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Na-Minha-Pele-Lazaro-Ramos

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frangos, seu Ivan ficou furioso. E lá fui eu, com a cara murcha e o frango<br />

pingando pelas pernas, devolver a carne. Quando voltei à rua, encontrei Cacá<br />

na mesma situação. O pai dele tinha lhe dado um sermão igual ao do meu.<br />

Santo, é claro, ninguém era. Até hoje lembro o trauma do meu primeiro<br />

porre, quando tinha uns dezessete anos. Foi também o dia em que percebi que<br />

levava jeito para ator. Estávamos jogando cartas e a prenda dos perdedores era<br />

tomar uma dose de licor. Saí da brincadeira tontinho. Depois fomos para uma<br />

festa de rua, onde esbarrei com o Bico, uma espécie de Zé Pequeno do Garcia.*<br />

— E aí, veado? — perguntei.<br />

Falei “veado” como se diz “brother”, “cara”. <strong>Na</strong> verdade, confundi Bico com<br />

um colega de catecismo. Quando percebi a mancada, me fiz de mais bêbado<br />

ainda e saí de fininho. Mas não adiantou, Bico estava irritado e tive que contar<br />

com a ajuda de meus amigos, que não deixaram que ele me batesse explicando<br />

que eu estava bêbado demais. Descemos a rua correndo para voltar para casa e<br />

no caminho encontramos Isabel, que na época era namorada do meu pai.<br />

Imediatamente fingindo que estava sóbrio, consegui passar por ela sem que<br />

notasse nada de diferente. Só dez casas depois eu comemorei, gritando pelos<br />

becos do Garcia “Eu sou ator!”, “Eu sou ator!”.<br />

Se com a turma de rua consegui deixar a timidez para trás, na escola não tive a<br />

mesma sorte. Quando me mudei para o Garcia, entrei para o colégio Batista<br />

Sião, uma escola particular e religiosa. A disciplina era levada a sério. Todos os<br />

dias, meia hora antes do início das aulas, éramos obrigados a cantar hinos<br />

batistas — mais um ingrediente para a minha salada religiosa. Em classe, eu era<br />

aluno de primeira fila, porque precisava fazer jus ao esforço do meu pai para<br />

pagar a mensalidade. Sentar na frente era também uma espécie de refúgio para<br />

um cara como eu. Estudar numa escola de classe média, em que eu era um dos<br />

pouquíssimos negros, não foi nada fácil.<br />

Era a época dos bailes de quinze anos e das primeiras festinhas sem adultos<br />

por perto, e eu não podia me sentir mais rejeitado. As meninas escolhiam seus<br />

pares para dançar, seus paqueras do momento. Eu não estava entre as opções.<br />

Ficava num canto do salão, sem ter nem com quem conversar. Quando alguma<br />

menina me dava mais papo, eu mal conseguia falar, pela falta de exercício.<br />

Estava tão acostumado a ser deixado de lado que não sabia o que fazer, não<br />

sabia nem sequer distinguir se aquele papo tinha segundas intenções. Adotei<br />

então o papel do melhor amigo. Foi assim até o fim do ensino fundamental.<br />

Ficava com meninas do Garcia, mas com a turma da escola era o maior zero a

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