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E, depois, reclamar títulos de utilidade às divagações graciosas de uma energia<br />
da alma, que significa em primeira manifestação a própria perpetuidade da espécie?!<br />
Além de inútil, a arte é imoral. A moral é o sistema artístico da harmonia<br />
transplantado para as relações de coletividade. Arte sui generis. Se é possível<br />
eficazmente o regime social das simetrias da justiça e da fraternidade, o futuro há de<br />
provar. Em todo caso é arte diferente e as artes não se combinam senão em<br />
produtos falsos, de convenção.<br />
Poema intencionalmente moral é o mesmo que estátua polícroma ou pintura<br />
em relevo. Apenas uma coisa possível, nada mais; há também quem faça flores,<br />
com asas de barata e pernas.<br />
A verdadeira arte, a arte natural, não conhece moralidade. Existe para o<br />
indivíduo sem atender à existência de outro indivíduo. Pode ser obscena na opinião<br />
da moralidade: Leda; pode ser cruel: Roma em chamas, que espetáculo!<br />
Basta que seja artística.<br />
Cruel, obscena, egoísta, imoral, indômita, eternamente selvagem, a arte é a<br />
superioridade humana — acima dos preceitos que se combatem, acima das religiões<br />
que passam, acima da ciência que se corrige; embriaga como a orgia e como o<br />
êxtase.<br />
E desdenha dos séculos efêmeros.<br />
À vista da tranqüilidade do auditório, subentende-se que não estavam<br />
presentes os dois heróis da primeira sessão solene: o Dr. Zé Lobo não viera, para<br />
não encontrar o Senador; o Senador Rubim não viera, para não encontrar o Dr. Zé<br />
Loto: impulsos equivalentes em sentido contrário anulam-se.<br />
Havia na sala diversos ouvintes que se distraiam de perseguir com atenção a<br />
galopada de hipógrifo, em que se elevava a eloqüência do orador.<br />
Bento Alves, um; outro o Malheiro, moreno, nervoso, carrancudo, o primeiro ginasta;<br />
outro, Barbalho.<br />
A preocupação de Bento Alves era uma injúria. Entre ele e Malheiro havia rixa<br />
de velha de emulação. Malheiro não lhe perdoava a culpa de ser bravo. Os próprios<br />
prodígios da força e agilidade, aplaudidos e proclamados pelo <strong>Ateneu</strong>, não davam<br />
para saciar a vaidade. De que valia ser forte, se era impossível a aplicação do seu<br />
esforço para afrouxar uma fibra à musculatura do Bento? Ah! não ser possível por<br />
sugestão desfiar uma a uma aquelas meadas de arame, reduzir a infantilidade débil<br />
aquela corpulência odiosa! Por que não iriam os desejos da inveja, como vampiros,<br />
sorver o sangue àquela força, a vida, gota a gota, àquele vigor de ferro?<br />
Bento Alves não dava mostras de perceber a rivalidade. Malheiro evitava-o.<br />
Era impossível conservar-se um momento perto do colega, que lhe não<br />
dessem ímpetos de assaltá-lo.<br />
A façanha da prisão efetuada pelo rival definitivamente retirava-lhe a glória de<br />
valoroso único. Malheiro entrou em melancolia trancada. O rosto moreno amorenouse<br />
mais; a animação de um brilho não lhe chegava à janela do olhar; o sorriso nos<br />
lábios não abria a porta. Dir-se-ia um frontispício de luto.<br />
Ficou a ruminar o projeto de um encontro.<br />
O meu bom amigo, exagerado em mostrar-se melhor, sempre receoso de<br />
importunar-me com uma manifestação mais viva, inventava cada dia nova surpresa<br />
e agrado. Chegara ao excesso das flores. A principio, pétalas de magnólia seca com<br />
uma data e uma assinatura, que eu encontrava entre folhas de compêndio. As<br />
pétalas começaram a aparecer mais frescas e mais vezes; vieram as flores<br />
completas. Um dia, abrindo pela manhã a estante numerada do salão do estudo,<br />
achei a imprudência de um ramalhete. Santa Rosália da minha parte nunca tivera<br />
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