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grande dúvida de alguns<br />
amigos meus é se a modernização<br />
do Judaísmo<br />
não levará ao seu desaparecimento.<br />
Acreditam<br />
que para conservá-lo, não<br />
podemos alterá-lo e nem aceitar influências<br />
do meio em que vivemos. O<br />
que seria correto?<br />
O judaísmo sobreviveu por dois<br />
milênios de Diáspora e supõe-se que<br />
exista há três ou quatro mil anos. Alguns<br />
apologistas afirmariam que se<br />
trata de uma capacidade judaica inata;<br />
até mesmo, de uma predestinação<br />
divina que gerou esta superioridade.<br />
Pessoalmente, não creio e nunca acreditei<br />
em superioridade de nenhum<br />
tipo. O último que pregou tais diferenças<br />
entre os seres humanos matou<br />
seis milhões e meio de judeus e muitos<br />
milhões de não judeus, a maioria<br />
vítimas inocentes de um ideal de superioridade.<br />
Acredito, sim, que há inúmeras<br />
razões relativas e nenhuma resposta<br />
absoluta a essa questão. Entre<br />
as diversas razões e opiniões válidas,<br />
gostaria de expor aquela que considero<br />
a mais importante: a capacidade de<br />
se transformar e evoluir nas suas formas,<br />
sem alterar o seu conteúdo global<br />
e nem a sua essência, que seria uma<br />
parte fundamental desse enigma da sobrevivência<br />
do Judaísmo. Em todos os<br />
períodos da História, os judeus foram<br />
defrontados com adversários de todos<br />
os tipos. Alguns violentos<br />
como Haman, Amalek e<br />
Hitler; outros que seduziram<br />
os judeus com os<br />
valores de outras culturas.<br />
É o caso do helenismo,<br />
uma cultura de inegável<br />
valor e de profundos<br />
e avançados saberes.<br />
A tradição judaica<br />
tenta às vezes resumir o<br />
encontro das duas culturas<br />
(judaica e helenista),<br />
na luta dos macabeus,<br />
celebrada na festa de Chanuká, como<br />
sendo a resistência e a vitória do Judaísmo<br />
sobre o Helenismo. Isso é impreciso.<br />
Os macabeus venceram de<br />
maneira parcial e lenta os reis seleucidas<br />
da Síria, helenizados e que tentavam<br />
impor a sua cultura aos seus<br />
súditos judeus. Os reis macabeus (ou<br />
hashmoneus) vencem e expulsam os<br />
seleucidas, mas em poucas décadas<br />
seguem influenciados pela cultura<br />
contra a qual lutaram. Um contato<br />
tenso e repleto de contratempos, mas<br />
que ao final resultou enriquecedor<br />
VISÃO JUDAICA • julho de 2003 • Av • 5763<br />
Intolerância X evolução<br />
Sérgio Feldman *<br />
Baal Shem Tov<br />
para as duas culturas.<br />
O melhor exemplo é o que ocorreu<br />
com os judeus de Alexandria. Os conflitos<br />
entre judeus e egípcios helenizados<br />
foram constantes. Houve até<br />
choques armados e mortes. Em outro<br />
ângulo da questão tivemos Fílon de<br />
Alexandria, filósofo e exegeta judeu.<br />
Conhecia profundamente a Torá e fez<br />
uma tentativa de conciliar as idéias<br />
metafísicas de Platão com a Torá e os<br />
Profetas. Inúmeros sábios judeus e cristãos<br />
farão o mesmo, a partir de Fílon,<br />
no final do Mundo Antigo e por toda a<br />
Idade Média. Haveria lógica e fundamentos<br />
filosóficos na Lei divina?<br />
Essa capacidade de síntese dialética<br />
entre duas tendências opostas,<br />
não foi feita com facilidade. Ocorreram<br />
choques e dificuldades. A intolerância<br />
e a tentativa de destruir o<br />
Judaísmo não provinha só de inimigos<br />
externos: os nossos radicais e<br />
intolerantes exerciam uma força centrífuga<br />
que objetivava que o judaísmo<br />
não sofresse influências do mundo<br />
externo. È irônico a gente ver algumas<br />
pessoas que se declaram judias,<br />
nos dias de hoje, argumentando<br />
sobre a imutabilidade e defendendo<br />
um monolitismo arcaico e retrógado<br />
que é um antijudaísmo.<br />
O radicalismo e a intolerância nunca<br />
nos ajudou e nem fez evoluir. Geralmente<br />
foi prejudicial. O caminho do<br />
diálogo com o mundo não judaico,<br />
através de sínteses que não jogassem<br />
os valores básicos e a essência<br />
judaica, foi o segredo<br />
vital da sobrevivência<br />
judaica.<br />
Um exemplo inicial:<br />
a revolta contra Roma<br />
em 66-70 d.e.C. os romanos<br />
estavam em vias<br />
de destruir Jerusalém e<br />
são auxiliados pelas lutas<br />
fraticidas entre zelotes,<br />
pacifistas, sicários e<br />
outros dissidentes. O já<br />
superado, mas sempre<br />
utilizado Dubnow diz deste episódio:<br />
“em vez de se aliarem todos esses<br />
partidos em uma luta contra o inimigo<br />
comum, travaram um combate violento<br />
entre si mesmos...” (Dubnow<br />
Historia <strong>Judaica</strong>, 1948, p. 232).<br />
O segundo exemplo, encontrei em<br />
1985 durante as celebrações do Ano<br />
Internacional da Unesco. O tema foi<br />
Maimônides, célebre rabino, médico e<br />
filósofo. Um gênio da humanidade e<br />
um judeu militante e respeitado até<br />
hoje. Duas orações do Sidur (livro de<br />
orações) têm sua autoria. O seu saber<br />
era enciclopédico: Talmud, Medicina,<br />
Astrologia e muito mais. Escreveu “Responsas”<br />
(correspondência rabínica)<br />
para inúmeras comunidades judaicas.<br />
Muitos de seus contemporâneos consideravam-no<br />
um herético. Por que? Por<br />
ter feito uma síntese harmoniosa entre<br />
o Judaísmo e a Filosofia<br />
grega (mundo externo!).<br />
Ele seguia a senda de<br />
grandes rabinos como Saadia<br />
Gaon e Fílon. O pior<br />
sobreveio alguns anos após<br />
sua morte, quando estalou<br />
uma violenta crise no sul<br />
da França em virtude da<br />
propagação das idéias de<br />
Maimônides e outros sábios<br />
judeus que eram considerados<br />
“livres pensadores”.<br />
Numa absurda “caça às bruxas”<br />
alguns rabinos tradicionalistas liderados<br />
pelo rabino Salomão de Montpellier,<br />
denunciaram os livros de<br />
Maimônides aos frades dominicanos,<br />
responsáveis pela Inquisição que na<br />
época perseguia os hereges albigenses,<br />
no sul da França. Como a Inquisição<br />
não cuidava de judeus, mas sim<br />
de hereges, os opositores de Maimônides<br />
disseram que ele era um herético<br />
judeu muito perigoso. Afirmaram<br />
que se os dominicanos exterminavam<br />
os hereges cristãos, deveriam exterminar<br />
“também aos nossos, queimando-lhes<br />
os livros daninhos” (Dubnow<br />
Historia <strong>Judaica</strong>, 1948, p. 347). Com<br />
o apoio de tão renomados rabinos,<br />
houve busca, coleta e queima publica<br />
do “Guia dos Perplexos” e do “Livro<br />
da Ciência” em Montpellier em<br />
1232 e mais tarde em Paris. Uma horrenda<br />
aliança entre rabinos e inquisidores<br />
contra as obras do genial Maimônides.<br />
Tudo em nome da intolerância<br />
e da crença que há apenas uma<br />
única verdade: nada mais anti-judaico.<br />
Na analise do autor Hans Borger,<br />
essa queima de livros foi inspiradora<br />
de outra: “Não tardou e, em 1242, já<br />
não era mais Maimônides, mas o próprio<br />
Talmud que era condenado à morte”<br />
(Borger, Uma história do povo<br />
judeu, 1999, p. 400). Sob a ridícula<br />
acusação de blasfêmias contra Cristo,<br />
o Talmud foi julgado e condenado:<br />
grandes fogueiras foram ateadas<br />
em pilhas de livros. Um “remake” será<br />
feito de maneira tão trágica por Hitler.<br />
O modelo e a inspiração foi a<br />
intolerância anti Maimônides.<br />
O terceiro e último caso é a intolerância<br />
dos grandes sábios judeus<br />
com o rabi Israel ben Eliezer, mais<br />
conhecido como Baal Shem Tov, o<br />
Maimônides<br />
fundador do Chassidismo. Um grande<br />
e inspirado rabino, repleto de uma<br />
sensibilidade ímpar e da compreensão<br />
das necessidades de seus irmãos<br />
judeus da Polônia, realizando uma sutil<br />
transformação da vida judaica. O<br />
que eu chamaria de maneira simplista:<br />
uma “popularização e<br />
participação popular” dos<br />
judeus empobrecidos na<br />
cultura e na religião. A<br />
miséria que grassava nas<br />
aldeias judaicas após os<br />
massacres dos cossacos<br />
ocorridos na metade do<br />
séc. XVII (c.1648/1650)<br />
deixara uma amarga herança:<br />
um vazio cultural<br />
com altos índices de analfabetismo<br />
e ignorância.<br />
As massas miseráveis da Europa Oriental<br />
não podiam mais estudar o dia<br />
todos as Escrituras e os comentários<br />
talmúdicos e rabínicos. Baal Shem Tov<br />
propôs uma alternativa real a isto:<br />
os líderes chassídicos, denominados<br />
tsadikim intermediavam entre seus seguidores<br />
e todo este saber, tratando<br />
de fazê-lo acessível às massas empobrecidas<br />
e ignorantes. A música e a<br />
dança ajudavam o fiel na tentativa<br />
de aproximação a D-us; a alegria era<br />
indispensável; as parábolas chassídicas<br />
passavam de maneira simples, os<br />
valores e o saber judaico. Os rabinos<br />
eruditos liderados pelo Gaon de Vilna<br />
ficaram indignados: era uma vulgarização<br />
do Judaísmo, uma heresia,<br />
uma absurda simplificação da cultura<br />
e da religião. Os chassidim foram<br />
perseguidos e anatemizados.<br />
Hoje o que vemos? Muitos defendem<br />
visões monolíticas de uma verdade<br />
única para o Judaísmo e para alguém<br />
ser judeu. Negam posturas mais<br />
modernas para entender e praticar o<br />
Judaísmo. Optam por excluir a mulher<br />
de participação igualitária nos serviços<br />
religiosos; por manter relativa rigidez<br />
de tradições negando a modernidade;<br />
por tentar manter uma espécie<br />
de gueto cultural e isolando o<br />
Judaísmo do mundo. A sobrevivência<br />
do Judaísmo não<br />
se deve à rigidez e ao fa-<br />
natismo, mas sim a capacidade<br />
de seguir<br />
com seus valores e<br />
com sua essência,<br />
mas sabendo modificar<br />
sua forma, adequando-se<br />
às novas<br />
realidades: como Fílon,<br />
Maimônides e Baal Shem<br />
Tov. O debate está aberto.<br />
* Sérgio Feldman é<br />
professor adjunto de<br />
História Antiga do<br />
Curso de História da<br />
Universidade Tuiuti do<br />
Paraná e doutorando<br />
em História<br />
pela UFPR.<br />
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