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A abóbada de folhagem que nos cobria, em vez de atenuar a violência das<br />
águas, concorria para fazer mais grossos os pingos. Pouco importava. A filosofia<br />
impermeável do diretor servia-nos também de capa. Que chovesse! Era o molho dos<br />
manjares que nos faltava. As frutas lavadas luziam com um verniz de frescura que o<br />
próprio outono não possui. O vinho estendia-se pela toalha encharcada numa<br />
generalização solene de púrpura. O banho oportuno do banquete vinha temperar a<br />
demasiada aridez das farinhas de recheio. “Acabamos pela sopa, descobriu Nearco,<br />
o penetrante, por onde o vulgo principia!”<br />
Qual acabávamos! Ninguém acabou. Sucedeu que, com os fundilhos<br />
molhados, ninguém quis mais sentar-se. Girou o atropelo ao redor das mesas; os<br />
bancos foram repelidos a pontapés. Repartia-se o doce sem eqüidade; quem não<br />
avançava a tempo ficava sem ele. Dois inspetores, João Numa e o Conselheiro, a<br />
pretexto de decidir uma contenda, arranjaram-se com uma caixa de pessegada e<br />
desapareceram.<br />
A chuva desculpava a bebida. Era inacreditável o consumo de brindes.<br />
Brindes a Aristarco, brindes aos companheiros, ao Silvino, ao poeta, ao sol, aos<br />
temporais, ao trovão escandinavo; inimigos figadais, no transporte do prazer,<br />
reconciliaram-se; Barbalho saudou-me fogosamente. Rômulo, já tonto, afastado das<br />
mesas, brindava o copeiro que lhe arranjara uma garrafa; depois brindou a noiva; o<br />
criado, bebendo também, tocou-lhe o copo.<br />
Como escurecia, o diretor fez o clarim chamar à forma.<br />
Debaixo do aguaceiro que não cessava, o colégio alinhou-se como bem pôde.<br />
Muitos, queixando-se de saúde delicada, obtiveram dispensa desta inoportuna<br />
disciplina de equilíbrio; seguiram adiante para o portão abrigado do jardim... Após,<br />
fomos os outros, em marcha regular, pingando de molhados. A fita vermelha dos<br />
gorros desbotava-se-nos pelo rosto em fios sangüíneos.<br />
Quando chegamos ao portão, já nos esperavam os bondes especiais. Do<br />
outro lado da rua, à entrada do conhecido restaurante, apareceu a família do<br />
Aristarco com alguns professores, que lá tinham jantado. D. Ema, pelo braço do<br />
Crisóstomo, a Melica altivamente só e distanciada.<br />
No colégio, tivemos ordem de subir a descanso nos dormitórios. Preventivo<br />
louvável de prudência, depois dos excessos e da tempestade sofrida. O descanso<br />
foi simplesmente um prolongamento da pândega do passeio. Para cessar a<br />
desordem, tocou-se a estudo... Baixamos ao salão geral. Aristarco, reassumindo a<br />
dureza olímpica da seriedade habitual, apresentou-se e perguntou asperamente se<br />
pretendíamos que a vida passasse a ser agora um piquenique perpétuo na<br />
desmoralização. Tacitamente negamos e a tranqüilidade normal entrou nos eixos.<br />
Não sabíamos que, a essas horas, preparava o segredo da alta justiça uma<br />
trama de intrigas, que devia estragar em terrores a lembrança do grande passeio.<br />
A hora da ceia, na mesma porta em que se lia a gazetilha das aulas, sombrio<br />
como nunca, vagaroso como os compassos de réquiem, tétrico como o Juízo Final,<br />
entrou o diretor.<br />
Pausa preliminar, frêmito de sensação pelo refeitório: “Tenho a alma triste”,<br />
começou, cavernosamente. Uma cinta de trovões no horizonte, restos da tormenta<br />
da tarde, faziam fundo às palavras em coro esquiliano.<br />
“Tenho a alma triste. Senhores! A imoralidade entrou nesta casa! Recusei-me<br />
a dar crédito, rendi-me à evidência...” Com todo o vigor tenebroso dos quadros<br />
trágicos, historiou-nos uma aventura brejeira. Uma carta cômica e um encontro<br />
marcado no Jardim. “Ah! mas nada me escapa... tenho cem olhos. Se são capazes,<br />
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