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O médico, a chamado de Aristarco, viera duas vezes. Condenou a idéia de<br />
remover-se o doente; recomendou cuidado com as vidraças; diagnosticou uma febre<br />
qualquer, redigindo o récipe, partindo ambas as vezes com a discrição hermética<br />
que faz a importância da classe.<br />
Perguntei ao Franco como passava. Ele agitou devagar as pálpebras e<br />
sorriu-se. Nunca lhe conheci tão belo sorriso, sorriso de criança à morte. Oito horas<br />
da noite. O gás atenuado produzia eflúvios contristadores de claridade. Retirei-me<br />
sem aprofundar a vista pelos outros dormitórios, em cujas vidraças espelhantes<br />
devia passar sucessivamente a minha sombra. Procurei o diretor e comuniquei-lhe<br />
os meus terrores.<br />
No dia seguinte, um domingo alegre, Franco estava morto.<br />
O correspondente compareceu em pessoa para as indispensáveis<br />
providências. Transferiu-se o corpo para a capela, onde se erigia a essa. Aristarco<br />
chorou; mas o saimento foi modesto; não convinha ao colégio o aparato de um<br />
grande enterro, pregão talvez de insalubridade.<br />
Eu nada vi; quando subi ao salão verde novamente, estava tudo acabado.<br />
Alguns rapazes revolviam curiosos na gaveta do Franco o espólio da morte, uma<br />
escova de dentes esfiapada, tingida do carmim de um pó chinês, uma velha correia<br />
sem fivela, uma fotografia gorda de mulher despindo os seios, cartas à-toa e um<br />
maço considerável de boas notas, arranjadas ninguém sabe como, com assinaturas<br />
falsas de professores, e o nome de Franco, fraude de sucesso com que o pobre<br />
pretendia maravilhar o magistrado de Cuiabá.<br />
Desmanchando-se a cama, caiu dos lençóis um cartão; uma gravara, Santa<br />
Rosália! a minha padroeira desaparecida. Morrera talvez beijando-a, o pária.<br />
Pouco tempo depois, o <strong>Ateneu</strong> em festa.<br />
Preparava-se a solenidade da distribuição bienal dos prêmios. As<br />
benemerências andavam famintas de coroas. Suspenderam-se as aulas. Era preciso<br />
começar o preparativo com grande anterioridade, porque se projetava coisa nunca<br />
vista. Alguns discípulos tinham prevenido ao diretor, guardavam-lhe uma surpresa: a<br />
oferta de um busto de bronze! Aristarco predispunha-se para a surpresa com todas<br />
as veras da alma. Um basto! era a remuneração que chegava dos impagáveis<br />
esforços, a sonhada estátua. Vinha-lhe aos pedaços. Começavam pela cabeça; mais<br />
tarde, oferecer-lhe-iam o abdome, bela pança metálica e magnífico umbigo de bonzo<br />
gordo, saliente como um marro; depois, o prolongamento do corpo, aos roletes,<br />
gradualmente... Ah! quando lhe oferecessem as botas!... Depois, não seria preciso<br />
mais: o pedestal, ele mesmo oferecer-se-ia para adiantar. E parafusaria,<br />
acumuladas, as peças do seu orgulho, a pilha dos seus anelos, a estátua! surgida<br />
aos poucos da sinceridade vagarosa das oblações, como dificilmente a glória, do<br />
escrutínio demorado dos tempos.<br />
Devia ser uma solenidade sem memória nos fastos da pedagogia triunfante,<br />
um obelisco de despesas, de luxo, de esplendor, a cuja ponta, como a erupção de<br />
uma cratera, saltasse a surpresa, galardão das altas qualidades e pirraça suprema à<br />
concorrência dos rivais.<br />
Não havia sala no <strong>Ateneu</strong> que comportasse tão vasta festividade; nem o<br />
próprio lagar dos recreios abrigados. Resolveu-se cobrir de lona o pátio central,<br />
sobre grandes mastros plantados convenientemente. Uma barraca incalculável, a<br />
maior barraca que a imaginação humana tem concebido, que abrangesse na sombra<br />
quatro mil pessoas, com o pano emprestado aos toldos, ao velame de uma<br />
esquadra. Embaixo, as arquibancadas; reservando-se, no meio, espaçosa arena<br />
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