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E se ele fosse o som de 2011? - Fonoteca Municipal de Lisboa

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NELSON GARRIDOA páginas tantas surge, em “Erros Individuais”,o mais recente livro dopoeta José Miguel Silva, um poemaintitulado “Profissão <strong>de</strong> Pé” que, trê<strong>se</strong>strofes à frente, acaba assim: “Cancelar<strong>de</strong> vez a assinatura do mundo”.Pouco mais <strong>se</strong>ria necessário para<strong>de</strong>monstrar como é impreciso o rótulo“neo-realista” que tem acompanhadoo poeta <strong>de</strong>s<strong>de</strong> cedo. O humordo título, a <strong>de</strong>silusão a raiar o romantismoque grassa pelo poema e o versofinal, afastam-no <strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong>real, que em literatura <strong>se</strong> revela emenumerações enraizadas na ob<strong>se</strong>rvação.Aqu<strong>ele</strong> último verso <strong>de</strong>nuncia ogran<strong>de</strong> tema que atravessa a obra <strong>de</strong>José Miguel Silva: para nos afastarmosdo mundo temos <strong>de</strong> cancelar a assinatura,isto é, a renúncia ao mundo(à estrutura que rege o mundo e portantonos dita o modo <strong>de</strong> agir) implicauma renúncia comercial (a assinatura).Não é por acaso que esta é a primeiranota que tocamos, visto <strong>se</strong>r umaquestão premente ao próprio poetaque, meras 24 horas após falarmos aot<strong>ele</strong>fone sobre o livro, enviou um mailcom algumas a<strong>de</strong>ndas às suas <strong>de</strong>clarações:“Mais pertinente do que ocarácter realista da minha poesia talvez<strong>se</strong>ja a sua vocação política, a suapropensão para interpelar não apenaso íntimo e pessoal, mas também osocial”.O mail acaba assim: “Isto só paradizer que me dou melhor, apesar <strong>de</strong>tudo, sob a etiqueta <strong>de</strong> poeta políticodo que <strong>de</strong> poeta realista”.Se há livro na obra <strong>de</strong> José MiguelSilva que permite dar por ultrapassadoo prazo <strong>de</strong> valida<strong>de</strong> da etiquetaneo-realista é “Erros Individuais”,cuja géne<strong>se</strong> <strong>se</strong> centra numa viagem(que existiu) a Florença. Os poemaspartem <strong>de</strong> uma espécie <strong>de</strong> narradorque <strong>se</strong> pas<strong>se</strong>ia entre a alta pintura religiosae os turistas abonados, pon<strong>de</strong>randoo equilíbrio precário entre a fée o dinheiro, entre a Igreja e a burguesia.Havendo “tipos” realistas – o turista,a casa agrícola, o dinheiro – o maispremente no livro é essa espécie <strong>de</strong>reflexão monetarista e o sarcasmo oua ironia triste que une cada verso.Acresce que ao contrário do que temsido escrito, José Miguel Silva não tomaum partido claro entre fé e burguesia:ninguém é poupado mas ninguémé dizimado; e <strong>se</strong> aqui e ali aspreferências políticas, éticas e estéticasdo poeta surgem claras, <strong>se</strong>ria abusadotraçar um perfil biográfico apartir daqu<strong>ele</strong>s versos visto haver umjogo <strong>de</strong> personificação.“Quando comecei a escrever estespoemas” – dizia-nos ao t<strong>ele</strong>fone <strong>de</strong>Serém, a al<strong>de</strong>ia on<strong>de</strong> resi<strong>de</strong>, porqueali, <strong>se</strong>gundo afirma, po<strong>de</strong> viver <strong>se</strong>mter <strong>de</strong> trabalhar insanamente – “o meuobjectivo era fazer simplesmente umrecordatório da experiência vivida”.O processo <strong>de</strong> recordar, <strong>se</strong>mpre uminimigo da paz, trouxe-lhe à mente “oconfronto entre o espírito burguês eo cristão que em Florença é tão flagrante”.O tema acabou, por forçamaior, por <strong>se</strong> lhe impor como “o verda<strong>de</strong>irotema do livro”.A vela <strong>de</strong> ignição do livro foi entãoa “contradição insanável” entre estasduas visões do mundo [burguesa ecristã], assinalada na própria arte,como realça o poeta: “Vês a VirgemMaria vestida como <strong>se</strong> pertences<strong>se</strong> àalta burguesia, vês os santos vestidoscomo príncipes. Quando toda a mensagemcristã <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> o oposto”. Acoexistência aparentemente pacíficaentre opostos tão pronunciados causouuma espécie <strong>de</strong> comichão no poeta:“Es<strong>se</strong> convívio entre o cristão eo burguês só <strong>se</strong> faz com uma certahipocrisia. E a hipocrisia e a duplicida<strong>de</strong>é que me incomodam”.José Miguel não disfarça que prefere“o espírito da burguesia”, porqueé “individualista e materialista”. Masnesta sua assumpção não há lugar aabsolutismos e há lugar também àadmissão <strong>de</strong> que “o mero materialismoé empobrecedor”. Pelo que o queencontrou em Florença foi o que resta<strong>de</strong> uma dupla mentira, pas<strong>se</strong> a expressão:“De maneiras opostas, tantoo cristianismo como o liberalismotraíram as suas promessas”.O objecto e o abjectoÉ esta tensão (entre o reconhecimentoda falência <strong>de</strong> modos <strong>de</strong> ver o mundoe da própria incapacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> con<strong>de</strong>narpor completo quem os escolhe)que move “Erros Individuais”, títuloque, tendo em conta o que está emjogo, não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> <strong>se</strong>r irónico. “Quemler o livro com atenção percebe queeu tento não situar-me em nenhumextremo. Critico um certo materialismo,gros<strong>se</strong>iro, com o qual tenho umacerta insatisfação; mas por outro ladohá uma certa nostalgia das verda<strong>de</strong>irasorigens cristãs, que infelizmentenão partilho”.Se há livrona obra <strong>de</strong>José MiguelSilva quepermite darpor ultrapassadoo prazo<strong>de</strong> valida<strong>de</strong>da etiquetaneo-realistaé “ErrosIndividuais”Há ainda um terceiro plano <strong>se</strong>mióticonos poemas: “A b<strong>ele</strong>za daquelapintura”. Perante o espanto estético<strong>de</strong> algo que pertence a uma or<strong>de</strong>mmoral em que não acredita, o poetacoloca-<strong>se</strong> uma questão bem antiga:“A b<strong>ele</strong>za tem <strong>de</strong> estar ao <strong>se</strong>rviço <strong>de</strong>alguma coisa?”Po<strong>de</strong> parecer uma questão menore José Miguel Silva é o primeiro a daro exemplo <strong>de</strong> Leni Riefenshtal, queos cineastas gabam apesar do carácterhediondo do <strong>se</strong>u trabalho (e facilmentepo<strong>de</strong>ríamos acrescentar Céline emuitos outros à lista). Mas é, na realida<strong>de</strong>,mais complexo que isto, damesma forma que afirmar que formae conteúdo são a mesma coisa é umsimplismo atroz.“Não acho que a arte tenha <strong>de</strong> estarao <strong>se</strong>rviço <strong>de</strong> nada”, começa José Miguel.“O que não <strong>se</strong>i é <strong>se</strong> a b<strong>ele</strong>za <strong>se</strong>justifica por si só – e o mesmo <strong>se</strong> po<strong>de</strong>dizer do conhecimento. Ou, dito doutromodo, prefiro a arte que <strong>se</strong> fundanum <strong>se</strong>ntido moral”.A questão po<strong>de</strong> <strong>se</strong>r colocada <strong>de</strong>outra maneira. Imaginemos que olhamosum objecto. E o objecto encantanos.Depois pensamos sobre o objectoe verificamos que o que está na suafundação é abjecto. O que fazer? “Peranteum objecto belo, perante qual-Realista não,político simO mais recente livro do poeta José Miguel Silva,“Erros Individuais”, parte <strong>de</strong> uma viagem <strong>de</strong> férias a Florençapara analisar a Igreja e o capital, a arte e a moral. No fim surge tristementeo país. Mais que um poeta realista, é um poeta moral ou do pensamento.Ele prefere o termo “político”. João Bonifácio22 • Sexta-feira 11 Fevereiro <strong>2011</strong> • Ípsilon

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