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última página<br />
Unsplash<br />
para que serve<br />
o que eu sei?<br />
Stalimir Vieira<br />
Impossível, quando ficamos dias, semanas,<br />
isolados e atentos a ler e assistir os<br />
dramas causados pela pan<strong>de</strong>mia, não nos<br />
ocorrer que <strong>de</strong>vemos fazer alguma coisa<br />
que aju<strong>de</strong> a amenizar o sofrimento generalizado.<br />
Sempre fui um admirador ardoroso<br />
dos Médicos Sem Fronteiras. Se fosse<br />
médico, muito provavelmente estaria cerrando<br />
fileiras com eles. Mas não sou médico.<br />
Sou redator publicitário. E aí começa<br />
o questionamento que me acomete nesse<br />
dias <strong>de</strong> parança.<br />
Para o que eu, redator publicitário,<br />
sirvo? Talvez, melhor,<br />
ainda, seria perguntar para o que<br />
eu, publicitário, sirvo? Somos filhos<br />
diletos do sistema, como os<br />
nossos irmãozinhos que operam<br />
no mercado financeiro. Fomos<br />
forjados para ven<strong>de</strong>r, fazer dinheiro,<br />
gerar lucro. Nosso talento<br />
sempre esteve disponível para<br />
conquistar corações e mentes e,<br />
assim, promover <strong>de</strong>sembolsos na aquisição<br />
<strong>de</strong> bens e serviços fornecidos por quem nos<br />
interessa. Somos especialistas em abrir bolsos,<br />
bolsas e carteiras <strong>de</strong> consumidores em<br />
benefício <strong>de</strong> nossos clientes.<br />
Como ganhamos em cima <strong>de</strong> ganhos<br />
<strong>de</strong> terceiros, semelhantes a nossos irmãos<br />
operadores financeiros, quanto maior a<br />
nossa capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> promover lucros,<br />
maior a nossa receita. Compomos uma<br />
espécie <strong>de</strong> elite da inteligência <strong>de</strong> mercado.<br />
Porque permanecemos atentos e atilados<br />
acima da média. Uma sacada nossa<br />
po<strong>de</strong> fazer a fortuna <strong>de</strong> um negócio.<br />
A experiência que acumulamos sobre o<br />
comportamento humano e suas tendências<br />
<strong>de</strong> a<strong>de</strong>são a <strong>de</strong>terminados apelos nos<br />
permite oferecer potenciais <strong>de</strong> consumo<br />
<strong>de</strong> ban<strong>de</strong>ja, a quem pagar bem por eles.<br />
“Talvez,<br />
melhor,<br />
ainda, seria<br />
pergunTar<br />
para o que eu,<br />
publiciTário,<br />
sirvo?<br />
Brilham cifrões em nossas retinas quando<br />
expomos planos e estratégias a quem<br />
nos contratou. Quanto mais seguros, mais<br />
confiantes, mais ambiciosos e criativos<br />
nas apresentações <strong>de</strong> campanhas, maior o<br />
fascínio que <strong>de</strong>spertamos. Porque temos<br />
a habilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>monstrar, numa lógica<br />
impecável, que tudo vai dar certo, isto é,<br />
vai gerar muita grana. Sempre foi assim.<br />
Aqui e seja lá on<strong>de</strong> for. A publicida<strong>de</strong> é a<br />
profissão do sucesso, do brilho e do esplendor.<br />
E, então, voltando a mim em meus momentos<br />
<strong>de</strong> reflexão, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong><br />
um passeio pelas re<strong>de</strong>s sociais,<br />
em que manicures ensinam<br />
como as pessoas po<strong>de</strong>m cuidar<br />
das unhas sozinhas, cozinheiras<br />
passam receitas variadas, eletricistas<br />
orientam sobre pequenos<br />
consertos emergenciais, psicólogos<br />
aconselham sobre como<br />
conviver com o isolamento, professoras<br />
oferecem aulas voluntárias<br />
<strong>de</strong> reforço escolar, me envergonho<br />
<strong>de</strong> um dia ter aplaudido alguém<br />
que bravejava, orgulhoso, “enquanto uns<br />
choram, eu vendo lenços”. Nada é mais vexaminoso,<br />
em tempos <strong>de</strong> tragédia, do que<br />
o nosso comportamento em ilusórios dias<br />
<strong>de</strong> glória.<br />
Sob esse aspecto, em que pesem todas as<br />
agruras que traz consigo, a pan<strong>de</strong>mia é uma<br />
boa lição. Não apenas por <strong>de</strong>monstrar a<br />
nossa fragilida<strong>de</strong> física, mas para <strong>de</strong>snudar<br />
a nossa fragilida<strong>de</strong> moral. Quanto, afinal,<br />
do que afirmamos, cheios <strong>de</strong> empáfia, até<br />
31 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2019, para em pé hoje?<br />
O verniz <strong>de</strong>scascou. Boa oportunida<strong>de</strong><br />
para nos perguntarmos o que temos <strong>de</strong>baixo<br />
<strong>de</strong> todo aquele brilho aparente. Porque,<br />
agora, é isso o que vai servir para alguma<br />
coisa.<br />
Stalimir Vieira é diretor da Base Marketing<br />
stalimircom@gmail.com<br />
38 <strong>13</strong> <strong>de</strong> <strong>abril</strong> <strong>de</strong> <strong>2020</strong> - jornal propmark