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Quando o pobre-diabo pôde tomar pé, manietado, amarrado de mil maneiras<br />
por cintas de couro, como as múmias no envoltório de tiras, acercou-se dele o<br />
Silvino e o agrediu covardemente com sermão de moral.<br />
Era criminoso, dizia-se. De que crime? Dentro de alguns momentos o colégio<br />
inteiro o sabia.<br />
O homem da faca era um dos jardineiros do <strong>Ateneu</strong>. Durante o jantar<br />
enfrentara-se de razões com um criado da casa de Aristarco e o matara. Havia<br />
algum tempo que disputavam os dois a primazia no coração de Ângela uma terrível<br />
pendência. O criado de Aristarco julgava-se na legítima posse desse escrínio de<br />
afetos, pela convivência ao lado da bela, consorciados maritalmente na intimidade<br />
dos alguidares, onde as mãos se confundiam como as louças ou na sociedade<br />
afetuosa do serviço dos aposentos do diretor e da senhora, permutando entre si<br />
dichotes açucarados, à flagelação dos tapetes.<br />
O jardineiro, patrício da camareira, dava por si a razão de nacionalidade, o<br />
fato de haverem chegado à América na mesma turma de imigrantes e uma autuação<br />
completa de juramentos idôneos da sedutora.<br />
Levados a tal aperto os nós da paixão não se desatam; cortam-se. O jardineiro<br />
cortou. Por mor azedume da situação, dizem que Ângela de parte a parte estimulava<br />
os adversários declarando a cada um por sua vez preferi-lo exclusivamente.<br />
Confiado o assassino aos urbanos, tornou-se a vitima o objeto das atenções.<br />
Era este um rapagão de trinta anos, pardo e simpático. O assassino era mais<br />
escuro, espécie de andaluz de touradas, baixo, sólido, grosso como um cepo de<br />
açougue.<br />
Apenas desapareceu o criminoso, o colégio inteiro assaltou a escada,<br />
desejosos de ver o assassinado À porta do refeitório, porém, Aristarco despachou:<br />
“não têm que ver!” Ao mesmo tempo a sineta importuna badalava chamando à<br />
forma. O Professor Bataillard, de branco, no cinturão vermelho, apareceu ao lado do<br />
diretor. Os rapazes morderam-se de raiva. E não houve nunca no mundo dois<br />
superiores mais odiados.<br />
Mas a teia da disciplina tinha malhas de maior largura. Alguns rapazes<br />
acharam meio de se esgueirar até à copa, e eu também com eles.<br />
Desde muito, andava querendo ver um cadáver, espetáculo real, de mãos<br />
contraídas, revirados beiços. As cartas iconográficas de parede deixavam-me<br />
impassível, com as estampas teóricas de cérebros a descoberto, globos oculares<br />
exorbitados, ventres golpeados em abas, mostrando vísceras, figuras humanas de<br />
pé, descansando a um quadril, movendo a supinação num jeito de complacência<br />
passiva, esfolados para que lhes víssemos as veias, modelos vivos da ciência em<br />
pose de suplício, constância de brâmane, como à espera que houvéssemos<br />
aprendido de cor a circunvolução do sangue, para vestir de novo a pele e os<br />
músculos deslocados. Não me bastava.<br />
Nos grandes armários havia melhor: peças anatômicas de massa, sangrando<br />
verniz vermelho, legitima hemorragia; corações enormes, latejantes, úmidos à vista,<br />
mas que se destampavam como terrinas; olhos de ciclope, arrancados, que pareciam<br />
viver ainda estranhamente a vida solitária e inútil da visão; mas olhos que se abriam<br />
como formas de projéteis de entrudo Mas eu queria a realidade. a morte ao vivo.<br />
Lembrava-me de ter visto um anjinho, entre velas no caixão agaloado,<br />
simples carinha amarelenta, sombreada de azul em nódoas dispersas, em mãos<br />
crispadas numa fita, cobrindo-se de flores a imobilidade do último sono. Vira ainda<br />
uma velha, na essa elevada, uma opulenta velha que morrera sem herdeiros. Ao<br />
redor, choravam muito as tochas pranto de cera cor de mel, inconsoláveis,<br />
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