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Na-Minha-Pele-Lazaro-Ramos

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Zebrinha,* meu mestre artístico e de vida, que me ensinou muito sobre ser<br />

um homem correto, ser negro, ser artista, e que, por acaso, é coreógrafo do<br />

Bando e padrinho da minha filha; Zebrinha, meu colo e meu alento nas horas<br />

de desespero; Zebrinha me disse que às vezes nossos mais velhos tinham<br />

vergonha de seu passado, por causa de seu sofrimento. É por isso que nossa<br />

história fica com essas brechas.<br />

Paty se escreve assim, com Y mesmo, graças a um coqueiro bipartido que<br />

ficava no quintal da casa de tia Alzira e acabou virando ponto turístico. Talvez<br />

algum dia tenha sido com I, não sei. O coqueiro também era logomarca das<br />

canecas dos festivais de chope que aconteciam na ilha nos anos 1980, me<br />

lembro bem. O clima no Paty sempre foi lúdico e divertido, e a religiosidade é<br />

outro traço importante de seu cotidiano. O padroeiro dos moradores é São<br />

Roque. Tudo começou quando uma doença de pele se espalhou pela ilha e eles<br />

prometeram ao santo que seria erguida uma igreja em sua homenagem se o<br />

surto desaparecesse — e assim foi feito. Apesar de a capela ser católica, as<br />

cerimônias têm certa influência africana, principalmente o som de percussão<br />

acompanhando as músicas. No sincretismo, São Roque é o orixá Omolu, e essa<br />

presença da percussão e de atitudes “não católicas” é naturalmente do<br />

candomblé. Quando criança, eu achava as missas tão animadas que certa vez<br />

gritei entre uma oração e outra: “Padre, toca uma lambada!”. Todo mundo caiu<br />

na gargalhada.<br />

A igreja de São Roque é até hoje meu lugar predileto do Paty — não<br />

exatamente por motivos religiosos, mas pelas memórias que guardo de seu<br />

entorno. Como está fincada no alto de um morro, distante dos olhos dos<br />

adultos, era para lá que a criançada gostava de ir para namorar ou comer<br />

mococona e pitomba roubadas do quintal de alguém. Eu não sei se há outros<br />

nomes para essas duas frutas que provavelmente você nunca viu e talvez nunca<br />

veja. A mococona é verde, tem uns três caroços encobertos por uma casca e é<br />

pequena. A pitomba é uma frutinha às vezes verde, às vezes roxa. Para chegar<br />

até a igreja, era preciso passar pela casa de dona Duda, a única moradora branca<br />

da ilha. Curandeira, ela despertava uma curiosidade enorme em mim. “Será que<br />

vou ver alguém incorporado quando passar pela sua porta?”, ficava pensando.<br />

Hoje o caminho está muito mudado. Dona Duda já morreu faz tempo, e a igreja<br />

ganhou concorrência: no morro em frente, foi erguida uma Assembleia de<br />

Deus.<br />

Pois então, todos os anos, no mês de setembro, a turma do Paty se reunia para

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