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de lençóis, firmei forte as barras da grade e fui dormir. Chovia a potes; tanto melhor:<br />
a injúria, que o sangue não lava, bem pode lavar uma ducha de enxurro.<br />
Estava vingado!<br />
No outro dia apareceu o gorducho entanguido, encatarrado, furibundo, em<br />
chinelos sem meias, calças, camisas de náufrago, miserando, cercado pelo espanto<br />
de todos e pela galhofa.<br />
Passara a noite sob a janela pedindo misericórdia ao sarrafo impassível, toda<br />
a noite, inundado pelo aguaceiro, até que, ao romper do dia, Aristarco o foi achar no<br />
lastimoso estado.<br />
A noiva não viu, que acordava tarde. O sogro atinou espertamente com a<br />
aventura. Fez-se de esquerdo.<br />
“Ora o rapaz!...” exclamou com uma satisfação muito íntima.<br />
E estranhou apenas que o bom do genro se deixasse pegar como um lorpa.<br />
CAPÍTULO XI<br />
O Dr. Cláudio encetou uma série de preleções aos sábados, à imitação das que<br />
fazia às quintas Aristarco sobre lugares-comuns de moralidade. Filosofia, ciência,<br />
literatura, economia política, pedagogia, biografia, até mesmo política e higiene, tudo<br />
era assunto; interessantíssimas, sem pesadas minuciosidades. Depois da astronomia<br />
do diretor, nenhuma curiosidade me valera tão bons minutos de atenção.<br />
Narrava-nos a vida. As festas plutonianas do movimento, da ignição; a<br />
gênese das rochas, fecundidade infernal do incêndio primitivo, do granito, do pórfiro,<br />
primogênitos do fogo; o grande sono milenário dos sedimentos, perturbado de<br />
convulsões titânicas.<br />
Falava do antracito e da hulha, o luto feito pedra, lembrança trágica de muitas<br />
eras orgulhosas do planeta, monumento da pré-história das árvores, negro, que a<br />
indústria dos homens devasta. Descrevia a escadaria dos terrenos, onde existe a<br />
pegada impressa do gênio das metamorfoses, subindo, desde a vegetação florestal<br />
dos fetos até ao homem quaternário. Falava-nos de Cuvier e da procissão dos<br />
monstros ressurgidos, caminho dos museus, o megatério potente, tardo, balançando<br />
as passadas, sujo, descamando saibro e as concreções secas do lobo diluviano,<br />
solene, cônscio da carga de séculos que transporta.<br />
Vinha depois a aluvião moderna das zonas formadas, o solo fecundo,<br />
lavradio. E o mestre passava a descrever a vida na umidade, na semente, a<br />
evolução da floresta, o gozo universal da clorofila na luz. Falava-nos do cerne, o<br />
generoso madeiro, o tronco, que sangra em Dante, que sustenta nos mares o<br />
comércio, Netuno inglês do tridente de ouro. Falava-nos da poesia ignorada da<br />
vegetação marinha nos abismos, e da giesta, isolada nas altas neves, flor do ermo, a<br />
degradada eterna do inacessível.<br />
Depois, a história dos brutos, os grandes bramidos de macho nas regiões<br />
virgens, os dramas do egoísmo na selva, do egoísmo rude da força que pode, cego,<br />
formidável, sagrado como a fatalidade. E corria inteira a série das classificações,<br />
mostrando a vida no infinitésimo, a microbia invisível, onipotência do número,<br />
sociedade inconsciente da mônada, solidária para a morte e para as reconstruções<br />
imperecíveis da Terra.<br />
O homem finalmente — ventre, coração e cérebro, política, poemas, critério; a<br />
alma, universo de universo, imagem de Deus, refletor imenso, antropocêntrico, do<br />
dia, das cores, que o Sol inflama, que o Sol não sente.<br />
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