27.10.2019 Views

Na-Minha-Pele-Lazaro-Ramos

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

Mas... como foi com os descendentes de africanos que aqui aportaram? A<br />

experiência do tráfico eliminou os registros dos lugares de onde eles saíram,<br />

redefinindo-os em etnias genéricas (como Mina, que na verdade se refere aos<br />

embarcados na costa da Mina). Os traficantes fizeram os negros escravizados<br />

darem voltas em torno da Árvore do Esquecimento 3 para que zerassem suas<br />

memórias, apagando assim o rastro de suas histórias. Os negros da diáspora<br />

passaram pela Porta do Não Retorno “para que nunca mais sentissem vontade<br />

de voltar”, foram separados em lotes onde se prezava a diversificação,<br />

justamente “para que não se entendessem”. 4<br />

A jornalista Glória Maria falou no Espelho em 2013 sobre sua família. Ela<br />

disse que teve muita dificuldade para lidar com a realidade porque vinha de<br />

uma família em que a história da escravidão, que não aprendeu em livros, era<br />

contada pela avó. “Ela não me ensinou nada de ‘Você tem que casar’, ela só<br />

dizia assim ‘Olha, você tem que ser livre, porque a nossa história é uma história<br />

de escravidão’. E ela falava isso muito naturalmente, era a única coisa que ela<br />

sabia. ‘Você não pode deixar nunca que tirem sua liberdade, você não pode ser<br />

escrava de novo.’ Então isso eu tento passar para as minhas filhas, que elas têm<br />

que ser livres sempre, a qualquer preço, a qualquer custo. Eu não quero fazer<br />

crianças ambiciosas, crianças vencedoras, eu quero fazer crianças reais, felizes.”<br />

Aqui não há como não lembrar o que aconteceu no dia 27 de dezembro de<br />

2002. Eu estava em plena filmagem de Pastores da noite, meu primeiro trabalho<br />

na TV aberta, dirigido pelo meu grande amigo Sérgio Machado e baseado na<br />

obra homônima de Jorge Amado, quando ouvi falar que tinha sido promulgada a<br />

Lei 10.639. 5 Um fio de esperança surgiu.<br />

Mas não falemos da lei, falemos de algo que ouvi da professora Vanda<br />

Machado, egbomi do terreiro Ilê Axé Opô Afonjá, numa das muitas conversas<br />

que tivemos ao longo do caminho. É uma lenda africana sobre origem adaptada<br />

por Vanda e Carlos Petrovich, seu marido, e que descreve melhor os caminhos<br />

da lei do que qualquer explicação minha. Chama-se “O espelho da verdade”.<br />

Me disse Vanda, no quadro de encerramento de uma das temporadas do<br />

Espelho, que no princípio havia uma única verdade no mundo (em todo fim de<br />

programa dessa temporada, Vanda fazia um quadro em que falava como o<br />

candomblé é de uma sabedoria enorme — e aplicável — sobre nossas questões<br />

existenciais e mesmo sociais).<br />

Entre o Orun (o mundo espiritual) e o Aiyê (mundo material) existia um<br />

espelho, e tudo o que aparecia no Orun materializava-se no Aiyê. Ou seja, o

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!