O grande ditador - Fonoteca Municipal de Lisboa
O grande ditador - Fonoteca Municipal de Lisboa
O grande ditador - Fonoteca Municipal de Lisboa
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
CHICO ARAGÃO<br />
A casa é a mesma e não se importou<br />
<strong>de</strong> esperar por ela cinco anos. Mísia<br />
reocupou-a com todos os objectos<br />
que levou para Paris, excepto o <strong>gran<strong>de</strong></strong><br />
armário que nunca daqui saiu, tão<br />
<strong>gran<strong>de</strong></strong> é o seu porte. Quando lançou<br />
“Ruas”, a 27 <strong>de</strong> Abril <strong>de</strong> 2009, a <strong>Lisboa</strong><br />
que cantava era vista <strong>de</strong> fora, <strong>de</strong><br />
um exílio voluntário. Mas o disco, que<br />
na verda<strong>de</strong> eram dois, dividia-se por<br />
“<strong>Lisboa</strong>rium” (on<strong>de</strong> havia Pessoa,<br />
Botto, Ary ou Graça Moura) e “& Tourists”<br />
(com Nine Inch Nails, Joy Division,<br />
Camaron <strong>de</strong> la Isla ou Dalida).<br />
Ruas <strong>de</strong> cá e lá, <strong>de</strong> <strong>Lisboa</strong> e do mundo.<br />
22 • Sexta-feira 5 Novembro 2010 • Ípsilon<br />
O disco, feito espectáculo, correu<br />
múltiplos palcos. Andou pela Europa,<br />
claro, mas também pela Colômbia,<br />
Brasil, Argentina, Líbano.<br />
A torrente <strong>de</strong>sagua a 17 <strong>de</strong> Dezembro,<br />
no Lux. “Acho bonita”, diz ela,<br />
“essa i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> vir fechar aqui, sobretudo<br />
<strong>de</strong> vir fechar ao Lux. Porque se<br />
algum disco meu encaixa melhor<br />
com a energia do Lux, é este, sobretudo<br />
a segunda parte.” Porque “é um<br />
disco sem nenhuma espécie <strong>de</strong> fronteiras,<br />
constrangimentos ou medos,<br />
um disco pós-50 anos. Tem muito a<br />
ver com a <strong>gran<strong>de</strong></strong> liberda<strong>de</strong> que vivo<br />
neste momento e também com o acumular<br />
<strong>de</strong> tantas viagens.” No início,<br />
Mísia tinha receio da reacção da comunida<strong>de</strong><br />
portuguesa. “Quando foi<br />
apresentado no Casino <strong>de</strong> Paris, entrevistaram<br />
o público e foi o contrário:<br />
uma espécie <strong>de</strong> orgulho <strong>de</strong> terem<br />
uma cantora que cantava em tantas<br />
línguas. As coisas mudaram, na cabeça<br />
das pessoas. E como há na primeira<br />
parte uma <strong>gran<strong>de</strong></strong> <strong>de</strong>dicação a<br />
<strong>Lisboa</strong> e ao fado, aos <strong>gran<strong>de</strong></strong>s autores,<br />
percebem o que vem a seguir.”<br />
Aqui, pela primeira vez, haverá<br />
mesmo duas partes. “Vamos imaginar<br />
Música<br />
<strong>Lisboa</strong> <strong>de</strong> cá e lá<br />
Voltou à sua casa, aos seus amigos, à sua rua. Cinco anos em Paris<br />
e ei-la <strong>de</strong> novo em <strong>Lisboa</strong>, on<strong>de</strong> encerra a tournée <strong>de</strong> “Ruas” no dia 17 <strong>de</strong><br />
Dezembro, no Lux. Entrou num fi lme, está a acabar um disco e a escrever<br />
um livro. Mísia voltou, e repleta <strong>de</strong> novida<strong>de</strong>s. Nuno Pacheco<br />
que o Lux é uma ilha que está no meio<br />
do mar, porque o disco fala <strong>de</strong> <strong>Lisboa</strong><br />
vista <strong>de</strong> longe e precisamos <strong>de</strong> fazer<br />
um exercício <strong>de</strong> abstracção, já que<br />
estamos aqui.” Numa crescente tendência<br />
para a encenação, Mísia teatraliza:<br />
“Nas marchas <strong>de</strong> <strong>Lisboa</strong> vou<br />
buscar uma roupa do Storytaylors,<br />
pedi para me fazerem um chapéu,<br />
fizeram uma caravela, há uma cápsula<br />
<strong>de</strong> Nespresso que faz <strong>de</strong> vaso para<br />
o manjerico e eu explico aos estrangeiros<br />
que há uma coisa que é tão <strong>de</strong><br />
<strong>Lisboa</strong> como o fado mas ao contrário:<br />
é rítmico, alegre. Depois digo que va-<br />
“Soube que iam atirar<br />
abaixo umas árvores<br />
do Príncipe Real.<br />
E isso funcionou<br />
como um impulso.<br />
É um dos sítios <strong>de</strong><br />
<strong>Lisboa</strong> que adoro”<br />
mos sonhar as ruas do mundo, por<br />
on<strong>de</strong> todos andamos até à última esquina,<br />
é o meu sentido trágico, e aí já<br />
apareço vestida como turista, com<br />
uma mala, óculos escuros, máquina<br />
fotográfica, gabardina. Começo com<br />
um tema da Turquia e logo a seguir<br />
uma canção napolitana. E digo que<br />
entre <strong>Lisboa</strong>, Nápoles e Istambul há<br />
uma coisa em comum: os tremores<br />
<strong>de</strong> terra e os tremores <strong>de</strong> coração.”<br />
Foi assim, será assim.<br />
Aos músicos que a têm acompanhado,<br />
juntar-se-á no Lux Geoffrey Burton,<br />
na guitarra eléctrica, um dos<br />
músicos que toca com Iggy Pop. “Ele<br />
já tinha participado na gravação do<br />
disco e adora tocar connosco.” Anuncia-se<br />
uma imprevisível festa.<br />
Novo disco só <strong>de</strong> fados<br />
Nestes últimos tempos, foi convidada<br />
por John Turturro para entrar num<br />
filme que ele realizou, chamado “Passione”.<br />
“É como o Buena Vista Social<br />
Club mas sobre a música napolitana,<br />
um bocado como o Saura fez com o<br />
fado. Eu tinha no meu disco uma canção<br />
napolitana, ele ouviu, gostou, e<br />
foi por isso que me convidou.” Gravou<br />
duas canções e, com a experiência,<br />
ficou fascinada por Nápoles. E também<br />
pelo filme: “É lindíssimo”.<br />
Começou a escrever um livro (“sobre<br />
a minha mãe, a minha avó e eu”)<br />
e está a acabar <strong>de</strong> gravar um disco, o<br />
primeiro só <strong>de</strong> fados que faz nos últimos<br />
<strong>de</strong>z anos. Tem letras <strong>de</strong> Amélia<br />
Muge, Hélia Correia, Lídia Jorge, Aldina<br />
Duarte, Maria do Rosário Pedreira,<br />
Manuela <strong>de</strong> Freitas, Amália, Rosa<br />
Lobato Faria, Natália Correia, Florbela<br />
Espanca, Adriana Calcanhotto (“É<br />
a terceira vez que eu lhe peço, mas<br />
ela não se atrevia. Agora, fez um poema<br />
lindíssimo, on<strong>de</strong> há alguns brasileirismos<br />
que eu conservo.”). E uma<br />
<strong>de</strong>la. “Também escrevi um, eu, assim<br />
um bocado gótico, entre Florbela Espanca<br />
e António Nobre. Chama-se ‘O<br />
manto da rainha’.” O disco sairá na<br />
Primavera <strong>de</strong> 2011.<br />
Mísia voltou a <strong>Lisboa</strong> da mesma<br />
forma que partiu. “A minhas <strong>de</strong>cisões<br />
são impulsos afectivos e emocionais.<br />
Fui para Paris porque precisava <strong>de</strong><br />
me afastar, precisava <strong>de</strong> uma distância<br />
para redimensionar coisas minhas,<br />
em relação ao meu trabalho, ao meu<br />
país, à minha pessoa, razões sentimentais.<br />
Um dia, acho que foi numa<br />
conversa, soube que iam atirar abaixo<br />
umas árvores do Príncipe Real. E isso<br />
funcionou como um impulso. E eu,<br />
que nem sequer sou <strong>de</strong> <strong>Lisboa</strong> [nasceu<br />
no Porto], percebi que me importavam<br />
imenso as árvores do Príncipe<br />
Real, um dos sítios <strong>de</strong> <strong>Lisboa</strong> que adoro.”<br />
E voltou para a casa on<strong>de</strong> vivia<br />
antes, <strong>de</strong> que nunca teve coragem <strong>de</strong><br />
se separar <strong>de</strong>finitivamente.<br />
“Esta distância <strong>de</strong>u-me para repensar<br />
muitas coisas. Voltei à minha casa,<br />
aos meus amigos, à minha rua, ao<br />
meu ninho (o ex-libris da minha casa<br />
é ter um ninho ali fora, naquela árvore).<br />
E tenho muita vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> me encontrar<br />
com os meus misianos.”