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O Ateneu - Unama

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www.nead.unama.br<br />

achava aquilo justo e baixava a cabeça. A opinião é um adversário infernal que<br />

conta com a cumplicidade, enfim, da própria vitima.<br />

Com exceção dos privilegiados, os vigilantes, os amigos do peito, os que<br />

dormiam à sombra de uma reputação habilmente arranjada por um justo conchavo<br />

de trabalho e cativante doçura, havia para todos uma expectativa de terror antes da<br />

leitura das notas. O livro era um mistério.<br />

À medida que se desenrolava a gazetilha, as ânsias iam serenando. Os<br />

vitimados fugiam, acabrunhados de vergonha, oprimidos sob o castigo incalculável<br />

de trezentas carinhas de ironia superior ou compaixão de ultraje. Passavam junto de<br />

Aristarco ao sair para a tarefa penal de escrita. O diretor, arrepiando uma das<br />

cóleras olímpicas que de um momento para outro sabia fabricar, descarregava com<br />

o livro às costas do condenado, agravante de injúria e escárnio à pena de<br />

difamação. O desgraçado sumia-se no corredor, cambaleando.<br />

Quando a coisa não dava para cóleras, Aristarco limitava-se a sublinhar com<br />

uma ponderação qualquer a sentença catedrática; ora uma exclamativa de espanto,<br />

ora uma ameaça, ora um insulto vivo e breve, ora um conselho amortalhado em<br />

fúnebre dó.<br />

Às vezes enlaçava com dois dedos o menino pela nuca e o voltava, fremente<br />

e submisso, para o colégio atento, oferecendo-o às bofetadas da opinião: “Vejam<br />

esta cara!...”<br />

A criança, lívida, fechava os olhos.<br />

Em compensação, não havia expressa mente punições corporais.<br />

O Professor Mânlio, sempre considerando a recomendação, polpou-me<br />

longamente ao castigo formidável das partes. Perdeu por fim a paciência e fulminoume.<br />

No dia seguinte ao almoço, amargava eu, sem açúcar que me bastasse, o<br />

resto do café quinado da expectativa (porque Mânlio tinha-me prevenido), quando<br />

ouvi Aristarco, alargando pausas dramáticas de comoção, ler, claro, severo: “O Sr.<br />

Sérgio tem degenerado...”<br />

Eu havia figurado já na gazetilha do <strong>Ateneu</strong> com algumas notas de louvor;<br />

guardou-se a sensação para a nota má. O diretor olhou-me sombrio.<br />

No fundo do silêncio comum do refeitório, cavou-se um silêncio mais fundo, como<br />

um poço depois de um abismo. Senti-me devorado por este silêncio hiante. A<br />

congregação justiceira dos colegas voltou-se para mim, contra mim. Os vizinhos de<br />

lagar à mesa afastaram-se dos dois lados, para que eu melhor fosse visto. De longe,<br />

da copa, chegava um ruído argentino, horrível, de colheres à lavagem; os<br />

tamarineiros no parque ciciavam ao vento.<br />

Aristarco foi clemente. Era a primeira vez, perdoou.<br />

A pior hipótese do sistema do pelourinho era quando o estudante ganhava o<br />

calo da habitualidade, um assassinato do pudor, como sucedia com o Franco.<br />

Dias depois da terrível nota, voltava eu a figurar com outra má, menos<br />

filosoficamente redigida, porém agravada de reincidência. Aristarco não perdoou mais.<br />

Houve ainda terceira, quarta, por diante. Cada uma delas doía-me intensamente;<br />

contudo não me indignavam. Aquele sofrimento eu o desejava, na humildade devota<br />

da minha disposição atual. Chorava à noite, em segredo, no dormitório; mas colhia as<br />

lágrimas numa taça, como fazem os mártires das estampas bentas, e oferecia ao céu,<br />

em remissão dos meus pobres pecados, com as notas más boiando.<br />

No recreio, andava só e calado como um monge. Depois do Sanches não me<br />

aproximava de nenhum colega, senão incidentemente, por palavras indispensáveis.<br />

Rebelo tentou atrair-me; eu desviava. Sanches, rancoroso, perseguia-me como um<br />

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