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Chicos 56 - 20.03.2019

Chicos é uma e-zine que circula apenas pelos meios digitais. Envie-nos seu e-mail e teremos prazer de te enviar nossas edições. Neste número, a poeta da primeira página é Maria do Carmo Ferreira. Inédita em livro, a irmã de Celina Ferreira tem sua poesia espalhada pela internet e em publicações das mais variadas. Além de homenageá-la, oferecemos a vocês um pouco da obra dela dispersa por aí.

Chicos é uma e-zine que circula apenas pelos meios digitais. Envie-nos seu e-mail e teremos prazer de te enviar nossas edições.
Neste número, a poeta da primeira página é Maria do Carmo Ferreira. Inédita em livro, a irmã de Celina Ferreira tem sua poesia espalhada pela internet e em publicações das mais variadas. Além de homenageá-la, oferecemos a vocês um pouco da obra dela dispersa por aí.

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<strong>Chicos</strong><br />

Dentro de uns trinta anos a mudança na paisagem<br />

humana era visível. No meio da rua se encontravam,<br />

com frequência, mulheres que podiam<br />

ser confundidas com Luana Piovani ou<br />

Eva Mendes, homens que podiam ser confundidos<br />

com Pedro Bial ou Wágner Moura. A semelhança<br />

facial era tão comum que não havia<br />

muitas dores de amor. Uma namorada perdida<br />

era brevemente substituída por outra muito<br />

parecida. Um loiro de olhos azuis já não tinha<br />

muitas namoradas. Cada mulher conseguia,<br />

sem muita dificuldade, outro loiro de olhos<br />

azuis, ex-namorado de uma prima ou amiga. O<br />

mundo amoroso, para surpresa de muitos, andava<br />

bem. Poemas e canções românticas quase<br />

não existiam. Os poetas começaram a escrever<br />

sobre o amor aos filhos, aos netos e aos animais.<br />

Mas toda essa felicidade acabou por incomodar<br />

os infelizes. E os infelizes com frequência<br />

têm acesso aos jornais. Artigos revoltosos começaram<br />

a surgir. Os negros reclamavam que<br />

a população negra não era clonada na mesma<br />

proporção que a branca (na verdade, nem um<br />

negro tinha sido clonado). Os gueis perguntavam<br />

por que ninguém estava clonando gueis.<br />

Os orientais não se manifestaram, e uma ruiva,<br />

tímida, sincera, quase trêmula, fez um vídeo<br />

no Youtube, perguntando se não havia risco de<br />

as ruivas entrarem em extinção.<br />

Isso bastou para que a população realmente se<br />

comovesse. Chuvas de abaixo-assinados apareceram<br />

no Senado e na Câmara Federal. Jornalistas<br />

entrevistaram médicos, ambientalistas,<br />

biólogos e moradores de rua. Todos foram<br />

unânimes em reconhecer que era necessário<br />

clonar as ruivas. O dinheiro começou a aparecer,<br />

vindo de campanhas de financiamento, de<br />

milionários entediados, de shows beneficentes<br />

de bandas irlandesas. E logo o pequeno país<br />

da América Latina havia clonado dezenas de<br />

ruivas, modelos e atrizes em destaque, e alguns<br />

mendigos do interior que, apesar de não<br />

serem populares, carregavam em seus corpos<br />

os genes da ruividade.<br />

Enquanto isso alguns ditadores da África, bem<br />

como o presidente democraticamente eleito de<br />

Guiné Bissau, clonaram algumas de suas esposas<br />

e mandaram os bebês para casais estéreis<br />

do movimento negro. Os gueis, por meio de<br />

campanhas da internet, arrecadaram também<br />

algum dinheiro para clonar três ou quatro atores<br />

que tinham saído do armário. O movimento<br />

Femelesbos conseguiu clonar duas ou três<br />

lésbicas que tinham aparecido em programas<br />

de televisão. Carecas conseguiram provar que<br />

o gene da calvície era fundamental para a humanidade<br />

e clonaram alguns ex-deputados, ex<br />

-ministros e ex-banqueiros. Nesse movimento,<br />

dois ou três escritores acabaram sendo clonados<br />

(e até um professor de matemática). Médicos<br />

que haviam criado uma vacina contra o vitiligo<br />

clonaram algumas pessoas com essa doença,<br />

para que a importante descoberta fosse<br />

mais amplamente divulgada e utilizada.<br />

No meio dessa grande estereotipagem a criminalidade<br />

aumentou bastante. Wágneres Mouras<br />

e Pedros Biais, quando eram detidos pela<br />

polícia, alegavam estar sendo confundidos com<br />

outros Wágneres Mouras e Pedros Biais. A investigação<br />

podia levar anos e não ser concluída.<br />

Os atores passaram a ganhar muito mal e<br />

entraram também no mundo do crime, vendendo<br />

drogas e tentando inutilmente se prostituir.<br />

Clones de deputados e senadores usaram esse<br />

fato para justificar uma lei que punisse severamente<br />

a clonagem de seres humanos. Especialistas<br />

estrangeiros foram ouvidos pela mídia,<br />

estrangeiros que já não se distinguiam dos latino-americanos<br />

a não ser pela língua que falavam.<br />

Jornalistas novamente entrevistaram ministros,<br />

médicos e moradores de rua. No meio<br />

desse caos palavroso de opiniões diversas,<br />

uma velhinha já quase sem voz, muito parecida<br />

com a avó de Luana Piovani, relembrou um<br />

tempo em que o mundo não teve cegos de nascença,<br />

não teve meninos com língua presa,<br />

adolescentes complexadas com vitiligo ou crianças<br />

com síndrome de down. Um tempo em<br />

que as mães eram mais felizes, porque sabiam<br />

que seus filhos não seriam feios e barrigudos<br />

como seus pais. Um tempo em que gordinhos<br />

e monocelhos não conheciam a zombaria nas<br />

escolas. Um tempo anterior a ela mesma, já<br />

distante e duvidoso, quase tão indistinguível<br />

da memória quanto um breve sonho.<br />

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