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edição de 5 de novembro de 2018

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STORYTELLER<br />

kbwills/iStock<br />

Velhas vozes<br />

A preferência mesmo era<br />

para ser locutor <strong>de</strong> rádio,<br />

como o Fiori Gigliotti, da Rádio<br />

Ban<strong>de</strong>irantes <strong>de</strong> São Paulo<br />

LuLa Vieira<br />

Tudo que eu quis ser na vida foi ser locutor<br />

<strong>de</strong> futebol no rádio. Ou piloto <strong>de</strong><br />

avião. Ou motorista da Cometa que passava<br />

diante <strong>de</strong> minha casa pilotando um<br />

imenso ônibus azul que ia para lugares<br />

distantes como Ribeirão Preto ou Sorocaba,<br />

que para o garoto pobre que mal tinha<br />

dinheiro para pagar o bon<strong>de</strong> que saía da<br />

Lapa e ia até a Praça dos Correios, no centro,<br />

tinha o mistério e o encanto <strong>de</strong> Bagdá<br />

ou Casablanca.<br />

Mas a preferência mesmo era para ser<br />

locutor <strong>de</strong> rádio, como o Fiori Gigliotti, da<br />

Rádio Ban<strong>de</strong>irantes <strong>de</strong> São Paulo, que fazia<br />

<strong>de</strong> uma partida <strong>de</strong> futebol pura poesia.<br />

(“Tar<strong>de</strong> <strong>de</strong> sol no Pacaembu, torcida brasileira!<br />

Apita o árbitro abrindo as cortinas do<br />

espetáculo... Começa o jogo! Balão subindo,<br />

balão <strong>de</strong>scendo, toque <strong>de</strong> bola do Santos,<br />

todo <strong>de</strong> branco jogando no palco ver<strong>de</strong><br />

do lendário estádio <strong>de</strong> São Paulo...”). Puta<br />

que o pariu, isso é abrir uma transmissão<br />

esportiva.<br />

Grudado no velho radinho <strong>de</strong> meu pai eu<br />

via, eu sentia o momento mágico do maior<br />

time <strong>de</strong> futebol que já pisou num campo<br />

<strong>de</strong> futebol fazer do jogo um momento sublime,<br />

pelo menos com um rei e seus súditos.<br />

Acho que fui o único moleque que se<br />

esgueirava pelas gra<strong>de</strong>s do Pacaembu para<br />

entrar <strong>de</strong> graça no estádio para ficar olhando<br />

as equipes <strong>de</strong> rádio.<br />

A vida que eu queria era a <strong>de</strong> viver <strong>de</strong> estádio<br />

em estádio narrando as épicas aventuras<br />

dos ídolos da bola. Mas, eu, mesmo<br />

sonhador, achava que exagerava no <strong>de</strong>vaneio.<br />

Já estava bom ser repórter <strong>de</strong> campo<br />

como o Tom Barbosa, também da Ban<strong>de</strong>irantes,<br />

que após o gol sentenciava no seu<br />

microfone que tinha o tamanho <strong>de</strong> um tijolo<br />

e um som <strong>de</strong> lata, para dar ao locutor<br />

principal um tempo para beber água.<br />

Dizia ele: “O lance foi exatamente como<br />

você narrou, Fiori, Mengálvio mandou um<br />

tirambaço na gaveta <strong>de</strong> cima do arco <strong>de</strong>fendido<br />

por Poy, cravando mais um golaço do<br />

alvinegro da Vila Belmiro!”<br />

Naquele tempo as transmissões se chamavam<br />

“Jornadas Esportivas” e tinham<br />

o patrocínio da Gillette ou da Brahma. Eu<br />

gostava tanto <strong>de</strong> rádio que como minha<br />

avó morava na rua da Rádio Nacional <strong>de</strong><br />

São Paulo, eu roubava da lata <strong>de</strong> lixo da<br />

emissora textos já lidos e ficava treinando,<br />

usando como microfone uma lata <strong>de</strong> massa<br />

<strong>de</strong> tomate Elefante.<br />

Eram textos <strong>de</strong> comerciais ou trechos <strong>de</strong><br />

novelas, que os ases do microfone caprichavam<br />

na dicção para dizer obras-primas<br />

como: “Somente o amor à beleza é capaz <strong>de</strong><br />

explicar os milagres luminosos dos Lustres<br />

Bobadilha. Lustres Bobadilha, verda<strong>de</strong>iras<br />

obras <strong>de</strong> arte feitas em luz. I<strong>de</strong>ias Luminosas,<br />

Lustres Bobadilha”.<br />

Esse texto era lido por um locutor da Nacional<br />

chamado Silvio Santos, que fazia o<br />

horário do meio-dia, nos intervalos comerciais<br />

do programa Manoel da Nóbrega, dono<br />

<strong>de</strong> um tal <strong>de</strong> Baú da Felicida<strong>de</strong>, que quase<br />

faliu, não fosse o locutor Silvio Santos ganhá-lo<br />

quase <strong>de</strong> presente e começar a construir<br />

um império. Eu comecei assim na propaganda.<br />

Lendo papéis velhos jogados fora.<br />

“Ela é linda... está noiva... usa Ponds!” “Dor<br />

<strong>de</strong> cabeça? Melhoral. Melhoral é melhor e<br />

não faz mal”. “Gela<strong>de</strong>ira começa com GE”.<br />

As pessoas lotavam o auditório das<br />

emissoras <strong>de</strong> rádio para ver as pessoas falarem<br />

ao microfone. E se aglomeravam em<br />

volta dos aparelhos para acompanhar uma<br />

partida <strong>de</strong> futebol. Era um milagre. E confesso<br />

que nunca em tempo algum um jogo<br />

foi mais emocionante do que as velhas vozes<br />

do rádio traziam para as pobres ruas <strong>de</strong><br />

meu bairro.<br />

E nunca houve amor mais sofrido do que<br />

o das mães solteiras nas novelas que jamais<br />

acabavam. São sauda<strong>de</strong>s, não muito mais<br />

do que isso. Como um dia teremos sauda<strong>de</strong>s<br />

do que hoje achamos maravilhas do<br />

mundo mo<strong>de</strong>rno.<br />

Lula Vieira é publicitário, diretor do Grupo Mesa<br />

e da Approach Comunicação, radialista, escritor,<br />

editor e professor<br />

lulavieira@grupomesa.com.br<br />

28 5 <strong>de</strong> <strong>novembro</strong> <strong>de</strong> <strong>2018</strong> - jornal propmark

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