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STORYTELLER<br />
kbwills/iStock<br />
Velhas vozes<br />
A preferência mesmo era<br />
para ser locutor <strong>de</strong> rádio,<br />
como o Fiori Gigliotti, da Rádio<br />
Ban<strong>de</strong>irantes <strong>de</strong> São Paulo<br />
LuLa Vieira<br />
Tudo que eu quis ser na vida foi ser locutor<br />
<strong>de</strong> futebol no rádio. Ou piloto <strong>de</strong><br />
avião. Ou motorista da Cometa que passava<br />
diante <strong>de</strong> minha casa pilotando um<br />
imenso ônibus azul que ia para lugares<br />
distantes como Ribeirão Preto ou Sorocaba,<br />
que para o garoto pobre que mal tinha<br />
dinheiro para pagar o bon<strong>de</strong> que saía da<br />
Lapa e ia até a Praça dos Correios, no centro,<br />
tinha o mistério e o encanto <strong>de</strong> Bagdá<br />
ou Casablanca.<br />
Mas a preferência mesmo era para ser<br />
locutor <strong>de</strong> rádio, como o Fiori Gigliotti, da<br />
Rádio Ban<strong>de</strong>irantes <strong>de</strong> São Paulo, que fazia<br />
<strong>de</strong> uma partida <strong>de</strong> futebol pura poesia.<br />
(“Tar<strong>de</strong> <strong>de</strong> sol no Pacaembu, torcida brasileira!<br />
Apita o árbitro abrindo as cortinas do<br />
espetáculo... Começa o jogo! Balão subindo,<br />
balão <strong>de</strong>scendo, toque <strong>de</strong> bola do Santos,<br />
todo <strong>de</strong> branco jogando no palco ver<strong>de</strong><br />
do lendário estádio <strong>de</strong> São Paulo...”). Puta<br />
que o pariu, isso é abrir uma transmissão<br />
esportiva.<br />
Grudado no velho radinho <strong>de</strong> meu pai eu<br />
via, eu sentia o momento mágico do maior<br />
time <strong>de</strong> futebol que já pisou num campo<br />
<strong>de</strong> futebol fazer do jogo um momento sublime,<br />
pelo menos com um rei e seus súditos.<br />
Acho que fui o único moleque que se<br />
esgueirava pelas gra<strong>de</strong>s do Pacaembu para<br />
entrar <strong>de</strong> graça no estádio para ficar olhando<br />
as equipes <strong>de</strong> rádio.<br />
A vida que eu queria era a <strong>de</strong> viver <strong>de</strong> estádio<br />
em estádio narrando as épicas aventuras<br />
dos ídolos da bola. Mas, eu, mesmo<br />
sonhador, achava que exagerava no <strong>de</strong>vaneio.<br />
Já estava bom ser repórter <strong>de</strong> campo<br />
como o Tom Barbosa, também da Ban<strong>de</strong>irantes,<br />
que após o gol sentenciava no seu<br />
microfone que tinha o tamanho <strong>de</strong> um tijolo<br />
e um som <strong>de</strong> lata, para dar ao locutor<br />
principal um tempo para beber água.<br />
Dizia ele: “O lance foi exatamente como<br />
você narrou, Fiori, Mengálvio mandou um<br />
tirambaço na gaveta <strong>de</strong> cima do arco <strong>de</strong>fendido<br />
por Poy, cravando mais um golaço do<br />
alvinegro da Vila Belmiro!”<br />
Naquele tempo as transmissões se chamavam<br />
“Jornadas Esportivas” e tinham<br />
o patrocínio da Gillette ou da Brahma. Eu<br />
gostava tanto <strong>de</strong> rádio que como minha<br />
avó morava na rua da Rádio Nacional <strong>de</strong><br />
São Paulo, eu roubava da lata <strong>de</strong> lixo da<br />
emissora textos já lidos e ficava treinando,<br />
usando como microfone uma lata <strong>de</strong> massa<br />
<strong>de</strong> tomate Elefante.<br />
Eram textos <strong>de</strong> comerciais ou trechos <strong>de</strong><br />
novelas, que os ases do microfone caprichavam<br />
na dicção para dizer obras-primas<br />
como: “Somente o amor à beleza é capaz <strong>de</strong><br />
explicar os milagres luminosos dos Lustres<br />
Bobadilha. Lustres Bobadilha, verda<strong>de</strong>iras<br />
obras <strong>de</strong> arte feitas em luz. I<strong>de</strong>ias Luminosas,<br />
Lustres Bobadilha”.<br />
Esse texto era lido por um locutor da Nacional<br />
chamado Silvio Santos, que fazia o<br />
horário do meio-dia, nos intervalos comerciais<br />
do programa Manoel da Nóbrega, dono<br />
<strong>de</strong> um tal <strong>de</strong> Baú da Felicida<strong>de</strong>, que quase<br />
faliu, não fosse o locutor Silvio Santos ganhá-lo<br />
quase <strong>de</strong> presente e começar a construir<br />
um império. Eu comecei assim na propaganda.<br />
Lendo papéis velhos jogados fora.<br />
“Ela é linda... está noiva... usa Ponds!” “Dor<br />
<strong>de</strong> cabeça? Melhoral. Melhoral é melhor e<br />
não faz mal”. “Gela<strong>de</strong>ira começa com GE”.<br />
As pessoas lotavam o auditório das<br />
emissoras <strong>de</strong> rádio para ver as pessoas falarem<br />
ao microfone. E se aglomeravam em<br />
volta dos aparelhos para acompanhar uma<br />
partida <strong>de</strong> futebol. Era um milagre. E confesso<br />
que nunca em tempo algum um jogo<br />
foi mais emocionante do que as velhas vozes<br />
do rádio traziam para as pobres ruas <strong>de</strong><br />
meu bairro.<br />
E nunca houve amor mais sofrido do que<br />
o das mães solteiras nas novelas que jamais<br />
acabavam. São sauda<strong>de</strong>s, não muito mais<br />
do que isso. Como um dia teremos sauda<strong>de</strong>s<br />
do que hoje achamos maravilhas do<br />
mundo mo<strong>de</strong>rno.<br />
Lula Vieira é publicitário, diretor do Grupo Mesa<br />
e da Approach Comunicação, radialista, escritor,<br />
editor e professor<br />
lulavieira@grupomesa.com.br<br />
28 5 <strong>de</strong> <strong>novembro</strong> <strong>de</strong> <strong>2018</strong> - jornal propmark