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www.nead.unama.br<br />
Por um acaso da distribuição acústica dos compartimentos da casa, ouvia-se<br />
bem, agradavelmente amaciado, o som do piano do salão. A amável senhora, para<br />
mandar-me da sua ausência alguma coisa ainda, que acariciasse, que me fosse<br />
agradável, traduzia no teclado com a mesma brandura sentida as musicas que sabia<br />
cantar. Nenhuma violência de execução. Sentimento, apenas, sentimento, sucessão<br />
melódica de sons profundos, destacados como o dobre, em novembro, dos bronzes;<br />
depois, uma enfiada brilhante de lágrimas, colhidas num lago de repouso, final,<br />
sereno, consolado... efeitos comoventes da música de Schopenhaeur; forma sem<br />
matéria, turba de espíritos aéreos.<br />
A primeira vez que me levantei, trêmulo da fraqueza, Ema amparou-me até à<br />
janela. Dez horas. Havia ainda a frescura matinal na terra. Diante de nós o jardim<br />
virente, constelado de margaridas; depois, um muro de hera, bambus à direita; uma<br />
zona do capinzal fronteiro; depois, casas, torres, mais casas adiante, telhados ainda<br />
a distancia, a cidade. Tudo me parecia desconhecido, renovado. Curioso esplendor<br />
revestia aquele espetáculo. Era a primeira vez que me encantavam assim aquelas<br />
gradações de verde, o verde-negro, de faiança, luzente da hera, o verde flutuante<br />
mais claro dos bambus, o verde claríssimo do campo ao longe sobre o muro, em<br />
todo o fulgor da manhã. Tetos de casas, que novidade! que novidade o perfil de uma<br />
chaminé riscando o espaço! Ema entregava-se, como eu, ao prazer dos olhos.<br />
Sustinha-me em leve enlace; tocava-me com o quadril em descanso.<br />
Absorvendo-me na contemplação da manhã, penetrado de ternura, inclinei a<br />
cabeça para o ombro de Ema, como um filho, entrecerrando os cílios, vendo o<br />
campo, os tetos vermelhos como coisas sonhadas em afastamento infinito, através<br />
de um tecido vibrante de luz e ouro.<br />
Desde essa ocasião, fez-se-me desesperada necessidade a companhia da<br />
boa senhora. Não! eu não amara nunca assim a minha mãe. Ela andava agora em<br />
viagem por países remotos, como se não vivesse mais para mim. Eu não sentia a<br />
falta. Não pensava nela... Escureceu-me as recordações aquele olhar negro, belo,<br />
poderoso, como se perdem as linhas, as formas, os perfis, as tintas, de noite, no<br />
aniquilamento uniforme da sombra... Bem pouco, um resto desfeito de saudades<br />
para aquela inércia intensa, avassalando.<br />
Apavorava-me apenas um susto, alarma eterno dos felizes, azedume<br />
insanável dos melhores dias: não fosse subitamente destruir-se a situação. A<br />
convalescença progredia; era um desgosto.<br />
No pequeno aposento da enfermaria, encerrava-se o mundo para mim. O<br />
meu passado eram as lembranças do dia anterior, um especial afago de Ema, uma<br />
atitude sedutora que se me firmava na memória como um painel presente, as duas<br />
covinhas que eu beijava, que ela deixava dos cotovelos no colchão premido, ao<br />
partir, depois da última visita à noite, em que ficava como a esperar que eu<br />
dormisse, apoiando o rosto nas mãos, os braços na cama, impondo-me a letargia<br />
magnética do vasto olhar.<br />
O meu futuro era o despertar precoce, a ansiada esperança da primeira visita.<br />
Saltava da cama, abria imprudentemente a vidraça, a veneziana. Ainda escuro. Uma<br />
luz em frente, longínqua, irradiava solitária, reforçando pelo contraste a obscuridade.<br />
Por toda a parte firmamento limpo. O mais completo silêncio. Dir-se-ia ouvir no<br />
silêncio azul das alturas a crepitação das estrelas ardendo.<br />
Eu tornava ao leito. Esperava. Não dormia mais. Ao fim de muito tempo,<br />
entrava na enfermaria, vinha ter aos lençóis, de mansinho, como uma insinuação<br />
derramada de leite, a primeira manifestação da alvorada. O arvoredo movia-se fora<br />
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