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42 > BEST BAIRRO BRANDS www.interbrandsp.com.br> CRÔNICA | CADÃO VOLPATO 43Marcas da memóriaCRÔNICA | POR CADÃO VOLPATOVivi em muitos bairros de São Paulo, ecada um deles deixou a sua marca naminha memória.São padarias, restaurantes e lojas quevocê vai deixando para trás como sefossem velhas amizades naturalmentediluídas no fluxo da vida.Às vezes você esquece o nome delas,mas isso não tem importância. Vocêpercebe que envelheceu quandonão consegue ligar as pessoas aosnomes e também quando esquece onome daqueles estabelecimentos tãofamiliares que você frequentava. Tudobem: as memórias são mesmo feitasdesse tipo frágil de impressão.Mas ainda sou capaz de associaçõesque acabam me levando ao pontocerto, em algum lugar do passado.Se penso no primeiro disco que comprei– e foi o “Imagine”, de John Lennon –,chego facilmente à loja que me vendeu,na Praça da Árvore (que não tinha árvorealguma). Esta lojinha não tem nome,não existe mais e no entanto está ali,guardada na minha memória, bemcomo a agradável sensação de procuraros LPs na estante, sacar o que vocêprocura, apreciar a capa, ler o encarte,retirar o disco do invólucro e levá-lopara ser testado, um trecho de cadavez, pulando de faixa em faixa. Tudo issohoje parece pré-histórico.Ainda que tenha sido fundado napré-história do rock de São Paulo, oMadame Satã ainda funciona (semo Satã do nome). Eu e meus amigosíamos a pé até lá, quando dividíamosum apartamento rock’n’roll na ruaMajor Quedinho, no centro (o mesmoque teve como hóspede o RenatoRusso – mas isso é outra história).O Satã já era o casarão meio sombrio,com um neon na porta, frequentadopela nata do underground paulista. Umlugar ecumênico, em que punks chamados“Crânio” batiam papo com atoreschamados “Edson Celulari”, e bandascomo o Fellini e a Plebe Rude tocavamno mesmo porão escuro em que o RPMtambém se apresentava – com ombreiras.Era o tempo das casas noturnas.Já a palavra padaria me lembra daquelaque fica na esquina da Artur de Azevedocom a João Moura, em Pinheiros,cujo nome, é claro, esqueci.Ela ainda existe, mas na minha memóriatem a ver com as manhãs friasde 1979, quando eu saía da repúblicaonde morava, na Cristiano Viana, eia tomar café antes de ir para a USP.Não importa que fizesse sol. Na minhamemória daquele tempo, havia sempreuma névoa poética no caminhodaquela padaria.Ali perto ficava (e fica, acho) um restaurantechamado Degas. Ali, eu e meuscompanheiros de república comíamosum filé à cubana que era o melhor domundo, melhor até do que em Cuba.E já que estamos falando de pré-história,se o assunto for barbearia (umtipo de estabelecimento em aparenteextinção), tenho inúmeras lembrançaspara contar. Mas a mais recente tem aver com uma barbearia da Rua Augusta,que descobri por acaso.Hoje ele está dominando o universo,com filiais em muitos bairros da cidade,mas quando entrei no Salão 9 deJulho pela primeira vez, há uns cincoou seis anos, achei que tivesse descobertouma dobra no tempo: o chãoera quadriculado em preto e branco,as cadeiras eram robustas, de ferro, osbarbeiros pareciam rockabillies e fotosde pin-ups decoravam as paredes. Porisso virei freguês.Atravessando a rua e seguindo pela calçada,muitos anos antes, eu costumavaentrar no Longchamp, um restaurantee lanchonete em que os garçonstinham sido jóqueis um dia, baixinhose gentis. Você ficava ali no balcãofazendo amizades enquanto comia umalasanha com creme de espinafre.Claro que a maior parte desses estabelecimentos,se não desapareceu,está com os dias contados. Comoaquela famosa locadora da praça Vilaboim,em Higienópolis, que acaba dese extinguir, deixando órfã uma legiãode cinéfilos. O mesmo aconteceu comos cinemas de bairro, que, em suamaioria, perderam a batalha para oscarros e viraram estacionamentos.Nesse mesmo bairro, onde moro agora,há uma livraria, a Hai-Kai, que teimaem permanecer de pé. Prefiro milvezes ficar caçando um livro dentrodela, meio sem destino, a mergulhar eme perder numa dessas megalivrariasde shopping – não que elas sejamfeias, ao contrário: é que a oferta é demaispara aficionados vagarosos comoeu. Espero que a Hai-Kai dure parasempre e que a padaria Barcelona nãosaia nunca do lugar.Aliás, por falar em eternidade, talvezalguém aí possa me esclarecer umdos grandes mistérios do bairro. O daquelaloja de discos na mesma praçaVilaboim que sempre está vazia, mascontinua ali, no mesmo lugar, os Cdsrigorosamente alinhados na prateleira,à espera – talvez de mim ou de você.Cadão Volpato nasceu em São Paulo em1956. Além de escritor, é músico (fundadorda banda Fellini, um clássico dos anos 80,com a qual lançou seis discos), jornalista eilustrador. Escreveu quatro livros de contos(Ronda noturna, Dezembro de um verãomaravilhoso, Questionário e Relógio semsol, todos lançados pela editora Iluminuras)e o infantojuvenil Meu filho, meu besouro(Cosac Naify, 2011), ilustrado pelo autor.Pessoas que passam pelos sonhos é seuprimeiro romance.“ASMEMÓRIASSÃO MESMOFEITASDESSE TIPOFRÁGIL DEIMPRESSÃO”

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