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O Ateneu - Unama

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www.nead.unama.br<br />

Quando o pobre-diabo pôde tomar pé, manietado, amarrado de mil maneiras<br />

por cintas de couro, como as múmias no envoltório de tiras, acercou-se dele o<br />

Silvino e o agrediu covardemente com sermão de moral.<br />

Era criminoso, dizia-se. De que crime? Dentro de alguns momentos o colégio<br />

inteiro o sabia.<br />

O homem da faca era um dos jardineiros do <strong>Ateneu</strong>. Durante o jantar<br />

enfrentara-se de razões com um criado da casa de Aristarco e o matara. Havia<br />

algum tempo que disputavam os dois a primazia no coração de Ângela uma terrível<br />

pendência. O criado de Aristarco julgava-se na legítima posse desse escrínio de<br />

afetos, pela convivência ao lado da bela, consorciados maritalmente na intimidade<br />

dos alguidares, onde as mãos se confundiam como as louças ou na sociedade<br />

afetuosa do serviço dos aposentos do diretor e da senhora, permutando entre si<br />

dichotes açucarados, à flagelação dos tapetes.<br />

O jardineiro, patrício da camareira, dava por si a razão de nacionalidade, o<br />

fato de haverem chegado à América na mesma turma de imigrantes e uma autuação<br />

completa de juramentos idôneos da sedutora.<br />

Levados a tal aperto os nós da paixão não se desatam; cortam-se. O jardineiro<br />

cortou. Por mor azedume da situação, dizem que Ângela de parte a parte estimulava<br />

os adversários declarando a cada um por sua vez preferi-lo exclusivamente.<br />

Confiado o assassino aos urbanos, tornou-se a vitima o objeto das atenções.<br />

Era este um rapagão de trinta anos, pardo e simpático. O assassino era mais<br />

escuro, espécie de andaluz de touradas, baixo, sólido, grosso como um cepo de<br />

açougue.<br />

Apenas desapareceu o criminoso, o colégio inteiro assaltou a escada,<br />

desejosos de ver o assassinado À porta do refeitório, porém, Aristarco despachou:<br />

“não têm que ver!” Ao mesmo tempo a sineta importuna badalava chamando à<br />

forma. O Professor Bataillard, de branco, no cinturão vermelho, apareceu ao lado do<br />

diretor. Os rapazes morderam-se de raiva. E não houve nunca no mundo dois<br />

superiores mais odiados.<br />

Mas a teia da disciplina tinha malhas de maior largura. Alguns rapazes<br />

acharam meio de se esgueirar até à copa, e eu também com eles.<br />

Desde muito, andava querendo ver um cadáver, espetáculo real, de mãos<br />

contraídas, revirados beiços. As cartas iconográficas de parede deixavam-me<br />

impassível, com as estampas teóricas de cérebros a descoberto, globos oculares<br />

exorbitados, ventres golpeados em abas, mostrando vísceras, figuras humanas de<br />

pé, descansando a um quadril, movendo a supinação num jeito de complacência<br />

passiva, esfolados para que lhes víssemos as veias, modelos vivos da ciência em<br />

pose de suplício, constância de brâmane, como à espera que houvéssemos<br />

aprendido de cor a circunvolução do sangue, para vestir de novo a pele e os<br />

músculos deslocados. Não me bastava.<br />

Nos grandes armários havia melhor: peças anatômicas de massa, sangrando<br />

verniz vermelho, legitima hemorragia; corações enormes, latejantes, úmidos à vista,<br />

mas que se destampavam como terrinas; olhos de ciclope, arrancados, que pareciam<br />

viver ainda estranhamente a vida solitária e inútil da visão; mas olhos que se abriam<br />

como formas de projéteis de entrudo Mas eu queria a realidade. a morte ao vivo.<br />

Lembrava-me de ter visto um anjinho, entre velas no caixão agaloado,<br />

simples carinha amarelenta, sombreada de azul em nódoas dispersas, em mãos<br />

crispadas numa fita, cobrindo-se de flores a imobilidade do último sono. Vira ainda<br />

uma velha, na essa elevada, uma opulenta velha que morrera sem herdeiros. Ao<br />

redor, choravam muito as tochas pranto de cera cor de mel, inconsoláveis,<br />

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