13.04.2013 Views

O grande ditador - Fonoteca Municipal de Lisboa

O grande ditador - Fonoteca Municipal de Lisboa

O grande ditador - Fonoteca Municipal de Lisboa

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

ENRIC VIVES-RUBIO<br />

Seduz-nos em discurso directo através<br />

da forma como o sentimos pensar tudo<br />

o que diz. Fala pausadamente com<br />

cada i<strong>de</strong>ia a quebrar silêncios <strong>de</strong> forma<br />

eficaz.<br />

Eduardo Sacheri (Buenos Aires,<br />

1967) é um céptico que ainda se incomoda<br />

com a atenção que lhe tem sido<br />

<strong>de</strong>dicada <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que há pouco mais<br />

<strong>de</strong> um ano “O segredo dos seus olhos”<br />

se transformou num sucesso <strong>de</strong> vendas<br />

por causa da adaptação ao cinema<br />

do seu primeiro romance. O filme<br />

<strong>de</strong> Juan José Campanella, Óscar <strong>de</strong><br />

melhor filme estrangeiro <strong>de</strong>ste ano,<br />

para o qual Eduardo escreveu o argumento,<br />

mudou a vida <strong>de</strong> um antigo<br />

funcionário judicial e actual professor<br />

<strong>de</strong> história que nos tempos livres se<br />

<strong>de</strong>dicava sobretudo a escrever contos<br />

sobre o futebol.<br />

“O meu romance teve duas vidas.<br />

Uma discreta quando o livro saiu há<br />

cinco anos e uma muito mais intensa<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> que o filme se estreou. Ser professor<br />

dá-me um contacto duro com<br />

a realida<strong>de</strong>. Tenho duas profissões<br />

aparentemente <strong>de</strong>stinadas ao fracasso,<br />

a docência e a literatura. Embora<br />

ambas se guiem por uma procura da<br />

verda<strong>de</strong> e da beleza, algo em que vale<br />

a pena acreditar. Sem esquecer o<br />

tempo que trabalhei na justiça, estou<br />

<strong>de</strong>stinado e tenho tendência para me<br />

<strong>de</strong>dicar a causas perdidas.”<br />

Se calhar não é assim. Eduardo Sacheri<br />

viu o filme que também escreveu<br />

mais <strong>de</strong> <strong>de</strong>z vezes. Entretanto, o<br />

26 • Sexta-feira 5 Novembro 2010 • Ípsilon<br />

As duas vidas<br />

<strong>de</strong> um romance<br />

Por <strong>de</strong>trás <strong>de</strong> um bom fi lme está normalmente um bom livro?<br />

Se pensarmos em “O segredo dos seus olhos” a resposta é sim. Conversa com Eduardo<br />

Sacheri um segredo da literatura argentina a ponto <strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> o ser. Rui Lagartinho<br />

segredo alastrava-se tornando-se no<br />

segundo filme mais visto na história<br />

do cinema argentino. “Escrever e ler<br />

são actos solitários. Foi um milagre<br />

ver as pessoas receberem algo <strong>de</strong><br />

mim. Escutar o riso, sentir a emoção<br />

e os sobressaltos dos espectadores,<br />

mergulhar no silêncio opressivo ou<br />

exclamações <strong>de</strong> espanto nos momentos<br />

tensos. Foi como estar no ombro<br />

do leitor no momento <strong>de</strong> ver a história.<br />

Foi uma aventura que me mobilizou<br />

em direcção ao <strong>de</strong>sconhecido.<br />

O meu esforço foi que as personagens<br />

fossem respeitadas. Ao passá-las para<br />

o cinema aprendi a conhecê-los melhor,<br />

<strong>de</strong> outra forma.”<br />

Arrumar a memória<br />

Utilizar o cinema e a literatura como<br />

purga <strong>de</strong> uma ditadura é prática comum<br />

e a Argentina fez o trabalho <strong>de</strong><br />

casa com a ditadura em que mergulhou<br />

entre os anos <strong>de</strong> 1976 e 1983.<br />

Eduardo Sacheri trouxe com o seu<br />

romance a discussão para a semente<br />

do mal: “Tinha sete anos em 1974 e<br />

recordo-me <strong>de</strong> um país <strong>de</strong> gente crispada,<br />

<strong>de</strong> gente sempre a gritar e on<strong>de</strong><br />

se sentia a intolerância nos actos <strong>de</strong><br />

todos os dias. Foi este o terreno fértil<br />

que permitiu o triunfo da ditadura. A<br />

<strong>de</strong>mocracia cobriu este período com<br />

um manto <strong>de</strong> silêncio. Que só agora<br />

se começa a <strong>de</strong>stapar. Mas eu não quis<br />

escrever um romance histórico sobre<br />

esta época, nem um romance <strong>de</strong> tese<br />

com um olhar abstracto a pairar sobre<br />

a socieda<strong>de</strong> da época. Tentei que a<br />

<strong>de</strong>scoberta se fizesse <strong>de</strong> cima para<br />

baixo. As histórias pessoais permitem<br />

uma maior verosimilhança.”<br />

Todo o livro gira em torno <strong>de</strong>ste<br />

arrumar da memória pessoal. No seu<br />

coração está um homem. Benjamin<br />

Chaparro escreve um livro que vai<br />

encerrar a investigação sobre um crime.<br />

Deixou a justiça on<strong>de</strong> trabalhou<br />

como oficial <strong>de</strong> diligências, vai estrear-se<br />

na ficção. A verda<strong>de</strong> aí exposta<br />

funcionará como uma última peça <strong>de</strong><br />

um puzzle que se encaixa e que permitirá<br />

virar páginas <strong>de</strong> vida. Arrumase<br />

a casa, <strong>de</strong>scansa-se a consciência,<br />

transferem-se responsabilida<strong>de</strong>s:<br />

“Chaparro interroga-se se as vidas dos<br />

seres humanos, uma vez extintas, não<br />

se prolongarão na vida dos outros,<br />

dos que ainda vivem e relembram.”<br />

(página 303).<br />

Percebe-se que este escritor protagonista<br />

recebeu uma procuração clara<br />

do outro que o inventou na sombra:<br />

“Há uma mobilização interior e<br />

uma aprendizagem que lhe vai abrindo<br />

o futuro. É para isso que serve a<br />

memória: a memória do que nos suce<strong>de</strong>u<br />

po<strong>de</strong> ser como uma pedra ou<br />

uma rocha que nos esmaga. Mas se<br />

formos capazes <strong>de</strong> a domesticar, <strong>de</strong><br />

a dominar, po<strong>de</strong> ser uma pedra sobre<br />

a qual no sentamos e pensamos em<br />

que direcção seguir.”<br />

Afastam-se os fantasmas do romance<br />

que simplesmente autopsia a história<br />

recente. Evitam-se as armadilhas<br />

“Ser professor<br />

dá-me um contacto<br />

duro com a realida<strong>de</strong>.<br />

Tenho duas profissões<br />

aparentemente<br />

<strong>de</strong>stinadas ao<br />

fracasso, a docência<br />

e a literatura”<br />

do policial embora seja um crime não<br />

explicado a acendalha do romance,<br />

a tela momentos antes <strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong><br />

ser branca: “Trabalhei cinco anos<br />

num juízo criminal. Não escrevi um<br />

romance policial clássico. A meio do<br />

livro já se sabe quem foi o assassino,<br />

como cometeu o crime. Já confessou,<br />

está preso. O enredo policial acaba<br />

aí. Mas é então que entra a Argentina:<br />

os nossos turbulentos anos 70 que<br />

levam a que o assassino seja libertado.<br />

Segue-se a tragédia <strong>de</strong> quem confiou<br />

na justiça e resolve vingar-se lentamente<br />

e com isso chego on<strong>de</strong> queria<br />

chegar: a uma enorme reflexão sobre<br />

o castigo.”<br />

Entretanto já nos colámos à pele<br />

do <strong>de</strong>sespero <strong>de</strong> Sandoval, colega <strong>de</strong><br />

Livros<br />

“O segredo<br />

dos seus<br />

olhos”, filme<br />

para o qual<br />

Eduardo<br />

escreveu o<br />

argumento,<br />

mudou a vida<br />

<strong>de</strong> um exfuncionário<br />

judicial e<br />

actual<br />

professor <strong>de</strong><br />

história que<br />

nos tempos<br />

livres se<br />

<strong>de</strong>dicava a<br />

escrever<br />

contos sobre<br />

futebol<br />

Benjamin Chaparro, que bebe para<br />

tudo esquecer: “Agora apareciam menos<br />

cadáveres nos <strong>de</strong>scampados. Evi<strong>de</strong>ntemente,<br />

os assassinos tinham<br />

aperfeiçoado o seu estilo.” (pá. 224).<br />

Eduardo Sacheri misturou o bobo e<br />

um coro trágico numa só personagem:<br />

“Sandoval é um homem muito<br />

sensível e intuitivo. O álcool é um escape<br />

à percepção da dor. Não tolera<br />

a sua própria clarividência. Para ele<br />

é claro que a Argentina caminha para<br />

um túnel <strong>de</strong> trevas e <strong>de</strong> morte. Não<br />

como algo cíclico mas como uma crescente<br />

obscurida<strong>de</strong>. Sandoval percebe<br />

que faltam poucos centímetros para<br />

entrar no túnel.”<br />

Aqui chegados apetece respirar fundo.<br />

Vamos conseguir porque há um<br />

segredo que se transporta em arco<br />

por cima <strong>de</strong> tudo o que é policial e<br />

político e aparece fresco, renovado,<br />

no final do livro. Faz correr um Benjamín<br />

Chaparro que julgávamos<br />

exausto: “Avança a traços largos pelo<br />

corredor <strong>de</strong> ladrilhos brancos e pretos<br />

dispostos em losango. Pela primeira<br />

vez sabe que hoje sim, sem falta e sem<br />

<strong>de</strong>mora, tem <strong>de</strong> ir bater-lhe à porta<br />

do gabinete; ouvir a voz <strong>de</strong>la a dizerlhe<br />

que entre.” (pág. 307).<br />

É um segredo que não se vai <strong>de</strong>svendar,<br />

o pulmão ver<strong>de</strong> do romance:<br />

“Um dia <strong>de</strong>scobri que Chaparro tinha<br />

<strong>de</strong> estar apaixonado. É uma luz que<br />

o vai iluminando gradualmente. A luz<br />

ao fundo do túnel, os olhos que procuram<br />

o futuro noutros olhos.”

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!