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O Ateneu - Unama

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www.nead.unama.br<br />

A abóbada de folhagem que nos cobria, em vez de atenuar a violência das<br />

águas, concorria para fazer mais grossos os pingos. Pouco importava. A filosofia<br />

impermeável do diretor servia-nos também de capa. Que chovesse! Era o molho dos<br />

manjares que nos faltava. As frutas lavadas luziam com um verniz de frescura que o<br />

próprio outono não possui. O vinho estendia-se pela toalha encharcada numa<br />

generalização solene de púrpura. O banho oportuno do banquete vinha temperar a<br />

demasiada aridez das farinhas de recheio. “Acabamos pela sopa, descobriu Nearco,<br />

o penetrante, por onde o vulgo principia!”<br />

Qual acabávamos! Ninguém acabou. Sucedeu que, com os fundilhos<br />

molhados, ninguém quis mais sentar-se. Girou o atropelo ao redor das mesas; os<br />

bancos foram repelidos a pontapés. Repartia-se o doce sem eqüidade; quem não<br />

avançava a tempo ficava sem ele. Dois inspetores, João Numa e o Conselheiro, a<br />

pretexto de decidir uma contenda, arranjaram-se com uma caixa de pessegada e<br />

desapareceram.<br />

A chuva desculpava a bebida. Era inacreditável o consumo de brindes.<br />

Brindes a Aristarco, brindes aos companheiros, ao Silvino, ao poeta, ao sol, aos<br />

temporais, ao trovão escandinavo; inimigos figadais, no transporte do prazer,<br />

reconciliaram-se; Barbalho saudou-me fogosamente. Rômulo, já tonto, afastado das<br />

mesas, brindava o copeiro que lhe arranjara uma garrafa; depois brindou a noiva; o<br />

criado, bebendo também, tocou-lhe o copo.<br />

Como escurecia, o diretor fez o clarim chamar à forma.<br />

Debaixo do aguaceiro que não cessava, o colégio alinhou-se como bem pôde.<br />

Muitos, queixando-se de saúde delicada, obtiveram dispensa desta inoportuna<br />

disciplina de equilíbrio; seguiram adiante para o portão abrigado do jardim... Após,<br />

fomos os outros, em marcha regular, pingando de molhados. A fita vermelha dos<br />

gorros desbotava-se-nos pelo rosto em fios sangüíneos.<br />

Quando chegamos ao portão, já nos esperavam os bondes especiais. Do<br />

outro lado da rua, à entrada do conhecido restaurante, apareceu a família do<br />

Aristarco com alguns professores, que lá tinham jantado. D. Ema, pelo braço do<br />

Crisóstomo, a Melica altivamente só e distanciada.<br />

No colégio, tivemos ordem de subir a descanso nos dormitórios. Preventivo<br />

louvável de prudência, depois dos excessos e da tempestade sofrida. O descanso<br />

foi simplesmente um prolongamento da pândega do passeio. Para cessar a<br />

desordem, tocou-se a estudo... Baixamos ao salão geral. Aristarco, reassumindo a<br />

dureza olímpica da seriedade habitual, apresentou-se e perguntou asperamente se<br />

pretendíamos que a vida passasse a ser agora um piquenique perpétuo na<br />

desmoralização. Tacitamente negamos e a tranqüilidade normal entrou nos eixos.<br />

Não sabíamos que, a essas horas, preparava o segredo da alta justiça uma<br />

trama de intrigas, que devia estragar em terrores a lembrança do grande passeio.<br />

A hora da ceia, na mesma porta em que se lia a gazetilha das aulas, sombrio<br />

como nunca, vagaroso como os compassos de réquiem, tétrico como o Juízo Final,<br />

entrou o diretor.<br />

Pausa preliminar, frêmito de sensação pelo refeitório: “Tenho a alma triste”,<br />

começou, cavernosamente. Uma cinta de trovões no horizonte, restos da tormenta<br />

da tarde, faziam fundo às palavras em coro esquiliano.<br />

“Tenho a alma triste. Senhores! A imoralidade entrou nesta casa! Recusei-me<br />

a dar crédito, rendi-me à evidência...” Com todo o vigor tenebroso dos quadros<br />

trágicos, historiou-nos uma aventura brejeira. Uma carta cômica e um encontro<br />

marcado no Jardim. “Ah! mas nada me escapa... tenho cem olhos. Se são capazes,<br />

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