponsabili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> activar e coor<strong>de</strong>nar planos culturaisque estejam em sintonia com a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> do nosso dia-a--dia, já que uma população culturalmente mais activa éuma população melhor educa<strong>da</strong>.Mas <strong>de</strong>ixo agora as autarquias e volto-me para o todoque faz <strong>da</strong> Marinha Gran<strong>de</strong> uma ci<strong>da</strong><strong>de</strong>. Um todo que nãoé suficientemente exigente ou não está ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iramenteinteressado em exigir maior rigor e cui<strong>da</strong>do no tratamento<strong>da</strong>s questões culturais. Falamos <strong>de</strong> uma locali<strong>da</strong><strong>de</strong><strong>de</strong> cariz vinca<strong>da</strong>mente industrial, composta, em gran<strong>de</strong>parte, por uma população liga<strong>da</strong> à indústria, <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>nte,na maioria, <strong>de</strong> migrantes fabris que encontraramna Marinha Gran<strong>de</strong> oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> trabalho.Sem recorrer a gran<strong>de</strong>s estudos sociais, consigo perceberque tal perfil não se associa tão facilmente à Cultur<strong>ao</strong>u às diversas formas <strong>de</strong> Arte, como outros que, naci<strong>da</strong><strong>de</strong> representam uma fraca minoria. Falo, por exemplo,<strong>de</strong> pessoas com formação académica, seja ela feitaem que área for.Pelas mais varia<strong>da</strong>s razões, são muitos os estu<strong>da</strong>ntesque não voltam à Marinha Gran<strong>de</strong> para fazer vi<strong>da</strong> após aconclusão do curso. Tais factos estão directamente relacionadoscom a falta <strong>de</strong> exigência <strong>de</strong>sta população que está<strong>de</strong>sinteressa<strong>da</strong> e sem tempo para pensar que talvez umaci<strong>da</strong><strong>de</strong> culturalmente mais evoluí<strong>da</strong> po<strong>de</strong>ria <strong>de</strong>finitivamentecontribuir para uma maior aproximação com o “MundoDRBruno Monteiro, presi<strong>de</strong>nte<strong>da</strong> Associação CISCO, Marinha Gran<strong>de</strong>exterior” e consequente enriquecimento intelectual geradopelo contacto com as diversas manifestações artísticas/culturais.Se por um lado cabe à autarquia a responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>criar formas <strong>de</strong> incentivo <strong>ao</strong> “consumo” cultural, por outrotambém cabe <strong>ao</strong>s seus habitantes exigir <strong>ao</strong> município maiorrigor no tratamento dos assuntos culturais.no pontoembanho mariarequentadoOs voluntários que ain<strong>da</strong> teimam em remar contraa maré. Na Marinha Gran<strong>de</strong>, <strong>de</strong>staco o trabalhoque o Sport Operário tem feito <strong>ao</strong> longo<strong>de</strong>stes anos. Destaco também o aparecimento <strong>da</strong>Associação CISCO on<strong>de</strong> o voluntariado é pleno,mas não impediu mais uma vez <strong>de</strong> mostrar elevadoprofissionalismo na organização <strong>da</strong> quartaedição do Festival Overlive, tendo em conta o baixíssimoorçamento. Duas enti<strong>da</strong><strong>de</strong>s que tentamsalvar a ci<strong>da</strong><strong>de</strong> do marasmo cultural.As colectivi<strong>da</strong><strong>de</strong>s marinhenses, em tempos, eram quemproporcionava <strong>ao</strong>s habitantes activi<strong>da</strong><strong>de</strong>s distintas, muitas<strong>de</strong> cariz cultural e pe<strong>da</strong>gógico. Hoje, já é com muitadificul<strong>da</strong><strong>de</strong> que oferecem algo novo. Atraiçoa<strong>da</strong>s pelafalta <strong>de</strong> actualização e por uma relação pouco próximacom os jovens locais. As colectivi<strong>da</strong><strong>de</strong>s po<strong>de</strong>m representarum papel importante na procura <strong>de</strong> activi<strong>da</strong><strong>de</strong>cultural, mas sangue contemporâneo é urgentementenecessário.À falta <strong>de</strong> melhores i<strong>de</strong>ias, alguém teve a infelici<strong>da</strong><strong>de</strong><strong>de</strong> se lembrar <strong>de</strong> fazer uma toura<strong>da</strong> na Marinha Gran<strong>de</strong>.Contribuindo assim para a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> aparecimento,na ci<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>de</strong> uma <strong>da</strong>s mais cruéis tradiçõesque este País ain<strong>da</strong> sustenta. Os direitos dos animaissão assim colocados em causa numa ci<strong>da</strong><strong>de</strong> que, talvezpor obra do acaso, se tinha mantido, <strong>ao</strong> longo <strong>de</strong>stesanos, longe <strong>de</strong>ssa questão.v i v e r . 3 0DRDRDR<strong>Jornal</strong> <strong>de</strong> <strong>Leiria</strong> . 16 <strong>de</strong> Abril <strong>de</strong> 2009
Pedro Redol, conservador do Mosteiro <strong>da</strong> BatalhaÉ precisa coragem para tirara estra<strong>da</strong> <strong>da</strong> frente do mosteiroentrevistaRICARDO GRAÇAÉ com muita paixão e<strong>de</strong>dicação que Pedro Redolfala do seu trabalho noMosteiro <strong>da</strong> Batalha. Contahistórias fascinantes <strong>de</strong>tempos antigos e dosarquitectos portugueses queplanearam Santa Maria <strong>da</strong>Vitória, que já no século XIVeram consi<strong>de</strong>rados dosmelhores <strong>da</strong> Europa.Licenciou-se em História,variante <strong>de</strong> História <strong>da</strong> Arte,em Coimbra. Neste momento,<strong>de</strong>dica-se <strong>ao</strong> estudo <strong>da</strong>antiga Cerca do mosteiro.Aos 44 anos, entre outroscargos, já foi director doConvento <strong>de</strong> Cristo e doMuseu Nacional Machado <strong>de</strong>Castro, em Coimbra.É conhecido pelo estudo dos vitrais domosteiro <strong>da</strong> Batalha. Quais foram as principaiscuriosi<strong>da</strong><strong>de</strong>s que <strong>de</strong>scobriu acerca <strong>de</strong>les?Esses vitrais têm uma relação muito gran<strong>de</strong>com a nossa pintura retabular. Não temosdocumentos a dizer quem os fez, mas sabemosque aquilo não tem a ver com o vitral flamengo.Embora haja uma influencia indirecta. Portantohá uma gran<strong>de</strong> relação com a pintura <strong>de</strong>Francisco Henriques e outros pintores <strong>da</strong> geração<strong>de</strong>le. Descobriram-se bastantes coisas, emresultado não tanto <strong>de</strong> documentos escritos,mas <strong>da</strong> observação atenta <strong>da</strong>s peças e <strong>da</strong> comparaçãocom outras obras. A partir <strong>de</strong> 1996,tivemos a oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> começar a tirar painéisdo século XV, alguns do princípio do séculoXVI, e começar a estu<strong>da</strong>-los, distinguindo oque era pintura do que era corrosão.Neste momento, está a preparar um trabalho<strong>de</strong> recriação <strong>da</strong> Cerca do Mosteiro.O doutoramento em que estou a trabalharnão tem na<strong>da</strong> a ver com os vitrais. Percebi quepodia estu<strong>da</strong>r o mosteiro numa óptica diferente<strong>da</strong>quela que se consagrou sobretudo a partirdo car<strong>de</strong>al Saraiva. Ou seja, a arquitecturacomo espaço <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> e não como elementosarquitectónicos. Tenho interesse em percebercomo é que o mosteiro cresceu, encolheu, e setransformou em função <strong>da</strong> sua utilização. Éinteressante ver como, em mapas, gravuras, epontos <strong>de</strong> vista pre<strong>de</strong>finidos - e existem muitasgravuras do século XVIII <strong>da</strong> Batalha - a paisagemestá representa<strong>da</strong> na escrita dos viajantes.Como no caso <strong>de</strong> William Beckford, porexemplo. A Cerca era parte <strong>de</strong>ste gran<strong>de</strong> território.Uma quinta mura<strong>da</strong> que ficava a nortedo mosteiro, que incluía uma estra<strong>da</strong> e partedo curso do rio Lena, on<strong>de</strong> os fra<strong>de</strong>s costumavapescar para <strong>de</strong>scontrair. Outra coisa são osedifícios <strong>de</strong>saparecidos. O mosteiro teve claustrosconstruídos em meados do século XVI,naquela parte <strong>de</strong> trás que tem um aspecto horrível.Até uma certa altura do século XX houvelá a igreja <strong>de</strong> Santa Maria, a Velha e restos <strong>de</strong>um quarteirão, entretanto <strong>de</strong>struídos à medi<strong>da</strong>que se foi “limpando” à volta do mosteiro.Per<strong>de</strong>u-se cerca <strong>de</strong> um terço do mosteiro. Noséculo XIX foi privilegia<strong>da</strong> a arquitectura gótica,e o restauro <strong>de</strong>sse tempo foi influenciadopor essa corrente, levando à <strong>de</strong>struição <strong>de</strong> claustros,que eram <strong>de</strong> certeza <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> quali<strong>da</strong><strong>de</strong>arquitectónica. Há sinais <strong>de</strong>les na planta doJames Murphy e na historiografia <strong>de</strong> Frei Luís<strong>de</strong> Sousa, do século XVII.Na vossa activi<strong>da</strong><strong>de</strong> do dia-a-dia, ain<strong>da</strong><strong>de</strong>scobrem “mistérios”?Sim, muitas vezes. As pessoas pensam quesabemos muita coisa e que vamos <strong>de</strong>scobrirtudo o que está ali, e, acontece serem os visitantesa chamar-nos a atenção para algo quenunca vimos. No ano passado, estava a estu<strong>da</strong>rum vitral do século XV, e havia uma peçaque estava muito escureci<strong>da</strong> - é um tipo <strong>de</strong>alteração que ocorre naqueles vitrais - e tinha--se <strong>de</strong>stacado gran<strong>de</strong> parte <strong>da</strong> pintura, e eu nãopercebia o que estava representado naquelapeça. Entrou um senhor no meu atelier e começoua olhar para aquilo e disse que era um cão.E <strong>de</strong> facto era a cabeça <strong>de</strong> um cão. O cão <strong>de</strong>um pastor. Como os grafitis que são um assuntomuito interessante. Era bom que se estu<strong>da</strong>ssemporque há lá caracteres e palavras inteirasem escrita do século XV, princípio do XVI. Numdos grafitis aparece mesmo uma cegonha branca,espécie entretanto <strong>de</strong>sapareci<strong>da</strong> <strong>da</strong> região...Há, portanto, ali também uma história <strong>da</strong> natureza.Consi<strong>de</strong>ra que tem havido uma visão unificadorado património edificado <strong>da</strong> região?Existe ea intenção <strong>de</strong> criar circuitos quelevem as pessoas <strong>de</strong> um lado para outro. A experiência<strong>de</strong> ter sido director <strong>de</strong> um gran<strong>de</strong> monumentonacional – o convento <strong>de</strong> Cristo - e <strong>de</strong>um gran<strong>de</strong> museu nacional – Machado Castro- foi muito interessante porque me provou quemonumentos e museus são tratados <strong>de</strong> maneiradiferente. E é pena que assim seja, porquenão há diferença nenhuma. Ambos têm potenciali<strong>da</strong><strong>de</strong>spara musealização e criação <strong>de</strong> espaços<strong>de</strong> exposição. Mais do que as relações entreos gran<strong>de</strong>s monumentos, é a relação do monumentocom o seu contexto. Portanto um dosobjectivos que temos é, por um lado, ter umcentro interpretativo, por outro, com esta investigaçãoque vamos fazer, é perceber que, apesar<strong>de</strong> se ter <strong>de</strong>struído o contexto e <strong>de</strong> hoje termosuma imagem <strong>de</strong> um mosteiro numa clareira,isso não era na<strong>da</strong> assim, e que a própria comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>conventual teve uma relação que erafisicamente visível com a população. Vamosson<strong>da</strong>r o espaço <strong>da</strong> cerca e fazer reconstituiçõescientificamente credíveis, que permitemmodulação 3D e que serão usa<strong>da</strong>s para exibir<strong>ao</strong>s visitantes.Fazem falta mais centros <strong>de</strong> interpretaçãocomo o <strong>da</strong> Batalha <strong>de</strong> Aljubarrota...Exacto. Mas temos previsto um centro <strong>de</strong>interpretação. O projecto está concluído <strong>de</strong>s<strong>de</strong>2004 e não tem sido implementado por falta<strong>de</strong> possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s do ponto <strong>de</strong> vista financeiro,mas espera-se que este ano o seja. É que é complicadocriar uma relação com o mosteiro comaquela estra<strong>da</strong> que está ali em frente. E não ésó pelo facto <strong>de</strong> criar poluição que <strong>de</strong>strói omonumento. Não é possível gostar <strong>de</strong> estar ali<strong>de</strong>ntro com a porta aberta a ouvir camiões otempo todo.Acredita que a variante nova, tendo portagem,vai resolver o assunto?Não. Sei que, politicamente, tirar <strong>da</strong>li a estra<strong>da</strong>é muito complicado. Mas também é precisoter coragem. E, se ela está ali <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1964 -coisa impensável em frente a outro monumentocomo este em qualquer parte do Mundo, oupelo menos <strong>da</strong> Europa - será que realmente háum ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro cui<strong>da</strong>do e interesse pelo Mosteiro<strong>da</strong> Batalha? Penso que não. Ou <strong>da</strong>mos calmaàs pessoas, ou elas não conseguem criaruma relação genuína com o espaço.Jacinto Silva Durov i v e r . 3 1<strong>Jornal</strong> <strong>de</strong> <strong>Leiria</strong> . 16 <strong>de</strong> Abril <strong>de</strong> 2009