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CRÓNICA - do nosso cantinho para o vosso Cantão
CRÓNICA
Fazer anos
depois de
morto.
ARAGONEZ MARQUES (*)
Bem, realmente isto de
comemorar aniversários
quando já não estamos,
não é para todos.
Aqueles que por obras valorosas se
vão da lei da morte libertando...” como
escreveu Camões, é para quem na
vida algo fez que lhe valesse a memória
futura e José Saramago, embora
não esteja no Panteão Nacional (ainda
não percebi o porquê) talvez coisas
de Cavaco Silva que nem se dignou ir
Foto: DR
ao seu funeral, é dos portugueses que
continuam a fazer aniversários todos
os anos, também com uma Pilar del
Rio que nunca permitiria o seu não
festejar. A companheira do único prémio
Nobel da literatura que Portugal
conheceu continua-lhe fiel, nas lembranças
e no reconhecimento da sua
valia.
Dentro da minha maneira de ver em
que, como diz a minha mulher, devo
guardar a língua quieta na boca antes
de falar sem pensar, sempre achei que
o seu Nobel, uma Instituição que tenta
mudar o mundo através das mensagens
que envia embrulhadas no seu
prestígio, Saramago tem o seu Nobel,
no ano em que Timor-Leste apresentou
como prémios Nobéis da Paz, Ximenes
Belo e Ramos-Horta. Portugal
estava na baila por bons motivos, o
mundo em mudança necessitando de
visibilidade, e o da Literatura, um português,
José Saramago, completaria a
influência que Portugal e Timor-Leste
necessitavam para a mudança de
compromissos que levassem a uma
evolução civilizacional e democrática.
Mas, havia tantos escritores para serem
escolhidos, este pequeno Portugal
era e sempre foi uma incubadora de
grandes literatos. Porquê Saramago?
A minha primeira relação com ele, só
foi pessoal quando escolheu Espanha,
para viver, largando este país de idiotas
onde era amargado, desdenhado,
não era Doutor, apenas um serralheiro
mecânico que gostava de ler e escrever.
Em Espanha sim, conheci-o, em encontros,
palestras, onde nos dizia que
fazer um romance era como um carpinteiro
que construía uma cadeira.
Tinha que ser planeada, as pernas tinham
que ter a mesma medida, o encosto
e os braços teriam que ter conforto.
Um trabalho de artesão, mas um
trabalho.
Clara Ferreira Alves, grande amiga do
casal, quando o livro “O Evangelho Segundo
Jesus Cristo /1991” chegou a sua
casa, irada, pois o livro de Saramago
teria sido afastado do prémio merecido,
encontrou o autor calmo, segundo
ela, continuando a jantar calmamente
dizendo-lhe apenas:
- O que tiver que ser meu será a seu
tempo e se não tiver é porque não mereço.
O primeiro livro que li de Saramago foi
“Levantado do Chão/1981”.
Li, gostei, mas rapidamente o juntei a
livros da moda de então, como "Os Esteiros”
de Soeiro Pereira Gomes/1941 e
agora republicado, “Bastardos do Sol”
de Urbano Tavares Rodrigues, ou mesmo
“Cerromaior” ou “Seara de Vento/1958”
de Manuel da Fonseca, livros
que a Revolução tinha libertado e que
enchiam as livrarias.
Arrumei-os
Pertenciam à prateleira da foice e do
martelo (que respeito), mas queria
mais com dezasseis anos de idade.
Foi então que li um texto de Saramago
onde dava uma enorme sova naquilo
que para nós era algo certo. A tolerância.
Dizia ele que ser tolerante no que
respeita ao outro ou às suas crenças era
uma nódoa imposta pela cultura dominante.
Atirava-se à tolerância como
gato a bofe, e avisava que só a igualdade
entre pessoas, raças, culturas, religiões
era válida e honesta.
Comecei, neste artigo lido num jornal,
a mudar a forma de pensar. A refletir.
Aquilo que qualquer livro deve fazer
se for escrito com verdade.
Veio depois nas minhas leituras o “Ensaio
sobre a Cegueira” onde na ambição
de vir a ser um escritor, dizia (se
eu tivesse tido esta ideia, teria escrito
um livro melhor). Pois é, idiota, só que
as ideias fazem parte da cadeira do artesão.
No dia em que vos escrevo, José Saramago
fazia, ou faz, 99 anos. Em 2022
será o ano do seu centenário. Foi-lhe
atribuído também hoje, a título póstumo,
o Prémio Camões.
Tarde.
Sempre foi um escritor maldito, num
país de mestrados e doutoramentos.
No foi só ele que deixou Portugal, cansado
de tanto maltrato. Fê-lo também
Maria João Pires, excelente pianista,
que mandou às urtigas Belgais e pirou-se.
Ou mesmo Fernando Tordo,
que desapareceu para o Brasil.
Portugal trata mal os seus criativos.
No seu livro maldito, “O Evangelho
Segundo Jesus Cristo”, dizia ele, para
além de muitas outras coisas, que o
soldado que deu numa vara vinagre a
Cristo quando este agonizava na Cruz,
foi um acto de amor. E foi mesmo, a
minha avó dava-me nos largos verões
do Alentejo refresco de vinagre para
me mitigar a sede. O soldado apiedou-
-se dele, e não o torturou como dizem
as Escrituras, apenas o tentou ajudar,
tal como a sua última chaga, a do peito,
foi um gesto de amor que colocou
um final na agonia.
Este livro fez-me entender com menos
de quarenta anos, que tudo podia ser
posto em causa. Mesmo a religião.
Escrevi nessa altura um livro, “Três
Contos Trípteros”, onde inventei um
filho de Pedro, chamado Alfeu, que
quando o filho de Deus lhe levou o pai,
ficou órfão, a ter que cuidar da mãe e
dos irmãos. Um Deus não diz:
- Larga tudo e segue-me!
Esse tudo são gentes, pessoas que
dependiam de um modo de vida, de
uma família. Pela primeira vez, graças
a Saramago, entendi que tudo era
questionável e a vida não é a preto e
branco, tem cores e nós podemos ser
os pintores.
Decidi reeditar esse livro no seu centenário.
“Memorial do Convento” é um poema
e a voz de Blimunda, a Passarola, o
Maneta, os frades que ouviam a Rainha
em confissão e a aproveitavam
para o seu benefício, uma coragem
sem fim para questionar tudo e todos,
a própria História.
Devo a Saramago um obrigado.
Nunca o conseguirei, quando tenho a
escola que me obriga a optar entre as
Letras e a sobrevivência da família.
Aguardarei, pois não perdi ainda a esperança
de ver Lobo Antunes como
segundo Prémio Nobel português.
Será difícil, o país, este nosso cantinho,
continua sem causas maiores e
em vez de Timor-Leste, temos o tráfico
de ouro e diamantes com a República
Centro Africana.
Tinha tantas coisas para vos contar
mais nesta crónica, os serões de Lanzarote,
onde amigos meus estiveram,
batendo à porta. Luis Pastor, cantor
extremenho, foi para lhe mostrar um
CD que fez sem autorização e foi pedi-la.
Esteve acolhido três semanas e
cada noite era uma tertúlia com gentes
que entravam e saíam.
Cultura ao vivo.
Vivida.
Amanhã, tenho que me levantar às
seis e trinta, tenho escola.
Recordo Carlos Garcia de Castro, um
grande poeta de Portalegre e meu
mentor e amigo, que me dizia:
- Houve um tempo em que tive que
optar entre a literatura e a família. Escolhi
a família.
Eu, humildemente, descobri que também.
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