DANIEL ROCHAAs peças<strong>de</strong> DidierFaustinoexigem queo espectadoraja física ementalmente:“Flatland”,<strong>de</strong> <strong>2011</strong>,convida-oa baloiçarpara “<strong>ele</strong>var opensamento”Didier Faustino tem um programasubversivoPo<strong>de</strong> dizer-<strong>se</strong> que Didier Fiúza Faustino(n. Chennevières-sur-Marne,França, 1968) tem na ambiguida<strong>de</strong> o<strong>se</strong>u primeiro motivo <strong>de</strong> trabalho: nãoé nem arquitecto nem artista; não énem francês nem português; os objecto<strong>se</strong> instalações que faz não sãonem esculturas nem propostas arquitectónicas;as premissas <strong>de</strong> que parte,tal como os resultados que atinge, nãopertencem a nenhum território <strong>de</strong>finido.Continua a fazer projectos <strong>de</strong> arquitectura,mas interessa-lhe mai<strong>se</strong>xperimentar hipóte<strong>se</strong>s, testar possibilida<strong>de</strong><strong>se</strong> colocar questões. O <strong>se</strong>uâmbito <strong>de</strong> trabalho não é estritamenteespacial, mas dirige-<strong>se</strong> às múltiplasrelações (políticas, sociais, biológicas,<strong>se</strong>nsoriais) que a experiência do espaçoimplica. Como escreve num textosobre o <strong>se</strong>u trabalho: “Através da<strong>de</strong>sorientação o corpo <strong>de</strong>ve abrir-<strong>se</strong>ao espaço e o espaço ao corpo. Desorientaçãoversus transparência.”(“Bureau <strong>de</strong>s Mésarchitectures”, LesÉditions du Seuil, 2007)Se a primeira ambiguida<strong>de</strong> do trabalho<strong>de</strong> Didier é a <strong>de</strong> <strong>se</strong> inscrever nafronteira entre a arte e a arquitectura,as outras dizem respeito ao modo comonão possui um programa estético,mas sim subversivo. Uma subversãorelativa não à alteração material ouformal dos objectos artísticos e/ouarquitectónicos, mas das relações <strong>se</strong>nsívei<strong>se</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r.É uma i<strong>de</strong>ia que reforça, em conversacom o Ípsilon, a propósito dasua exposição no Centro <strong>de</strong> Arte Mo<strong>de</strong>rnada Fundação Calouste Gulbenkian,“Não Confiem nos Arquitectos”.Didier Faustino i<strong>de</strong>ntifica o espaço,a política, o território e afragilida<strong>de</strong> como os <strong>se</strong>us principaisinteres<strong>se</strong>s, mas afirma estar sobretudointeressado nas “micropolíticas”.“O que mais me interessa, tanto emarte como na arquitectura, é propormicropolíticas. Propostas <strong>de</strong> resistênciae <strong>de</strong> subversão dos actuais sistemasartísticos e arquitectónicos. Paramim, trata-<strong>se</strong> <strong>de</strong> pôr em prática umaeconomia da in<strong>de</strong>pendência”, diz. A<strong>se</strong>xposições, continua, são “uma maneira<strong>de</strong> concretizar e testar i<strong>de</strong>ias”sobre as quais trabalha, <strong>de</strong> “ver o impactoque têm ou simplesmente <strong>de</strong>as difundir.”Não está em causa <strong>de</strong><strong>se</strong>nvolver discursivamentenovas formas <strong>de</strong> organizaçãosocial, nem tecer críticas àsactuais modalida<strong>de</strong>s da politica oupropor novos mo<strong>de</strong>los económicos.Premissa inicial: “A arquitectura nãoé uma ciência, arte ou disciplina exacta,por isso temos <strong>de</strong> estar <strong>se</strong>mpre alevantar questões e a fazer experiências”(“Frame”, nº 78, Jan/Fev. <strong>2011</strong>).E este processo <strong>de</strong> questionamento e<strong>de</strong> experimentação tem con<strong>se</strong>quênciasno modo como <strong>se</strong> percepcioname organizam o espaço e as relações <strong>de</strong>po<strong>de</strong>r n<strong>ele</strong> expressas.A retórica <strong>de</strong> Didier explora os limite<strong>se</strong>, nes<strong>se</strong> processo, joga com oque <strong>se</strong> sabe, o que <strong>se</strong> espera e o queainda <strong>se</strong> po<strong>de</strong> dizer, bem como comNão <strong>se</strong> sabe <strong>se</strong> é artista ou arquitecto, portuguêsou francês: Didier Faustino é um provocador,como <strong>de</strong>monstra o título da exposição que temagora no Centro <strong>de</strong> Arte Mo<strong>de</strong>rna da Gulbenkian,“Não Confiem nos Arquitectos”. Perfil <strong>de</strong> uma obraque não pertence a nenhum território <strong>de</strong>finido,a não <strong>se</strong>r o da ambiguida<strong>de</strong>. Nuno Crespo“Instrumentfor BlankArchitecture”,<strong>de</strong> 2010, é umdispositivo <strong>de</strong>prospecçãodas paisagensmentais einteriores dovisitante daexposição24 • Sexta-feira 11 Fevereiro <strong>2011</strong> • Ípsilon
a procura <strong>de</strong> uma linguagem própriae clara: “Deixamos a escola com certasi<strong>de</strong>ias — uma espécie <strong>de</strong> corpus— integradas em nós. Vejo isto comouma espécie <strong>de</strong> alfabeto, o qual nosé dado pelos nossos professores. E euquis <strong>de</strong>struir es<strong>se</strong> corpus ou alfabetoe encontrar, ou produzir, o meu. Eujogo com o meu corpus, misturo osingredientes, uso o corpo, as questõespolíticas e as inter-relações entre pessoas,território, fragilida<strong>de</strong>, para gerarsituações. Mas o objectivo final é falare focar-me nos problemas que envolvemo espaço” (“Frame”, nº 78, Jan/Fev. <strong>2011</strong>).Se o processo começa por <strong>se</strong>r crítico,<strong>de</strong>pois revela-<strong>se</strong> como ambição<strong>de</strong> construção <strong>de</strong> uma linguagem própria.Por isso, Didier cita o poeta francêsNicolas Boileau-Despréaux (1636-1711): “Aquilo que <strong>se</strong> pensa bem enuncia-<strong>se</strong>claramente e as palavras parao dizer surgem facilmente.” O esforçoe a ambição <strong>de</strong> clareza estão pre<strong>se</strong>nte<strong>se</strong>m cada gesto do artista-arquitecto.Fazer acontecerFoi neste contexto, que Didier FiúzaFaustino fundou em 2002, com outrosarquitectos e artistas, o Atelier Mésarchitectures.Mais do que um atelieron<strong>de</strong> são criados objectos para respon<strong>de</strong>ra problemas/encomendas oupara intervir no território, este ateliercria acontecimentos/acções. Se a origemdos trabalhos po<strong>de</strong> <strong>se</strong>r uma respostaao espaço, o <strong>se</strong>u resultado não<strong>se</strong> atém à activação <strong>de</strong> zonas espaciais.O interes<strong>se</strong> está, sobretudo, emcriar acontecimentos, movimentos esituações em que o corpo abre o espaçoe o espaço o corpo. Não <strong>se</strong> trata<strong>de</strong> uma fórmula, mas <strong>de</strong> um apelo àabertura e à participação.Na exposição em <strong>Lisboa</strong>, existemdois bons exemplos <strong>de</strong>stes ambicionadosacontecimentos: “Instrumentfor Blank Architecture” (2010) e “Flatland”(<strong>2011</strong>).O primeiro é um instrumento auditivomóvel habitualmente utilizadono levantamento topográfico <strong>de</strong> paisagens,ao qual é acrescentado umtripé para sustentação. O espectador<strong>de</strong>ve colocar-<strong>se</strong> <strong>de</strong>ntro do dispositivo,que passa agora a <strong>se</strong>rvir para fazer aprospecção das paisagens mentais einteriores. Com a cara colocada num“nicho cegante”, é-<strong>se</strong> obrigado a ouvirmais intensamente os outros <strong>se</strong>ntidos.Uma <strong>de</strong>slocação do exterior para ointerior que surge a Didier como“uma próte<strong>se</strong> expansiva para acrescentaroutro mundo ao corpo.”No <strong>se</strong>gundo caso, o espectador“torna-<strong>se</strong> actor por trás <strong>de</strong> um ecrã<strong>de</strong> cinema on<strong>de</strong> projecta a sua <strong>som</strong>bra,<strong>se</strong>rvindo-<strong>se</strong> um baloiço.” O visitante-actorencontra uma estrutura<strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira, um baloiço e um ecrãbranco, tudo <strong>ele</strong>mentos a requereremutilização e activação: é preciso o visitante<strong>se</strong>ntar-<strong>se</strong> no baloiço e baloiçar.Experimentar os <strong>ele</strong>mentos da obraé a condição da sua existência, poissó enquanto proposta <strong>de</strong> uma acçãoconcreta (num espaço e num intervalo<strong>de</strong> tempo) ela é válida. A trajectóriafeita pelo corpo <strong>se</strong>ntado no baloiço é<strong>de</strong><strong>se</strong>nhada na superfície do ecrã, quereflecte não só o movimento do corpo,mas o pensamento, os <strong>de</strong><strong>se</strong>jos, a<strong>se</strong>speranças e as ambições. O corposuspenso no baloiço revela “um homemflutuante num mundo instável.Um corpo em suspensão para <strong>ele</strong>varo pensamento.”“O que mais meinteressa é propormicropolíticas.Propostas <strong>de</strong>resistência e <strong>de</strong>subversão dos actuaissistemas artístico<strong>se</strong> arquitectónicos”Didier FaustinoDesconfiar dos arquitectosIsabel Carlos, a curadora da exposição,sintetiza assim “Não Confiem nosArquitectos” num texto produzidopara o catálogo: “‘Deixa-te dominarpara po<strong>de</strong>res dominar’ é o que <strong>de</strong> algummodo todas as peças-experiências<strong>de</strong>sta exposição parecem induzir,ao <strong>de</strong>stabilizarem precisamente nãosó o espaço, mas sobretudo a nossacondição <strong>de</strong> espectadores passivos<strong>de</strong> um mu<strong>se</strong>u. Do mu<strong>se</strong>u ou do mundo?”.À <strong>de</strong>stabilização promovida porDidier, junta-<strong>se</strong>, como <strong>se</strong>u <strong>ele</strong>mentoâncora,a permanente ironia. “NãoConfiem nos Arquitectos” é um moteirónico para uma exposição em que<strong>se</strong> experimenta a fragilida<strong>de</strong> dos <strong>se</strong>ntidoshumanos e dos conceitos comque julgamos dominar as coisas. E alinguagem, para Didier “a ba<strong>se</strong> <strong>de</strong> todosos trabalhos”, é o veículo privilegiado<strong>de</strong>ssa provocação.Na instalação sonora “Trust me”,uma discussão a três vozes simultâneasque dizem em línguas diferentes“não confies nos arquitectos” resultanuma confusão <strong>de</strong> sons que “<strong>de</strong>sorientafisicamente o visitante, levando-oa duvidar do <strong>se</strong>u próprio papel.”Exige-<strong>se</strong>-lhe uma tomada <strong>de</strong> posição.Em todas as peças <strong>de</strong> Didier, o espectadoré obrigado a agir física e mentalmente.E a dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> relaçãocom os <strong>se</strong>us “objectos” resi<strong>de</strong> nessaexigência que, muitas vezes, constituiuma dificulda<strong>de</strong>.“Future will be remake”, outra daspeças nesta exposição, “é um jogoque <strong>de</strong>safia as pessoas a apropriarem<strong>se</strong>da arquitectura como <strong>se</strong> fos<strong>se</strong>m<strong>se</strong>us protagonistas”. Este intermináveljogo da macaca coloca o jogadornuma errância infinita e <strong>se</strong>m fronteiras,em que nunca <strong>se</strong> ganha ou <strong>se</strong> per<strong>de</strong>e só <strong>se</strong> conhece a repetição continua.O oito <strong>de</strong><strong>se</strong>nhado pelo jogo remeteigualmente para a condição docorpo humano enquanto força fundadorae medida-padrão <strong>de</strong> todas asgran<strong>de</strong>zas e regiões espaciais.Todas as obras estão nesta condição<strong>de</strong> <strong>se</strong>r, primeiro, uma resposta aoespaço, e <strong>de</strong>pois veículo da tomada<strong>de</strong> consciência por parte do espectador-utilizadorda totalida<strong>de</strong> das dimensõesdo <strong>se</strong>u corpo. Que <strong>se</strong> <strong>de</strong>scobrecomo sistema <strong>de</strong> reenvios e <strong>de</strong>inter<strong>se</strong>cções entre o interior e o exterior,o mental e o físico, o privado e opúblico.As obras <strong>de</strong> Didier prolongam ocorpo, levando-o a testar limites e aexpandir os <strong>se</strong>us domínios. Propondouma experiência física e <strong>se</strong>nsual que,no final, <strong>se</strong> revela uma enorme alegoriapara falar da condição <strong>de</strong> toda aarquitectura: o corpo e as suas necessida<strong>de</strong>s,os <strong>se</strong>us limites, as suas metamorfo<strong>se</strong>s.A esta luz, todos os objectos (aosquais também <strong>se</strong> po<strong>de</strong>ria chamarapparatus) que provocam acções eexperiências são membranas queconstituem prolongamentos do corpoe com os quais <strong>se</strong> assiste a uma expansãodo ocupação espacial feitapelo homem.Antes <strong>de</strong> Didier Faustino, um lugarera a <strong>de</strong>terminação <strong>de</strong> uma coor<strong>de</strong>nadana topografia terrestre. ComDidier passa a <strong>de</strong>signar uma coor<strong>de</strong>nadada topografia mental ou <strong>se</strong>ntimental.Ver agenda <strong>de</strong> exposições na pág. 39.Ípsilon • Sexta-feira 11 Fevereiro <strong>2011</strong> • 25