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RAFAEL ZANATA ALBERTINI<br />

SUBJETIVIDADE E ALTERIDADE<br />

NA “HERMENÊUTICA DO SI” DE PAUL RICOEUR<br />

Uma abordag<strong>em</strong> ética<br />

UNIVERSIDADE CATÓLICA DOM BOSCO<br />

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS<br />

CURSO DE FILOSOFIA<br />

CAMPO GRANDE / MS<br />

NOV. 2005


RAFAEL ZANATA ALBERTINI<br />

SUBJETIVIDADE E ALTERIDADE<br />

NA “HERMENÊUTICA DO SI” DE PAUL RICOEUR<br />

Uma abordag<strong>em</strong> ética<br />

Monografia final apresentada à banca<br />

examinadora da Universidade Católica<br />

Dom Bosco, como exigência para<br />

obtenção do título de Licenciado <strong>em</strong><br />

Filosofia, sob a orientação do Prof. Dr.<br />

Frei Márcio Luis Costa.<br />

UNIVERSIDADE CATÓLICA DOM BOSCO<br />

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS<br />

CURSO DE FILOSOFIA<br />

CAMPO GRANDE / MS<br />

NOV. 2005<br />

1


BANCA EXAMINADORA<br />

___________________________________________<br />

Prof. Dr. Frei Márcio Luis Costa<br />

Orientador<br />

___________________________________________<br />

Prof. Msc. Pe. Luís Marconetti<br />

Examinador<br />

___________________________________________<br />

Prof. Dr. Jos<strong>em</strong>ar Campos Maciel<br />

Examinador<br />

2


Creio na eficiência da reflexão, pois creio<br />

que a grandeza do hom<strong>em</strong> está na dialética<br />

do trabalho e da palavra; o dizer e o fazer,<br />

o significar e o agir estão por d<strong>em</strong>ais<br />

misturados para que se possa estabelecer<br />

oposição profunda e duradoura entre<br />

theoria e praxis. A palavra é meu reino e<br />

disso não me envergonho; ou, melhor,<br />

envergonho-me na medida <strong>em</strong> que minha<br />

palavra participa da culpabilidade de uma<br />

sociedade injusta, que explora o trabalho.<br />

3<br />

Paul Ricoeur (1913 -✞2005)


À minha família, sobretudo a meus pais,<br />

Fernando César e Mary Terezinha, b<strong>em</strong><br />

como a meus irmãos salesianos.<br />

A Paul Ricoeur, in m<strong>em</strong>oriam.<br />

4


AGRADECIMENTOS<br />

Como este trabalho não é fruto de esforço solitário, mas resultado da união entre<br />

<strong>em</strong>penho pessoal e o auxílio de outras pessoas, é a elas que quero expressar minha gratidão.<br />

Primeiramente, dirijo-a <strong>em</strong> seu grau mais sublime a Deus, que me conferiu gratuitamente a<br />

existência e tantos outros dons.<br />

Agradeço a meus irmãos salesianos, sobretudo ao Pe. Hermenegildo Conceição,<br />

Msc. Pe. Luís Marconetti e Me. Ricardo Macari, meus formadores na comunidade Paulo VI,<br />

pelo fraterno acompanhamento e incentivo nesta pesquisa – ao Pe. Luís, notável admirador de<br />

Ricoeur, sou muito grato pelo <strong>em</strong>préstimo de Sè come un altro e por seus diálogos filosóficos;<br />

ao Pe. Afonso de Castro, inspetor da Missão Salesiana de Mato Grosso, pelas suas<br />

orientações; aos meus irmãos formandos, principalmente os de minha turma, pela presença,<br />

amizade e amparo constantes.<br />

Devo especial gratidão ao Prof. Dr. Frei Márcio Luís Costa que, além de destacarse<br />

<strong>em</strong> seu magistério e garantir uma orientação competente a essa pesquisa, contribuiu com a<br />

criação de uma relação de liberdade, deu-me seu voto de confiança e muitos conselhos sábios<br />

acerca da vida.<br />

Recordo ainda a generosa participação do Prof. Jos<strong>em</strong>ar Campos Maciel na banca<br />

examinadora; o auxílio da Prof.ª Edilza Goulart, executora da correção ortográfica, e de meu<br />

pai, que colaborou na aquisição de um dos livros usados neste trabalho.<br />

5


ALBERTINI, Rafael Zanata. Subjetividade e alteridade na “hermenêutica do si” de Paul<br />

Ricoeur. Uma abordag<strong>em</strong> ética. Monografia como trabalho de conclusão de curso. UCDB.<br />

Campo Grande, 2005.<br />

RESUMO<br />

O filósofo francês Paul Ricoeur (1913-2005) propõe-se a construir uma hermenêutica<br />

fenomenológica de caráter reflexivo, cujo principal foco é a existência humana – a ser<br />

compreendida por meio dos signos nos quais ela se objetiva, como, por ex<strong>em</strong>plo, nos textos e<br />

nas ações. A presente pesquisa dedica-se a abordar eticamente a relação entre <strong>subjetividade</strong> e<br />

alteridade na chamada “hermenêutica do si”, que Ricoeur desenvolve na sua última e maior<br />

obra, O si-mesmo como um outro (1990). Neste trabalho monográfico, o primeiro capítulo faz<br />

uma retomada histórica da Hermenêutica com seus principais autores e períodos, desde os<br />

filósofos gregos até o advento da proposta de Ricoeur, cuja vida e obra também são<br />

abordados. No capítulo posterior, são abordados os el<strong>em</strong>entos característicos da hermenêutica<br />

<strong>ricoeur</strong>iana, com as principais categorias e métodos, que fornec<strong>em</strong> uma visão panorâmica do<br />

pensamento do autor. Por fim, o terceiro capítulo trata do escopo principal desta pesquisa, que<br />

é explicitar o momento ético presente da hermenêutica do si, b<strong>em</strong> como fornece os principais<br />

el<strong>em</strong>entos da ontologia implicada nos t<strong>em</strong>as da obra. Nesse último capítulo, são apresentadas<br />

a proposta ética <strong>ricoeur</strong>iana e a relação da <strong>subjetividade</strong> com a alteridade. Há ainda, no<br />

apêndice do trabalho, uma tentativa de ligar o pensamento do autor à prática do<br />

aconselhamento filosófico.<br />

Palavras-chave: hermenêutica do si, ética, alteridade.<br />

6


SUMÁRIO<br />

RESUMO<br />

INTRODUÇÃO...................................................................................................................... 09<br />

1 – HISTÓRIA DA HERMENÊUTICA............................................................................... 12<br />

1.1 – PRECURSORES DA HERMENÊUTICA RICOEURIANA.................................... 13<br />

1.1.1 – A orig<strong>em</strong> clássica da hermenêutica................................................................... 13<br />

1.1.2 – A exegese bíblica.............................................................................................. 14<br />

1.1.3 – Hermenêuticas universais do Renascimento e da Modernidade...................... 17<br />

1.1.4 – Hermenêutica pietista........................................................................................ 20<br />

1.1.5 – Hermenêutica romântica................................................................................... 20<br />

1.1.6 – Hermenêutica historicista.................................................................................. 22<br />

1.1.7 – Hermenêutica no centro da reflexão filosófica – ontologia e linguag<strong>em</strong>..........25<br />

1.1.8 – “Hermenêutica metódica”................................................................................. 31<br />

1.2 – PAUL RICOEUR E SUA INSERÇÃO NA HISTÓRIA HERMENÊUTICA.......... 32<br />

1.2.1 – Traços biográficos............................................................................................. 32<br />

1.2.2 – Principais obras................................................................................................. 35<br />

1.2.3 – A posição de Ricoeur na tradição hermenêutica............................................... 36<br />

2 – ELEMENTOS CARACTERÍSTICOS DA HERMENÊUTICA RICOEURIANA.... 39<br />

2.1 – A “VIA LONGA” E SUA PROPOSTA DE CÍRCULO HERMENÊUTICO........... 40<br />

2.1.1 – A proposta de círculo hermenêutico................................................................. 41<br />

2.1.2 – Hermenêutica e ontologia................................................................................. 42<br />

2.2 – HERMENÊUTICA FENOMENOLÓGICA.............................................................. 45<br />

2.2.1 – Momento fenomenológico................................................................................ 45<br />

2.2.2 – Momento hermenêutico.................................................................................... 47<br />

2.3 – A FILOSOFIA REFLEXIVA.................................................................................... 50<br />

2.3.1 – A passag<strong>em</strong> dos símbolos à reflexão................................................................ 52<br />

2.3.2 – Símbolo e metáfora........................................................................................... 54<br />

2.4 – HERMENÊUTICA E LINGUAGEM........................................................................55<br />

7


2.4.1 – A linguag<strong>em</strong> como discurso.............................................................................. 55<br />

2.4.2 – Fala e escrita...................................................................................................... 59<br />

2.4.3 – Teoria do texto.................................................................................................. 62<br />

2.4.3.1 – Compreensão e explicação no ato da leitura........................................... 63<br />

2.4.3.2 – Da conjectura à validação....................................................................... 64<br />

2.4.3.3 – Aproximação e distanciação.................................................................... 66<br />

2.3.4.4 – A leitura do texto e a compreensão do sujeito......................................... 68<br />

3 – A HERMENÊUTICA DO SI E SUA PROPOSTA ÉTICA.......................................... 70<br />

3.1 – CARACTERIZAÇÃO DA HERMENÊTICA DO SI................................................71<br />

3.1.1 – Programa da hermenêutica do si....................................................................... 71<br />

3.1.2 – Contribuições da tríade descrever-narrar-prescrever........................................ 73<br />

3.2 – A PROPOSTA ÉTICA DA HERMENÊUTICA DO SI............................................ 76<br />

3.2.1 – A perspectiva ética............................................................................................ 80<br />

3.2.1.1 – A estima de si........................................................................................... 80<br />

3.2.1.2 – A solicitude............................................................................................... 83<br />

3.2.1.3 – O senso de justiça.....................................................................................86<br />

3.2.2 – A norma moral.................................................................................................. 87<br />

3.2.2.1 – O respeito de si.........................................................................................87<br />

3.2.2.2 – O respeito às pessoas............................................................................... 89<br />

3.2.2.3 – Os princípios de justiça............................................................................ 91<br />

3.2.3 – Sabedoria prática como convicção.................................................................... 93<br />

3.2.3.1 – Instituição e conflito: da Sittlichkeit à phronésis..................................... 95<br />

3.2.3.2 – Respeito e conflito: do respeito à lei à solicitude.................................... 98<br />

3.2.3.3 – Autonomia e conflito: argumentação e convicção................................. 100<br />

3.3 – HORIZONTE ONTOLÓGICO DA HERMENÊUTICA DO SI............................. 104<br />

3.3.1 – Atestação do si................................................................................................ 105<br />

3.3.2 – Ser poderoso e efetivo..................................................................................... 105<br />

3.3.3 – A poliss<strong>em</strong>ia do Outro.................................................................................... 106<br />

3.3.3.1 – Alteridade da carne................................................................................ 107<br />

3.3.3.2 – Alteridade do diverso de si.................................................................... 108<br />

3.3.3.3 – Alteridade da consciência: o ser-imposto.............................................. 109<br />

CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................... 112<br />

REFERÊNCIAS.................................................................................................................... 115<br />

APÊNDICE............................................................................................................................ 120<br />

8


INTRODUÇÃO<br />

Penso que a melhor forma de apresentar esta pesquisa seja retomar os el<strong>em</strong>entos<br />

mais relevantes contidos no próprio título e, para tanto, considero válida uma composição<br />

metafórica assaz simples. Primeiramente, estabeleço a ligação entre “<strong>subjetividade</strong>” e<br />

“alteridade” como a “linha de chegada” deste trabalho, por assumir<strong>em</strong> a posição de termos<br />

principais a ser<strong>em</strong> explicitados. Para alcançá-la, entretanto, necessito escolher uma “direção”,<br />

que é a Hermenêutica filosófica, dentro da qual palmilho o “caminho” da chamada<br />

“hermenêutica do si”. Nela, deixo-me conduzir por um “guia”, Paul Ricoeur, munido de um<br />

importante “roteiro de viag<strong>em</strong>”, que é seu livro O si-mesmo como um outro. Nessa<br />

caminhada, outrossim, tenho uma atenção maior por ocasião da passag<strong>em</strong> por um certo<br />

“trecho”, que é aquele referente à proposta ético-moral <strong>ricoeur</strong>iana.<br />

Com esse o roteiro – pelo qual o leitor também é convidado a seguir – delineia-se<br />

o objetivo principal desse trabalho monográfico. Em torno dele, ad<strong>em</strong>ais, outros objetivos se<br />

faz<strong>em</strong> presentes, como: explicitar a vida, a obra e o caminho filosófico de Paul Ricoeur,<br />

particularmente a sua “hermenêutica do si”; esclarecer e relacionar os principais t<strong>em</strong>as<br />

apresentados <strong>em</strong> O si-mesmo como um outro, sobretudo aqueles alusivos à <strong>subjetividade</strong>alteridade;<br />

desenvolver a explicação do momento ético-moral, b<strong>em</strong> como explicitar a<br />

ontologia a que chega o pensamento do autor. A metodologia <strong>em</strong>pregada para tanto confere a<br />

esta pesquisa um caráter bibliográfico e explicativo.<br />

Vários motivos confer<strong>em</strong> caráter de relevância a essa pesquisa. Primeiramente,<br />

<strong>em</strong> âmbito social, uma tal abordag<strong>em</strong> da Hermenêutica do si de Paul Ricoeur contribui<br />

sobr<strong>em</strong>aneira porque propõe a abertura à alteridade, t<strong>em</strong>a ético necessário num contexto<br />

cont<strong>em</strong>porâneo tão marcado pelo individualismo. Tal abertura é ainda mais importante porque<br />

9


excede a relação face-a-face, para considerar o outro que é desconhecido – o que adentra a<br />

esfera da Política.<br />

Quanto ao valor perante a Acad<strong>em</strong>ia, essa pesquisa revela-se razoável a partir do<br />

reconhecimento da pessoa de Ricoeur como um dos maiores filósofos cont<strong>em</strong>porâneos e,<br />

juntamente com Gadamer, o mais importante nome da Hermenêutica filosófica. Essa razão é<br />

corroborada, ainda, pela sua proposta epist<strong>em</strong>ológica da “via longa”: um caminho<br />

hermenêutico que supõe a conciliação entre a Filosofia e as Ciências, num diálogo aberto com<br />

as várias tradições filosóficas. Há de se notar ainda que, não obstante o fato de ser protestante,<br />

Ricoeur não confunde o saber filosófico com aquele teológico, mas lhes conserva a<br />

autonomia.<br />

O gosto pessoal pelas áreas da Fenomenologia e Hermenêutica, b<strong>em</strong> como pelo<br />

traço personalista derivado de Mornier, justifica, no nível pessoal, porque optei por esse t<strong>em</strong>a.<br />

Nesse horizonte, a t<strong>em</strong>ática da alteridade desperta particular interesse <strong>em</strong> mim. O<br />

qualificativo de cristão atribuído a Ricoeur também compõe o conjunto dos motivos dessa<br />

pesquisa, porquanto ilustra que é possível raciocinar filosoficamente de forma elevada s<strong>em</strong><br />

promover confusões com o campo teológico, b<strong>em</strong> como s<strong>em</strong> o desprezar. Uma outra razão a<br />

ser enfatizada é que, pelo fato de o pensamento <strong>ricoeur</strong>iano ser criterioso e exigente, instiga<br />

qu<strong>em</strong> se aventura a conhecê-lo a desenvolver a capacidade de fazer raciocínios longos,<br />

complexos e sist<strong>em</strong>atizados.<br />

Convém, agora, tratar um pouco das partes desse trabalho. No primeiro capítulo,<br />

apresento um esboço da história da Hermenêutica, desde suas incipientes manifestações entre<br />

os gregos até a assunção de um caráter mais filosófico, a partir do século XIX. Estão<br />

presentes aí os principais autores com suas respectivas investigações, t<strong>em</strong>as e métodos. A<br />

justificativa dessa abordag<strong>em</strong> é permitir que o leitor compreenda a rica tradição que precedeu<br />

Paul Ricoeur, cujos traços biobibliográficos, b<strong>em</strong> como sua concepção de hermenêutica estão<br />

inseridos na última seção desse capítulo.<br />

No segundo capítulo, adentro mais propriamente o cabedal hermenêutico de<br />

Ricoeur e trato das principais características de sua proposta: a “via-longa”, o traço<br />

fenomenológico, o caráter reflexivo, a dimensão da linguag<strong>em</strong>. Permeiam esse capítulo as<br />

principais categorias usadas pelo autor, b<strong>em</strong> como seus principais métodos, expostos tanto<br />

10


pelo próprio Ricoeur quanto por seus comentadores. Trata-se de uma parte extensa, pelo fato<br />

de intentar abordar o pensamento <strong>ricoeur</strong>iano <strong>em</strong> geral, s<strong>em</strong>, contudo, pretender esgotar a<br />

compreensão de sua rica produção filosófica.<br />

Por fim, no último capítulo, venho a tratar mais propriamente do t<strong>em</strong>a delineado<br />

no título desse trabalho. Nele, apresento um esboço da “hermenêutica do si”, presente na obra<br />

apontada como fruto da maturidade filosófica de Ricoeur, O si-mesmo como um outro. O<br />

objetivo específico do trabalho é cont<strong>em</strong>plado na segunda seção – a mais extensa do capítulo<br />

– que apresenta as primeiras preocupações éticas do autor e seu pleno desenvolvimento na<br />

referida obra. A última seção contém as implicações ontológicas da obra, s<strong>em</strong> a qual não se<br />

teria uma visão mais vasta do momento ao qual se encaminha a “via-longa” proposta pelo<br />

autor.<br />

Ainda uma parte deve ser considerada: a apresentação, no apêndice do trabalho,<br />

de categorias <strong>ricoeur</strong>ianas que poderiam auxiliar na compreensão e execução do chamado<br />

“acompanhamento filosófico”, t<strong>em</strong>a que t<strong>em</strong> sido tratado amiúde no curso de Filosofia da<br />

Universidade Católica Dom Bosco, particularmente por meu orientador – sobretudo no grupo<br />

de estudos de Ser e t<strong>em</strong>po. Trata-se de um inventário dessas categorias e assume – com toda a<br />

força s<strong>em</strong>ântica do termo – não mais que o caráter de um “esboço”.<br />

Quanto aos obstáculos durante a realização da pesquisa, destaco aqueles<br />

relacionados às limitações da tradução brasileira. Como não me foi possível ler a obra <strong>em</strong> seu<br />

original francês – por não conhecer tal idioma – precisei lançar mão da tradução italiana, que<br />

se mostra mais fiel ao original. Por isso mesmo, quando necessário, cito a versão italiana –<br />

cuja tradução ao português é aqui livre – s<strong>em</strong>pre acompanhada pela parte correspondente na<br />

versão brasileira.<br />

11


HISTÓRIA DA HERMENÊUTICA<br />

12


1 - HISTÓRIA DA HERMENÊUTICA<br />

São muitos os autores que apontam a relevância dos estudos hermenêuticos na<br />

cont<strong>em</strong>poraneidade, como Jean Greisch, o qual afirmou que a era atual é “a idade<br />

hermenêutica da razão”, idade na qual Ricoeur insere a obra básica da presente pesquisa 1 . Da<br />

mesma forma, poder-se-ia afirmar que “a hermenêutica é o novo nome da filosofia hoje” 2 .<br />

Cabe, nesse momento, apresentar a tradição hermenêutica sobre a qual se assenta o<br />

pensamento <strong>ricoeur</strong>iano.<br />

1.1 – PRECURSORES DA HERMENÊUTICA RICOEURIANA<br />

1.1.1 – A orig<strong>em</strong> clássica hermenêutica – Platão e Aristóteles<br />

Os autores diverg<strong>em</strong> quanto à etimologia de “hermenêutica”: há qu<strong>em</strong> afirme que<br />

sua orig<strong>em</strong> está vinculada a Hermes, o deus mensageiro da mitologia grega, o qual teria<br />

inventado a linguag<strong>em</strong> e a escrita para que os deuses se comunicass<strong>em</strong> entre si e pudess<strong>em</strong><br />

repassar aos homens a vontade divina 3 ; outros, porém, ligam o termo ao verbo ερµηνευειν<br />

(hermeneuein), usado pelos gregos no sentido de expressar ou interpretar. Apesar de<br />

desacreditada – pelo fato de ser uma conclusão “d<strong>em</strong>asiado patente para ser verdadeira” 4 , a<br />

alusão a Hermes revela o caráter mediador da hermenêutica.<br />

1 RICOEUR, Paul. O si-mesmo como um outro. Trad. Lucy Moreira Cesar. Campinas: Papirus, 1991, p.38;<br />

SACADURA, Carlos Alexandre Bellino de Albuquerque. Percursos da Filosofia hermenêutica. Revista<br />

Portuguesa de Filosofia, Braga, tomo LII, jan.-dez. 1996, p.769.<br />

2 MARCONETTI, Luís. Supl<strong>em</strong>ento e desenvolvimento dos “Primeiros el<strong>em</strong>entos de Filosofia”. Metódica:<br />

fenomenologia, hermenêutica simbólica. Campo Grande: UCDB, 2005, p.122.<br />

3 Cf. NOVASKI, Augusto. Hermenêutica. Reflexão (Revista quadrimestral do Instituto de Filosofia PUCCAMP),<br />

Campinas, ano XXII, n.69 (A Hermenêutica de Paul Ricoeur), set./dez. 1997, p.108; MARCONETTI, op. cit.,<br />

p.143.<br />

4 Cf. GRONDIN, Jean. Introdução à hermenêutica filosófica. São Leopoldo: Unisinos, 1999, p.55.<br />

13


Hermèneutiké apareceu incipient<strong>em</strong>ente no Corpus platônico de forma<br />

equivalente à mantiké (arte de profetizar), a qual caberia tanto ao insano (incapaz de julgar a<br />

verdade) quanto ao profeta (provido de competência racional). Ambos os saberes eram<br />

considerados incapazes de conduzir à sofía (sabedoria), porque o intérprete só é capaz de<br />

entender o que é dito. Na obra Ion, Platão (428/427-347 a.C.) relaciona o hermeneuta ao<br />

profeta pelo fato de possuir o caráter de mediador – tanto entre os deuses e os homens, quanto<br />

entre os homens e o insano mediador 5 .<br />

Em Aristóteles (384/383-322 a.C.), hermeneia está presente <strong>em</strong> um dos tratados do<br />

Organon aristotélico, a obra lógico-s<strong>em</strong>ântica Пερì έρµηνείας (Peri hermeneias), que fora<br />

traduzida para o latim como De interpretatione ou Hermeneutica. Sua acepção é a de<br />

significação (comunicação) dos conteúdos da alma ao exterior, o que equivale à phoné<br />

s<strong>em</strong>antiké (denominada pelos latinos como vox significativa): qualquer som vocal dotado de<br />

significado. Trata-se, pois, de uma mediação entre o pensamento e os destinatários 6 .<br />

Para o Estagirita, os termos e as orações (logos) são hermeneia, sobretudo aquelas<br />

declarativas ou assertivas (apophansis) – cuja função é “dizer algo de alguma coisa” – que<br />

seriam a hermenêutica autêntica, porquanto são as únicas orações cuja verdade ou falsidade<br />

pode ser d<strong>em</strong>onstrada logicamente. Uma vez que Aristóteles centrou a interpretação no que é<br />

unívoco lógica e ontologicamente – “não significar algo uno é nada significar<br />

absolutamente” 7 – com o desenvolvimento da noção de “analogia do ser” houve uma abertura<br />

à poliss<strong>em</strong>ia, não como uma anomalia no discurso, mas como algo inevitável 8 .<br />

1.1.2 – A exegese bíblica – Fílon, Orígenes, Agostinho, Lutero e Flacius<br />

Posteriormente, foram esboçadas várias definições de hermeneia: “o ‘logos’<br />

expresso <strong>em</strong> palavras”, para Fílon de Alexandria; (por volta de 13-54 d.C.); correlativamente,<br />

5<br />

Cf. GRONDIN, op. cit., p.52-54; MORA, José Ferrater. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Loyola, 2001, vol.<br />

3, p.2283.<br />

6<br />

Cf. GRONDIN, op. cit., p.52-53; MORA, op. cit., vol.1, p.181.<br />

7<br />

ARISTÓTELES apud RICOEUR, Paul. Da interpretação. Ensaio sobre Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1977,<br />

p.29.<br />

8<br />

Cf. RICOEUR, Da interpretação, p.30; Cf. MORA, op. cit., p.1326.<br />

14


o pensamento manifesto na linguag<strong>em</strong>, para Cl<strong>em</strong>ente de Alexandria (150-215); e<br />

“interpretatio est vox articulata per se ipsam significans”, para Boécio (480-525) 9 .<br />

Daí <strong>em</strong> diante, o termo foi utilizado de diversas formas por pensadores, sobretudo<br />

por aqueles que intentavam, no nível filológico, provar que a metodologia da interpretação<br />

dos textos sagrados não divergia daquela usada <strong>em</strong> outros textos 10 .<br />

Fílon de Alexandria (entre 13-54 d.C.), judeu, é considerado o pai da alegoria<br />

(αλληγορια) 11 , <strong>em</strong>bora não tenha explicitado nenhum método para ela. Fazia uso da alegorese,<br />

isto é, do processo explícito de interpretação pelo qual se capta a intenção do texto alegórico,<br />

sobretudo nas passagens vetero-testamentárias <strong>em</strong> que havia risco de gerar mal-entendidos<br />

míticos caso se aplicasse uma interpretação literal. Comparava o sentido literal ao corpo, e o<br />

alegórico, à alma; sentido esse que só poderia ser visto por alguns iniciados – um saber<br />

esotérico, pois. As Sagradas Escrituras não bastavam a si: tudo nelas é alegórico. Destarte,<br />

haveria aí um “preâmbulo da pretensão de universalidade da hermenêutica” 12 .<br />

Orígenes (185/186-254), filósofo cristão dos primórdios da Patrística, desenvolveu<br />

uma leitura tipológica da Bíblia: ao procurar prenúncios da figura de Cristo (typoi) no Antigo<br />

Testamento, acabou considerando-o uma alegoria do Novo, e esse, por sua vez, uma alegoria<br />

da Parusia divina. Asseverava ser necessário ir além do sentido literal para não comprometer<br />

a coerência das Sagradas Escrituras e, por isso, dividiu a leitura <strong>em</strong> três faixas de sentido:<br />

corporal, psíquica e espiritual, desde a mais literal e destinada aos menos letrados, à mais<br />

misteriosa e voltada aos doutos. A “Escola antioquena” opôs-se à essa universalização do<br />

alegórico e do tipológico promovida pela “Escola de Alexandria”, com representantes como<br />

João Crisóstomo (349-407), cujo pensamento é bastante próximo do método histórico-crítico<br />

hodierno 13 .<br />

Filósofo valorizado por Heidegger e Gadamer, o também patrístico Agostinho de<br />

Hipona (354-430) escreveu um tratado hermenêutico intitulado De doctrina christiana, “a<br />

9<br />

“Voz articulada que t<strong>em</strong> significado por si própria”. Cf. GRONDIN, op. cit., p.55 e 56.<br />

10<br />

Cf. MORA, op. cit., p.1325-1326.<br />

11<br />

Alegoria é um termo criado pelo gramático pseudo-Heráclito (século I d.C.), e constitui um tropos retórico que<br />

permite dizer algo e referir-se a algo diferente. Cf. GRONDIN, op. cit., p.59.<br />

12<br />

Cf. Id., p.60-64; citação direta: p.63.<br />

13<br />

Cf. Id., p.64-70; MORA, op. cit., vol.3, p.2172.<br />

15


obra historicamente mais eficaz da hermenêutica” 14 . Para Heidegger, Agostinho teria tomado<br />

uma concepção “mais abrangente e viva” de hermenêutica do que Schleiermacher, sobretudo<br />

ao considerá-la a “arte da compreensão”, que traduziria a postura inquietante daquele que se<br />

coloca ante às Sagradas Escrituras como um ser que busca por sentido – ponto que conferiria<br />

a Agostinho o qualitativo de “proto-existencialista”. Diferent<strong>em</strong>ente de Orígenes, o bispo de<br />

Hipona indicava a hermenêutica exclusivamente para as passagens obscuras, nas quais é o<br />

próprio Deus qu<strong>em</strong> iluminaria o intérprete através de passagens paralelas mais claras. Ele<br />

afirmava, ainda, que a palavra interior (verbum cordis) precede o dizer humano, o qual se<br />

corporifica de maneira particular, sensível e histórico, de modo que o signo nunca equivale ao<br />

espírito: é-lhe s<strong>em</strong>pre uma tradução imperfeita 15 .<br />

Nenhuma obra clássica hermenêutica teria recebido tantos comentários quanto a<br />

proposta do reformador Martinho Lutero (1483-1546), provavelmente devido à sua relevância<br />

histórica e espiritual, b<strong>em</strong> como à extensa difusão da hermenêutica <strong>em</strong> meio protestante, cujos<br />

expoentes são: Flacius, Schleiermacher, Dilthey – para qu<strong>em</strong> a ciência hermenêutica teria seu<br />

início de fato com o advento do protestantismo – Bultmann, Ebeling e talvez Gadamer. É<br />

questionável, porém, se ele teria desenvolvido efetivamente uma teoria hermenêutica,<br />

porquanto a interpretação por ele desenvolvida versava unicamente as Escrituras, como reza<br />

seu princípio “sola scriptura” – que, aliás, já regia a patrística 16 .<br />

Como Agostinho, Lutero desconfiava da universalização da alegorese, aduzindo,<br />

<strong>em</strong> contrapartida, a orientação ao senso literaris, que, sendo b<strong>em</strong> entendido, revelaria o<br />

significado espiritual. A Bíblia seria, pois, sui ipsius interpres, sua própria chave, de maneira<br />

que a palavra como sede do espírito constituiu a forma protestante do universalismo<br />

hermenêutico. Esse foi o ponto do pensamento luterano que o Concílio de Trento (1546)<br />

criticou, na alegação de que o apelo à inspiração do Espírito Santo nas passagens ambíguas<br />

conduziria a arbitrariedades – as quais não ocorreriam caso houvesse recurso à Tradição 17 .<br />

A denúncia católica da falta de uma hermenêutica <strong>em</strong> Lutero conduziu Matthias<br />

Flacius Illyricus (1520-1575) a elaborar pela primeira vez uma teoria hermenêutica<br />

protestante, exposta na obra Clavis scripitura sacrae (1567), que se voltava às passagens<br />

14 EBELING apud GRONDIN, op. cit., p.71.<br />

15 Cf. GRONDIN, op. cit., p.70-81.<br />

16 Cf. MORA, op. cit., v.3, p.1816; GRONDIN, op. cit., p.81s.<br />

17 Cf. Id., p.82-84.<br />

16


obscuras e se tornou um manual básico do protestantismo no século XVIII. Objetou o<br />

Concílio trentino asseverando que o probl<strong>em</strong>a das passagens obscuras na Escritura está<br />

situado na linguag<strong>em</strong> – devido à deficiência no conhecimento gramatical e dos idiomas.<br />

Flacius buscava apoio <strong>em</strong> Lutero e Agostinho – unindo invocação ao Espírito Santo e busca<br />

de passagens paralelas mais transparentes – fato esse que motivou a acusação, por parte dos<br />

católicos, de falta de originalidade <strong>em</strong> suas teses. Também foi muito influenciado pela<br />

retórica, que lhe inspirou a doutrina do scopus (intenção) – o que excede a Gramática e<br />

retoma o uso da alegorese, rejeitada por Lutero 18 .<br />

1.1.3 – Hermenêuticas universais do Renascimento e da Modernidade – Dannhauer,<br />

Chladenius e Meier<br />

Se até então a hermenêutica restringiu-se ao âmbito religioso – já que a Bíblia<br />

possuía todo o conhecimento que importava para a época – na Modernidade houve uma<br />

abertura a outros textos, sobretudo dos escritores antigos, como sugerira uma disciplina do<br />

século XVI chamada ars critica 19 .<br />

Foi o teólogo protestante Johan Conrad Dannhauer (1603-1666) qu<strong>em</strong> utilizou a<br />

palavra hermenêutica pela primeira vez como título de uma obra, a H<strong>em</strong>eneutica sacra sive<br />

methodus exporendarum sacrum litterarum, de 1654. Sua importância, que não fora<br />

reconhecida pelos historiadores da hermenêutica, vai além do simples <strong>em</strong>prego de um novo<br />

termo: Dannhauer teve a pretensão de delinear uma teoria universal, uma hermeneutica<br />

generalis que fosse propedêutica a todas as ciências. Sua função seria a de estabelecer o<br />

sentido pensado – o que o autor quis dizer – como preparação às análises lógicas, as quais<br />

incid<strong>em</strong> sobre a verdade objetiva desse sentido 20 .<br />

Seguindo o projeto de uma hermenêutica universal, Johan Martin Chladenius<br />

(1710-1759) escreveu a Introdução para a correta interpretação de discursos e escritos<br />

nacionais <strong>em</strong> 1742, a primeira proposta hermenêutica editada <strong>em</strong> al<strong>em</strong>ão. Com esse pensador,<br />

a hermenêutica desvinculou-se da Lógica e firmou-se como um novo saber humano, abrindo<br />

18 Cf. GRONDIN, op. cit., p.85-89.<br />

19 Cf., Id., p.93s.<br />

20 Cf. Id., p.94-98.<br />

17


caminhos para uma hermenêutica de caráter mais filosófico. Dividiu a atividade dos sábios<br />

<strong>em</strong> dois tipos: a produção de pensamento original e a ocupação com o que já se pensou de<br />

interessante, isto é, a interpretação – a qual deveria ter regras próprias 21 .<br />

Para Chladenius, a hermenêutica continua a ocupar-se de passagens obscuras, mas<br />

não de todas elas: não lhe caberia ocupar-se das obscuridades corrigindo as passagens<br />

deterioradas ao longo das edições (competência da Filologia, através da ars critica), n<strong>em</strong> seria<br />

seu objetivo a introspecção lingüística (âmbito da Gramática), tampouco lhe tocaria o<br />

afastamento das ambigüidades. Sua idéia de hermenêutica parte de uma constatação:<br />

Um pensamento que, pelas palavras, deve ser despertado no leitor, [sic] já<br />

pressupõe, muitas vezes, outros conceitos, s<strong>em</strong> os quais ele não é<br />

compreensível: por isso, se o leitor já não possui os mesmos conceitos, as<br />

palavras não pod<strong>em</strong> ter nele o efeito, n<strong>em</strong> dar ocasião aos conceitos que,<br />

num outro leitor, devidamente instruído, certamente vão ocorrer 22 .<br />

Assim, interpretar (auslegen) seria apreender os “conhecimentos de fundo”, ou<br />

seja, todos os conceitos necessários para a compreensão do que o autor quis indicar <strong>em</strong> uma<br />

determinada passag<strong>em</strong>, o que inclui recurso a dicionários, manuais e quaisquer obras<br />

literárias. Eis pois uma acentuação pedagógica da interpretação, que se volta à apreensão do<br />

“ponto de vista” (sehepunkt) do autor – expressão que ele diz herdar de Leibniz, mas que<br />

r<strong>em</strong>eteria também à teoria do scopus presente <strong>em</strong> Agostinho e Flacius 23 .<br />

A hermenêutica foi inserida na Filosofia como disciplina por Georg Friedrich<br />

Meier (1718-1777) <strong>em</strong> 1757 24 . Empenhou-se na última tentativa iluminista de uma arte<br />

hermenêutica universal, por ora com uma grande novidade: a ampliação do horizonte da<br />

interpretação à aplicação <strong>em</strong> textos não-escriturísticos – no caso, para todos os sinais do<br />

mundo, tanto naturais quanto artificiais. É nisso que reside o traço universal de sua teoria.<br />

Inspirado na s<strong>em</strong>iótica de Leibniz, Meier afirmou que tudo no mundo é sinal, enquanto uma<br />

realidade na qual outra coisa – o sentido – pode ser reconhecida; haveria, outrossim, uma<br />

conexão universal de todos os sinais – characteristica universalis – e caberia à hermenêutica<br />

relacionar a coisa designada com seus sinais. Quanto à interpretação de discursos, Meier<br />

21<br />

Cf. GRONDIN, op. cit.,, p.99.<br />

22<br />

CHLADENIUS apud GRONDIN, op. cit.,, p.103.<br />

23<br />

Cf. Id., p.99-106.<br />

24<br />

O mesmo pensador é citado diversamente como “Maier” <strong>em</strong> MORA, op. cit., p.1326.<br />

18


tratava de uma “verdade hermenêutica”: não a verdade objetiva, de ord<strong>em</strong> lógica e metafísica,<br />

mas sim aquela que preserva o ponto de vista do autor (mens auctoris) – s<strong>em</strong>elhante a<br />

Dannhauer. Destarte, ninguém melhor que o próprio autor para interpretar seus textos 25 .<br />

Propôs o princípio da eqüidade hermenêutica (aequitas hermeneutica): o intérprete<br />

deve ter como verdadeiro, de ant<strong>em</strong>ão, o discurso de um autor, até que se prove o contrário –<br />

como que numa antecipação da conexão perfeita que há entre os sinais naturais e o autor<br />

divino. Para que o intérprete chegasse a essa verdade hermenêutica, foram apresentados os<br />

seguintes métodos: a crítica, o domínio lingüístico, a comparação com passagens paralelas, a<br />

ciência da finalidade do autor. A teoria de Meier supõe vários ramos práticos da<br />

hermenêutica: aquela voltada às Sagradas Escrituras (hermeneutica sacra), às leis<br />

(hermeneutica júris ou legalis), à diplomacia, à moral, aos sinais naturais (hermenêutica<br />

mântica) e aos sinais arbitrários (hermenêutica hieroglífica). A despeito de ser o elaborador da<br />

hermenêutica como disciplina filosófica, Meier não exerceu grande influência 26 .<br />

Quanto ao papel de Leibniz, esse influenciou bastante o pensamento hermenêutico<br />

do século dezoito, apesar de não ter se dedicado a discorrer sobre o assunto – já que a conexão<br />

dos sinais lhe era tão evidente que não necessitaria de interpretações. Influenciou sobretudo o<br />

conceito de ponto de vista e de característica universal 27 .<br />

Do século dezoito <strong>em</strong> diante teve início um processo de descrédito das<br />

hermenêuticas universais, como conseqüência das idéias do Iluminismo, que já não valorizava<br />

a arte de interpretar os pensadores antigos, mas estimulava a confirmação da própria razão,<br />

isto é, o pensar por conta própria. Chladenius descreve muito precisamente essa perspectiva<br />

iluminista:<br />

25 Cf. GRONDIN, op. cit., p.107-110.<br />

26 Cf. Id., p.110-112.<br />

27 Cf. Id., p.111s.<br />

28 CHLADENIUS apud GRONDIN, op. cit., p.113.<br />

Na filosofia nós já não precisamos tanto da arte da interpretação, uma vez<br />

que cada um deve usar sua própria energia para pensar, e uma tal tese que,<br />

com muita interpretação, se precisa extrair de um escrito filosófico, não nos<br />

pode prestar extraordinários serviços, porque só depois é que vai surgir a<br />

pergunta sobre se ela é verdadeira e como se deve d<strong>em</strong>onstrá-la, coisa <strong>em</strong><br />

que consiste propriamente a filosofia 28 .<br />

19


1.1.4 – Hermenêutica pietista – Francke e Rambach<br />

Muitas hermenêuticas especiais surgiram desde então, como aquelas de escopo<br />

jurídico ou teológico. Quanto à essa última, merece destaque a contribuição do pietismo, que<br />

realizou a passag<strong>em</strong> da hermenêutica protestante original à Schleiermacher. Para a<br />

hermenêutica pietista, principiada por Augusto Germano Francke (1663-1727) 29 , a<br />

universalidade do afetivo era a principal marca: cada palavra brota do íntimo da alma e<br />

reserva um afeto. Interpretar consistiria, pois, <strong>em</strong> recuperar o sentido espiritual dos textos,<br />

sobretudo os da Escritura 30 .<br />

Também Joham Jacob Rambach (1693-1735) envolveu-se nessa <strong>em</strong>presa e<br />

apresentou, na obra Institutiones hermeneuticae sacrae (1723) a tese de que a interpretação<br />

supõe conhecer os afetos do autor. O afeto seria, nisso, a anima sermonis (alma do discurso) e<br />

aquilo que se quer passar para o leitor através dos textos. Muito relevante nessa corrente<br />

pietista foi o princípio da “subtilitas applicandi”, a qual propunha ir além de procurar<br />

entender e explicar o afeto da Escritura: importa gravar o afeto da Escritura no afeto do<br />

ouvinte, como que numa tradução (ερµηνευειν) de sentidos. A hermenêutica pietista produziu<br />

muito mais efeitos do que aquelas de Dannhauer, Chladenius e Meier, e exerceu alguma<br />

influência na hermenêutica cont<strong>em</strong>porânea 31 .<br />

1.1.5 – Hermenêutica romântica – Ast, Schlegel e Schleiermacher<br />

O período de transição entre o Esclarecimento e o Romantismo (século XVIII e<br />

XIX) foi selado pela descontinuidade: seus autores já não r<strong>em</strong>etiam às hermenêuticas<br />

universais que os precederam – muito <strong>em</strong>bora viess<strong>em</strong> a lançar mão de conceitos s<strong>em</strong>elhantes<br />

– além de não se preocupar<strong>em</strong> com a publicação de seus trabalhos hermenêuticos, a qual<br />

coube aos seus discípulos 32 .<br />

29<br />

Cf. “Francke, Herman”. In: SCHLESINGER, Hugo e PORTO, Humberto. Dicionário enciclopédico das<br />

religiões. Petrópolis: Vozes, 1995, vol.1, p.1114.<br />

30<br />

Cf. GRONDIN, op. cit., p. 114.<br />

31 Cf. Id., p.114-116.<br />

32 Cf. Id., p.117s.<br />

20


De grande importância, outrossim, é o grande recorte histórico-filosófico do início<br />

do século XIX promovido por Immanuel Kant, que derrocou o racionalismo até então<br />

dominante – presente, por ex<strong>em</strong>plo, <strong>em</strong> Danhauer, Spinoza, Chladenius e Meier. A<br />

diferenciação kantiana entre o mundo dos fenômenos e o mundo das coisas <strong>em</strong> si subsidiou a<br />

hermenêutica romântica: o acesso ao mundo e ao texto ocorre através da interpretação<br />

subjetiva. Assim, o Romantismo iniciou sua reflexão no sujeito e tomou por probl<strong>em</strong>a básico<br />

a possibilidade de alcançar a objetividade científica e hermenêutica. Houve uma retomada da<br />

tradição filosófica: o espírito grego foi revalorizado e revigorado no período pré-romântico,<br />

seja <strong>em</strong> Friedrich Ast como <strong>em</strong> Friedrich Schlegel, que influenciaram Schleiermacher 33 .<br />

Friedrich Schleiermacher (1768-1834), professor de teologia e tradutor de Platão,<br />

foi muito assinalado pela tradição kantiana. Manifestou receio <strong>em</strong> publicar seus trabalhos<br />

hermenêuticos provavelmente porque s<strong>em</strong>pre considerou seus escritos imperfeitos; coube ao<br />

discípulo Friedrich Lücke realizar essa <strong>em</strong>presa, com base nos esboços do mestre. Teve por<br />

projeto formular uma ciência hermenêutica geral que proporcionasse a unidade de todas as<br />

interpretações (de ord<strong>em</strong> jurídica, pictórica, literária) – um processo de desregionalização,<br />

tendo <strong>em</strong> vista a dimensão transcendental da hermenêutica. Hermenêutica, portanto, consistia<br />

numa tentativa de compreensão, cujas leis regeriam a extração do sentido dos textos 34 .<br />

Compreender, para Schleiermacher, significava procurar no discurso o que foi<br />

pensado pelo autor. Destarte, ele tomou a linguag<strong>em</strong> como objeto da compreensão e a dividiu<br />

<strong>em</strong> dois aspectos: o supraindividual, que chamou de “o lado gramatical” da interpretação, pelo<br />

fato de que cada expressão seguiria uma sintaxe pré-estabelecida (determinada pelos<br />

costumes); e o aspecto individual, denominado lado “técnico-psicológico” da interpretação,<br />

que exigiria do intérprete o entendimento da arte específica do autor 35 .<br />

Para a ótica schleiermacheriana, a prática hermenêutica se dividiria <strong>em</strong> dois tipos:<br />

um de ord<strong>em</strong> “mais laxa” e outra “mais austera”. Se a primeira – praticada até então –<br />

lançaria mão da hermenêutica somente diante de passagens obscuras, com o escopo de evitar<br />

o mau-entendido, a segunda, proposta por Schleiermacher, concebia que a compreensão<br />

33 Cf. GRONDIN, op. cit.,p.118-123.<br />

34 Cf. NOVASKI, op. cit., p.110; BEUCHOT, Mauricio. Naturaleza y operaciones de la hermenéutica según Paul<br />

Ricoeur. Pensamiento (Revista de investigación y información filosófica), Madrid, v.50, n.196, enero-abril 1994,<br />

p.145; SACADURA, op. cit., p.777.<br />

35 Cf. GRONDIN, op. cit., p.123-126.<br />

21


suporia desde o início uma prevenção do intérprete ante a equívocos. Destarte, a interpretação<br />

deveria ser o primeiro e contínuo passo para o intérprete diante de qualquer discurso. Eis,<br />

pois, a universalização do mal-entendido, que jamais poderia ser considerado totalmente<br />

excluído: “[...] a não-compreensão não quer nunca dissolver-se totalmente” 36 .<br />

A postura hermenêutica adotada de Schleiermacher foi a de estabelecer uma<br />

reconstrução: “entender o discurso tão b<strong>em</strong>, e depois melhor do que seu autor”. O intérprete<br />

não deveria, assim, imbuir um sentido ao objeto estudado, mas sim reconstruir um sentido tal<br />

como ele se mostra nesse objeto desde o ponto de vista do autor. A melhor compreensão seria,<br />

portanto, uma “tarefa infindável”, o que implicaria no esforço de s<strong>em</strong>pre continuar<br />

interpretando 37 .<br />

Schleiermacher não se preocupou <strong>em</strong> estabelecer regras para aplicar as regras<br />

hermenêuticas – como, por ex<strong>em</strong>plo, a explicação de passagens dentro de um contexto. Sua<br />

grande e inovadora contribuição foi na parte da “técnico-psicológica” da interpretação, na<br />

qual apresentou como obrigatório o processo de “adivinhação”: caberia ao intérprete, após<br />

esgotados os recursos gramaticais, defrontar-se com as particularidades do autor e procurar<br />

adivinhar (divinare) o que ele desejara dizer – o algo pensado. Muito relevante nesse autor é a<br />

dialogicidade de sua hermenêutica: para entender um texto, deve-se fazer um colóquio com<br />

ele e “ler entre as linhas” o pensamento interior – a comunicação de uma alma 38 .<br />

1.1.6 – Hermenêutica historicista – Boeckh, Droysen e Dilthey<br />

Se Schleiermacher apontou a insegurança da <strong>subjetividade</strong> como fonte de<br />

equívocos, no Historicismo a causa dos equívocos sofreu um desvio, igualmente de caráter<br />

particular: a compreensão conforme uma época específica, isto é, de acordo com um período<br />

histórico definido 39 .<br />

36<br />

Cf. GRONDIN, op. cit., p.126-128.<br />

37<br />

Cf. Id., p.128.<br />

38<br />

Cf. Id., p.128-130. Grondin apresenta a hipótese de que Schleiermacher não teria publicado seus escritos<br />

justamente devido à sua prescrição da compreensão divinatória, que escaparia do programa de uma teoria<br />

regulamentada (p.130).<br />

39<br />

Cf. Id., p.135-137.<br />

22


Foi Augusto Boeckh (1785-1867) qu<strong>em</strong> apresentou, na obra Enciclopédia e<br />

metodologia das ciências filológicas, a idéia de uma hermenêutica histórica para se somar à<br />

interpretação gramatical e individual. Para ele – s<strong>em</strong> muitas inovações relativamente a<br />

Schleiermacher – a filologia teria um papel reconstrutor e interpretar consistiria <strong>em</strong><br />

aprofundar-se nas palavras para reconhecer o que já foi conhecido. Com a interpretação<br />

histórica, um significado seria enriquecido por ser colocado <strong>em</strong> relação com as circunstâncias<br />

reais <strong>em</strong> que foi produzido 40 .<br />

Apesar de sua pretensão metodológico-prescritiva, Boeckh produziu uma obra de<br />

caráter mais enciclopédico-descritivo. Foi com Johann Gustav Droysen (1808-1886) que o<br />

aspecto metodológico tornou-se mais evidente. Seu maior esforço foi o de legitimar e<br />

especificar a cientificidade da História ante ao amplo desenvolvimento das Ciências Naturais.<br />

S<strong>em</strong> citar uma única vez a palavra “hermenêutica” <strong>em</strong> sua obra – Enciclopédia e metodologia<br />

da História, publicada pelo discípulo Hübener – é o conceito de compreensão que adquiriu<br />

centralidade <strong>em</strong> seu pensamento, pois ele entendia ser próprio das ciências históricas o<br />

método de “entender pesquisando”. Muito relevante é a sua proposta da “compreensão<br />

investigadora”: por detrás dos dados históricos imediatos, dever-se-ia pesquisar – adivinhando<br />

e presumindo – o sentido oculto. “Ao olhar finito, o início e o fim estão ocultos. Mas,<br />

investigando, ele pode conhecer a direção do caudaloso movimento” 41 .<br />

Para Wilhelm Dilthey (1933-1911), que se baseia <strong>em</strong> parte <strong>em</strong> Schleiermacher, a<br />

Hermenêutica teria por objeto os dados históricos e filológicos, mas iria além de seu mero<br />

conhecimento: daria sentido a esses dados, num processo circular de compreensão, passando<br />

dos signos aos “resíduos de vida humana”, porquanto haveria uma estreita ligação entre o<br />

texto e seu contexto. A historicidade foi-lhe uma categoria importante e, no anelo de legitimar<br />

gnosiologicamente as Geistswissenschaften – “ciências do espírito” ou “ciências humanas” –<br />

ele propôs um método particular que, diferent<strong>em</strong>ente das Naturwissenschaften – ciências<br />

naturais – teria na experiência histórica da vida a orig<strong>em</strong> e o fim do trabalho interpretativo.<br />

Esse método foi identificado na categoria “compreensão” (Erklären), enquanto o<br />

procedimento das ciências da natureza seria a “explicação” (Verstehen). Como não<br />

considerou ter alcançado alguma conclusão suficient<strong>em</strong>ente substancial para tal <strong>em</strong>presa, não<br />

40 Cf. GRONDIN, op. cit., p.137s.<br />

41 Id., p.139-146; grifo do autor.<br />

23


editou o segundo volume da Introdução às ciências do espírito, n<strong>em</strong> ousou intitular algum<br />

escrito como Crítica da razão histórica 42 .<br />

Dilthey asseverou ser<strong>em</strong> os “fatos da consciência” (a experiência interior) a<br />

condição objetiva de validade das ciências do espírito, pois toda a realidade seria<br />

condicionada pela consciência. Assim, haveria a necessidade da reflexão psicológica, cujo<br />

método não seria o de explicar, mas sim o de entender: não elucidar os fenômenos psíquicos a<br />

partir dos el<strong>em</strong>entos psíquico-fisiológicos; importaria, antes, descrever a vida da alma no<br />

contexto da vida. A vantag<strong>em</strong> desses fenômenos psíquicos seria, pois, a de poder<strong>em</strong> ser<br />

captados imediatamente pela vivência interna – certa antecipação de Husserl – o que daria<br />

base universalmente segura e válida à Psicologia descritiva. Tais princípios foram assaz<br />

objetados na época 43 .<br />

Fato interessante nessa proposta é a ausência de qualquer referência explícita à<br />

hermenêutica na Introdução às ciências do espírito e no esboço de seu segundo volume. Em<br />

outra obra, porém, A edificação do universo histórico nas ciências do espírito, o conceito de<br />

compreensão ganhou importância como uma diferenciação das ciências do espírito <strong>em</strong> relação<br />

às naturais: se elas não se difer<strong>em</strong> quanto ao objeto, é na maneira de abordar esse objeto que<br />

está o núcleo de sua especificidade, enquanto realizam um movimento de fora para dentro, da<br />

expressão exterior para a interior. Esse procedimento de partir do manifestado para a<br />

compreensão do interior retomaria, assim, a atenção schleiermacheriana pela palavra interior,<br />

e consistiria um processo de “auto-reflexão”, no qual “[...] de sinais que são dados<br />

sensitivamente de fora, nós conhec<strong>em</strong>os um interior” 44 .<br />

Dilthey pretendia, com a hermenêutica, estabelecer as regras que evitass<strong>em</strong> o risco<br />

de cancelar a compreensão através das arbitrariedades subjetivas. Não chegou, porém, a<br />

definir tais regras, tampouco a afirmar explicitamente que a hermenêutica comporia a<br />

metodologia das ciências do espírito. Uma de suas contribuições é a de ter enriquecido a<br />

noção de texto considerando-o intimamente ligado ao contexto, isto é, à vida do hom<strong>em</strong> 45 .<br />

42<br />

Cf. MORA, op. cit., p.1327; BEUCHOT, op.cit., p.145; NOVASKI, op. cit., p.110; SACADURA, op. cit., p.<br />

778; GRONDIN, op. cit., p.146s; VAZ, Henrique de Lima. Escritos de Filosofia VI. Introdução à Ética<br />

Filosófica 1. 2.ed. São Paulo: Loyola, 2002, p.426.<br />

43<br />

Cf. GRONDIN, op. cit., p.149s.<br />

44<br />

Cf. Id., p.150-152.<br />

45<br />

Cf. Id., p.153-156; BEUCHOT, op. cit., p. 145.<br />

24


1.1.7 – Hermenêutica no centro da reflexão filosófica – ontologia e linguag<strong>em</strong> – Heidegger e<br />

Gadamer<br />

Sucessivamente, encontra-se Martin Heidegger (1889-1976), o qual afirma que<br />

Dilthey avançou no entendimento da Hermenêutica como auto-explicação da compreensão da<br />

“vida”, mas que seria necessário ir além: basear a interpretação realizada pelas ciências do<br />

espírito na analítica existenciária (dimensão ontológica). Se Dilthey privilegiara o aspecto<br />

epist<strong>em</strong>ológico <strong>em</strong> sua hermenêutica, o pensamento heideggeriano primou pela preocupação<br />

ontológica 46 .<br />

Se outrora a hermenêutica não gozava de uma concepção unitária e de<br />

sist<strong>em</strong>aticidade, com Heidegger ela passou a tomar posição mais central na reflexão filosófica<br />

– de modo que o próprio autor adjetivou sua filosofia de hermenêutica. A obra Ser e t<strong>em</strong>po<br />

(1927) foi a que introduziu mais relevant<strong>em</strong>ente a questão hermenêutica; <strong>em</strong> escritos<br />

posteriores, poucas foram as referências explícitas a essa área 47 .<br />

No pensamento de Heidegger, a compreensão humana se moveria a partir de uma<br />

pré-compreensão oriunda de sua situação existencial e o Dasein 48 seria caracterizado por uma<br />

interpretação que antecederia qualquer enunciado. Tal tese compôs a chamada hermenêutica<br />

da facticidade, enquanto interpretação daquilo que subjaz a elocução, ou seja, da estrutura de<br />

cuidado do Dasein. Diferent<strong>em</strong>ente de seus imediatos predecessores hermenêuticos,<br />

Heidegger propôs-se a fazer uma hermenêutica de ord<strong>em</strong> não epist<strong>em</strong>ológica – ocupada com<br />

questões metodológicas – mas ligada à compreensão. Essa, por sua vez, fora sintetizada na<br />

fórmula “sich auf etwas verstehen” (entender-se sobre algo) e indicava, antes que saber sobre<br />

algo, o poder lidar com esse algo. Eis porque se falava <strong>em</strong> “compreensão existencial”, que<br />

poderia ser chamada de compreensão “prática”, porquanto versava sobre um modo de situarse<br />

no mundo, isto é, um modo de ser. A interpretação, para ele, é um modo original de pensar<br />

o “dito” <strong>em</strong> um “dizer” 49 .<br />

46 Cf. MORA, op. cit., p.1327; SACADURA, op. cit., p.778s.<br />

47 GRONDIN, op. cit., p.157-159; NOVASKI, op. cit., p.111.<br />

48 Dasein, <strong>em</strong> vocabulário heideggeriano, alude à constituição ontológica do ser humano e é comumente<br />

traduzido para o português como “ser-aí”, ou como “pre-sença”. Cf. CAVALCANTI, Márcia de Sá (trad.). In:<br />

HEIDEGGER, Martin. Ser e t<strong>em</strong>po. v.1. 2.ed. Petrópolis: Vozes, 1988, p.309. Dasein não é sinômino de hom<strong>em</strong>,<br />

mas se refere, <strong>em</strong> Ser e t<strong>em</strong>po, ao ser dos humanos ou ao ente que possui esse ser; é o “<strong>em</strong> cada caso meu”. Cf.<br />

INWOOD, Michael. Dicionário Heidegger. Rio de Janeiro: Zahar, 2002, p.29s. Porque a tradução desse termo<br />

pode corromper seu original significado, utilizar-se-á aqui o original al<strong>em</strong>ão.<br />

49 Cf. MORA, op. cit., p.1327; GRONDIN, op. cit., p.159-161;<br />

25


Para Heidegger, o Dasein está tão envolvido <strong>em</strong> seu modo de ser que quase<br />

s<strong>em</strong>pre não o expressa ou t<strong>em</strong>atiza. Todos os acontecimentos na Lebenswelt (mundo da vida),<br />

porém, são pré-interpretados a partir da compreensão desse modo de ser, o que determina<br />

“como” cada coisa pode ser usada para certa finalidade. Esse momento pré-lingüístico<br />

permite, por ex<strong>em</strong>plo, que se utilize um certo objeto “como” meio para um determinado fim<br />

s<strong>em</strong> que seja necessário falar acerca desse objeto. O cuidado é, assim, aquilo que sustenta a<br />

compreensão – porque tudo importa ao Dasein – sobretudo o cuidado que ele t<strong>em</strong> por si<br />

próprio, o que o faz diferente de todos os d<strong>em</strong>ais entes. Outra constatação heideggeriana<br />

importante é que esse ser particular é um ser-lançado, ou seja, é um ser histórico que herda<br />

perspectivas de seus antecessores. Diante dos costumes e preconceitos, porém, há necessidade<br />

de esclarecimento, isto é, de interpretação 50 .<br />

Se, antes de Heidegger, a interpretação era meio para chegar à compreensão, com<br />

ele há uma inversão dos movimentos: o ser se compreende pelo cuidado com seu ser e, a<br />

partir de então, esclarece-se (interpreta-se) – elabora ou se apropria de sua compreensão. Em<br />

outras palavras, à interpretação cabe tornar a pré-compreensão transparente, já que tal<br />

compreensão é passível de equívocos. Assim, diante de um texto, o intérprete deveria antes de<br />

tudo ter transparente a própria situação hermenêutica, para livrar-se de preconceitos que<br />

pudess<strong>em</strong> desvirtuar o texto, que é estranho 51 .<br />

Na obra Hermenêutica da facticidade (1923), o autor afirmou que a hermenêutica<br />

teria a função de auto-interpretar a facticidade, ou seja, de manifestar as estruturas básicas do<br />

Dasein a caminho da autotransparência: “A hermenêutica t<strong>em</strong> a tarefa de tornar acessível cada<br />

específico ser-aí, <strong>em</strong> seu caráter de ser, a este mesmo ser-aí, uma possibilidade, a de tornar-se<br />

e de ser entendedor para si mesmo”. Ela seria caracterizada, então, como desconstrutora –<br />

enquanto destruidora da tradição que oculta a existência a si mesma – e teria uma função<br />

crítica, porque redutora da auto-alienação e das ideologias 52 .<br />

Sobr<strong>em</strong>aneira importante no pensamento heideggeriano é o modo como é tratada a<br />

linguag<strong>em</strong>, desde textos incipientes como Ser e t<strong>em</strong>po, até os mais tardios como<br />

Contribuições à Filosofia (1936) e a conferência T<strong>em</strong>po e ser (1962). Muito <strong>em</strong>bora tenha<br />

50 Cf. GRONDIN, op. cit., p.161-163.<br />

51 Cf. Id., p.163-167.<br />

52 Cf. Id., p.1168-170, grifo do autor.<br />

26


escrito bastante e considerado a linguag<strong>em</strong> como “morada do ser” – porque reveladora desse<br />

ser – Heidegger negou que tudo pudesse ser expresso e calculado. Para ele, antes de ser<br />

objetivante e se restringir ao conteúdo lógico, a linguag<strong>em</strong> seria expressão do cuidado do<br />

Dasein, do momento pré-predicativo desse ser com o mundo. Assim, essa relação mais<br />

originária consistiria um momento hermenêutico que, por sua vez, serviria de fundamento à<br />

linguag<strong>em</strong> 53 .<br />

Em A caminho da linguag<strong>em</strong> (1959), o autor reafirma a definição<br />

schleiermacheriana de hermenêutica como “arte de entender corretamente o discurso de outra<br />

pessoa, sobretudo o escrito”; há, porém, um avanço: hermenêutica seria uma tentativa de<br />

interpretar o “hermenêutico”, a trazida de uma mensag<strong>em</strong> – que é a própria linguag<strong>em</strong>. O<br />

pensamento heideggeriano aprofundou a noção de texto, ao elaborar “uma ontologia viva que<br />

explica e faz compreender a situação vital do hom<strong>em</strong> que produz textos significativos e<br />

polissêmicos” 54 .<br />

Heidegger objetou o probl<strong>em</strong>a epist<strong>em</strong>ológico do historicismo afirmando que esse,<br />

ao procurar uma compreensão metodizável <strong>em</strong> vista de verdades universalmente válidas,<br />

estaria, na verdade, buscando verdades absolutas e, portanto, incorreria no estabelecimento de<br />

fundamentos metafísicos – os quais contrariariam a t<strong>em</strong>poralidade própria do hom<strong>em</strong>. Para<br />

esse pensador, mesmo na finitude, o hom<strong>em</strong> seria capaz de elaborar sua estrutura<br />

preconceituosa como estrutura positiva e ontológica da compreensão, percebendo suas<br />

potencialidades a partir de sua existência 55 .<br />

Hans Georg Gadamer (1900-2002), que foi aluno de Heidegger, deu<br />

prosseguimento à sua interpretação ontológica e é considerado o fundador da Hermenêutica<br />

cont<strong>em</strong>porânea. Ele seguiu a radicalização do ser-lançado própria do Heidegger tardio e partiu<br />

para a hermenêutica da linguag<strong>em</strong>, sobretudo a respeito da manifestação do ser histórico na<br />

tradição lingüística. Sua obra Verdade e método (1960) é considerada clássica para a história<br />

hermenêutica e apresenta aprofundamentos do círculo hermenêutico heideggeriano; o<br />

53 Cf. GRONDIN, op. cit.p.170-173.<br />

54 BEUCHOT, op. cit., p.145.<br />

55 GRONDIN, op. cit., p.179-181.<br />

27


principal probl<strong>em</strong>a nela refere-se à busca de uma hermenêutica específica das ciências do<br />

espírito 56 .<br />

Gadamer aprofundou as objeções de seu mestre ao historicismo e fez disso sua<br />

principal <strong>em</strong>presa filosófica, negando a concepção historicista e positivista de que as ciências<br />

do espírito deveriam elaborar seus próprios métodos para gozar do status científico. Baseado<br />

<strong>em</strong> conceitos e argumentos do cientista natural Helmholz, Gadamer afirmava que os métodos<br />

– cuja base seria a indução lógica – não seriam adequados às ciências do espírito, as quais<br />

deveriam operar de acordo com uma “indução artística”, um “tato psicológico” s<strong>em</strong> regras<br />

definidas. Destarte, ele propôs uma hermenêutica própria das ciências do espírito, como um<br />

modo de compreensão dessas ciências proporcionado pela interpretação de suas tradições,<br />

indo de encontro a Dilthey, Misch, Rothaken, Weber e neokantianos, numa proposta de<br />

retornar à tradição humanística silenciada por Kant – que promoveu a estetização e<br />

subjetivação do juízo e do gosto, os quais foram destituídos da função de conhecimento que<br />

até então possuíam 57 .<br />

É sobretudo na segunda seção de Verdade e método que tratou-se da<br />

especificidade hermenêutica das ciências do espírito. Dentre as várias aporias do historicismo<br />

apresentadas, a mais fundamental e contundente é a que se refere ao fato de o historicismo<br />

supor um saber absoluto da História, não obstante reconheça a historicidade universal do<br />

saber humano – o que implicaria que também o historicismo seria derivado de seu t<strong>em</strong>po,<br />

notadamente cientificista 58 .<br />

Para Gadamer, a historicidade não é limitação à compreensão, mas princípio dessa.<br />

Não seria necessário, pois, buscar métodos para desfazer a <strong>subjetividade</strong>, como se o intérprete<br />

pudesse ser tabula rasa; a compreensão é s<strong>em</strong>pre situada e o sujeito, tabula plena. Muito<br />

próximo à proposta heideggeriana, ele afirmou que os preconceitos não deveriam ser<br />

simplesmente afastados, antes reconhecidos e elaborados pela interpretação. O risco de préconcepções<br />

enganadoras estaria s<strong>em</strong>pre presente, o que exigiria elaboração constante dos<br />

56 Cf. REALE, Miguel e ANTISERI, Dario. História da Filosofia. vol. 3 [Do romantismo até nossos dias]. 2.ed.<br />

São Paulo: Paulus, 1991, p.627s; GRONDIN, op. cit., p.179; MORA, op. cit., vol.2, p.1166; UOL últimas<br />

notícias. Disponível <strong>em</strong>: < http://noticias.uol.com.br/ajb/2002/03/14/ult463u12185.jhtm>. Acesso <strong>em</strong>: 11 jul.<br />

2005.<br />

57 GRONDIN, op. cit., p.181-185; Cf. MORA, op. cit., vol.2, p.1327.<br />

58 GRONDIN op. cit., p.185-187.<br />

28


esboços de compreensão adequados à realidade, deixando que as próprias coisas “falass<strong>em</strong>”,<br />

ou seja, expressass<strong>em</strong> sua alteridade. Concebida como a “arte de interpretar”, a hermenêutica<br />

implicaria num processo de uma elaboração sucessiva de projetos de sentido 59 .<br />

Preocupado com uma compreensão voltada à objetividade das ciências do espírito,<br />

Gadamer elaborou o conceito de consciência da “história efetual” (Wirkungsgeschichte) – ou<br />

“história dos efeitos”, termo cunhado no século XIX para designar o estudo das interpretações<br />

produzidas por uma época. Disso foi feito um princípio para toda a hermenêutica<br />

gadameriana, devido à exigência de conscientização da própria situação hermenêutica a fim<br />

de controlá-la. Se é grande a s<strong>em</strong>elhança com Heidegger nesse ponto, a distinção é que, para<br />

Gadamer, a história efetual não está <strong>em</strong> poder do hom<strong>em</strong>: esse é submetido a ela mais do que<br />

t<strong>em</strong> consciência. Por isso a função basilar da história efetual <strong>em</strong> relação a toda<br />

compreensão 60 .<br />

Ao considerar desta forma o condicionamento histórico-efetual, Gadamer foi de<br />

encontro ao historicismo, o qual postulava poder escapar de tal condicionamento através da<br />

distância histórica. Por isso o autor afirmava que “os preconceitos de cada um, muito mais do<br />

que os juízos, são a realidade histórica de seu ser”. Sendo a consciência efetuada pela<br />

História, dever-se-ia, pois, esclarecer a própria historicidade, s<strong>em</strong> perder de vista os limites de<br />

tal esclarecimento. Longe de se incorrer no tradicionalismo – como afirmaram alguns de seus<br />

críticos – Gadamer propunha que, pela hermenêutica, se descobriss<strong>em</strong> novos caminhos a<br />

partir dos preconceitos e da tradição 61 .<br />

Com Gadamer, da mesma forma que com Heidegger, a aplicação não seria algo<br />

secundário à compreensão, de modo que ambas coincidiriam, porque qu<strong>em</strong> se compreende se<br />

transporta para a compreensão, num ato de “introduzir-se num acontecimento da tradição”.<br />

Não se poderia, pois, excluir o sujeito interpretante – como pensava o historicismo – mas<br />

entender-se-ia um texto escutando nele a resposta para os probl<strong>em</strong>as da época <strong>em</strong> que é lido,<br />

de forma que um texto somente “fala” se o intérprete tiver questões. Destarte, é aí que a<br />

consciência histórico-efetual foi inserida na dialética da pergunta e da resposta, fazendo da<br />

compreensão uma relação de conversação: só há compreensão porque há conversação, ou<br />

59<br />

REALE e ANTISERI, op. cit., p.691s; SACADURA, op. cit., p.777; GRONDIN, op. cit., p.186-189.<br />

60<br />

Cf. Id., p.189-191.<br />

61<br />

Cf. Id., p.191s; MORA, op. cit., vol.2, p.1166.<br />

29


seja, porque algo da tradição da qual se faz parte é capaz de dirigir-se ao intérprete. Tal<br />

entendimento da compreensão não se reduziria, então, à captação intelectual de um contexto<br />

objetivado e isolado num enunciado. Linguag<strong>em</strong> não seria, nesse contexto, apenas um meio<br />

de transmissão das tradições a ser compreendido, mas um acontecimento no mundo cujo<br />

sentido deveria ser questionado, a ponto de dar possíveis novos rumos essas tradições 62 .<br />

Com essa hermenêutica ou lógica da pergunta e da resposta, Gadamer apontou o<br />

centro da filosofia hermenêutica, na concepção de que o próprio ser seria dialogante. Se<br />

compreensão é diálogo, não existiria nenhum enunciado afirmativo – como era postulado pela<br />

lógica locucional – mas sim perguntas e respostas. A verdade de um enunciado poderia ser<br />

encontrada, portanto, nos pressupostos desse enunciado, que são as perguntas, última forma<br />

lógica motivadora de qualquer enunciado: “não existe nenhum enunciado que não possa ser<br />

entendido como resposta a uma pergunta e que só assim possa ser entendido realmente”. Eis o<br />

que se chamou de “fenômeno hermenêutico originário” – o qual r<strong>em</strong>eteria à “palavra interior”<br />

estóico-agostiniana. “O que é enunciado não é tudo. Somente o inexpresso transforma o que é<br />

dito <strong>em</strong> palavras que nos pod<strong>em</strong> alcançar”. S<strong>em</strong> minorar o valor do dito, Gadamer propôs<br />

atentar conjuntamente para a conversação interior, de forma que se pode entender sua<br />

expressão: “ser, que pode ser compreendido, é linguag<strong>em</strong>” 63 .<br />

Foi pela consideração da conversação interior que Gadamer formulou a pretensão<br />

de universalidade da hermenêutica. Com isso, não significa que ele pretendesse absolutizar a<br />

sua filosofia – o que incorreria no tão objetado historicismo. Significa, porém, que a<br />

hermenêutica ultrapassa o âmbito das ciências do espírito para permear também o horizonte<br />

filosófico, pois a busca por compreensão e linguag<strong>em</strong> seria uma expressão da facticidade<br />

humana e, portanto, de ord<strong>em</strong> ontológica. O ser humano viveria, assim, <strong>em</strong> e a partir da<br />

conversação, de forma que seu desejo por linguag<strong>em</strong> seria expressão de sua finitude. A<br />

linguag<strong>em</strong> não foi, portanto, o objeto da hermenêutica gadameriana, mas seu fio condutor,<br />

enquanto portadora de tradição e, por conseguinte, de experiência do mundo e de consciência<br />

histórica 64 .<br />

O fato de uma conversação estar s<strong>em</strong>pre presente <strong>em</strong> toda parte onde algo<br />

chega à fala, seja sobre quê e com quer for, quer se trate de outra pessoa ou<br />

62<br />

Cf. MORA, op. cit., vol.2, p.1166 e 1327; GRONDIN, op. cit., p.192-196.<br />

63<br />

Cf. MORA, op. cit., p.1166s.<br />

64<br />

Cf. Id., p.1167; GRONDIN, op. cit., p.200-205.<br />

30


de alguma coisa, de uma palavra, ou de um sinal de fogo (Gottfried Benn) –<br />

é isso que perfaz a universalidade da experiência hermenêutica 65 .<br />

O pensamento de Gadamer é considerado um das mais significativos à Filosofia<br />

cont<strong>em</strong>porânea desde a obra magna de Heidegger, Ser e t<strong>em</strong>po. Verdade e método forneceu<br />

amplas contribuições e suas teorias estiveram presentes <strong>em</strong> várias tendências: na orientação<br />

para a linguag<strong>em</strong> com a “linguistic turn” (“virada lingüística”) anglo-saxã; na filosofia<br />

prática, com o retorno ao neoaristotelismo; na teoria científica, com o contextualismo<br />

paradigmático de Kuhn. Entr<strong>em</strong>entes, também vários autores promoveram críticas a Gadamer<br />

através de debates, sobretudo Betti, Habermas e Jacques Derrida (1930-2004) – esse último,<br />

promotor do desconstrutivismo pós-moderno, asseverou que Gadamer teria recorrido à<br />

metafísica por reclamar o pressuposto de boa vontade de compreender 66 .<br />

1.1.8 – “Hermenêutica metódica” de Betti e da Escola de Frankfurt 67<br />

Emílio Betti (1890-1968), inspirado <strong>em</strong> Schleiermacher e Dilthey, defendia uma<br />

hermenêutica mais sujeita aos padrões científicos, a fim de que lograsse maior objetividade<br />

nas interpretações. Objetou sobretudo a teoria gadameriana da aplicação, afirmando que o<br />

intérprete deveria abstrair de suas projeções pessoais (preconceitos) para captar um<br />

significado tal como esse tivesse sido pensado pelo autor – sentido noético – e objetivado nas<br />

“formas significativas” (linguag<strong>em</strong>, gestos, monumentos e vestígios, por ex<strong>em</strong>plo). Sua<br />

postura foi, pois, a de reclamar o respeito para com o objeto da interpretação, ao qual o<br />

sentido não deveria ser imposto, mas extraído. Para Betti, somente num segundo momento é<br />

que haveria aplicações concretas e atualizações desse significado, o que por ora consistiria<br />

numa “significância” 68 .<br />

Para uma tal <strong>em</strong>presa hermenêutica, esse autor elaborou quatro regras gerais, as<br />

quais serviriam para repelir as arbitrariedades do processo de reconstrução interpretante. Esse<br />

65<br />

GADAMER apud GRONDIN, op. cit., p.207.<br />

66<br />

Cf. GRONDIN, op. cit., p.207-209, 223s; MORA, op. cit., p.669.<br />

67<br />

Qualificativo usado por Ricoeur, <strong>em</strong> Filosofia e linguaggio. Trad. e org. Domenico Jervolino. Milano:<br />

Edizioni Angelo Guerini e Associati, 1994, p.77.<br />

68<br />

Cf. MORA, op. cit., v.3, p.1328 e v.1, p.311; GRONDIN, op. cit., p.209-212; MARCONETTI, Supl<strong>em</strong>ento…,<br />

op. cit., p.134.<br />

31


projeto de uma hermenêutica positiva teria sido, porém, uma mera “filha do historicismo”,<br />

porquanto não seriam as regras que mitigariam o condicionamento da historicidade 69 .<br />

Jürgen Habermas (nascido <strong>em</strong> 1929), por sua vez, propusera uma crítica<br />

libertadora das ideologias <strong>em</strong> detrimento da universalização do conceito hermenêutico de<br />

compreensão. Habermas não contestou a pretensão gadameriana da universalidade da<br />

hermenêutica. Sua objeção era mais secundária: fazendo uso da crítica das ideologias e da<br />

psicanálise freudiana, ele afirmava que os conceitos de tradição e de autoridade iriam de<br />

encontro aos avanços do Iluminismo e que Gadamer teria deixado de reconhecer os limites da<br />

linguag<strong>em</strong> 70 .<br />

Até 1970, Habermas procurou relativizar o que considerava ser uma oposição<br />

gadameriana entre a verdade e o método e propôs uma cientificidade metodizante e<br />

objetivadora no âmbito social, dispondo da crítica social freudiano-marxista. Gadamer<br />

respondeu que jamais intentara opor verdade e método, senão negar que a verdade somente<br />

pudesse ser alcançada pelo método; retrucou, ainda, que a psicanálise não poderia ser aplicada<br />

à ciência social 71 .<br />

A partir dessa objeção, ocorrida na década de 80, Habermas procurou outros<br />

fundamentos para desenvolver seu pensamento, servindo-se de Wittgenstein para elaborar<br />

uma teoria do agir comunicativo baseada na pretensão de validade do uso da linguag<strong>em</strong>, que<br />

visaria comunicação e compreensão – o que difere pouco <strong>em</strong> relação ao pensamento de<br />

Gadamer, paradoxalmente. A partir de então, Habermas fez da universalização da<br />

compreensão-dialógica como o fim (telos) do uso da linguag<strong>em</strong> e deduziu disso pressupostos<br />

éticos, que constituíram o que lê chamou de “Ética do discurso”. Karl-Otto Apel deu<br />

seguimento a essa proposta e elaborou uma “macroética planetária”, asseverando que a ética<br />

já estaria pressuposta nos atos de linguag<strong>em</strong> pelos quais se compreende intersubjetivamente o<br />

sentido e a validade dos enunciados. Para ambos – como também para Adorno – a crítica das<br />

ideologias seria uma espécie de hermenêutica porque explicar os fenômenos sociais suporia<br />

69 Cf. GRONDIN, op. cit., p.212-214.<br />

70 Cf. Id., p.215-217.<br />

71 Cf. Id., p.217-220.<br />

32


interpretar os significados culturais, os quais expressariam interesses subjacentes às atividades<br />

do conhecimento 72 .<br />

1.2 – PAUL RICOEUR E SUA INSERÇÃO NA HISTÓRIA<br />

HERMENÊUTICA<br />

1.2.1 – Traços biográficos<br />

O filósofo Paul Ricoeur nasceu <strong>em</strong> Valence (Drôme), nordeste da França, <strong>em</strong> 27<br />

de fevereiro de 1913. Órfão desde muito cedo (1915), foi educado por seus avós, que eram<br />

protestantes huguenotes. Viúvo e pai de cinco filhos, Ricoeur faleceu de causas naturais na<br />

madrugada do dia 22 de maio de 2005, aos 92 anos de idade, <strong>em</strong> Chatenay Malabry, próximo<br />

a Paris, depois de meses padecendo de probl<strong>em</strong>as cardíacos. É reconhecido como um dos<br />

maiores pensadores do período pós-guerra 73 .<br />

Licenciou-se <strong>em</strong> filosofia pela universidade de Rennes, noroeste francês, <strong>em</strong><br />

1935. Desde então, passou a lecionar <strong>em</strong> alguns colégios. Em 1939, foi convocado à Segunda<br />

Guerra Mundial e mantido prisioneiro por quatro anos na Polônia e na Al<strong>em</strong>anha – onde<br />

estudou Karl Jaspers e Edmund Husserl. Após seu retorno à França, exerceu ofícios no Centro<br />

Nacional de Investigação Científica e, de 1948 a 1956, foi sucessor de Jean Hippolite na<br />

cadeira de História da Filosofia na faculdade de letras de Estrasburgo. Em seguida, por dez<br />

anos, foi catedrático de Filosofia na Sorbonne. A partir de 1966, participou ativamente da<br />

criação da Universidade de Nanterre, que foi um dos focos do “maio francês de 68” –<br />

contestação estudantil que ele apoiou de início, mas que posteriormente o derrubou do cargo<br />

de reitor <strong>em</strong> 1970. Desde então, passou a ministrar cursos <strong>em</strong> diversos outros países: na<br />

72<br />

Cf. Id., p.220-222; RICOEUR, Filosofia e linguaggio, p.78; MARCONETTI, Primeiros el<strong>em</strong>entos de<br />

Filosofia. Campo Grande: UCDB, 2003, p.158.<br />

73<br />

Cf. MORA, op. cit., v.4, p.2537; MASSARO, Domenico. La comunicazione filosofica. 3. Il pensiero<br />

cont<strong>em</strong>poraneo. tomo B. (Dalla svolta linguistica alla logica virtuale). Trento: Paravia Editori, p.692; Stanford<br />

Encyclopedia of Philosophy. Disponível <strong>em</strong>: . Acesso <strong>em</strong>: 18 jul.<br />

2005; Morreu o filósofo francês Paul Ricoeur. UOL últimas notícias. Disponível <strong>em</strong>:<br />

. Acesso <strong>em</strong>: 11 jul. 2005. Por ocasião da morte<br />

de Ricoeur, Jaques Chirac, presidente francês, o definiu como um “espírito livre” e “pensador exigente da<br />

modernidade”; François Fillon, Ministro da Educação do país, ressaltou <strong>em</strong> sua pessoa a presença de “um<br />

pensamento que s<strong>em</strong>pre privilegiou o princípio da responsabilidade pessoal e o respeito humano”. Morre o<br />

filósofo francês Paul Ricoeur. UOL últimas notícias. Disponível <strong>em</strong>:<br />

. Acesso <strong>em</strong>: 30 mai. 2005.<br />

33


Bélgica (<strong>em</strong> Louvain); nos Estados Unidos, nas universidades de Chicago (University of<br />

Chicago Divinity School), Haverford, Yale e Columbia; também esteve ligado a estudiosos de<br />

seu pensamento na Itália, como aqueles do Instituto Italiano para Estudos Filosóficos de<br />

Nápoles 74 .<br />

Ricoeur foi amigo de Emmanuel Mounier, precursor do personalismo e fundador<br />

da Revista Esprit, de cujo comitê participou a partir de 1947 e na qual, três anos depois,<br />

passou a publicar diversos artigos, sobretudo referentes ao que denominou “filosofia da<br />

vontade”. Foi diretor da Revue de métaphysique et de morale (Revista de Metafísica e Moral)<br />

a partir de 1974 e fundou o Centre de recherches phénoménologiques et herméneutiques<br />

(Centro de pesquisas fenomenológicas e hermenêuticas) 75 .<br />

Recebeu diversos prêmios, entre os quais: o Prêmio Hegel de Stoccarda <strong>em</strong> 1985;<br />

o Prêmio Dante, <strong>em</strong> Firenze, <strong>em</strong> 1988; o Prêmio Karl Jaspers <strong>em</strong> 1989, <strong>em</strong> Heidelberg; o<br />

Prêmio Leopold Lucas, <strong>em</strong> Tübingen, 1990; o Grande Prêmio de Filosofia da Acad<strong>em</strong>ia<br />

Francesa <strong>em</strong> 1991; o Prêmio Balzan <strong>em</strong> 1999; <strong>em</strong> 2003, o Prêmio Internacional Paulo VI 76 ;<br />

<strong>em</strong> 2004, o prêmio John W. Kluge – importante recompensa norte-americana no campo das<br />

ciências humanas. Ricoeur também participou de vários colóquios filosóficos na residência<br />

papal de verão, <strong>em</strong> Castel Gandolfo, a convite de João Paulo II 77 .<br />

74 Cf. MASSARO, op. cit., p.692; Ricoeur tra storia e persona. Movimento Giovanile Salesiano Triveneto.<br />

Disponível <strong>em</strong>: . Acesso <strong>em</strong>:<br />

30 mai. 2005; o filósofo francês Paul Ricoeur. UOL últimas notícias. Disponível <strong>em</strong>:<br />

. Acesso <strong>em</strong>: 11 jul. 2005.<br />

75 Cf. UOL últimas notícias. Disponível <strong>em</strong>: < http://noticias.uol.com.br/ultnot/2005/05/21/ult32u11302.jhtm>.<br />

Acesso <strong>em</strong>: 11 jul. 2005; FUSARO, Diego. Paul Ricoeur. Disponível <strong>em</strong>:<br />

. Acesso <strong>em</strong>: 26 fev. 2005.<br />

76 Na entrega desse prêmio, o papa João Paulo II definiu Ricoeur como “um hom<strong>em</strong> de fé <strong>em</strong>penhado na defesa<br />

dos valores humanos e cristãos” e conhecido “pela generosa contribuição ao diálogo ecumênico entre católicos e<br />

reformados”. Cf. Noticiário da Rádio Vaticano. Disponível <strong>em</strong>:<br />

. Acesso <strong>em</strong>: 11 jul.<br />

2005.<br />

77 Cf. Morreu o filósofo francês Paul Ricoeur. UOL últimas notícias. Disponível <strong>em</strong>:<br />

. Acesso <strong>em</strong>: 11 jul. 2005; Stanford<br />

Encyclopedia of Philosophy. Disponível <strong>em</strong>: . Acesso <strong>em</strong>: 18 jul.<br />

2005; Ricoeur tra storia e persona. Movimento Giovanile Salesiano Triveneto. Disponível <strong>em</strong>:<br />

. Acesso <strong>em</strong>: 30 mai. 2005.<br />

34


O pensamento <strong>ricoeur</strong>iano é fruto do diálogo com várias correntes e pensadores.<br />

Sua base é encontrada no Personalismo Cristão de Emmanuel Mounier 78 e no Existencialismo<br />

Cristão de Gabriel Marcel, b<strong>em</strong> como na Fenomenologia de Edmund Husserl, Scheler e<br />

Pfänder. Outros autores existencialistas também foram assaz influentes, como Martin<br />

Heidegger, Karl Jaspers, Jean-Paul Sartre e Merleau-Ponty – diante dos quais Ricoeur<br />

desenvolvera uma atitude mais “afirmativa”, ao propor a reconciliação do hom<strong>em</strong> com seu<br />

mundo. São seus interlocutores, ad<strong>em</strong>ais, a Lingüística, o Marxismo, o Estruturalismo, a<br />

Psicanálise e a História 79 .<br />

Pode-se dizer que seu pensamento passou por três fases. Na primeira, destacou-se<br />

a “filosofia da vontade”, aplicando a fenomenologia eidética com o cuidado de não incorrer<br />

no idealismo comum <strong>em</strong> Husserl. Na segunda fase, Ricoeur superou a fenomenologia<br />

enxertando-lhe a hermenêutica, na esteira de Heidegger e Gadamer, com a investigação da<br />

condição ontológica da compreensão – indo além da exegese de textos, rumo à compreensão<br />

da existência. Em sua fase mais recente, motivado pelo contexto universitário norteamericano,<br />

foi relevante o contato com a analítica da linguag<strong>em</strong> – filósofos de Cambridge e<br />

Oxford, como Wittgenstein, Austin e Searle – b<strong>em</strong> como o interesse pela reflexão moral e<br />

política 80 .<br />

1.2.2 – Principais obras<br />

As principais obras de Paul Ricoeur, nos originais <strong>em</strong> francês, inglês e italiano,<br />

são: K. Jaspers et la philosophie de l’existence (com Mikel Dufrenne), 1947; Gabriel Marcel<br />

et Karl Jaspers: Philosophie du mystère et philosophie du paradoxe, 1948; Philosophie de la<br />

volonté I. Le volontaire et l’involontaire, 1950; Histoire et Vérité, 1955; La pensée sauvage et<br />

le structuralisme,1963; De l’interprétation. Essai sur Freud, 1965; Husserl: an analysis of his<br />

phenomenology, 1967; Philosophie de la volonté II: Finitude et culpabilité 1. L’homme<br />

faillible. 2. La symbolique du mal, 1960; Le conflit des interprétations. Essais<br />

d’herméneutique,1969; Political and social essays, 1974; La métaphore vive, 1975;<br />

78 Sobre a relação de Ricoeur com o Personalismo e sua contribuição a essa corrente, cf. DANESE, Attilio. Il<br />

contributo de Ricoeur al personalismo. Reflexão (Revista quadrimestral do Instituto de Filosofia PUCCAMP),<br />

Campinas, ano XXII, n.69 (A Hermenêutica de Paul Ricoeur), set./dez. 1997, p.35-72.<br />

79 Cf. MORA, op. cit., v.4, p.2537s; SAFATLE, Vladimir. Teoria da solidão impossível. Folha de São Paulo.<br />

São Paulo, 29 mai. 2005. Caderno Mais!, p.8; NOVASKI, op. cit., p.108.<br />

80 Cf. MORA, op. cit., v.4, p.2538s; MASSARO, op. cit., p.694.<br />

35


Interpretation Theory: discourse and the Surplus of Meaning, 1976; La sémantique de<br />

l’action, 1977 (com D. Tifeneau); La révélation (com Emmanuel Lévinas), 1977;<br />

Recherchers sur la Philosophie et le Langage, 1982; T<strong>em</strong>ps et récit 1: T<strong>em</strong>ps et récits, 1983;<br />

T<strong>em</strong>ps et récit 2: La configuration du t<strong>em</strong>ps dans le récit de fiction,1984; T<strong>em</strong>ps et récit 3: Le<br />

t<strong>em</strong>ps raconté, 1985; Du texte à l’action. Essais d’herméneutique II, 1986; À l’école de la<br />

phénoménologie, 1986; Lectures on ideology and utopia, 1986; Soi-même comme un autre,<br />

1990; Amour et justice. Liebe und Gerechtigkeit, 1990; Lectures I. Autour du politique, 1991;<br />

Lectures II. La contrée des philosophes, 1992; Lectures III. Aux frontières de la philosophie,<br />

1994; Filosofia e linguaggio (organização de Domenico Jervolino), 1994 ; La critique et la<br />

conviction, 1995; Le juste I, 1995; Réflexion fatte. Autobiographie intellectuelle, 1995; Amour<br />

et justice, 1997; Autr<strong>em</strong>ent : lecture d’Autr<strong>em</strong>ent qu’être ou Au-delà de l’essence<br />

d’Emmanuel Levinas, 1997; La quête du sens, 1999; La mémoire, l'histoire, l'oubli, 2000; Le<br />

juste II, 2001; Sur la traduction, 2004; Parcours de la reconnaissance: trois études, 2004 81 .<br />

Em língua portuguesa, pode-se encontrar as seguintes obras: O conflito das<br />

interpretações, 1978; A crítica e a convicção, 1997; As culturas e o t<strong>em</strong>po, 1975; Da<br />

interpretação, 1977; O discurso da ação, 1988; Do texto à ação, 1989; História e verdade,<br />

1968; Teoria da interpretação, 1987; Indivíduo e poder, 1988; Interpretações e ideologias,<br />

1990; Ideologia e utopia, 1991; O si mesmo como um outro, 1991 ; T<strong>em</strong>po e narrativa 1,<br />

1994; T<strong>em</strong>po e narrativa 2, 1995; Leituras 1 – <strong>em</strong> torno do político, 1995; Leituras 2 – A<br />

região dos filósofos, 1996; Leituras 3 – Nas fronteiras da filosofia, 1996; T<strong>em</strong>po e narrativa<br />

3, 1997; O mal, 1998; A metáfora viva, 2000; Outramente, 1999 82 .<br />

1.2.3 – A posição de Ricoeur na tradição hermenêutica<br />

Tendo sido esboçada a história da hermenêutica, resta saber qual é a atitude de<br />

Ricoeur perante a rica tradição que o precedeu. Foi com Schleiermacher (século XIX) e<br />

Dilthey que, na visão dele, o probl<strong>em</strong>a hermenêutico fora assumido pela Filosofia. Antes<br />

81 Cf. MORA, op. cit., v.4, p.2539; GRONDIN, op. cit., p.308s; FUSARO, op. cit.; Archives de Philosophie du<br />

droit. Disponível <strong>em</strong>: . Acesso <strong>em</strong>: 18 jul. 2005; MACÉ,<br />

Marielle. Décès de Paul Ricoeur. Fabula. Disponível <strong>em</strong>: .<br />

Acesso <strong>em</strong>: 18 jul. 2005.<br />

82 Cf. MORA, op. cit., v.4, p.2539.<br />

36


deles, porém, o autor destaca dois usos da interpretação, os quais são basilares para a sua<br />

própria concepção de hermenêutica 83 .<br />

O primeiro uso é aduzido por Ricoeur como “d<strong>em</strong>asiado ‘longo’”: o conceito de<br />

interpretação elaborado pelos filósofos gregos, que a identificaram com a expressão ou<br />

significação. Não obstante essa amplitude, a contribuição assaz relevante para toda a sua<br />

teoria veio de Aristóteles, que elaborou o conceito de “analogia do ser”. Constituindo uma<br />

“unidade probl<strong>em</strong>ática de uma pluralidade irredutível de significações” 84 , o ser poderia<br />

significar muitas coisas – como substância, qualidade, quantidade, t<strong>em</strong>po e lugar – e tal<br />

plurivocidade do ser no discurso seria inevitável para o Estagirita. É nesse ponto que Ricoeur<br />

encontra apoio para desenvolver uma interpretação baseada na multiplicidade de sentidos, não<br />

porque Aristóteles teria desenvolvido essa probl<strong>em</strong>ática, mas porque teria aberto uma brecha<br />

a ela <strong>em</strong> seu pensamento lógico-ontológico da univocidade 85 .<br />

Por outro lado, o autor aponta a exegese bíblica como o conceito diametralmente<br />

oposto, já “d<strong>em</strong>asiado ‘curto’”, na qual, s<strong>em</strong> perder consideravelmente seu significado<br />

original, a hermenêutica passou a indicar a ciência da interpretação das Sagradas Escrituras. A<br />

despeito do caráter “curto” desse conceito – devido à referência à autoridade (monástica,<br />

colegial ou eclesiástica) e sobretudo devido à aplicação a um único texto literário (a Bíblia) –<br />

Ricoeur chama a atenção dos filósofos para essa segunda tradição, dada a sua contribuição<br />

com noções relevantes como as de analogia, alegoria e sentido simbólico. De maior<br />

importância, porém, é o caminho que a exegese desenvolveu na Idade Média, estendendo a<br />

noção de “texto” para além da de “escritura”, voltando-se à leitura do “livro da natureza” – o<br />

que deu orig<strong>em</strong> à interpretatio naturae, desenvolvida por Spinoza 86 .<br />

É a partir da leitura dessas duas importantes tradições que Ricoeur formula seu<br />

próprio conceito de interpretação, definindo “a hermenêutica como a ciência das regras<br />

exegéticas, e a exegese como a interpretação de um texto particular ou de um conjunto de<br />

signos suscetível de ser considerado como um texto” 87 . Em tal projeto, ele conjuga as duas<br />

posturas hermenêuticas possíveis: a da “manifestação e restauração de um sentido” (“vontade<br />

83 Cf. NOVASKI, op. cit., p.110; SACADURA, op. cit., p.775.<br />

84 AUBENQUE apud RICOEUR, Da interpretação, p.30.<br />

85 Cf. BEUCHOT, op. cit., p.144; RICOEUR, Da interpretação, p.30.<br />

86 Cf. Id., p.28-31; BEUCHOT, op. cit., p.145.<br />

87 RICOEUR, op. cit., p.32.<br />

37


de ouvir”) e a da “desmistificação” (vontade de suspeita”) 88 , de forma que seu intento “não é<br />

outro senão o de redescobrir a autenticidade do sentido graças a um esforço vigoroso de<br />

desmistificação” 89 . Por esses e d<strong>em</strong>ais fatores é que Ricoeur pode ser considerado postulador<br />

de uma “Hermenêutica crítica”, como é mostrado na obra Hermenêutica e crítica das<br />

ideologias, a qual nasceu de uma análise dos confrontos entre Gadamer e Habermas 90 .<br />

88<br />

Cf. RICOEUR, op. cit., p.33.<br />

89<br />

JAPIASSU In: Id., Interpretação e ideologias. Trad. e org. Hilton Japiassu. Rio de Janeiro: Francisco Alves,<br />

1977, p.01.<br />

90<br />

Cf. MORA, op. cit., p.1328.<br />

38


ELEMENTOS CARACTERÍSTICOS<br />

DA HERMENÊUTICA RICOEURIANA<br />

39


2 – ELEMENTOS CARACTERÍSTICOS DA HERMENÊUTICA<br />

RICOEURIANA<br />

Se inicialmente, <strong>em</strong> Da interpretação, Ricoeur entende a atividade interpretativa<br />

como “um trabalho de compreensão visando a decifrar os símbolos” e define símbolo como<br />

“uma expressão lingüística de duplo sentido que requer uma interpretação” 91 , é sobretudo a<br />

existência humana o objeto principal dessa atividade. Com Marx, Nietzsche e Freud – a qu<strong>em</strong><br />

conferiu o divulgado adjetivo de “mestres da suspeita” – Ricoeur percebe a ilusão da<br />

consciência imediata (o cogito): o sujeito não pode ser considerado idêntico à consciência, o<br />

que leva Ricoeur a unir a Hermenêutica à Fenomenologia, na atestação de uma existência de<br />

caráter probl<strong>em</strong>ático 92 . Para esse filósofo, o horizonte da interpretação, no qual se pode<br />

perguntar pelo sentido, não é lugar sereno, mas acidentado, o que não impede que Ricoeur<br />

proponha a transformação do mundo mediante a interpretação 93 .<br />

2.1 – A “VIA LONGA” E SUA PROPOSTA DE CÍRCULO<br />

HERMENÊUTICO<br />

A Hermenêutica <strong>ricoeur</strong>iana insere-se num topos de franco diálogo com<br />

Heidegger e Gadamer, porquanto os três são unânimes no enfoque ontológico 94 – <strong>em</strong>bora para<br />

Ricoeur a Ontologia seja o ponto de chegada e não o de largada, como afirmava Heidegger 95 .<br />

Sua Hermenêutica é desenvolvida a partir da Fenomenologia e dirige-se a uma investigação<br />

91 Cf. RICOEUR, Da interpretação, p.19.<br />

92 Cf. NOVASKI, op. cit., p.112-116.<br />

93 Cf. HOMEM, Edson de Castro. Considerações sobre a obra “Conflit des interprétations. Éssais<br />

d’Herméneutique de Paul Ricoeur”. Uma proposta de leitura. Reflexão. Revista quadrimestral do Instituto de<br />

Filosofia PUC-Campinas, ano XXII, n.69 (A Hermenêutica de Paul Ricoeur), set.-dez.1997, p.123; DANESE,<br />

op. cit., p.51.<br />

94 Cf. MORA, op. cit., p.1328.<br />

95 Cf. NOVASKI, op. cit., p.111.<br />

40


da riqueza lingüística, mormente da probl<strong>em</strong>ática do símbolo. A compreensão, para ele, t<strong>em</strong><br />

como meio a interpretação e “substitui o mundo natural do corpo e da coisa pelo mundo<br />

cultural do símbolo e do sujeito, [sic] por um mundo da vida cultural” 96 .<br />

O intento <strong>ricoeur</strong>iano não é o de pôr termo à questão hermenêutica; ele próprio<br />

afirma que “não há hermenêutica geral, não há Cânon universal para a exegese, as teorias<br />

separadas e opostas dizendo respeito às regras da interpretação” 97 . Nessa postura, o autor<br />

assumiu um caminho ontológico e epist<strong>em</strong>ológico a que chamou “via longa”: se <strong>em</strong><br />

Heidegger e Gadamer desenvolveu-se a “via curta”, separando-se a Filosofia das Ciências,<br />

Ricoeur apresenta uma nova proposta 98 .<br />

2.1.1 – A proposta de círculo hermenêutico<br />

O leitmotiv “explicar mais para compreender melhor” traduz a proposta<br />

<strong>ricoeur</strong>iana de que a “verdade” e o “método”, isto é, a explicação (dimensão científica) e a<br />

compreensão (dimensão filosófica), formam um único círculo hermenêutico: duas forças<br />

dialéticas que compaginam no trabalho de interpretação. É esse o seu projeto de uma<br />

“epist<strong>em</strong>ologia da interpretação”, dirigido à constituição de uma hermenêutica metódica 99 .<br />

Essa superação da antinomia explicação-compreensão proposta por Dilthey é<br />

basilar no pensamento <strong>ricoeur</strong>iano e revela <strong>em</strong> seu esforço de fundamentar as ciências de<br />

forma que ambos os movimentos teriam o mesmo valor, mas possuiriam características<br />

diametralmente opostas. Tal proposta nasce do descrédito da pretensão gnosiológica de dizer<br />

a última palavra sobre a realidade, seja no nível veritativo, seja no nível metodológico – por<br />

isso Ricoeur chama as ciências pretensiosas de cripto-metafísicas. O que o autor intenta é<br />

propor uma inteligibilidade dinâmica, capaz de integrar as duas dimensões 100 .<br />

96 DON IHDE apud MORA, op. cit., v.3, p.1328.<br />

97 Cf. RICOEUR, Da interpretação, p.32.<br />

98 Cf. NOVASKI, op. cit., p.111e123;<br />

99 Cf. MORA, op. cit., p.1327; RICOEUR, Interpretação e ideologias, p.134; BEUCHOT, op. cit., p.145;<br />

SACADURA, op. cit., p.780. Para Ricoeur, Gadamer não conseguiu conjugar suficient<strong>em</strong>ente os dois termos e o<br />

próprio título de Verdade e método revela uma dicotomia, já que “a alternativa prima sobre a conjunção”, num<br />

confronto entre o conceito heideggeriano de verdade e o conceito diltheyano de método. Ricoeur teria chegado a<br />

sugerir que se trocasse seu título para “Verdade ou método” para que houvesse maior sintonia com o conteúdo.<br />

Cf. MASSARO, op. cit., p.692s.<br />

100 Cf. IANNOTTA, op. cit., p.31s.<br />

41


S<strong>em</strong> [...] diálogo com as ciências, a filosofia corre o risco de se enclausurar<br />

numa reflexão narcisista, fascinada pela questão de sua morte e da sua<br />

sobrevivência. Em contrapartida, <strong>em</strong> favor desse diálogo, a filosofia pode<br />

assegurar o seu próprio futuro, ajudando simultaneamente os cientistas a<br />

reflectir [sic] sobre o duplo estatuto de epist<strong>em</strong>e e de tekhne da sua<br />

ciência 101 .<br />

Com isso, poder-se-ia questionar qual seria o lugar da Filosofia se, com a<br />

explicação ou a compreensão, tudo seria âmbito da ciência. Isso, porém, não acontece quando<br />

se põe a pergunta pelo sentido. Importa, pois, assumir a compreensão como foi pensada por<br />

Heidegger, como interrogação sobre tudo o que compõe a experiência: o eu, o mundo, Deus.<br />

Explicação e compreensão relacionam, pois, não como exclusivas uma <strong>em</strong> relação à outra,<br />

mas articuladas num mesmo processo de interpretação, tanto na dimensão epist<strong>em</strong>ológica<br />

(enquanto há continuidade e descontinuidade de métodos), quanto na dimensão ontológica<br />

(pois a verdade não se dissolve na incerteza) 102 .<br />

É no texto que ambas se articulam de forma privilegiada, pois, <strong>em</strong>bora a<br />

linguag<strong>em</strong> seja o lugar da articulação sist<strong>em</strong>ática de sinais (S<strong>em</strong>iótica) e isso se dê<br />

autonomamente, é pelo discurso que se desenvolve tal articulação, o que indica que a<br />

linguag<strong>em</strong> não é fim a si mesma, mas organização de mensagens – as quais exprim<strong>em</strong><br />

compreensões. Assim, o estudo dos signos ajuda a despsicologizar a interpretação, que, por<br />

sua vez, liga o sist<strong>em</strong>a de sinais à vida, abrindo-o à transcendência, de modo que<br />

compreensão e explicação não são estranhos. Vida e ciência pod<strong>em</strong> coabitar s<strong>em</strong> se<br />

confundir 103 .<br />

2.1.2 – Hermenêutica e ontologia<br />

A preocupação ontológica perpassa toda a obra de Ricoeur: a existência humana é<br />

t<strong>em</strong>a constante <strong>em</strong> suas investigações. O foco é, pois, o desvelamento do sujeito a si mesmo e<br />

a compreensão do ser <strong>em</strong> geral, não s<strong>em</strong> antes partir da reflexão mediatizada desse mesmo<br />

sujeito – “passando pela análise dos signos, dos símbolos e dos textos, incluindo estes a<br />

linguag<strong>em</strong>, a acção [sic], a narração”, como se pode constatar no sumário de O si-mesmo<br />

101 RICOEUR In: HAHN, Lewis Edwin (dir.). A filosofia de Paul Ricoeur. 16 ensaios críticos e respostas de Paul<br />

Ricoeur aos seus críticos. Lisboa: Instituto Piaget, 1995, p.11.<br />

102 Cf. IANNOTTA, op. cit., 32s.<br />

103 Cf. Id., p.34; RICOEUR, Teoria da interpretação, p.98s.<br />

42


como um outro. É essa postura de uma aproximação indireta e crítica do sujeito que<br />

caracteriza a “via longa” <strong>ricoeur</strong>iana, o que justifica a autoria de “textos de rara profundidade<br />

e de elevada capacidade teórica de elucidação e de estímulo à reflexão”. Um fato que<br />

enriquece sua obra é a notável dialogicidade de Ricoeur com diversos autores, seja os mais<br />

atuais, seja os mais clássicos, o que o faz abordar as mais variadas áreas – Filosofia da<br />

linguag<strong>em</strong>, Teoria da ação, Teoria narrativa, Ética e Ontologia 104 .<br />

O pensamento <strong>ricoeur</strong>iano ainda pode ser enquadrado na tradição das filosofias do<br />

sujeito, muito <strong>em</strong>bora proponha mudanças sérias <strong>em</strong> seu programa, entre as quais a mais<br />

central delas é a contestação da “auto-fundamentação absoluta na consciência de si” – como<br />

pretendia Descartes 105 . Assim, ele propõe uma fundamentação “transgressiva”, que rompe<br />

com a exclusividade da linguag<strong>em</strong> lógico-formal da epist<strong>em</strong>ologia científica e sua pretensão<br />

de garantia veritativa e verificável do fundamento. É nesse ponto que o autor lança um<br />

estatuto epist<strong>em</strong>ológico original: a atestação (attestation), que é “aquela espécie de confiança<br />

ou de segurança (estatuto epist<strong>em</strong>ológico não dóxico) que qualquer um t<strong>em</strong> de ser (estatuto<br />

ontológico) sobre o modo do si (estatuto fenomenológico)” 106 .<br />

Ad<strong>em</strong>ais, Ricoeur desenvolve uma ontologia cuja metáfora é a da “terra<br />

prometida” que, nas narrativas da Bíblia cristã, é avistada por Moisés, mas não possuída por<br />

ele. Também lhe é peculiar o fato de apontar para um excesso de sentido na vida, que permite<br />

substituir o desespero do ser-para-a-morte pela positividade de um “ser-para-a-vida”. Cabe<br />

aqui uma sucinta e relevante leitura da ontologia <strong>ricoeur</strong>iana:<br />

Ontologia concreta e fragmentária, não autosuficiente mas aberta a. Aberta à<br />

infinidade transcendente dos horizontes, portanto, não fechada e limitada às<br />

estreitezas de um domínio. A via indireta da hermenêutica <strong>ricoeur</strong>iana se<br />

apresenta como a tarefa filosófica forte de pensar a totalidade e como a<br />

consciência crítica de não poder exauri-la com a absolutização de um<br />

104 Cf. GAMA, José. Hermenêutica da cultura e ontologia <strong>em</strong> Paul Ricoeur. Revista Portuguesa de Filosofia,<br />

Braga, tomo LII, jan.-dez. 1996, p.388. Tais áreas são as linhas-mestras de O si-mesmo como um outro. Essa<br />

interdisciplinaridade é própria dos hermenêuticos, que operam na chamada “razão hermenêutica”. Cf.<br />

SACADURA, op. cit., p.769.<br />

105 Cf. GAMA, op. cit., p.389; RANDI, Rui Teixeira. O probl<strong>em</strong>a do cogito: Descartes, Nietzsche e Ricoeur.<br />

Revista de Ética, Campinas, v.6, n.1, jan-jun. 2004, p.218. Em resposta ao artigo de Madison, Ricoeur nega que<br />

seu pensamento possa ser chamado “pós-metafísico”, pois considera muito estreita a acepção heideggeriana de<br />

metafísica. Cf. HAHN, op. cit., p.65.<br />

106 RICOEUR apud IANNOTTA, op. cit., p.47; cf. GAMA, op.. cit., p.381. Considero ser pertinente lançar a<br />

hipótese de que a “atestação” seria uma resposta a uma tarefa exposta no final da introdução de Ser e t<strong>em</strong>po que<br />

não fora concluída por Heidegger: estabelecer “o fundamento ontológico do ‘cogito sum’ de Descartes e a<br />

introdução da ontologia medieval na probl<strong>em</strong>ática da ‘res cogitans’”. Cf. HEIDEGGER, Ser e t<strong>em</strong>po, p.71.<br />

43


propósito ou com a absolutização de uma linguag<strong>em</strong>. Totalidade aberta que<br />

busca o universal e o encontra s<strong>em</strong>pre no interior de um contexto. Totalidade<br />

dialógica, que visa à possibilidade de universais s<strong>em</strong>pre novos, apesar da<br />

contrariedade da expressão. Totalidade de si, que vive de si e do outro, que<br />

se encontra e se dispersa, que se descobre e se modela incessant<strong>em</strong>ente a<br />

partir do outro, no outro e enquanto outro 107 .<br />

Supondo um ser humano marcado pela desproporção, Ricoeur propõe um<br />

caminho filosófico que parte das pré-compreensões. Destarte, sua fenomenologia<br />

hermenêutica se abre a uma reflexão de caráter notadamente concreto, na qual se toma a<br />

mediação como uma longa e paciente via de análise, que não termina <strong>em</strong> si mesma, mas é<br />

constante motivo para a decifração dos traços humanos. É assim que o horizonte<br />

metodológico da análise chega ao horizonte da verdade, num movimento no qual a reflexão<br />

não se identifica com a intuição, mas com “apropriação de nosso esforço de existir e de nosso<br />

desejo de ser através das obras que test<strong>em</strong>unham esse esforço e esse desejo” 108 . Trata-se,<br />

portanto, de um círculo hermenêutico dialógico, que sobrepõe o diálogo ao conflito, a<br />

conciliação à oposição, o arco hermenêutico explicação-compreensão à dicotomia 109 .<br />

Pode-se dizer, outrossim, que Ricoeur t<strong>em</strong> o projeto de uma “filosofia da vontade”<br />

a qual se dirige a uma apropriação do si ou, <strong>em</strong> outras palavras, o “desejo de ser cada vez<br />

mais ‘si mesmo’” 110 . Muito inspirado pelo filósofo Jean Nabert, Ricoeur desenvolve sua<br />

hermenêutica tendo por escopo a compreensão do sentido, sobretudo a compreensão de si,<br />

b<strong>em</strong> como do mundo e da história, de uma maneira indireta, por meio da interpretação das<br />

expressões, obras e atos que expressam o “desejo de ser” e o “esforço de existir” – categorias<br />

nabertianas – do ser humano 111<br />

Fato importante a considerar, ad<strong>em</strong>ais, é que Ricoeur intenta medrar um “discurso<br />

filosófico autônomo”, independente de sua fé protestante. Ele mesmo confessa que as<br />

motivações para envolver-se com algumas t<strong>em</strong>áticas t<strong>em</strong> ligação com sua religião, mas há<br />

uma explícita preocupação <strong>em</strong> não desenvolver uma criptoteologia <strong>em</strong> seus escritos<br />

filosóficos, sobretudo sobre t<strong>em</strong>as ontológicos, os quais ele está convicto não possuír<strong>em</strong><br />

107<br />

IANNOTTA, op. cit., p.68.<br />

108<br />

RICOEUR apud IANNOTTA, op. cit., p.30.<br />

109<br />

Cf. Id., p.28s.<br />

110<br />

Cf. JERVOLINO In: RICOEUR, Filosofia e linguaggio, orelha do livro e p.XVIII; NOVASKI, op. cit.,<br />

p.112.<br />

111<br />

Cf. SACADURA, op. cit., p.773.<br />

44


qualquer “amálgama ontoteológico” 112 . Distintamente de Lévinas, Ricoeur não deixaria que a<br />

fé ultrapassasse a filosofia 113 .<br />

2.2 – HERMENÊUTICA FENOMENOLÓGICA<br />

A “via longa” da filosofia <strong>ricoeur</strong>iana segue da fenomenologia à hermenêutica<br />

passando pelos signos. Ricoeur toma por pressuposto essa Fenomenologia husserliana –<br />

mormente o conceito de Lebenswelt (mundo-vida) – para desenvolver seu caminho<br />

hermenêutico e afirma, na obra O conflito das interpretações, que a Hermenêutica é um<br />

“enxerto” na Fenomenologia, ilustrando a continuidade entre uma e outra.<br />

2.2.1 – Momento fenomenológico<br />

É na obra Philosophie de la volonté I. Le volontaire et l’involontaire (1950) que<br />

Ricoeur situa sua discussão no nível fenomenológico, ao asseverar que “a tarefa de uma<br />

descrição do voluntário e do involuntário é propriamente aquela de aproximar-se de uma<br />

experiência integral do Cogito, até os limites da afetividade mais confusa” 114 . A redução<br />

eidética operada nessa obra recai sobre os fatos da culpa e da Transcendência, com o fim de<br />

alcançar o sentido do voluntário e do involuntário. Assim, ao voltar-se ao “território do<br />

sentido”, o autor escapa da sujeição à coisa-<strong>em</strong>-si e intenta abrir-se à “constituição” da coisa,<br />

ou seja, à atividade pela qual a consciência confere sentido aos objetos – não de modo<br />

imediato, mas através de um processo no qual as sínteses ativas (sobre as quais se formulam<br />

os aspectos da coisa) s<strong>em</strong>pre r<strong>em</strong>et<strong>em</strong> às sínteses passivas, que são mais radicais. Da mesma<br />

forma que com a coisa, a consciência não é capaz de r<strong>em</strong>eter a dados originais a respeito de si<br />

mesma, o que descarta a pretensão de “transparência absoluta”. Eis porque Ricoeur aponta a<br />

112 Cf. RICOEUR, O si-mesmo como um outro, op. cit., p.36s.<br />

113 Cf. DELACAMPAGNE, Christian. História da filosofia no século XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997,<br />

p.266. Essa afirmação a respeito de Lévinas é contestada <strong>em</strong> COSTA, Márcio Luis. Lévinas. Uma introdução.<br />

Petrópolis: Vozes, 2000, p.215: “o pensamento filosófico de Lévinas não é uma teologia”.<br />

114 RICOEUR apud IANNOTTA, op. cit., p.14. A tradução italiana apresenta “evidenza integrale del Cogito”<br />

(evidência integral do Cogito); no entanto, na página seguinte, há duas referências à citada passag<strong>em</strong> dizendo<br />

“esperienza integrale del Cogito” (experiência integral do Cogito), o que pode ser sinal de um erro de tradução.<br />

Como não se dispõe da versão original francesa para verificar, preferiu-se utilizar o termo “experiência”, que<br />

parece estar mais de acordo com o pensamento de Ricoeur.<br />

45


intencionalidade como a maior descoberta fenomenológica, porquanto supõe que a<br />

consciência de algo é s<strong>em</strong>pre antes consciência de si 115 .<br />

É aí, pois, que surge a necessidade da Hermenêutica, quando o “método<br />

fenomenológico entrelaça os fios da ‘verdade’, que se ‘dá a pensar’ <strong>em</strong> Ricoeur segundo o<br />

estilo fragmentário da mediação dos sinais” 116 . Realizar a “experiência integral do Cogito”<br />

necessita, portanto, assumir a “existência como corpo”, sede do involuntário, o que rompe<br />

com o primado da representação teórica do Cogito cartesiano e, por conseguinte, mostra que o<br />

sentido se encontra fragmentado no variado ser da circunstancialidade humana. O Cogito<br />

integral supera a rígida divisão entre sujeito e objeto, pela qual são delimitadas as áreas<br />

específicas das ciências do espírito e das ciências naturais 117 .<br />

Destarte, a intenção de Ricoeur – sintetizada leitmotiv “explicar mais para<br />

compreender melhor” – é a de superar qualquer presunção de absolutismo, seja para o lado do<br />

corpo, seja para o da alma, como ficou marcado pelo dualismo cartesiano. O Cogito integral<br />

torna-se, pois, uma “comum <strong>subjetividade</strong>”, que une estruturas voluntárias e involuntárias,<br />

aduzindo, além disso, uma liberdade que oscila entre a iniciativa e a necessidade, a<br />

independência e a dependência, o agir e o padecer. Assim,<br />

o nexo entre o voluntário e o involuntário não se encontra no limite extr<strong>em</strong>o<br />

de dois universos de discurso, <strong>em</strong> que um seria uma reflexão sobre o<br />

pensamento e o outro uma física do corpo; a intuição do Cogito é a intuição<br />

mesma do corpo unida ao querer, que o suporta e que o domina 118 .<br />

Um discurso que se restringe ao nível descritivo – próprio da fenomenologia – não<br />

é suficiente para estabelecer o vínculo entre a vontade e o corpo. Exige-se, pois, uma<br />

participação ativa da própria “encarnação como mistério”, isto é, uma passag<strong>em</strong> da<br />

objetividade à existência, essa marcada pelo paradoxo e pelo conflito. O que Ricoeur aponta<br />

é, pois, que o método não pode suplantar a verdade, isto é, que as exigências metodológicas<br />

da descrição não pod<strong>em</strong> mitigar a experiência global de ser-encarnado. É a própria finitude<br />

humana que impossibilita soluções que se consider<strong>em</strong> últimas. Não significa, porém, uma<br />

115<br />

Cf. IANNOTTA, op. cit., p.14s.<br />

116<br />

Id., p.15.<br />

117<br />

Cf. Id., p.15s.<br />

118<br />

Cf. Id., p.17.<br />

46


finitude como limite negativo; antes, como participação positiva a um ser entre o ato e a<br />

potência 119 .<br />

2.2.2 – Momento hermenêutico<br />

Enquanto a fenomenologia postula uma “ciência rigorosa, visão original do eu,<br />

primado da consciência imanente, <strong>subjetividade</strong> transcendental, imediação da reflexão como<br />

responsabilidade de si”, a hermenêutica supõe “horizonte ontológico da compreensão,<br />

interpretação, participação, abertura da <strong>subjetividade</strong> a partir do texto, dialética do<br />

distanciamento e da apropriação que da originalidade do ego conduz à constituição do si,<br />

responsabilidade como resposta” 120 .<br />

Ricoeur parte da fenomenologia à hermenêutica justamente por criticar o<br />

idealismo de Husserl 121 , que propusera r<strong>em</strong>eter ao originário através da suspensão do mundo.<br />

É com Heidegger que se <strong>em</strong>preende tal crítica: é justamente o mundo que não pode ser<br />

suspenso, porque o ser é lançado nele; destarte, quando alguém nasce, isso ocorre s<strong>em</strong>pre<br />

dentro de um horizonte prévio, no qual se encontram os seres que se lhe manifestam e com os<br />

quais se relaciona – de forma que perceber a si é s<strong>em</strong>pre perceber o outro. Assim,<br />

o resultado final da fenomenologia fugiu de seu projeto inicial, e é seu<br />

desagrado que ela descobre, no lugar de um sujeito idealista fechado <strong>em</strong> seu<br />

sist<strong>em</strong>a de significações, um ser vivente que t<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre como horizonte de<br />

todos os seus projetos, um mundo, o mundo 122 .<br />

O eu não pode dar-se como uma intuição originária, porque a abertura a si e ao<br />

mundo ocorre s<strong>em</strong>pre num âmbito de pré-compreensão, que é de caráter hermenêutico. É,<br />

pois, a t<strong>em</strong>poralidade da Lebenswelt que pressupõe qualquer constituição e impede a<br />

suspensão da transcendência, fazendo com que o trabalho de interpretação suplante a intuição<br />

119 Cf. IANNOTTA, op. cit., p.17s.<br />

120 Cf. Id., p. 15s;24.<br />

121 Ricoeur afirma que a própria fenomenologia husserliana faz recurso à hermenêutica, como Husserl permite<br />

entrever nas Investigações lógicas e nas Meditações cartesianas, ao falar de um trabalho de “esclarecimento”<br />

(interpretação, pois) sobre a “simples percepção” do material bruto das sensações – chegando a afirmar que “o<br />

objeto que se manifesta, assim como se manifesta, transcende a manifestação como fenômeno”. Mais evidente<br />

ainda é o tratamento do probl<strong>em</strong>a do alter ego, quando a “tomada analogizante” indica um recurso à Auslegung<br />

(interpretação). Cf. Id., p.29.<br />

122 RICOEUR, O conflito das interpretações apud IANNOTTA, op. cit., p.19.<br />

47


husserliana, porquanto a “dependência da interpretação nos confrontos da compreensão<br />

explica o fato que a interpretação preceda s<strong>em</strong>pre a reflexão e supere qualquer constituição do<br />

objeto por parte de um sujeito soberano” 123 . Se na via fenomenológica há a suposição de um<br />

sujeito absolutamente transparente a si mesmo, na via hermenêutica essa suposição cede lugar<br />

a uma compreensão mediatizada de si mesmo pelos signos, símbolos e textos 124 .<br />

O salto hermenêutico <strong>ricoeur</strong>iano é marcado, a fortinori, pela “implicação do<br />

intérprete no trabalho de interpretação, compreendendo-se a si mesmo no seu ser, ou no seu<br />

‘modo de ser’” 125 . A relação sujeito-objeto privilegiada pelo propósito epist<strong>em</strong>ológico é<br />

levada, pois, a abrir-se à condição ontológica da participação, através da qual “aquele que se<br />

interroga participa da coisa mesma sobre a qual interroga” 126 . Assim:<br />

É tal participação que é sucessivamente apreendida como finitude do<br />

conhecer. A acentuação negativa que conota o termo mesmo de finitude<br />

entra na relação toda positiva de participação – que é a experiência<br />

hermenêutica mesmo – somente porque a <strong>subjetividade</strong> já avançou a sua<br />

pretensão de ser o fundamento último. Tal pretensão, tal exagero, tal hybris,<br />

faz então enfatizar, por contraste, a relação de participação como finitude 127 .<br />

Reconhecer a participação significa pôr <strong>em</strong> dúvida a consciência imanente. Isso o<br />

fizeram os “mestres da suspeita”, ao denunciar que há vários el<strong>em</strong>entos – como o inconsciente<br />

– que preced<strong>em</strong> a pretensa consciência. Eis que uma identidade probl<strong>em</strong>ática <strong>em</strong>erge nesse<br />

ponto, implicando que<br />

[...] a consciência de si pode ser presumida por outras razões. Na medida <strong>em</strong><br />

que a consciência de si é um diálogo da alma consigo mesma e o diálogo<br />

pode ser sist<strong>em</strong>aticamente alterado pela violência e por todas as intrusões<br />

das estruturas de dominação naquelas da comunicação, a consciência de si<br />

enquanto comunicação interiorizada pode ser tão dúbia quanto o é a<br />

consciência do objeto, mesmo se por razões diversas e específicas 128 .<br />

123<br />

IANNOTTA, op. cit., 19.<br />

124<br />

Cf. IANNOTTA, op. cit., p.14 e 45; GAMA, op. cit., p.384.<br />

125<br />

Id., p.384.<br />

126<br />

RICOEUR apud IANNOTTA, op. cit., p.20.<br />

127<br />

RICOEUR, Do texto à ação apud IANNOTTA, p.20, grifos do autor. A autora, Iannota, utiliza o termo<br />

appartenenza, o qual preferiu-se aqui traduzir por “participação”, por considerar ser mais compreensível que<br />

“pertença”.<br />

128<br />

Id., p.21.<br />

48


É preciso, pois, conceber um sujeito cuja constituição subsuma as “distorções<br />

fundamentais da comunicação (...) ao mesmo título das ilusões da percepção na constituição<br />

da coisa”, isto é, um sujeito que é último <strong>em</strong> termos de conhecimento – já que o conhecimento<br />

é resultado da escuta do outro, que o situa na esteira da tradição. Eis, então, um ser<br />

historicamente condicionado, que se relaciona com a tradição de maneira que “oscila entre o<br />

distanciamento e a proximidade”. Nisso, o texto funciona como mediação de um<br />

distanciamento criativo 129 .<br />

Outro motivo que o conduz à via da interpretação é a investigação do sentido dos<br />

entes, porquanto s<strong>em</strong>pre que se pergunta sobre um ente qualquer, é sobre o sentido desse ente<br />

que se quer perguntar 130 . Se a fenomenologia se abre ao universo do sentido, a hermenêutica<br />

reconhece que tal sentido é dissimulado e, antes, articulado na linguag<strong>em</strong> – porquanto a<br />

experiência é dizível (idéia gadameriana da Sprachlichkeit, modo de ser linguag<strong>em</strong>). Por isso,<br />

Ricoeur lança mão do contato com as ciências da linguag<strong>em</strong>, o que supera a dicotomia entre<br />

as ciências naturais e as do espírito, entre método e verdade e entre explicação e compreensão.<br />

Não que, com isso, ele intentasse absolutizar a linguag<strong>em</strong>, mas porque essa é “o principal<br />

pressuposto fenomenológico da hermenêutica”, enquanto é capaz de fazer voltar ao nível pré-<br />

lingüístico da experiência. Em suma, a linguag<strong>em</strong> importa, porque faz referência a –<br />

referência essa que antecede o fato da enunciação 131 .<br />

Heidegger já subordinara o enunciado ao discurso existencial – que habita no<br />

mesmo plano da situação e da compreensão, que estruturam o ser-no-mundo. Na esteira de<br />

Heidegger e de Gadamer – <strong>em</strong>bora privilegiando o nível mediacional dos textos – Ricoeur<br />

afirma que<br />

a consciência de ser exposta aos efeitos da história, que torna impossível a<br />

reflexão total sobre preconceitos e precede cada objetivação do passado por<br />

parte do histórico, não é redutível aos aspectos propriamente lingüísticos da<br />

transmissão do passado (...). O jogo da distância e da proximidade,<br />

constitutivo da conexão histórica, é aquilo que v<strong>em</strong> à linguag<strong>em</strong> antes<br />

mesmo de ser uma produção da linguag<strong>em</strong> 132 .<br />

129 Cf. IANNOTTA, op. cit., p.21s.<br />

130 Cf. COSTA, Miguel Dias. A Lógica do sentido na Filosofia hermenêutica de Paul Ricoeur. Revista<br />

Portuguesa de Filosofia, Braga, tomo XLVI, fasc.1, jan.-mar. 1990, p.145.<br />

131 Cf. RICOEUR, Do texto à ação apud IANNOTTA, op. cit., p.24s.<br />

132 Id., p.25s.<br />

49


Ricoeur relaciona à epoché fenomenológica do mundo o distanciamento<br />

hermenêutico: do mesmo modo que se deve colocar-se à distância do vivido para que esse se<br />

torne significativo, também a tradição histórica deve ser afastada para chegar à consciência da<br />

participação. O outro aspecto do “enxerto” da hermenêutica na fenomenologia é o retorno do<br />

primado da visão 133 , que se volta à recuperação do eu naquilo <strong>em</strong> que ele próprio se atua, se<br />

encarna e se realiza, isto é, nos signos, de forma a descobrir esse ser que, concomitant<strong>em</strong>ente,<br />

já é dado, mas não ainda. Eis, o que Iannotta chama de “o paradoxo da ontologia <strong>ricoeur</strong>iana”<br />

que subsume a estrutura do ato e da potência na constituição do ser-no-mundo 134 .<br />

2.3 – A FILOSOFIA REFLEXIVA<br />

Em todas as investigações de Ricoeur, uma mesma questão subjacente merece<br />

destaque: a pergunta filosófica que envolve o próprio questionador, o qual, ao perguntar,<br />

acaba se envolvendo no questionamento e encontra a si mesmo como introdução à resposta. É<br />

esse o “estilo reflexivo” da filosofia, que o autor prefere chamar de “reflexão concreta”,<br />

aludindo a um sujeito que se entende no contexto da participação humana. Se a filosofia<br />

reflexiva nascera com Descartes e fora seguida por Kant, Fichte, Husserl e neokantianos<br />

(como Nabert), com Ricoeur ela assume outra conotação:<br />

[...] a possibilidade da compreensão de si como o sujeito das operações de<br />

conhecimento, de volição, de apreço, e assim por diante. A reflexão é esse<br />

ato de retorno sobre si mediante o qual um sujeito reencontra na clareza<br />

intelectual e na responsabilidade moral o princípio das operações entre as<br />

quais se dispersa e se esquece como sujeito 135 .<br />

Reflexão para Ricoeur t<strong>em</strong>, pois, uma referência clara: reflexão do sujeito sobre si<br />

mesmo – isto é, o “ato de retorno a si”, como afirma <strong>em</strong> sua obra Do texto à ação 136 . Daí,<br />

contudo, pode-se perguntar sobre o que é de fato esse sujeito – que o autor prefere chamar de<br />

“si”, para enfatizar o valor reflexivo. Em Descartes, a posição do si é “uma verdade que se<br />

133 Para o método fenomenológico de Husserl, o conhecimento de algo qualquer deveria ocorrer pelo<br />

conhecimento do que esse algo deixa manifestar-se ao sentidos do pesquisador, e tal processo ocorreria s<strong>em</strong>pre<br />

perspectivamente. O pesquisador seria, pois, alguém que se move <strong>em</strong> torno desse algo para, no ato mesmo de<br />

procurar, compreender os aspectos revelados. Cf. GARNICA, Antonio Vicente Marafioti. Considerações sobre a<br />

fenomenologia hermenêutica de Paul Ricoeur. Trans/form/ação (Revista de Filosofia UNESP), São Paulo, v.16,<br />

1993, p.45.<br />

134 IANNOTTA, op. cit., p.26s.<br />

135 RICOEUR apud IANNOTTA, op. cit., p.12, grifo do autor.<br />

136 Cf. GAMA, op. cit., p.389.<br />

50


coloca por si mesma” de maneira indeduzível e inverificável, já que existir é pensar. Fichte,<br />

na mesma perspectiva, denomina essa verdade básica de “juízo tético”. Em ambos os casos, a<br />

própria autoposição do si é considerada reflexão – dado que essa é entendida como um “[...]<br />

retorno à pretensa evidência da consciência imediata”. É essa conclusão que Ricoeur objeta,<br />

afirmando-a como insuficiente 137 .<br />

O conceito de sujeito no pensamento <strong>ricoeur</strong>iano não resulta da confusão entre<br />

Cogito reflexivo e consciência imediata – pela qual se concebe que o sujeito é aquilo que<br />

acredita ser, numa autofundação originária e transparente. Ante um tal imediatismo – o<br />

“paraíso perdido da fenomenologia” – o autor propõe um sujeito já não como fundamento da<br />

realidade, mas como tarefa, porquanto “[...] o sujeito que se interpreta interpretando os signos<br />

não é mais o Cogito: é um existente que descobre, mediante a exegese de sua vida, que é<br />

colocado no ser antes ainda de pôr-se e de possuir-se” 138 . Reflexão, portanto, supõe um<br />

trabalho de decifração e constitui “[...] o esforço para reapreender o Ego do Ego Cogito no<br />

espelho de seus objetos, de suas obras e, finalmente, de seus atos” 139 .<br />

Outro ponto não menos importante é que reflexão não equivale meramente à<br />

crítica do conhecimento. Tendo, num primeiro momento, aproximado-se de Kant para refutar<br />

Descartes, o pensamento <strong>ricoeur</strong>iano afasta-se agora da filosofia kantiana para declarar:<br />

É contra essa redução da reflexão a uma simples crítica que digo, com Fichte<br />

e seu sucessor francês Jean Nabert, que a reflexão é menos uma justificação<br />

da ciência e do dever, que uma reapropriação de nosso esforço para existir.<br />

A epist<strong>em</strong>ologia é apenas uma parte dessa tarefa ampla: t<strong>em</strong>os que recuperar<br />

o ato de existir, a posição do “si” <strong>em</strong> toda a espessura de suas obras 140 .<br />

Apresenta-se aí, ad<strong>em</strong>ais, uma abertura à vertente de caráter prático e ético.<br />

Ricoeur toma a ética <strong>em</strong> um sentido spinozista, como totalidade do processo filosófico, capaz<br />

de engendrar a passag<strong>em</strong> “da alienação à liberdade e à beatitude”. Não recai, pois, na<br />

acentuação moral, mas sim no esforço do ego para existir e no seu desejo para ser.<br />

137 Cf. RICOEUR, Da interpretação, p.45s.<br />

138 RICOEUR apud IANNOTTA, op. cit., p.13.<br />

139 RICOEUR, Da interpretação, p.45s. Cf. TONG, Lik Kuen. Ato, signo e consciência: pensando <strong>em</strong> conjunto<br />

com Ricoeur In: HAHN, op. cit., p.22.<br />

140 RICOEUR, Da interpretação, p.47.<br />

51


É nesse ponto que uma filosofia reflexiva reencontra e talvez salva a idéia<br />

platônica de que a própria fonte do conhecimento é Eros, desejo, amor, e a<br />

idéia spinozista de que ela é conatus, esforço. Esse esforço, porque é a<br />

posição afirmativa de um ser singular e não simplesmente uma ausência de<br />

ser. Esforço e desejo são duas faces da afirmação do “Si” na primeira<br />

verdade: existo 141 .<br />

Essa idéia de Eros – entendida por Platão como descendente de Penía (Penúria) e<br />

de Poros (Recurso) 142 – r<strong>em</strong>ete a um sujeito resultante da combinação entre a falta e a<br />

plenitude, um intervalo que reclama a compreensão integral desse sujeito 143 . Para tanto,<br />

importa a reflexão como uma “apropriação de nosso esforço para existir e de nosso desejo de<br />

ser, através das obras que dão test<strong>em</strong>unho desse esforço e desse desejo”. Eis, pois, a<br />

conjunção da reflexão à interpretação, quando se prescinde da intuição, num <strong>em</strong>penho de<br />

balizar a posição do sujeito por meio dos “signos esparsos no mundo”, cuja significação é<br />

revogável. Destarte, o pensamento <strong>ricoeur</strong>iano atinge o que ele denominou de “raiz do<br />

probl<strong>em</strong>a hermenêutico”:<br />

2.3.1 – A passag<strong>em</strong> dos símbolos à reflexão<br />

[...] Ao afirmar-se a si mesma, a reflexão compreende sua própria<br />

impotência <strong>em</strong> ultrapassar a vã e vazia abstração do “eu penso” e a<br />

necessidade de recuperar-se a si mesma decifrando seus próprios signos<br />

perdidos no mundo da cultura. Assim, a reflexão compreende que não é<br />

ciência, que precisa, para manifestar-se, reassumir os signos opacos,<br />

contingentes e equívocos que estão esparsos nas culturas <strong>em</strong> que nossa<br />

linguag<strong>em</strong> se enraíza 144 .<br />

Foi na obra La symbolique du mal (A simbólica do mal) que Ricoeur enunciou a<br />

“passag<strong>em</strong> à reflexão” e se questionava a respeito da articulação entre a interpretação dos<br />

símbolos e a reflexão filosófica, já que ele desejava continuar tanto a “ouvir a rica palavra dos<br />

símbolos e dos mitos” – momento pré-reflexivo – quanto a escutar a tradição filosófica<br />

ocidental – momento já reflexivo. A solução para tal dil<strong>em</strong>a foi inspirada <strong>em</strong> Kant: concluiu<br />

141<br />

RICOEUR, Da interpretação, p.47, grifos do autor.<br />

142<br />

Cf. REALE, Giovanni e ANTISERI, Dario. História da Filosofia. v.1 (Filosofia pagã antiga). São Paulo:<br />

Paulus, 2003. p.147.<br />

143<br />

Cf. TONG, op. cit., p.23s. Esse autor denomina tal intervalo de “diferença metafísica”. No próximo capítulo,<br />

encontrar-se-á a mesma distinção, sob o aspecto do Cogito exaltado <strong>em</strong> Descartes e do Cogito despedaçado <strong>em</strong><br />

Nietzsche.<br />

144<br />

RICOEUR, Da interpretação, p.48.<br />

52


que “o símbolo faz pensar [...], é o dom da linguag<strong>em</strong>”. A razão disso é que o símbolo,<br />

enquanto “estrutura lingüística de duplo sentido”, não possui somente valor expressivo – nível<br />

s<strong>em</strong>ântico – mas também valor heurístico – que alude à descoberta e compreensão de cada um<br />

<strong>em</strong> relação a si mesmo. Tomar o símbolo como “aurora da reflexão” significa, pois,<br />

considerar que ele não requer somente interpretação, mas também reflexão filosófica, a qual<br />

não é algo que se soma ao símbolo, mas deriva mesmo de sua estrutura 145 .<br />

Dessa referência, Ricoeur estabelece a proximidade entre mithos e logos, mito e<br />

Filosofia: o próprio “ato filosófico, <strong>em</strong> sua natureza íntima, não somente não exclui, como<br />

também requer algo como uma interpretação” 146 . Se parece “escandaloso” tentar estabelecer<br />

essa relação – sobretudo porque o símbolo é provido de um caráter aporético enquanto preso<br />

às línguas e culturas, é opaco (não transparente) e sua interpretação é revogável – o autor<br />

assevera que “justificar o recurso ao símbolo, <strong>em</strong> filosofia, consiste, finalmente, <strong>em</strong> justificar<br />

a contingência cultural, a linguag<strong>em</strong> equívoca e a guerra das hermenêuticas no próprio<br />

interior da reflexão” 147 .<br />

Ao supor esse trabalho de decifração, Ricoeur nega a possibilidade de se<br />

compreender a posição do ego por via da evidência psicológica, da intuição intelectual ou da<br />

visão mística. “Uma filosofia reflexiva é o contrário de uma filosofia do imediato [...], precisa<br />

ser ‘mediatizada’ pelas representações, pelas ações, pelas obras, pelas instituições e pelos<br />

monumentos que a objetivam”. Destarte, Ricoeur afasta desse seu projeto uma “filosofia da<br />

consciência”, porque a consciência já não é um dado, mas uma tarefa. Apoiado no<br />

pensamento de Malebranche e Kant, o autor considera que é certo que haja a percepção do eu<br />

enquanto pensante, mas isso não é uma idéia ou conhecimento de si mesmo, senão um<br />

sentimento. Para Ricoeur, pois, reflexão difere muito de intuição 148 .<br />

145<br />

Cf. RICOEUR, Da interpretação, p.41-45. A significação simbólica acontece de tal forma que somente é<br />

possível ir à significação secundária por meio da primária, ao perceber-se que o símbolo contém mais sentido<br />

que o sentido meramente literal. a significação simbólica acontece de tal forma que somente é possível ir à<br />

significação secundária por meio da primária, ao perceber-se que o símbolo contém mais sentido que o sentido<br />

meramente literal. Ricoeur distingue símbolo de alegoria porque, enquanto essa t<strong>em</strong> função simplesmente<br />

didática e é prescindível, aquele t<strong>em</strong> necessidade de existir s<strong>em</strong>pre que não se possa fazer uma abordag<strong>em</strong><br />

conceptual direta. Assim, diferente também de um conceito, o símbolo se abre a possibilidades s<strong>em</strong>ânticas<br />

intermináveis. Cf. Id., Teoria da interpretação, p.66-69.<br />

146<br />

Id., Da interpretação, p.46.<br />

147<br />

Id., p.45.<br />

148<br />

Cf. Id., p.46; GARRIDO, Sonia Vasquez. La hermeneutica del si y su dimenión ética. Reflexão (Revista<br />

quadrimestral do Instituto de Filosofia PUCCAMP), Campinas, ano XXII, n.69 (A Hermenêutica de Paul<br />

Ricoeur), set./dez.1997, p.102.<br />

53


2.3.2 – Símbolo e metáfora<br />

Da questão do símbolo, Ricoeur partiu <strong>em</strong> suas obras posteriores para a<br />

investigação sobre a metáfora. Abordar a poliss<strong>em</strong>ia da metáfora pareceu-lhe mais vantajoso<br />

do que abordar a do símbolo, uma vez que, nesse segundo caso, há uma maior complexidade<br />

por ultrapassar a Lingüística <strong>em</strong> direção a outras áreas – como a Psicanálise, a Poesia e a<br />

Fenomenologia da Religião. Por esse motivo Ricoeur, lança mão da teoria da metáfora para<br />

esclarecer a teoria dos símbolos 149 .<br />

O autor retoma a teoria da metáfora dos antigos retóricos – de Aristóteles, Cícero<br />

e Quintiliano até o século XIX – fazendo, porém, uma revisão fundamental, influenciado<br />

pelos autores da S<strong>em</strong>ântica moderna – como Richards, Max Black e Monroe Beandsley, para<br />

os quais há na metáfora uma criação de sentido que brota da tensão entre a interpretação<br />

literal e a metafórica – o que se contrapõe ao positivismo lógico, que considera cognitivo e<br />

s<strong>em</strong>ântico apenas o significado denotativo, enquanto o significado conotativo teria valor<br />

unicamente <strong>em</strong>otivo e extra-s<strong>em</strong>ântico 150 .<br />

Há, pois, numa metáfora autêntica, uma inovação s<strong>em</strong>ântica e já não uma ausência<br />

de informações novas acerca da realidade. Esse fato de atribuir predicados inabituais e<br />

inesperados geraria o que Ricoeur chama de “metáfora viva” – como é o título de uma de suas<br />

obras – cuja função é inventar sentidos, indo muito além das “metáforas mortas” – como, por<br />

ex<strong>em</strong>plo, dizer “pé de uma cadeira”. Para o autor, a repetição de uma metáfora viva e sua<br />

inserção <strong>em</strong> um léxico levaria a torná-la morta. Assim, uma metáfora viva é intraduzível,<br />

porque gera o seu próprio sentido e oferece algo novo, o que a livra de ser reduzida a um<br />

mero ornamento de linguag<strong>em</strong> 151 .<br />

Uma das razões porque o símbolo é inconversível à metáfora é que “a metáfora<br />

ocorre no universo já purificado do logos, ao passo que o símbolo hesita na linha divisória<br />

entre o bios e o logos. Dá test<strong>em</strong>unho da radicação primordial do Discurso da Vida”. Assim, a<br />

atividade simbólica goza de certa autonomia e de um status mais básico que a experiência<br />

metafórica, derivada do fato de ela se ligar a experiências pré-lingüísticas diversas. Ad<strong>em</strong>ais,<br />

149 Cf. RICOEUR, Teoria da interpretação, p.64-66.<br />

150 Cf. Id., p.57-62.<br />

151 Cf. Id., p.62-64.<br />

54


Ricoeur conclui que, “por um lado, há mais na metáfora do que no símbolo; por outro, há<br />

mais no símbolo do que na metáfora”: a metáfora t<strong>em</strong> a função de trazer à linguag<strong>em</strong> o<br />

sentido que está implícito no símbolo, assim como o símbolo, <strong>em</strong> sua bidimensionalidade,<br />

estende suas raízes para o não-s<strong>em</strong>ântico – a experiência – o que ultrapassa a superficialidade<br />

da metáfora 152 .<br />

Eis a relevância da decifração dos níveis de sentido na linguag<strong>em</strong> metafórica e<br />

simbólica para a reflexão. Mas Ricoeur afirma, <strong>em</strong> Teoria da interpretação, que somente isso<br />

não basta para uma teoria geral da hermenêutica, a qual deve subsumir o probl<strong>em</strong>a do<br />

discurso, como o que concerne à questão da escrita e da composição literária 153 .<br />

2.4 – HERMENÊUTICA E LINGUAGEM<br />

É devido à dimensão lingüística (Sprachlichkeit) humana que Ricoeur articula a<br />

investigação fenomenológica com a análise lingüística. Antes que tratá-las como adversárias,<br />

o autor procura reconhecer-lhes as especificidades para enriquecer seu discurso:<br />

2.4.1 – A linguag<strong>em</strong> como discurso<br />

A fenomenologia opera no nível do sentido do vivido, a análise lingüística<br />

sobre o plano dos enunciados. Uma define o nível de constituição, a outra o<br />

nível de expressão. A fenomenologia define o plano de fundação, a análise<br />

lingüística o plano de manifestação 154 .<br />

A <strong>em</strong>presa filosófica de Ricoeur busca “[...] reabrir o caminho da linguag<strong>em</strong> <strong>em</strong><br />

direção à realidade, na medida <strong>em</strong> que as ciências da linguag<strong>em</strong> tend<strong>em</strong> a atenuar, senão<br />

diretamente abolir, a ligação entre o signo e a coisa” 155 . Servindo-se dos sist<strong>em</strong>as platônico e<br />

aristotélico, que concebiam a linguag<strong>em</strong> como discurso 156 , Ricoeur tece sua crítica ao<br />

152 Cf. RICOEUR, Teoria da interpretação, p.75-81; Id., Filosofia e linguaggio, p.17s.<br />

153 Cf. Id., Teoria da interpretação, p.89s.<br />

154 RICOEUR, La sémantique de l’action apud IANNOTTA, op. cit., p.43.<br />

155 RICOEUR, Filosofia e linguaggio, p.01.<br />

156 Isto é, como logos, constituído pelo elo predicativo entre um nome (honoma) e um verbo (rhêma). Nisso, a<br />

verdade ou falsidade se expressaria nas frases, jamais nas palavras isoladas. Cf. RICOEUR, Teoria da<br />

interpretação, p.13; Id.,Outramente. Leitura do livro Autr<strong>em</strong>ent qu’être ou au-delà de l’essence de Emmanuel<br />

Lévinas Trad. Pergentino Stefano Pivatto. Petrópolis: Vozes, 1999, p.21.<br />

55


procedimento iniciado por Ferdinand de Saussure <strong>em</strong> Cours de linguistique général a partir da<br />

distinção entre a linguag<strong>em</strong> como langue e como parole 157 , que passou a ser aplicado também<br />

a textos inteiros, como o fez Claude Lévi-Strauss com os mitos. Como os sist<strong>em</strong>as s<strong>em</strong>ióticos<br />

são fechados, a linguag<strong>em</strong> deixou de ser tratada como mediação entre a mente e as coisas e<br />

passou a constituir um mundo próprio e auto-suficiente. Nesse momento, Ricoeur diz que ela<br />

“desapareceu como discurso” 158 .<br />

Ricoeur se nega, pois, à redução da linguag<strong>em</strong> nos moldes de um objeto definível<br />

totalmente pelos métodos científicos, como pretendia a análise lingüística. Para ele, há algo<br />

no uso da linguag<strong>em</strong> que excede os limites de um mero objeto: o caráter mediador da<br />

linguag<strong>em</strong>. Eis a sua razão:<br />

Para nós que falamos, a linguag<strong>em</strong> não é um objeto, mas uma mediação. E<br />

isso <strong>em</strong> um tríplice sentido: primeiramente ela é a mediação do hom<strong>em</strong> com<br />

o mundo, representa aquilo através do qual, por meio do qual nós<br />

exprimimos a realidade, a representamos, <strong>em</strong> suma t<strong>em</strong>os um mundo. A<br />

linguag<strong>em</strong> é depois mediação entre hom<strong>em</strong> e hom<strong>em</strong>. [...] O diálogo, o<br />

diss<strong>em</strong>os, é como um jogo de pergunta e resposta, a mediação final entre<br />

uma pessoa e uma outra pessoa. Enfim, a linguag<strong>em</strong> é mediação de si<br />

consigo mesmo. É mediante o universo dos signos, dos textos, das obras<br />

culturais que nos autocompreend<strong>em</strong>os 159 .<br />

Essa tríplice mediação é sintetizada na fórmula como Ricoeur define o ato de<br />

falar: “intenção de dizer algo sobre alguma coisa a alguém” 160 . O autor serve-se de Benveniste<br />

para sublinhar o caráter intencional do discurso, isto é, o fato de dizer alguma coisa sobre<br />

algo. Nesse aspecto, importante é considerar que somente palavras isoladas não pod<strong>em</strong><br />

revelar o sentido, mas sim uma frase tomada globalmente 161 .<br />

157<br />

Para Saussure, “langue é o código ou o conjunto de códigos – sobre cuja base falante o particular produz a<br />

parole como uma mensag<strong>em</strong> particular”. Enquanto o código é coletivo, sincrônico, virtual, anônimo (nãointencional)<br />

e inconsciente, a mensag<strong>em</strong> é individual, diacrônica (um evento e, pois, atual), transitória,<br />

intencional e consciente. Cf. Id., Filosofia e linguaggio, p.09s; Id., Teoria da interpretação, p.15.<br />

158<br />

RICOEUR, Teoria da interpretação, p.15-18. Ricoeur assevera que é próprio do mito girar <strong>em</strong> torno das<br />

aporias da existência; caso contrário, ele seria uma narrativa “estéril” e “uma necrologia dos discursos<br />

insignificantes da humanidade”. Cf. Id., p.98s; IANNOTTA, op. cit., p.34s.<br />

159<br />

RICOEUR, Filosofia e linguaggio, p.08.<br />

160<br />

Cf. Id., grifo do autor.<br />

161<br />

À distinção entre langue e parole Ricoeur propõe aquela entre o signo e a frase, considerando-as duas<br />

unidades irredutíveis da linguag<strong>em</strong>. Destarte, ele propõe uma separação entre S<strong>em</strong>iótica e S<strong>em</strong>ântica: uma que<br />

versa sobre a virtualidade do signo e a outra que trata da frase, a qual “compõe-se de signos, mas <strong>em</strong> si mesma<br />

não é um signo”. Assim, por tratar da frase, somente a S<strong>em</strong>ântica diz respeito ao sentido. Cf.RICOEUR, Teoria<br />

da interpretação, p.18-20. Ricoeur afirma que “a frase não é uma palavra mais longa ou mais complexa, é uma<br />

nova entidade lingüística” porque o símbolo t<strong>em</strong> a função de distinção, e a frase, de síntese (função predicativa).<br />

Cf. Id., Filosofia e linguaggio, p.09.<br />

56


Se Saussure considerava uma fraqueza epist<strong>em</strong>ológica o fato de uma Lingüística<br />

que versasse sobre o discurso (parole) como evento da linguag<strong>em</strong>, Ricoeur toma o ato do<br />

discurso como algo não meramente fugaz, mas capaz de “identificar-se e reidentificar-se<br />

como o mesmo, de maneira que o possamos dizer novamente ou por outras palavras”, e que,<br />

ao longo do t<strong>em</strong>po, “preserva uma identidade própria, que pode chamar-se [sic] o conteúdo<br />

proposicional, o ‘dito enquanto tal’”. Assim, junto ao ato de alguém falando (evento)<br />

encontra-se aquilo que o falante quer dizer (sua intenção) e aquilo que de fato diz (articulação<br />

entre identificação e predicação), o que faz da significação algo ao mesmo t<strong>em</strong>po noético e<br />

no<strong>em</strong>ático – isto é, presente na consciência e também fora dela. Eis o que ele chamou<br />

dialética do evento e da significação (sentido): ao mesmo t<strong>em</strong>po que o discurso é transitório,<br />

sua significação (articulação entre nome e verbo) permanece, permitindo que se compreenda o<br />

discurso 162 .<br />

Importa, ainda, assinalar que essa dialética t<strong>em</strong> aspecto interlocucionário ou<br />

alocucionário: evento enquanto “troca intersubjetiva, o acontecer do diálogo”, já que o local<br />

do discurso é o mesmo do diálogo. 163 Pelo diálogo, o ser humano ultrapassa a solidão<br />

fundamental de suas próprias experiências: não se pode comunicar a experiência pelo diálogo<br />

– “o que é experienciado por uma pessoa não pode transferir totalmente como tal e tal<br />

experiência para mais ninguém” – mas sim o conteúdo proposicional, isto é, a significação<br />

dessa experiência. Assim, o discurso só t<strong>em</strong> razão de existir quando há alguém para escutálo,<br />

de forma que “o ser-no-mundo que v<strong>em</strong> sustentado na linguag<strong>em</strong> é cont<strong>em</strong>poraneamente<br />

um ser-com aqueles que condivid<strong>em</strong> a mesma parole”. Destarte, a <strong>subjetividade</strong> do discurso é<br />

afirmada conjuntamente à inter<strong>subjetividade</strong> 164 .<br />

A própria linguag<strong>em</strong> é o processo pelo qual a experiência privada se faz<br />

pública. A linguag<strong>em</strong> é a exteriorização graças à qual uma impressão é<br />

transcendida e se torna uma expressão [...]. A exteriorização e a<br />

comunicabilidade são uma só e mesma coisa, porque nada mais são do que a<br />

elevação de uma parte da nossa vida ao logos do discurso 165 .<br />

A dialética do sentido e referência ajuda a iluminar ainda mais o entendimento de<br />

linguag<strong>em</strong> por Ricoeur, que parte do pressuposto de que há um lado objetivo na frase – o que<br />

162 Cf. RICOEUR, Teoria da interpretação, p.20-24.<br />

163 Cf. Id., p.26-29. Cf. Id., Filosofia e linguaggio, p.11s.<br />

164 Cf. Id., p.18s.<br />

165 Id., p.30s.<br />

57


a frase faz isto é, a significação da enunciação enquanto conteúdo proposicional – e um lado<br />

subjetivo – o que o locutor faz, isto é, a auto-referência, a dimensão ilocucionária do ato<br />

lingüístico e a intenção de reconhecimento por parte do ouvinte. Quanto ao lado objetivo,<br />

porém, duas vertentes são apresentadas: a do sentido e a da referência – conforme proposto<br />

por Gottlob Frege – <strong>em</strong> que a primeira é o “quê” do discurso, pura relação predicativa, e a<br />

segunda, o “acerca de quê” dele, isto é, a pretensão de dizer algo acerca da realidade, com<br />

valor de verdade. Tal dialética t<strong>em</strong> grande relevância ontológica, pois só ela<br />

[...] diz alguma coisa acerca da relação entre a linguag<strong>em</strong> e a condição<br />

ontológica do ser-no-mundo. A linguag<strong>em</strong> não é um mundo próprio. N<strong>em</strong><br />

sequer é um mundo. Mas, porque estamos no mundo, porque somos<br />

afectados [sic] por situações e porque nos orientamos mediante a<br />

compreensão <strong>em</strong> tais situações, t<strong>em</strong>os algo a dizer, t<strong>em</strong>os a experiência para<br />

trazer à linguag<strong>em</strong> 166 .<br />

O caráter referencial da linguag<strong>em</strong> t<strong>em</strong> importância central na teoria da<br />

linguag<strong>em</strong>, pois ele permite que a linguag<strong>em</strong> seja deveras significativa. Disso decorre que o<br />

signo deve s<strong>em</strong>pre estar <strong>em</strong> referência à coisa, o que marca a distância entre a S<strong>em</strong>iótica e a<br />

S<strong>em</strong>ântica, a qual “é a teoria que relaciona a constituição interna ou imanente do sentido à<br />

intenção exterior ou transcendente da referência” 167 .<br />

A maior implicação hermenêutica desses aspectos dialéticos para o entendimento<br />

da linguag<strong>em</strong> é a superação dos “preconceitos psicologizantes e existenciais” apresentados<br />

pela concepção de hermenêutica <strong>em</strong> Schleiermacher e Dilthey, centrada no evento lingüístico<br />

(o kerygma, no caso da teologia cristã) diante do qual interpretar seria captar a intenção do<br />

autor tal como o captaria seu auditório original. O que Ricoeur intenta não é incorrer <strong>em</strong> uma<br />

análise estrutural do conteúdo proposicional – que seria outra unilateralidade – mas sim o<br />

caráter dialético do discurso – seja pela polaridade do evento-significação, seja pela do<br />

sentido-referência 168 .<br />

166 Cf. RICOEUR, Teoria da interpretação, p.31s;78.<br />

167 Id., p.33.<br />

168 Cf. Id., p.33-35.<br />

58


2.4.2 – Fala e escrita<br />

Para Ricoeur, a escrita é “a plena manifestação do discurso”, porquanto é nela que<br />

se manifesta plenamente a separação entre significação e evento, a qual está apenas<br />

virtualmente presente na fala. Devido a esse fator, o texto logra uma “autonomia<br />

s<strong>em</strong>ântica” 169 .<br />

É com relação ao meio que se encontra a alteração mais evidente e fundamental<br />

entre a fala e a escrita pois, se a primeira alude à expressão vocal imediata (a voz), fisionomia<br />

ou gestos, a segunda deixa de apresentar esses fatores humanos e passa a fixar o discurso <strong>em</strong><br />

um “suporte exterior”, seja a pedra, a madeira, a argila, o papiro, o pergaminho, o papel, ou<br />

até mesmo o disquete, que são diferentes do corpo do falante. Essa fixação do discurso<br />

implica <strong>em</strong> uma maneira distinta de relacionar-se ao evento: no texto, o evento da fala não é<br />

fixado, mas somente o discurso enquanto o “dito”, ou seja, o no<strong>em</strong>a do ato de falar. Assim,<br />

parte-se do sagen (dizer) para a aus-sage, (enunciação) 170 , da vox à littera e da phoné à<br />

grammata, o que resulta numa tríplice libertação da escrita <strong>em</strong> relação à fala 171 .<br />

A primeira das libertações concerne à relação interlocucionária, pois a situação<br />

dialógica presente na fala deixa de existir. Isso afeta a referência do discurso ao seu locutor:<br />

no discurso falado há uma referência imediata ao falante por ele estar presente na situação de<br />

diálogo, permitindo que haja uma coincidência entre o que o locutor intenta dizer e o que<br />

significa de fato seu discurso; por outra parte, no discurso escrito rompe-se com a<br />

coincidência entre significação verbal textual e intenção mental do autor, fato esse que resulta<br />

na “autonomia s<strong>em</strong>ântica do texto”, quando o significado inscrito importa mais que o que o<br />

autor quis dizer. Por isso um texto t<strong>em</strong> um autor, já não um locutor 172 .<br />

Ricoeur considera o conceito de autonomia s<strong>em</strong>ântica como muito relevante à<br />

hermenêutica e adverte novamente ao risco de unilateralidades entre sentido e evento:<br />

169 Cf. RICOEUR, Teoria da interpretação, p.37.<br />

170 Cf. Id., p.38s; Id., Filosofia e linguaggio, p.222.<br />

171 Cf. Id., p.225; Id., Teoria da interpretação, p.40.<br />

172 Cf. Id., p.41s; Id., Filosofia e linguaggio, p.225s,<br />

Por um lado, teríamos o que W. K. Wimsatt chama a falácia intencional, que<br />

sustenta a intenção do autor como o critério para qualquer interpretação<br />

59


válida ao texto. E, por outro, o que eu chamaria, de um modo simétrico, a<br />

falácia do texto absoluto: a falácia da hipostasiação do texto como uma<br />

entidade s<strong>em</strong> autor. Se a falácia intencional passa por alto a autonomia<br />

s<strong>em</strong>ântica do texto, a falácia contrária esquece que num texto permanece um<br />

discurso dito por alguém, dito por alguém a mais alguém acerca de alguma<br />

coisa 173 .<br />

Do lado do ouvinte – a segunda libertação – as dess<strong>em</strong>elhanças faz<strong>em</strong>-se<br />

igualmente presentes: de um lado, um alguém envolvido na situação dialógica, ou seja, do<br />

face-a-face – segunda pessoa, pois – e, do outro lado, um leitor indeterminado, pelo fato de<br />

que é potencialmente qualquer pessoa que saiba ler. Disso nasce um paradoxo: quando ligado<br />

a um meio material, um discurso se torna mais espiritual. S<strong>em</strong>elhant<strong>em</strong>ente, ocorre também<br />

que<br />

[...] o probl<strong>em</strong>a da apropriação do sentido do texto se torna tão paradoxal<br />

como o da autoria. O direito do leitor e o direito do texto converg<strong>em</strong> numa<br />

importante luta, que gera a dinâmica total da interpretação. A hermenêutica<br />

começa onde o diálogo acaba 174 .<br />

Uma mensag<strong>em</strong> relaciona-se, ainda, com um código, visto que se submete a leis<br />

de composição chamadas “gêneros literários” – po<strong>em</strong>a, narrativa ou ensaio. Isso aproxima o<br />

discurso do âmbito da prática, da obra e do artesanato, permitindo que se fale <strong>em</strong> obras de<br />

discurso: “o autor aqui é não só o falante, mas também o fazedor da obra que é a sua obra”. A<br />

linguag<strong>em</strong> torna-se, destarte, a matéria-prima dessa produção e permanece tão autônoma<br />

quanto uma escultura 175 .<br />

Por fim, quanto à terceira libertação, pelo sentido, o discurso se dirige a várias<br />

entidades extralingüísticas, como coisas, estados e fatos. No caso da fala, as coisas referidas<br />

pod<strong>em</strong> fazer parte da situação comum ao locutor e ao ouvinte e é possível apontá-las por um<br />

gesto do locutor ou pelo próprio discurso, através de indicadores ostensivos (d<strong>em</strong>onstrativos,<br />

advérbios de t<strong>em</strong>po e lugar, t<strong>em</strong>pos verbais) e descrições definidas, as quais promov<strong>em</strong> uma<br />

identificação singular. Porém, mesmo no caso <strong>em</strong> que os gestos não exist<strong>em</strong>, qualquer<br />

identificação singular s<strong>em</strong>pre alude ao hic et nunc da situação dialogal, ou seja, s<strong>em</strong>pre<br />

depende de mostrações por parte dos dialogantes, de forma que “todas as referências na<br />

situação dialógica são, por conseguinte, situacionais”. Na escrita, <strong>em</strong> contrapartida, as marcas<br />

173<br />

Id., Teoria da interpretação, p.42.<br />

174<br />

Id., p.43.<br />

175<br />

Cf. Id., p.44.<br />

60


externas substitu<strong>em</strong> a voz, a face e o corpo do aqui e agora do diálogo; já não se pode ligar<br />

identificação e mostração e há uma distância espaço-t<strong>em</strong>poral entre locutor e leitor. O que se<br />

pode fazer nesse caso é reestruturar ao leitor as condições de referência ostensiva descrevendo<br />

a realidade para permitir que o leitor a perceba “como se” lá estivesse 176 .<br />

As implicações dessa tese são muitas. A primeira delas é que “graças à escrita, o<br />

hom<strong>em</strong> e só o hom<strong>em</strong> t<strong>em</strong> um mundo e não apenas uma situação [...]. Da mesma maneira que<br />

o texto liberta a sua significação da tutela da intenção mental, liberta também a sua referência<br />

dos limites da referência situacional”. Passa-se, pois, do que Gadamer chamava Unwelt<br />

(ambiente) ao Welt (mundo), permitindo-se falar, por ex<strong>em</strong>plo, <strong>em</strong> um “mundo grego” 177 .<br />

A segunda conseqüência diz respeito à impossibilidade de o discurso deixar de<br />

referir-se a alguma coisa. Mesmo o uso da poesia, na qual há valorização da mensag<strong>em</strong> <strong>em</strong><br />

detrimento da referência – já que nela se privilegia o aspecto fictício e não o descritivo – há<br />

alguma referência ao mundo. Uma exceção, porém, se dá nos casos de poesias ao estilo de<br />

Mallarmé, que são um caso limite de texto s<strong>em</strong> referência. Tal referência especial produzida<br />

pela poesia é bastante produtivo, pois “liberta um poder de referência para aspectos do nosso<br />

ser-no-mundo que não se pod<strong>em</strong> dizer de um modo descritivo directo [sic], mas só por alusão,<br />

graças aos valores referenciais das expressões metafóricas e, <strong>em</strong> geral, simbólicas”. Daí<br />

<strong>em</strong>erge um novo conceito de mundo como “o conjunto das referências desvendadas por todo<br />

tipo de texto, descritivo ou poético, que li, compreendi e amei”, ou, mais sinteticamente e ao<br />

modo de Heidegger, como “projeto”, isto é, “o esboço de um novo modo de estar-nomundo”<br />

178 .<br />

Ricoeur se posiciona, pois, contra a depreciação da escrita proposta por Sócrates,<br />

Platão, Rousseau e Bergson, os quais afirmavam que a interioridade e identidade de um autor<br />

seriam de alguma forma mitigadas na exterioridade dos sinais. Em resposta a isso, Ricoeur<br />

lançou mão da comparação da escrita à iconicidade, a qual teria a função de maximizar o<br />

sentido da realidade por meio de sua fixação <strong>em</strong> símbolos limitados – processo esse chamado<br />

de aumento icônico. O autor sublinha o poder revelador da realidade dos ícones e estabelece a<br />

seguinte comparação: “A iconicidade é a reescrita da realidade. A escrita, no sentido limitado<br />

176 Cf. RICOEUR, Teoria da interpretação, p.45.<br />

177 Cf. Id., p.47; Cf. Id., Filosofia e linguaggio, p.225.<br />

178 Id., Teoria da interpretação, p.47s.<br />

61


da palavra, é um caso particular de iconicidade. A inscrição do discurso é a transcrição do<br />

mundo e a transcrição não é reduplicação, mas metamorfose” 179 .<br />

Outro traço deve ser, ainda, considerado: “[...] a escritura, <strong>em</strong> certo sentido,<br />

representa o destino inelutável do discurso”. Assim, mesmo ao falar, o sentido do que é dito<br />

começa a escapar do evento evanescente da palavra, o que preanuncia a acolhida do dito no<br />

escrito 180 .<br />

2.4.3 – Teoria do texto<br />

Ricoeur considera o texto como o “suporte por excelência” de uma comunicação<br />

que se desenrola “na e pela distância”. Por ser um discurso especial “fixado pela escritura” é<br />

que há tal distanciamento, separando-se da situação de diálogo, isto é, do jogo de perguntar e<br />

responder. Assim,<br />

o escritor não responde ao leitor; antes, o livro separa o ato de escrever e de<br />

ler <strong>em</strong> duas vertentes que não se comunicam; o leitor é ausente da escritura;<br />

o escritor é ausente da leitura. O texto produz assim uma dupla ocultação do<br />

leitor e do escritor; deste modo isso substitui a relação dialógica que liga<br />

imediatamente a voz de um ao ouvido do outro 181 .<br />

O texto torna-se, pois, um “arquivo à disposição da m<strong>em</strong>ória individual e<br />

coletiva” e o dizer algo a alguém passa a ser um dizer algo sobre algo, de forma que “somente<br />

a significação ‘leva socorro’ à significação, s<strong>em</strong> a contribuição da presença física e<br />

psicológica do autor”. Assim, o texto possui uma autonomia <strong>em</strong> relação ao autor, à situação e<br />

ao leitor, fato esse que conduz à abertura do “mundo da obra” pelo qual se propõe o sentido.<br />

Diante dessas “propostas de mundo”, que apresentam “variações imaginativas do ego”, o<br />

leitor se “irrealiza” para poder apropria-se de tais propostas. Isso faz do interpretar um<br />

processo de apropriação que torna a <strong>subjetividade</strong> um projeto – motivo pelo qual Ricoeur<br />

trocou “o eu, senhor, de si mesmo, com o si, discípulo do texto” 182 .<br />

179 RICOEUR, Teoria da interpretação, p.50-54.<br />

180 Cf. Id., Filosofia e linguaggio, p.225.<br />

181 IANNOTTA, op. cit., p.23.<br />

182 Id., p.23s, grifo da autora; citação da obra Do texto à ação.<br />

62


2.4.3.1 – Compreensão e explicação no ato da leitura<br />

Da dialética de evento e significação existente no discurso, surge a dialética da<br />

compreensão (Verstehen) e explicação (Erklären), próprias do ato da leitura. Assim, Ricoeur<br />

afirma que “[...] a compreensão é para a leitura o que o evento do discurso é para a<br />

enunciação do discurso e que a explicação é para a leitura o que autonomia verbal e textual é<br />

para o sentido objectivo [sic] do discurso” 183 .<br />

No processo de conversação, essa dialética é dificilmente reconhecida, porque<br />

tende-se a sobrepor explicação (desdobramento das proposições e significados, voltado à<br />

estrutura analítica do discurso) e compreensão (apreensão do sentido num ato de síntese,<br />

visando a unidade intencional do discurso). Se ambas se confund<strong>em</strong> no processo de<br />

comunicação, tornam-se totalmente distintas ao olhar da hermenêutica romântica, na qual<br />

explicar equivale a formular leis e teorias a partir de procedimentos hipotético-dedutivos –<br />

cuja aplicação cabe às ciências naturais (Naturwissenschaften) – e compreender alude a<br />

interpretar as experiências de outros sujeitos transmitidas indiretamente por meio dos diversos<br />

signos: fisionômicos, gestuais, vocais, escritos etc – interpretação essa operada pelas ciências<br />

do espírito (Geistswissenschaften), para as quais é a “<strong>em</strong>patia”, isto é, a transferência de<br />

alguém para a vida psíquica de outr<strong>em</strong> que torna possível qualquer compreensão 184 .<br />

Tal dicotomia proposta pela hermenêutica romântica é concomitant<strong>em</strong>ente<br />

epist<strong>em</strong>ológica e ontológica. Nela, a interpretação não aparece n<strong>em</strong> como um terceiro termo<br />

n<strong>em</strong> como – conforme pensa Ricoeur – o próprio nome da dialética <strong>em</strong> consideração, mas sim<br />

como um caso especial de compreensão “aplicada às expressões escritas da vida” 185 .<br />

A caminho dessa dialética da compreensão e explicação, Ricoeur tece sua crítica<br />

ao fato de considerar um texto como uma entidade s<strong>em</strong> mundo, ou seja, algo s<strong>em</strong> qualquer<br />

referência à realidade, como o pensam as escolas estruturalistas da crítica literária, que<br />

consideram o texto como um sist<strong>em</strong>a fechado, s<strong>em</strong> exterior – o que aproxima a literatura da<br />

noção saussureana de langue. Assim o pensa Lévi-Strauss, que divide os mitos <strong>em</strong> entidades<br />

coextensas à frase, chamadas mit<strong>em</strong>as, cuja combinação formaria a estrutura do mito. Assim,<br />

183 RICOEUR, Teoria da interpretação, p.83.<br />

184 Cf. Id., p.84s<br />

185 Id., p.85.<br />

63


o sentido não aludiria ao significado do mito, mas sim a uma cadeia lógica de relações a ser<br />

captada pela análise estrutural 186 .<br />

Para Ricoeur, todavia, deve-se fazer um caminho da explicação à compreensão: a<br />

análise estrutural não é capaz de suprimir a busca pelo sentido do mito; antes, tal análise<br />

pressuporia a hipótese desse sentido, já que conduziria a uma “s<strong>em</strong>ântica de profundidade, a<br />

das situações-limites que constitu<strong>em</strong> o ‘referente’ último do mito”, de forma que escaparia de<br />

incorrer num “jogo estéril” para se voltar à tomada de consciência das “aporias da existência”.<br />

Destarte, o texto faz uma “referência não ostensiva” ao apresentar um “tipo de mundo” – não<br />

subjacente a si, mas diante de si – a ser descoberto pela s<strong>em</strong>ântica de profundidade. É<br />

justamente nessa operação que Ricoeur percebe o lugar-comum que situa “a explicação e a<br />

compreensão <strong>em</strong> dois estádios diferentes de um arco hermenêutico único”, permitindo que se<br />

parta da interpretação ingênua e superficial à crítica e profunda<br />

2.4.3.2 – Da conjectura à validação<br />

O texto fala de um mundo possível e de um modo possível de alguém nele se<br />

orientar. As dimensões deste mundo são propriamente abertas e<br />

descortinadas pelo texto. O discurso é, para a linguag<strong>em</strong> escrita, o<br />

equivalente da referência ostensiva para a linguag<strong>em</strong> falada. Vai além da<br />

mera função de apontar e mostrar o que já existe e, neste sentido, transcende<br />

a função da referência ostensiva, ligada à linguag<strong>em</strong> falada. Aqui, mostrar é<br />

ao mesmo t<strong>em</strong>po criar um novo modo de ser 187 .<br />

Ricoeur assevera que o primeiro ato de compreensão deve ser a conjectura, a qual<br />

t<strong>em</strong> sua razão de ser no fato de o sentido verbal de um texto não coincidir com o sentido<br />

mental. O texto é mudo nessa situação, porque a intenção do autor extrapola o alcance do<br />

leitor e qu<strong>em</strong> fala é o leitor a partir das instruções escritas – como um músico que elabora o<br />

som a partir das notas da partitura – gerando-se um novo acontecimento. Assim, torna-se<br />

inexeqüível o ideal romântico da congenialidade – uma comunhão de “gênios”, pela qual<br />

poder-se-ia compreender um autor melhor do que esse a si mesmo se compreende. No texto, o<br />

186 Cf. RICOEUR, Teoria da interpretação, p.91-98.<br />

187 Id., p.88s<br />

64


sentido supera a intenção e a compreensão encontra um lugar no âmbito s<strong>em</strong>ântico, já não<br />

psicológico 188 .<br />

É por isso que o sentido objetivo pode construir-se de várias maneiras e o malentendido<br />

não pode ser cancelado plenamente, exigindo uma conjectura, isto é, a capacidade<br />

de “construir o sentido com o sentido verbal do texto” – o que se aproxima da “divinação”<br />

schleiermacheriana. O que se deve conjecturar é, primeiramente, a arquitetura do texto, ou<br />

seja, a reconstrução da plurivocidade textual (o todo) a partir da poliss<strong>em</strong>ia das palavras (as<br />

partes). Depois, deve-se conjecturar a individualidade do texto, isto é, limitar o uso de<br />

conceitos genéricos para que o texto seja considerado um indivíduo 189 .<br />

Em terceiro lugar, deve-se fazer uso da conjectura porque os textos literários<br />

apresentam horizontes potenciais de sentido capazes de se atualizar<strong>em</strong> de maneiras diferentes.<br />

A partir daí, segue o processo de validação, que não corresponde à verificação <strong>em</strong>pírica, mas<br />

sim aproxima-se mais da lógica da probabilidade – como afirmava E. D. Hirsch – pois<br />

“mostrar que uma interpretação é mais provável à luz do que sab<strong>em</strong>os é diferente de mostrar<br />

que uma interpretação é verdadeira”. Tal lógica da probabilidade científica torna possível um<br />

conhecimento científico do texto 190 .<br />

Essa articulação entre a conjectura e a validação, abordag<strong>em</strong> subjetiva e objetiva,<br />

forma um círculo hermenêutico, o qual não é de caráter vicioso pelo fato de estar aberto aos<br />

critérios de falsificabilidade 191 propostos por Karl Popper; nesse círculo, a função de<br />

falsificação é executada pelo conflito de interpretações contrastantes. Disso, segue que “uma<br />

interpretação deve não só ser provável, mas mais provável do que outra interpretação”.<br />

A lógica da validação permite-nos girar entre os dois limites do dogmatismo<br />

e do cepticismo. É s<strong>em</strong>pre possível argumentar a favor de ou contra uma<br />

interpretação, confrontar interpretações, arbitrar entres elas e procurar um<br />

acordo, mesmo se tal acordo ficar para além do nosso alcance imediato 192 .<br />

188<br />

Cf. RICOEUR, Teoria da interpretação,p.87s.<br />

189<br />

Cf. Id., p.88s.<br />

190<br />

Cf. Id., p.90s.<br />

191<br />

Ou “falseabilidade”, como é mais comumente encontrado nas traduções brasileiras.<br />

192 Id., p.90s.<br />

65


2.4.3.3 – Aproximação e distanciação<br />

A dialética da explicação e compreensão nada mais é do que a dimensão<br />

epist<strong>em</strong>ológica da dialética da distanciação e aproximação, que é de caráter existencial. Em<br />

âmbito epist<strong>em</strong>ológico, Ricoeur defende a idéia de uma distanciação produtiva no trabalho da<br />

interpretação. Tomando as considerações de Frege e de Husserl, para os quais o sentido seria<br />

um objeto ideal capaz de ser identificado e reidentificado como sendo o mesmo por quaisquer<br />

indivíduos <strong>em</strong> qualquer t<strong>em</strong>po, b<strong>em</strong> como a proposta de Dilthey de que a conexão interna de<br />

um texto ou obra artística permitiria que esses foss<strong>em</strong> compreendidos por outras pessoas,<br />

Ricoeur assume uma postura anti-historicista, negando que um texto corresponda a uma<br />

mensag<strong>em</strong> dirigida a um horizonte definido de leitores e afirmando a at<strong>em</strong>poralidade do texto,<br />

a qual implicaria na objetividade da significação <strong>em</strong> geral. Assim, “o texto – objectivado e<br />

desistoricizado – torna-se a mediação necessária entre o escritor e o leitor [sic]” 193 .<br />

Igualmente enriquecido pela dialética da explicação e compreensão é o conceito<br />

existencial de apropriação, o qual corresponde ao ato de assimilar a atualizar a significação do<br />

texto para o leitor; é “apropriar-se” do que antes era “estranho”. Nisso, muito contribui a<br />

noção epist<strong>em</strong>ológica da compreensão, que impede incorrer nos seguintes equívocos: da<br />

congenialidade autor-leitor, ao propor, <strong>em</strong> contrapartida, que aquilo de que se apropria no<br />

texto é o sentido do texto, enquanto capaz de desvelar um mundo; da compreensão do<br />

destinatário original do texto, ao postular, ao invés, um leitor incógnito, ou seja, qualquer<br />

pessoa capaz de ler; da redução do sentido do texto à capacidade limitada da compreensão do<br />

leitor e sua projeção sobre um texto, ao apresentar, por outra parte, o projeto de um mundo<br />

com novas formas de vida 194 .<br />

Enquanto a apropriação – que é o compl<strong>em</strong>ento da autonomia s<strong>em</strong>ântica do texto<br />

–consiste <strong>em</strong> tornar próprio o que é alheio, a distância consiste <strong>em</strong> “um traço dialéctico [sic],<br />

o princípio de uma luta entre a alteridade, que transforma toda a distância espacial <strong>em</strong><br />

alienação cultural, e a ipseidade, pela qual toda a compreensão visa a [sic] extensão da<br />

autocompreensão”. A leitura se insere aí como um pharmacon (r<strong>em</strong>édio), pois resgata a<br />

significação do poder da distanciação 195 .<br />

193 RICOEUR, Teoria da interpretação, p.101-103.<br />

194 Cf. Id., p.103-106.<br />

195 Cf. Id., p.54-56.<br />

66


Por conseguinte, propõe-se nisso uma maneira peculiar de tratar a tradição.<br />

Quando deixa de fazer parte do agora, a tradição torna-se probl<strong>em</strong>ática e reclama a<br />

recuperação de seu significado. Segue-se a isso uma luta da apropriação contra a distanciação,<br />

<strong>em</strong> que “a interpretação, entendida filosoficamente, nada mais é do que uma tentativa de<br />

tornar produtiva a alienação e a distanciação” 196 .<br />

A obra poética desenvolve a imaginação, isto é: numa perspectiva negativa,<br />

projeta um mundo irreal, por meio de uma epoché do real cotidiano; ou, de um modo positivo,<br />

opera uma referência positiva que possibilita refazer a realidade – sobretudo porque a poética<br />

é uma mimesis praxeos 197 , imitação criativa da praxis. Também desenvolve o sentimento, não<br />

no sentido de uma <strong>em</strong>oção passageira que o leitor t<strong>em</strong> diante de um texto, mas um “modo de<br />

encontrar-se entre as coisas”. Por isso, pode-se divisar como Ricoeur entende ser a tarefa da<br />

interpretação:<br />

[...] deixar <strong>em</strong>ergir da imag<strong>em</strong> poética e do sentimento poético a perspectiva<br />

de um mundo livre, mediante suspensão, da referência descritiva. A criação<br />

de um objeto sólido – o po<strong>em</strong>a mesmo – livra a linguag<strong>em</strong> da função<br />

didascálica 198 do signo para abrir-se, ao invés, ao acesso à realidade no<br />

mundo da ficção e do sentimento 199 .<br />

Destarte, as afirmações de Ricoeur incid<strong>em</strong> radicalmente sobre a própria<br />

constituição da <strong>subjetividade</strong>, lançando a proposta do “despojamento do ego egoista [sic] e<br />

narcisista”.<br />

Só a interpretação que obedece à injunção do texto, que segue a “flexa” [sic]<br />

do sentido e que tenta pensar <strong>em</strong> conformidade com ela, inicia uma nova<br />

autocompreensão. Nesta autocompreensão, eu oporia o Si mesmo, que parte<br />

da compreensão do texto, ao ego, que pretende precedê-lo. É o texto, com o<br />

seu poder universal de desvelamento de um mundo, que fornece um Si<br />

mesmo ao ego 200 .<br />

196 RICOEUR, Filosofia e linguaggio, p.55s.<br />

197 Cf. BLAMEY, Kathleen. Do ego ao si: um itinerário filosófico. In: HAHN, op. cit., p.92s. Ricoeur postula<br />

uma constituição triádica da mimesis, a saber: a mimesis 1, que imita a t<strong>em</strong>nporalidade humana <strong>em</strong> qualquer<br />

representação de uma ação; mimesis 2, que é a imitação da t<strong>em</strong>poralidade no enredar da ação, com início, meio e<br />

fim; a mimesis 3, que é a interação dos mundos dos enredos da ficcção com o mundo dos leitores conforme a<br />

redefinição do sentido e da referência no enredo. Cf. KAELIN, Eugene. A estética de Paul Ricoeur: sobre como<br />

entender uma metáfora In: HAHN, op. cit., p.92s.<br />

198 Relativo a “didascália”, isto é, ao “conjunto dos preceitos e regras de uma ciência ou arte”, por ex<strong>em</strong>plo, do<br />

teatro. Cf. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. 1.ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p.1036.<br />

199 Cf. RICOEUR, Filosofia e linguaggio, p.13-17.<br />

200 Id., Teoria da interpretação, p.106.<br />

67


2.3.4.4 – A leitura do texto e a compreensão do sujeito<br />

Ao mencionar a leitura como momento final da escritura, o trabalho <strong>ricoeur</strong>iano de<br />

interpretação se aproxima da exegese textual e da hermenêutica romântica. Como no discurso,<br />

há no texto a intenção de dizer algo a alguém e, ao ler, alguém pode entrar <strong>em</strong> contato com a<br />

mensag<strong>em</strong> e reatualizá-la. A finalidade da leitura, porém, não é a de recuperar exatamente a<br />

intenção do autor, mas a de pôr-se à escuta do texto, confrontar-se com ele e compreender-se<br />

melhor através do sentido nele proposto. Isso ocorre porque, a despeito de o autor falar pelo<br />

texto, eles se liberam, de forma que esse passa a “falar” por conta própria, apresentando<br />

possibilidades de relacionar-se com a transcendência e com mundos alternativos.<br />

O texto órfão do próprio pai, o autor, torna-se filho adotivo da comunidade<br />

dos leitores. Incapaz de socorrer a si mesmo, encontra o próprio pharmakon<br />

no ato de leitura. Mas isso, não acontece s<strong>em</strong> sentido. A conjunção de<br />

escritura e leitura não é um abraço tranqüilo 201 .<br />

Assim, cabe à leitura um papel fundamental na constituição mesma do texto e um<br />

dos traços que mais se destaca diz respeito ao que Hans-Robert Jaun denomina “horizonte de<br />

expectativas dos leitores”. Como cada leitor ou comunidade de leitores aproxima-se de um<br />

texto com expectativas próprias, resultaria que “o significado de um texto seja obra comum da<br />

obra que resiste à nossa opinião e da leitura que filtra o sentido <strong>em</strong> função do horizonte finito<br />

das nossas expectativas” – como o caso do “incr<strong>em</strong>ento icônico” encontrado nas diferentes<br />

leituras que os artistas plásticos pod<strong>em</strong> fazer acerca de um mesmo cenário. Destarte, Ricoeur<br />

postula que o texto possui uma “voz escrita”: não a voz narrativa – que é apensas uma de suas<br />

modalidades – mas algo que surge <strong>em</strong> uma situação especial <strong>em</strong> que o texto “fala” a partir do<br />

momento <strong>em</strong> que o leitor compreende a singularidade da obra, isto é, participa da dialética da<br />

pergunta e resposta presente na obra.<br />

201 RICOEUR, Filosofia e linguaggio, p.230.<br />

202 Id., p.231s, grifo do autor.<br />

Não se trata de uma voz, por assim dizer, vocal, jogada para fora do corpo<br />

com o sopro vital; é somente o análogo da voz na escritura, uma voz escrita.<br />

Uma voz s<strong>em</strong> boca, n<strong>em</strong> rosto, n<strong>em</strong> gesto, uma voz s<strong>em</strong> corpo. E no entanto<br />

uma voz que interpela o leitor e restabelece assim, para além do rompimento<br />

que a escritura instaura entre autor e leitor, o equivalente da ligação que a<br />

viva-voz preserva sobre o plano da palavra. Em tais raros momentos de<br />

leitura feliz, torna legítimo dizer que ler não é ver, mas escutar 202 .<br />

68


Porque o texto é um “como se” – uma metáfora da vida – ele contém uma<br />

“imaginação criativa”, que opera a suspensão da perspectiva habitual da coisas para propor ao<br />

leitor uma inovação s<strong>em</strong>ântica através da aproximação daquilo que está longe – outros<br />

mundos – permitindo a esse sujeito superar as aporias da existência através da identidade<br />

pessoal ali proposta. Tal processo ensina o leitor a ver o mundo diversamente, promovendolhe<br />

uma transfiguração <strong>em</strong> direção da imag<strong>em</strong> de mundo que o texto abre, ou seja, um novo<br />

modo de ser no mundo 203 . Um sujeito mediado pela função hermenêutica primária – que é a<br />

de dizer o mundo – justifica a atitude <strong>ricoeur</strong>iana de “subordinar a reconquista do sujeito,<br />

como aquela da inter<strong>subjetividade</strong>, à perspectiva ontológica da linguag<strong>em</strong>”. Pode-se, pois,<br />

concluir, que<br />

203 Cf. IANNOTTA, op. cit., p.36s.<br />

204 RICOEUR, Filosofia e linguaggio, p.19.<br />

o último ato, e não o primeiro, consiste pois no compreender a si mesmo, <strong>em</strong><br />

certo sentido diante do texto, diante da obra. O discurso, o texto, a obra<br />

representam a mediação através da qual compreend<strong>em</strong>os a nós mesmos.<br />

Contrariamente à tradição do cogito e à pretensão do sujeito de conhecer-se<br />

através de uma intuição imediata, é dito que nós nos compreend<strong>em</strong>os<br />

somente através da via longa dos sinais de humanidade depositados nas<br />

obras culturais 204 .<br />

69


A HERMENÊUTICA DO SI E SUA PROPOSTA ÉTICA<br />

70


3 – A HERMENÊUTICA DO SI E SUA PROPOSTA ÉTICA<br />

3.1 – CARACTERIZAÇÃO DA HERMENÊTICA DO SI<br />

A assim chamada “hermenêutica do si” encontra seu desenvolvimento na obra O<br />

si-mesmo como um outro, que é o último grande livro de Paul Ricoeur, apontado pelos seus<br />

comentadores como sua obra prima: um trabalho de síntese de todo o seu pensamento, por<br />

reunir reflexões na área da Filosofia da Linguag<strong>em</strong> (S<strong>em</strong>ântica e Pragmática), Teoria da<br />

Ação, Ética e Ontologia 205 . A “hermenêutica do si” é considerada “o ponto culminante da sua<br />

filosofia reflexiva centrada na compreensão do sujeito”, a qual “encontra, senão seu ponto de<br />

chegada definitivo, certamente uma grandiosa recapitulação” 206 .<br />

3.1.1 – Programa da hermenêutica do si<br />

São três as intenções que reg<strong>em</strong> toda a construção teórica de O si-mesmo como um<br />

outro. A primeira consiste <strong>em</strong> estabelecer “o primado da mediação reflexiva sobre a posição<br />

imediata do sujeito”, isto é, preferir o “si” ao “eu”. No entanto, para enfocar a reflexão, o<br />

autor desenvolve um longo desvio através da análise 207 , que o faz buscar o “si” (reflexivo<br />

onipessoal) por meio da abordag<strong>em</strong> do “se” – que pode ser impessoal 208 .<br />

205 Cf. VAZ, op. cit., p.429; MASSARO, op. cit., p.692; IANNOTTA, op. cit., p.11; JERVOLINO, op. cit.,<br />

p.XXIX; PEÑALVER, Mariano. Ricoeur y la aprehensión del sujeto. Isegoría (Revista de Filosofía Moral y<br />

Política), Madrid, n.5, mayo 1992, p.193.<br />

206 GAMA, op. cit.,p.389; JERVOLINO, op. cit., p.XXIX.<br />

207 “O recurso à análise, no sentido dada a esse termo pela filosofia analítica, é o preço a ser pago por uma<br />

hermenêutica caracterizada pelo estatuto indireto da posição do si. [...] O desvio pela filosofia analítica<br />

pareceu-me simplesmente o mais rico de promessas e de resultados”. Cf. RICOEUR, O si-mesmo como um<br />

outro, p.29<br />

208 Cf. Id., p.12;28.<br />

71


A segunda intenção filosófica alude ao termo “mesmo” (même, <strong>em</strong> francês) e<br />

consiste <strong>em</strong> apresentar duas significações da identidade a partir de sua equivocidade expressa<br />

no id<strong>em</strong> e ipse latinos. Enquanto a identidade no sentido de id<strong>em</strong> supõe a permanência no<br />

t<strong>em</strong>po – traduzindo, pois, imutabilidade <strong>em</strong> oposição ao diferente ou variável – a identidade<br />

no sentido do ipse não supõe tal idéia de invariabilidade no núcleo da personalidade. Para o<br />

autor, ambas constitu<strong>em</strong> uma dialética: a da mesmidade (m<strong>em</strong>eté) e ipseidade (ipseité) 209 .<br />

A terceira intenção, por fim, é voltada para a apresentação da dialética do si e do<br />

diverso de si, que compl<strong>em</strong>enta a dialética da ipseidade e da mesmidade. Destarte, a<br />

alteridade outrora inexpressiva – pois que “outro” aparecia meramente como um dos<br />

antônimos de “mesmo” – e restrita à comparação, pode ser tratada como constitutiva da<br />

própria ipseidade. É aí que Ricoeur deixa vislumbrar mais amplamente o significado do seu<br />

título, numa asserção relevante que sintetiza a tese desenvolvida ao longo da obra:<br />

O si-mesmo como um outro sugere desde o começo que a ipseidade do simesmo<br />

implica a alteridade <strong>em</strong> um grau tão íntimo, que uma não se deixa<br />

pensar s<strong>em</strong> a outra, que uma passa bastante na outra, como diríamos na<br />

linguag<strong>em</strong> hegeliana. Ao “como” gostaríamos de ligar a significação forte,<br />

não somente de uma comparação – si-mesmo s<strong>em</strong>elhante a um outro –, mas<br />

na verdade de uma implicação: si-mesmo considerado... outro 210 .<br />

O ponto de partida para a realização dessas intenções são as Filosofias do sujeito<br />

ou Filosofias do Cogito, que Ricoeur considera paradigmáticas. Sua característica é tratar do<br />

sujeito na primeira pessoa, ora exaltado – como o faz<strong>em</strong> Descartes, Kant, Fichte e o Husserl<br />

das Meditações cartesianas – ora humilhado – como o faz Nietzsche. Diante de uma tal<br />

herança respectivamente positiva e negativa, Ricoeur considera ultrapassada a disputa do<br />

Cogito e afirma que “a hermenêutica do si encontra-se <strong>em</strong> igual distância do Cogito e de sua<br />

destituição” 211 .<br />

209 Cf. RICOEUR, O si-mesmo como um outro, p.13. A distinção entre id<strong>em</strong> e ipse aparece inicialmente <strong>em</strong><br />

T<strong>em</strong>po e narrativa, a qual compara a identidade do si à composição poética de uma narrativa (do mythos). Cf.<br />

BLAMEY, Kathleen. Do ego ao si: um itinerário filosófico. In: HAHN, A filosofia de Paul Ricoeur, p.92s. Esse<br />

texto é muito conveniente para a compreensão do “si” anteriormente a O si-mesmo como um outro,<br />

especialmente porque recebeu elogios do próprio Ricoeur.<br />

210 RICOEUR, O si-mesmo como um outro, p.14.<br />

211 Id., p. 15-28.<br />

72


Para além da imediação do “eu sou” e da pretensão de posicioná-lo como<br />

fundamento último, a hermenêutica do si se desenvolve conforme as três intenções<br />

supracitadas assumindo uma forma interrogativa, cujo núcleo é a pergunta qu<strong>em</strong>? – pela qual<br />

se pode acessar a resposta procurada: o si 212 . Parte-se das Filosofias da linguag<strong>em</strong> (S<strong>em</strong>ântica<br />

e Pragmática), que apresentam a pergunta qu<strong>em</strong> fala?; passa-se pela Filosofia da Ação, que<br />

expõ<strong>em</strong> a pergunta qu<strong>em</strong> age?; pela Teoria Narrativa, com a pergunta qu<strong>em</strong> é narrado? e, por<br />

fim, pela Filosofia Ética e Moral, que traz<strong>em</strong> a questão qu<strong>em</strong> é o sujeito moral da imputação?<br />

Eis o que Ricoeur denomina “fragmentação da arte de questionar”, que incorre na afirmação<br />

de que<br />

dizer si não é dizer eu. O eu se põe ou é desposto. O si está implicado nas<br />

operações cuja análise precede e volta para ele próprio. Nessa dialética da<br />

análise e da reflexão enxerta-se a do ipse e do id<strong>em</strong>. Enfim, a dialética do<br />

mesmo e do outro preenche as duas primeiras dialéticas 213 .<br />

Nessa <strong>em</strong>preitada de oposição à imediação do “eu sou”, o caráter fragmentário<br />

dos estudos desenvolvidos na obra não impede que haja uma unidade t<strong>em</strong>ática, a qual é<br />

encontrada no agir humano – uma Filosofia prática, pois – sendo que a ação é tomada <strong>em</strong> sua<br />

poliss<strong>em</strong>ia, conduzindo à tríade: descrever, narrar, prescrever. Ad<strong>em</strong>ais, <strong>em</strong> oposição à<br />

pretensão de situar o eu como fundamento último, encontra-se um tipo peculiar de certeza<br />

pretendido por Ricoeur: a atestação. Contraposta à epist<strong>em</strong>e (saber último), ela se aproxima<br />

de uma crença dóxica, no sentido de que ela não deixa nunca de ser ameaçada pela suspeita –<br />

noção que lhe é contrária. Atestação relaciona-se, pois, à “crença <strong>em</strong>” – ou, <strong>em</strong> outras<br />

palavras, ao test<strong>em</strong>unho ou confiança – e é relacionada ao próprio t<strong>em</strong>a do agir, o que faz dela<br />

“segurança de ser si-mesmo agindo e sofrendo”, enfim, “atestação de si” 214 .<br />

3.1.2 – Contribuições da tríade descrever-narrar- prescrever<br />

No primeiro momento da tríade, respectivo ao descrever, Ricoeur adentra a<br />

Filosofia da Linguag<strong>em</strong> e percorre-lhe as vias da S<strong>em</strong>ântica e da Pragmática para responder à<br />

pergunta qu<strong>em</strong>?. Na primeira, baseada na via da “referência identificante”, o autor encontra<br />

212 Ricoeur dá prosseguimento a Heidegger, que, no parágrafo 25 de Ser e t<strong>em</strong>po, situa a pergunta pelo qu<strong>em</strong> no<br />

mesmo plano ontológico que o si (Selbstheit). Cf. RICOEUR, O si-mesmo como um outro, p.76.<br />

213 Id., p.30, grifo do autor.<br />

214 Cf. Id., p.32-35.<br />

73


num mesmo nível, como “particulares de base”, os conceitos de pessoa e de corpos. Assim, a<br />

pessoa nada mais é do que aquilo (uma coisa) do qual se fala <strong>em</strong> um discurso – com ênfase na<br />

terceira pessoa, pois. A identidade da pessoa, aí, não passa de mesmidade: o ipse (“si”) se<br />

reduz ao id<strong>em</strong> (“se”), neutralizado entre os todos os particulares de base. Ad<strong>em</strong>ais, essa<br />

abordag<strong>em</strong> permite dizer que as pessoas são entidades às quais são “ascritos” 215 predicados<br />

psíquicos – além dos predicados físicos, que são compartilhados com os corpos 216 .<br />

Na segunda via da Filosofia da Linguag<strong>em</strong>, a Pragmática – cujo foco é a situação<br />

de interlocução – o enriquecimento para o qu<strong>em</strong>? é dado pelo conceito de sujeito como<br />

locutor que se dirige a um “tu”. O “eu”, nessa via, não é alguma coisa da qual se fala, mas o<br />

autor da enunciação e limite de mundo (distinto dos objetos do mundo). Por considerar que<br />

S<strong>em</strong>ântica e Pragmática se compl<strong>em</strong>entam, Ricoeur estabelece a ligação entre os conceitos de<br />

pessoa e de sujeito falante pelo ato de nomeação, que consiste num fenômeno de ancorag<strong>em</strong><br />

pelo qual o nome próprio (referência identificante) e o “eu” (limite de mundo) passam a<br />

coincidir – o que permite ao autor dizer que, num discurso, “´eu’ e ‘P.R.’ quer<strong>em</strong> dizer a<br />

mesma pessoa” 217 .<br />

Partindo-se para a Teoria da ação, <strong>em</strong>erge a noção de agente, considerado<br />

princípio das ações – as quais são acontecimentos intencionais, pois se voltam a uma<br />

finalidade. Importa também, aí, o conceito de iniciativa, que r<strong>em</strong>ete a um agente que, devido à<br />

sua liberdade (o “eu posso”, num plano fenomenológico) e à sua dimensão corporal (o “corpo<br />

próprio”, num plano ontológico) pode interferir efetiva e sensivelmente no mundo, por<br />

conjugar a causalidade inteligível à causalidade sensível. A ascrição de uma ação a um agente<br />

singular (ao si) abre espaço ao t<strong>em</strong>a da imputação – a qual é tratada no momento éticomoral<br />

218 .<br />

No segundo momento, acerca do narrar, Ricoeur dá prosseguimento aos t<strong>em</strong>as de<br />

T<strong>em</strong>po e narrativa para tratar da questão da identidade pessoal por meio de uma teoria<br />

narrativa. Ele insere o t<strong>em</strong>a da t<strong>em</strong>poralidade ao levar <strong>em</strong> consideração “[...] que a pessoa da<br />

215 Do francês/inglês ascription, que encontra seu correlato no italiano, mas não no português. Ascrever está<br />

ligado a atribuir e imputar. Cf. RICOEUR, O si-mesmo como um outro, p.49.<br />

216 Cf. Id., p.39-54.<br />

217 Com isso, Ricoeur responde à aporia do sujeito falante apresentada por Wittgenstein no Caderno azul: “a<br />

palavra eu não quer dizer a mesma coisa que L.W., n<strong>em</strong> quer dizer a mesma coisa que a expressão ‘a pessoa que<br />

fala agora’. Mas isso não significa que L.W. e eu queiram dizer pessoas diferentes. Tudo o que isso significa é<br />

que essas palavras são instrumentos diferentes de nossa linguag<strong>em</strong>”. Cf. Id., p.68;71.<br />

218 Cf. Id., p.109-136.<br />

74


qual se fala, o agente do qual depende a ação têm uma história, são sua própria história” 219 .<br />

Nesse momento, apresenta-se o máximo desenvolvimento da dialética entre as duas<br />

identidades referidas, que se distingu<strong>em</strong> conforme o modelo de permanência no t<strong>em</strong>po: a<br />

identidade-id<strong>em</strong> (mesmidade), que supõe uma estrutura ou substrato que permanece, resiste à<br />

mudança e que torna essa identidade passível de ser ligada à noção kantiana de substância 220 ;<br />

por outro lado, t<strong>em</strong>-se a identidade-ipse (ipseidade), a qual não se trata de uma permanência<br />

substancial, mas da “manutenção de si” – t<strong>em</strong>a heideggeriano da Selbständigkeit, também<br />

traduzida como “constância de si”. Enquanto a mesmidade da pessoa t<strong>em</strong> seu <strong>em</strong>bl<strong>em</strong>a no<br />

caráter, isto é, no “conjunto das marcas distintivas que permit<strong>em</strong> reidentificar um indivíduo<br />

humano como o mesmo” – de modo que ele é considerado o “o quê” do “qu<strong>em</strong>” 221 – a<br />

ipseidade t<strong>em</strong> seu modelo na fidelidade à palavra dada: ainda que mud<strong>em</strong> os próprios desejos<br />

e opiniões, a palavra é mantida, o que desafia o t<strong>em</strong>po e as mudanças e permite perseverar<br />

unicamente o “qu<strong>em</strong>”, isto é, o si-mesmo 222 .<br />

Para preencher a lacuna de sentido entre mesmidade e ipseidade, Ricoeur propõe a<br />

noção de “identidade narrativa”, que se liga à identidade do personag<strong>em</strong>. A grande<br />

contribuição é que se trata de uma identidade dinâmica porque, pelo fato de depender do ato<br />

de configuração do enredo, ela se caracteriza por uma “concordância discordante”, que<br />

concilia identidade e diversidade, b<strong>em</strong> como permite reconhecer as pessoas não somente<br />

como agentes, mas também pacientes. Por força das “variações imaginativas” próprias do<br />

enredo, as identidades narrativas tend<strong>em</strong> a oscilar entre uma ipseidade baseada na mesmidade,<br />

que resulta na estabilidade de um caráter – como se vê mais amiúde nos contos infantis e<br />

folclóricos – e uma ipseidade s<strong>em</strong> recurso da mesmidade – como o caso de alguns romances<br />

cont<strong>em</strong>porâneos, que eclipsam o caráter dos personagens a ponto de aproximar a narrativa de<br />

um ensaio. De qualquer forma, a teoria narrativa ocupa uma posição de mediação entre o<br />

descrever e o prescrever, prenunciando a ética pelo motivo de se enraizar na vida 223 e de não<br />

219 RICOEUR, O si-mesmo como um outro, p.137s.<br />

220 Tomada num sentido transcendental como “permanência do real no t<strong>em</strong>po”. Ad<strong>em</strong>ais, “todos os fenômenos<br />

contêm algo que permanente [das Beharrliche] (substância), tida como o próprio objeto, e alguma coisa mutável,<br />

tida como uma simples determinação desse objeto”. KANT apud RICOEUR, op.cit., p.143.<br />

221 O caráter “é o si sob a aparência de mesmidade”. Cf. Id., p.145;155. “O caráter [...] é a mesmidade no (ser)<br />

s<strong>em</strong>pre meu”, ou, como a tradução brasileira apresentou o termo mienneté, a “minha totalidade”, r<strong>em</strong>etendo à<br />

própria existência tomada como um todo. Ricoeur associa o caráter ao hábito (cuja sedimentação tende a mitigar<br />

a inovação) e às identificações adquiridas (identificação-com valores, normas, pessoas etc). Cf. Id., Sé come um<br />

altro, p.209.<br />

222 Cf. Id., O si-mesmo como um outro, p.137-166.<br />

223 “Com efeito, representação [mimésis] não de homens mas de ação de vida [bion] e de felicidade (a<br />

infelicidade também reside na ação), e o fim visado [télos] é uma ação [práxis tis], não uma qualidade [ou<br />

75


existir narrativas neutras – já que todas elas, sejam as históricas ou as fictícias, cont<strong>em</strong>plam<br />

apreciações e juízos acerca dos personagens e suas ações 224 .<br />

O último momento da tríade corresponde ao prescrever e compõe a parte mais<br />

volumosa da obra <strong>ricoeur</strong>iana <strong>em</strong> consideração – cuja proposta ético-moral, escopo específico<br />

deste trabalho, encontra-se desenvolvida na próxima sessão. Importa aqui adiantar que a<br />

passag<strong>em</strong> por esse momento implica novas determinações para a compreensão do si.<br />

Primeiramente, o si aparece como aquele a qu<strong>em</strong> uma ação pode ser imputada – sendo que a<br />

imputabilidade, aí, r<strong>em</strong>ete antes à sujeição do agente e sua ação ao louvor ou repreensão do<br />

que à incriminação ou inocência. Em seguida, t<strong>em</strong>-se o si como aquele que, no presente, é o<br />

mesmo que se mantém responsável pelas dívidas das ações passadas e pelas conseqüências de<br />

suas ações no futuro. Por fim, a categoria do reconhecimento v<strong>em</strong> a revelar um si que se<br />

reconhece intimamente ligado ao outro – seja ao “tu” ou ao “eles” 225 .<br />

3.2 – A PROPOSTA ÉTICA DA HERMENÊUTICA DO SI<br />

As preocupações éticas nas obras de Ricoeur são constantes, mormente a partir de<br />

Finitude et culpabilité (1960) – com a abordag<strong>em</strong> da culpa e do mal – e a idéia de uma ética<br />

hermenêutica surge da metáfora da ação humana como um texto ou obra objetivada de um<br />

discurso que reclama interpretação. Originalmente influenciado por Jean Nabert e Lévinas, o<br />

intento de Ricoeur é investigar uma fundamentação moral mais radical do que a da lei e ele a<br />

encontra incipient<strong>em</strong>ente na noção de “intenção ética”, com a qual ele assinala a liberdade – o<br />

“eu-posso”, de Merleau-Ponty – como o coração da ética e a considera como um fenômeno<br />

hermenêutico, isto é, algo apreensível tão somente por via da mediação – porquanto somente<br />

se objetiva nas ações humanas, não podendo ser n<strong>em</strong> vista n<strong>em</strong> intuída 226 .<br />

Se o texto é o lugar privilegiado da interpretação, sua legibilidade pode ser<br />

estendida às ações, nas quais o Cogito se objetiva e pode ser recuperado como si – pois o<br />

poiotés]; ora, é consoante a seu caráter que os homens têm esta ou aquela qualidade, mas é segundo suas ações<br />

que são felizes ou o contrário”. ARISTÓTELES apud RICOEUR, O si-mesmo como um outro, p.181.<br />

224<br />

Cf. RICOEUR, op.cit., p.167-237.<br />

225<br />

Cf. Id., p.339-345.<br />

226<br />

Cf. KLEIN, Ted. A idéia de uma ética hermenêutica. In: HAHN, Lewis Edwin (dir.). A filosofia de Paul<br />

Ricoeur. 16 ensaios críticos e respostas de Paul Ricoeur aos seus críticos. Lisboa: Instituto Piaget, 1995, p.191;<br />

CÉSAR, Constança Marcondes. Ética e Política <strong>em</strong> Paul Ricoeur. Revista Brasileira de Filosofia, São Paulo,<br />

v.XLII, fasc.177, jan.-mar. 1995, p.51; VAZ, Escritos de Filosofia VI, p.429.<br />

76


texto fala justamente do agir e do padecer humano. Pela escritura, as ações se objetivam e se<br />

fixam, superando os limites contextuais de seu acontecimento; da mesma forma, a ação se<br />

libera do seu agente devido aos efeitos que ela produz, os quais superam as intenções queridas<br />

e previstas pelo agente, constituindo a dimensão social da ação. Muitas ações entrelaçadas se<br />

fixam no t<strong>em</strong>po e são escritas nos documentos que depositam a m<strong>em</strong>ória de um povo e<br />

permit<strong>em</strong> que uma ação possa ser retomada e recontextualizada – oportunidade essa oferecida<br />

a “qualquer um que saiba ler”. Destarte,<br />

[...] como um texto, assim a ação humana é uma obra aberta, cuja<br />

significação está ‘<strong>em</strong> suspensão’. É porque essa ‘abre’ umas novas<br />

referências e delas recebe uma pertinência nova que também os atos<br />

humanos estão <strong>em</strong> espera de novas interpretações que decid<strong>em</strong> sobre sua<br />

significação 227 .<br />

É, pois, pela noção de “obra” que a teoria da ação se aproxima da teoria do texto.<br />

Como esse constitui uma “composição” de frases conectadas pelo “gênero” e pelo “estilo”,<br />

assim também é uma “ação significativa” – termo inspirado por Weber – porquanto essa ação<br />

conserva s<strong>em</strong>elhante configuração: compõe-se de várias ações que significam algo tanto ao<br />

agente quanto ao paciente; submete-se a códigos de produção e de interpretação; exibe o<br />

caráter único do agente <strong>em</strong> sua individualidade, com seus vícios e virtudes 228 . É nesse âmbito<br />

de inter<strong>subjetividade</strong> – con-texto, porque um texto escrito com os outros – que se faz possível<br />

encontrar o eu “prático” <strong>em</strong> seu “<strong>em</strong>penho ontológico”, pelo qual se compreende o “eu<br />

sou” 229<br />

Quanto à questão do meio no qual as ações se fixam, <strong>em</strong> The model of the text<br />

(1971), Ricoeur afirma que nas ações significativas o significado ultrapassa o acontecimento,<br />

de modo que permanece o conteúdo proposicional dessas ações, que se fixa através da<br />

narrativa no meio social. S<strong>em</strong>elhante ao texto, a ação se separa de seu autor e desenvolve<br />

conseqüências próprias, produzindo sentidos diferentes daqueles originais – como os novos<br />

mundos que um texto abre – o que confere um caráter aberto às ações, ou seja, torna-as<br />

passíveis de novas interpretações. É devido a essas características pertinentes às ações<br />

significativas que o autor assevera que as ciências humanas são hermenêuticas; da mesma<br />

forma são os grupos de discussão ética ao debater sobre uma certa ação. Importa ainda<br />

227 RICOEUR, Do texto à ação apud IANNOTTA, op. cit., p.38.<br />

228 Cf. KLEIN, op. cit., p.196-200.<br />

229 Cf. IANNOTTA, op. cit., p.39s.<br />

77


esclarecer que estão presentes aí os mesmos processos de interpretação presentes no texto:<br />

dialética da compreensão e explicação, conjectura e validação, o conflito de interpretações 230 .<br />

No manuscrito não publicado Practical reason, de 1978, Ricoeur constrói uma<br />

teoria cont<strong>em</strong>porânea da razão prática, cujo centro é a referida intenção ética, isto é, o sentido<br />

com o qual uma ação é realizada – capaz de torná-la imoral, moral ou pré-moral. Por se tratar<br />

de um projeto, ela é um momento vazio, que é suscetível de ser preenchido com a ação e se<br />

especifica <strong>em</strong> três momentos: a liberdade na primeira pessoa, na segunda pessoa e na terceira<br />

pessoa. Nisso, importa muito a consideração de que há um aspecto negativo presente já no<br />

primeiro momento: a distância entre o “eu posso” e a realização efetiva dessa liberdade, o que<br />

caracteriza uma inadequação, que é a própria falibilidade humana – como o título de O<br />

hom<strong>em</strong> falível denota. Ética, conforme essa obra, significa, pois<br />

[...] esse movimento [pacours] de actualização, esta odisseia da liberdade<br />

através do mundo das obras, este verificar da verdade do poder-fazer-algo<br />

[pouvoir faire] nas acções efectivas que dão test<strong>em</strong>unho dela. [...] É o<br />

movimento entre a crença nua e a crença cega num ‘eu posso’ primitivo, e a<br />

história real onde certifico este ‘eu posso’[sic] 231 .<br />

A exposição desse entendimento inicial de uma ética hermenêutica no pensamento<br />

<strong>ricoeur</strong>iano trata-se de não mais que pressupostos para uma investigação mais apurada <strong>em</strong> O<br />

si-mesmo como um outro – obra-base deste trabalho – na qual persevera o t<strong>em</strong>a do poderfazer.<br />

Diante disso, convém ainda transcrever o que o próprio autor assinala como transição<br />

t<strong>em</strong>ática entre uma etapa e outra, cuja relevância traz o porquê dos esboços da teoria do texto<br />

<strong>em</strong> momentos anteriores:<br />

[...] Se a ética se pode intitular hermenêutica, isto apenas é possível na<br />

medida <strong>em</strong> que ela vai buscar à teoria da acção aquilo que esta deve à teoria<br />

do texto. Ora, o que é que ela vai buscar? Essencialmente, o enraizamento<br />

daquilo que então chamei “intenção ética” na experiência do “eu posso”.<br />

Não apenas não repudiei desde então essa referência ao “eu posso”, como<br />

lhe conferi um maior alcance ao alarga-lo muito para além da esfera da<br />

acção enquanto tal: o poder de se autodesignar como locutor das suas<br />

próprias palavras; o poder de se autodesignar como o agente de suas próprias<br />

acções; o poder de se autodesignar como o protagonista na sua própria<br />

história de vida – aqui exist<strong>em</strong> tantas utilizações de “eu posso”, que pode ser<br />

considerado coextensivo à noção de si. Desde Soi-même comme un autre,<br />

230 Cf. KLEIN, op. cit., p.201-204.<br />

231 RICOEUR, The probl<strong>em</strong> of the foundation of moral philosophy apud KLEIN, op. cit., p.206.<br />

78


tenho atribuído uma força ainda maior a esta ideia de ser-capaz-de-fazer,<br />

com vista a providenciar uma base para a filosofia política. Falo aqui,<br />

portanto, do hom<strong>em</strong> capaz, enquanto objecto fundamental da estima e do<br />

respeito e mesmo enquanto sujeito fundamental da lei [sic] 232 .<br />

Ao se adentrar propriamente a proposta ético-moral apresentada <strong>em</strong> O si-mesmo<br />

com um outro, é importante esclarecer que o autor mantém suas reflexões autônomas <strong>em</strong><br />

relação à fé, de forma que não é o ágape cristão que dita os rumos éticos aí. Ricoeur chega<br />

mesmo a asseverar que “[...] não existe moral cristã, senão no plano da história das<br />

mentalidades, mas uma moral comum [...] que a fé bíblica coloca numa nova perspectiva<br />

onde o amor está ligado à ‘nomeação de Deus’” 233 .<br />

Também importa esclarecer que é por convenção que o autor distingue a Ética da<br />

Moral, pois ambas alud<strong>em</strong> etimologicamente a uma mesma idéia de costumes, seja com<br />

referência àquilo que se t<strong>em</strong> por “bom”, seja ao que se t<strong>em</strong> por “obrigatório”. Ricoeur utiliza<br />

os termos assim: “ética para a perspectiva de uma vida concluída e moral para a articulação<br />

dessa perspectiva no interior de normas, caracterizadas ao mesmo t<strong>em</strong>po pela pretensão à<br />

universalidade e por um efeito de coerção” – sendo que a primeira é de herança aristotélica e<br />

se situa num âmbito teleológico, enquanto a segunda, de herança kantiana, parte de um pontode-vista<br />

deontológico 234 .<br />

Ambas se relacionam de uma maneira que conjuga subordinação e<br />

compl<strong>em</strong>entaridade, constituindo um tríplice desenvolvimento: o primado da ética sobre a<br />

moral, a necessidade de a perspectiva ética passar pelo crivo da norma, o recurso da norma à<br />

perspectiva ética nos casos de impasses práticos. Importa ainda, nessas considerações<br />

incipientes, mostrar que uma tal subordinação da deontologia à teleologia indica uma<br />

aproximação entre dever-ser e ser, ou, <strong>em</strong> outras palavras, entre juízo de valor e juízo de<br />

fato 235 .<br />

232 RICOEUR apud HAHN, p.215s.<br />

233 RICOEUR, O si-mesmo como um outro, p.36s.<br />

234 Cf. Id., Sé come un altro, p.264 (O si-mesmo como um outro, p.200).<br />

235 Cf. Id., p.200-202. Eis, pois, uma negação da falácia naturalista.<br />

79


3.2.1 – A perspectiva ética<br />

Longe de supor na perspectiva ética “um campo livre à efusão dos ‘bons’<br />

sentimentos”, Ricoeur esclarece que ela corresponde à “perspectiva da ‘vida boa’ com e para<br />

outros nas instituições justas” – subsumindo-se as esferas do autor das ações, dos outros, das<br />

instituições. Eis o centro <strong>em</strong> torno do qual gravitam todas as abordagens éticas e morais<br />

realizadas pelo autor. É <strong>em</strong> Aristóteles, sobretudo na obra Ética a Nicômaco, que é buscada a<br />

fundamentação para esse primeiro momento 236 .<br />

3.2.1.1 – A estima de si<br />

O que Aristóteles assinalava por “vida boa” – “viver b<strong>em</strong>”, “vida verdadeira” – é<br />

tomada por Ricoeur para constituir o primeiro patamar pelo seguinte motivo:<br />

qualquer que seja a imag<strong>em</strong> que cada um faz para si de uma vida realizada,<br />

esse coroamento é o fim último de sua ação. É o momento de se l<strong>em</strong>brar da<br />

distinção que Aristóteles faz entre o b<strong>em</strong>, tal como o hom<strong>em</strong> o visa e o B<strong>em</strong><br />

platônico. Na ética aristotélica, só se pode tratar do b<strong>em</strong> para nós. Essa<br />

relação conosco não impede que ele esteja contido <strong>em</strong> algum b<strong>em</strong> particular.<br />

É de preferência o que falta a todos os bens. Toda ética supõe esse uso nãosaturável<br />

do predicado “bom” 237 .<br />

A ligação que Aristóteles promoveu entre a “vida boa” e a praxis resulta <strong>em</strong> um<br />

novo entendimento acerca desse termo: diferente da poiesis, a praxis t<strong>em</strong> a característica de<br />

ser fim <strong>em</strong> si mesma. Disso, porém, brota um paradoxo: o fato de a praxis ser fim <strong>em</strong> si<br />

mesma e, ao mesmo t<strong>em</strong>po, tender a um fim último – a felicidade. Nisso, um entendimento<br />

mais complexo de deliberação – que foge do modelo meio-fim – é apresentado como a via<br />

pela qual o phronimos (hom<strong>em</strong> prudente, sábio) dirige sua vida: “o bom deliberador, no<br />

sentido absoluto, é o hom<strong>em</strong> que se esforça para atingir o melhor dos bens realizáveis para o<br />

hom<strong>em</strong>, e que o faz por raciocínio”, diz Aristóteles. Com a idéia de deliberação, chega-se a<br />

um conceito de importância radical no edifício ético <strong>ricoeur</strong>iano: a phronésis (sabedoria<br />

236 Cf. RICOEUR, O si-mesmo como um outro, p.202.<br />

237 Id., p.203.<br />

80


prática, traduzida como prudentia no latim), que se move entre dois limites: a felicidade,<br />

limite superior e a decisão singular, limite inferior 238 .<br />

Ricoeur lança mão de MacIntyre, do neo-aristotelismo, para enriquecer o<br />

entendimento da práxis. Várias contribuições brotam desse recurso, sobretudo a corroboração<br />

do sentido das práticas como “bens imanentes” (teleologia interna), devido ao fato de elas<br />

seguir<strong>em</strong> “padrões de excelência” estabelecidos socialmente, os quais, obedecidos, qualificam<br />

não somente as ações, como também seus agentes como “bons” – um bom médico, por<br />

ex<strong>em</strong>plo 239 . Ad<strong>em</strong>ais, a articulação com a noção de “plano de vida” (ideais de vida) permite à<br />

praxis não apenas ser fim <strong>em</strong> si mesma, como também tender a um “fim último” – o que abre<br />

caminho ao sentido que Gadamer reconhece na phronésis aristotélica, a qual permitiria<br />

conjugar o movimento aos ideais distantes com as avaliações acerca das vantagens e<br />

desvantagens da escolha de executar um certo plano de vida. Nesse sentido, por ex<strong>em</strong>plo,<br />

[...] uma vocação, uma vez escolhida, confere aos gestos que a <strong>em</strong>pregam<br />

esse caráter de “fim <strong>em</strong> si mesmo”; mas não cessamos de retificar nossas<br />

escolhas iniciais; às vezes nós as confundimos inteiramente quando a<br />

confrontação se desloca do plano da execução das práticas já escolhidas para<br />

a questão da adequação entre a escolha de uma prática e nossos ideais de<br />

vida, por mais vagos que sejam e, no entanto, por vezes mais imperiosos que<br />

a regra do jogo de um ofício que consideramos até aí invariável. Aqui a<br />

phronésis suscita uma deliberação muito complexa, <strong>em</strong> que o phronimos não<br />

é menos implicado que ela 240 .<br />

Cumpre ainda esclarecer uma distinção quanto ao conceito de “vida” entendido<br />

por Ricoeur. Para além da acepção meramente biológica, esse termo liga-se ao sentido éticocultural,<br />

ou seja, ao hom<strong>em</strong> completo, capaz de auto-apreciar-se – como a proposta socrática<br />

de uma vida examinada. Nisso, a idéia macintyreana de “unidade narrativa de uma vida”<br />

estende a avaliação das ações até os personagens, fato que revela o importante dado que<br />

o sujeito da ética não é diferente daquele a qu<strong>em</strong> a narração destina uma<br />

identidade. Além disso, enquanto a noção de plano de vida insiste pelo lado<br />

voluntário, até voluntarista, do que Sartre chamava projeto existencial, a<br />

noção de unidade narrativa insiste pela composição entre intenções, causas e<br />

acasos que encontramos <strong>em</strong> toda narrativa. O hom<strong>em</strong> aparece aí de repente<br />

238 Cf. RICOEUR, O si-mesmo como um outro, p.203-206.<br />

239 “Esse conceito de b<strong>em</strong> imanente, caro a MacIntyre, fornece desse modo um primeiro ponto de apoio ao<br />

momento reflexivo de estima de si, uma vez que é apreciando nossas ações que nós nos apreciamos a nós<br />

mesmos como seu autor”. Id., p.207s.<br />

240 Id., p.209.<br />

81


como sofredor tanto quanto ativo e submetido a eventualidades da vida<br />

[...] 241 .<br />

Em síntese, ao final de todas essas intersecções entre as teorias narrativa e ética, o<br />

autor assevera que “a ‘vida boa’ é, para cada um, a nebulosa de ideais e de sonhos de<br />

cumprimento com respeito à qual uma vida é considerada mais ou menos realizada ou<br />

irrealizada”. Porque é o fim de todas as ações – que, por sua vez, têm o fim <strong>em</strong> si mesmas –<br />

ela se revela fim nos fins, ou seja, como uma “finalidade superior que não deixaria de ser<br />

interior ao agir humano” 242 .<br />

Uma tal idéia supõe, portanto, um esforço de avaliação, ou melhor, “um trabalho<br />

de interpretação da ação e de si mesmo”, o que se torna propriamente próximo da<br />

interpretação de um texto. Daí <strong>em</strong>erge um círculo hermenêutico peculiar entre a idéia de “vida<br />

boa” e as decisões acerca da efetuação dos planos de vida (profissão, vida afetiva etc). Como<br />

é escopo de toda a obra,<br />

o conceito de si sai grand<strong>em</strong>ente enriquecido dessa relação entre<br />

interpretação do texto da ação e auto-interpretação. No plano ético, a<br />

interpretação de si torna-se estima de si. Em troca, a estima de si segue o<br />

destino da interpretação. Com esta ela dá lugar à controvérsia, à contestação,<br />

à rivalidade, <strong>em</strong> suma, ao conflito de interpretações, no exercício do<br />

julgamento prático 243 .<br />

Essa adequação entre os ideais de vida e as decisões não pode ser verificada<br />

<strong>em</strong>piricamente, mas depende de um exercício do juízo, ainda que, segundo Aristóteles, o<br />

agente considere sua própria convicção como uma evidência experiencial – uma phronésis<br />

comparada à aisthésis (percepção). Tal evidência é a nova feição da atestação, na qual “a<br />

certeza de ser o autor de seu próprio discurso e de seus próprios atos torna-se convicção de<br />

julgar b<strong>em</strong> e de agir b<strong>em</strong>”, aproximando o agente da “vida boa” 244 .<br />

241 RICOEUR, O si-mesmo como um outro, p.210.<br />

242 Id., p.210.<br />

243 Id., p.211.<br />

244 Cf. Id.<br />

82


3.2.1.2 – A solicitude<br />

O segundo momento é referente ao “com e para o outro” da proposta ética<br />

<strong>ricoeur</strong>iana e o autor o designa pelo termo solicitude. Como o primeiro momento t<strong>em</strong> aspecto<br />

reflexivo e tal reflexividade traz consigo o risco de um fechamento sobre si mesmo, Ricoeur<br />

expõe sua tese de que “[...] a solicitude não se ajunta de fora à estima de si, mas que ela<br />

desdobra a sua dimensão dialogal até aqui passada <strong>em</strong> silêncio [...]”, de forma que “[...] a<br />

estima de si e a solicitude não pod<strong>em</strong> ser vividas e pensadas uma s<strong>em</strong> a outra”. Isso se dá pelo<br />

fato de que o si é tido como digno de estima antes pelas suas capacidades – o “eu-posso” de<br />

Merleau-Ponty – do que pelas realizações, o que abre espaço ao outro como mediador entre a<br />

capacidade e a efetuação 245 .<br />

É nesse papel de mediação que Aristóteles insere a abordag<strong>em</strong> da questão da<br />

amizade (philia) – a qual, <strong>em</strong> Ética a Nicômaco, opera a transição entre a perspectiva do<br />

viver-b<strong>em</strong>, aspecto aparent<strong>em</strong>ente solitário, e a justiça, de aspecto político. O t<strong>em</strong>a da<br />

amizade importa muito a Ricoeur porque o autor grego não a situa no âmbito psicológico, mas<br />

no ético, ao considerá-la uma virtude. Porquanto a amizade supõe relação mútua, um “viver<br />

junto” (suzén), pode-se afirmar que<br />

[...] não somente a amizade depende efetivamente da ética como primeiro<br />

desdobramento do desejo de viver b<strong>em</strong>; mas, sobretudo, ela leva ao primeiro<br />

plano a probl<strong>em</strong>ática da reciprocidade, autorizando-nos, assim [sic] a<br />

reservar para uma dialética de segundo grau, herdada da dialética platônica<br />

dos “grandes gêneros” – o Mesmo e o Outro –, a questão da alteridade como<br />

tal 246 .<br />

Essa idéia de mutualidade é muito cara a Ricoeur porque ela é a base para evitar a<br />

prevalência tanto para o pólo do Mesmo, quanto ao Outro, postuladas respectivamente por<br />

Husserl e Lévinas, como se verá ulteriormente. Tal reciprocidade supõe o fato de que cada um<br />

ama o outro tal como ele é, o que só pode acontecer na amizade segundo o “bom” –<br />

irrepetível, portanto, na amizade conforme o “útil” e o “agradável” 247 .<br />

245 Cf. RICOEUR, O si-mesmo como um outro, p.212s.<br />

246 Id., p.215.<br />

247 Cf. Id.<br />

83


Outro t<strong>em</strong>a que atrai Ricoeur é a philautia – amizade entre si e si mesmo. Como<br />

Aristóteles esquivou-se de responder diretamente a questão sobre esse t<strong>em</strong>a, Ricoeur busca a<br />

resposta <strong>em</strong> outro probl<strong>em</strong>a: “se o hom<strong>em</strong> feliz terá ou não necessidade de amigos”, que<br />

encontra resposta na afirmação aristotélica:<br />

Com a necessidade e a falta, é a alteridade do “outro si” (heteros autos) que<br />

passa ao primeiro plano. O amigo, como este outro si, t<strong>em</strong> por papel prover<br />

o que somos incapazes de conseguir por nós mesmos (di’hautou). [...] A<br />

posse dos amigos [...] é considerada comumente o maior dos bens<br />

exteriores 248 .<br />

Com isso, valendo-se de suas categorias metafísicas principais, ato e potência,<br />

Aristóteles aponta a amizade como atividade (énergéia), uma atualização inacabada da<br />

potência (dynamis), a qual efetua a própria vida. A amizade estaria, pois, numa posição de<br />

necessidade, que se refere não somente ao que está inacabado na relação do viver-junto, como<br />

também na carência presente na relação do si com sua própria existência, o que leva Ricoeur a<br />

concluir que “é assim que a ausência habita o coração da amizade mais sólida”. Destarte,<br />

concatenadas a mutualidade e a philautia, a maior contribuição aristotélica aos olhos de<br />

Ricoeur é que<br />

A amizade acrescenta à estima de si, s<strong>em</strong> nada suprimir. O que ela<br />

acrescenta é a idéia de mutualidade na troca entre humanos que se estimam<br />

cada um a si próprio. Quanto ao corolário da mutualidade, a saber, a<br />

igualdade, ele põe a amizade no caminho da justiça [...] 249 .<br />

Para além de Aristóteles, a solicitude possui traços que não estão presentes no<br />

tratamento da amizade. É aí que Ricoeur abre seu debate a um autor que propõe um discurso<br />

que difere bastante da igualdade presumida pelo Estagirita entre o si e o outro: Lévinas, cuja<br />

filosofia<br />

repousa na iniciativa do outro na relação intersubjetiva. Na verdade, tal<br />

iniciativa não instaura nenhuma relação, na medida <strong>em</strong> que o outro<br />

representa a exterioridade absoluta com respeito a um eu definido pela<br />

condição de separação. O outro, nesse sentido, se absolve de qualquer<br />

relação. Essa não-relação define a exterioridade mesma 250 .<br />

248<br />

RICOEUR, O si-mesmo como um outro, p.217s.<br />

249<br />

Id., p.220.<br />

250<br />

Id., Sé come un altro, p.284 (O si-mesmo como um outro, p.221) A essa afirmação de Ricoeur, se será<br />

confirmada muitas vezes ao longo da obra, é contestada pela afirmação de que “[...] a alteridade não ocupa o<br />

84


Para Lévinas, o outro se manifesta no rosto – que não aparece, porque não é<br />

fenômeno, mas sim epifania – e isso acontece de duas formas. Primeiramente, t<strong>em</strong>-se o rosto<br />

de um juiz de direito, que ensina de maneira ética e impede o homicídio – a Ricoeur, porém, a<br />

mera injunção do outro romperia a relação de troca do dar e do receber e a própria instrução, o<br />

que reclama o recurso da bondade 251 . O lado oposto ao do juiz na solicitude é a do outro como<br />

sofredor, isto é, aquele que se sente limitado <strong>em</strong> seu poder-fazer. Agora não é a instrução que<br />

opera a injunção, mas o sofrimento, diante do qual o si dá sua simpatia e compaixão e “o<br />

outro parece reduzido à condição de somente receber”. Essa é a prova maior da solicitude,<br />

como Aristóteles mesmo afirmara. Comparando-se os posicionamentos de Aristóteles e de<br />

Lévinas, t<strong>em</strong>-se que,<br />

enquanto na amizade a igualdade é pressuposta, no caso da injunção vinda<br />

do outro ela é restabelecida pelo reconhecimento pelo si da superioridade da<br />

autoridade do outro; e, no caso da simpatia que vai do si ao outro, a<br />

igualdade só é restabelecida pela confissão partilhada da fragilidade e<br />

finalmente da mortalidade 252 .<br />

Em relação à estima de si, pois, a solicitude acrescenta a estima da ausência, e fá-<br />

lo necessitado de amigos. Nesse confronto, “[...] o si se apercebe ele próprio como um outro<br />

entre os outros”.<br />

[...] Não posso me estimar eu mesmo s<strong>em</strong> estimar outr<strong>em</strong> como eu mesmo.<br />

Como eu mesmo significa: também tu és capaz de dar início a alguma coisa<br />

no mundo, [...] de estimar a ti mesmo como eu estimo eu mesmo. A<br />

equivalência entre o “também tu” e o “como eu mesmo” repousa sobre uma<br />

confiança que pode ser obtida por uma extensão da atestação, graças à qual<br />

eu creio que posso e valho. [...] Tornamos, assim, fundamentalmente<br />

equivalentes a estima do outro como um si mesmo e a estima de si-mesmo<br />

como um outro 253 .<br />

lugar origináriono pensamento de Lévinas, o que necessariamente leva a concluir que a relação com a alteridade<br />

também não é a primeira orig<strong>em</strong> da ética”. COSTA, Lévinas, p.215.<br />

251 “A bondade é, ao mesmo t<strong>em</strong>po, a qualidade ética dos fins da ação e a orientação da pessoa para outr<strong>em</strong>,<br />

como se uma ação não pudesse ser considerada boa se não fosse feita a favor de outr<strong>em</strong> <strong>em</strong> consideração por<br />

ele”. RICOEUR, O si-mesmo como um outro, p.222.<br />

252 Id., p.225.<br />

253 Id., Sé come un altro, p.290s (O si-mesmo como um outro, p.226s), grifo do autor.<br />

85


3.2.1.3 – O senso de justiça<br />

O sentido de instituição ao qual Ricoeur aponta é o de uma estrutura que, além de<br />

exceder relações interpessoais (face-a-face), se caracteriza por costumes comuns – o que<br />

alude à concepção etimológica de ethos. Importa nisso, pois, a concepção de poder <strong>em</strong><br />

Hannah Arendt, voltada à significação política: a categoria de poder é dotada de uma<br />

significação política e se liga às condições de pluralidade – que “inclui terceiros que não serão<br />

jamais rostos”, isto é, os anônimos, na perspectiva de vida boa – e de concertação, que alude à<br />

ação pública como uma teia de relações humanas. Poder aí significa pois, querer agir e viver<br />

juntos, o que implica justiça – diferente da acepção de poder como dominação 254 .<br />

Ricoeur assinala que é mais adequado falar de “senso de justiça” na perspectiva<br />

ética para não promover confusões com a justiça entendida nos sist<strong>em</strong>as jurídicos. Ad<strong>em</strong>ais,<br />

seria melhor dizer senso do justo e do injusto; porque é <strong>em</strong> primeiro lugar à<br />

injustiça que nós somos sensíveis: “Injusto! Que injustiça!, escrev<strong>em</strong>os. [...]<br />

pois a justiça é quase s<strong>em</strong>pre o que falta, [sic] e a injustiça o que reina. E os<br />

homens têm uma visão mais clara daquilo que falta às relações humanas do<br />

que a maneira correta de organizá-las” 255 .<br />

Com Aristóteles, t<strong>em</strong>-se a idéia de justiça inserida como “mediação”, “meiotermo”<br />

(mésotés), que é o traço comum a todas as virtudes, seja aquelas privadas, seja as<br />

interpessoais – o que permite a intersecção entre ética e política, conforme a ótica de Ricoeur.<br />

A concepção de uma justiça distributiva <strong>em</strong> Aristóteles é tal, que a distribuição não se reduz<br />

ao plano econômico, mas atinge vantagens e desvantagens, papéis e tarefas, bens e males<br />

enfim. Importa saber ainda que, com esse conceito, não se privilegia n<strong>em</strong> o lado do indivíduo,<br />

n<strong>em</strong> o da sociedade, b<strong>em</strong> como assegura-se a coesão entre os componentes individual,<br />

interpessoal e societal da perspectiva ética” 256 .<br />

Outro conceito-chave da idéia de justiça é a igualdade (isotés) que supõe uma<br />

divisão s<strong>em</strong> excesso ou escassez. Trata-se, porém, de uma “igualdade proporcional” – assaz<br />

diferente da de ord<strong>em</strong> aritmética – que define a justiça distributiva como: “tornar iguais duas<br />

relações entre uma pessoa e um mérito a cada vez. Ela repousa, portanto, <strong>em</strong> uma relação de<br />

254 Cf. RICOEUR, O si-mesmo como um outro, p.228-231.<br />

255 Id., p.231s.<br />

256 Id., p.235.<br />

86


proporcionalidade de quatro termos: duas pessoas e duas partes”. Destarte, escapa-se da<br />

possibilidade de igualitarismo. Articulada com os dois momentos éticos anteriores, t<strong>em</strong>-se que<br />

essa igualdade<br />

3.2.2 – A norma moral<br />

é para a vida nas instituições o que a solicitude é nas relações interpessoais.<br />

A solicitude dá como comparação de si um outro que é um rosto, no sentido<br />

forte que Emmanuel Lévinas nos ensinou a lhe reconhecer. A igualdade lhe<br />

dá como comparação um outro que é um cada um 257 .<br />

Como já referido, o autor trata a norma moral como um momento secundário, mas<br />

necessário, pelo qual deve atravessar perspectiva ética. A obrigação e o formalismo são aí as<br />

provas para essa perspectiva. Repete-se aí a mesma estrutura triádica da estima de si: o<br />

momento referente ao si, ao diverso de si e às instituições 258 .<br />

3.2.2.1 – O respeito de si<br />

S<strong>em</strong> incorrer no solipsismo moral – porque o si não é o eu – este é o momento de<br />

isolar a universalização, na qual o desejo de viver-b<strong>em</strong> é experimentado através da norma.<br />

Não há, pois, rompimento com a perspectiva ética, como denuncia o conceito kantiano de<br />

“boa-vontade” que opera a transição entre as duas instâncias 259 .<br />

Para Kant, a vontade equivale ao lugar que o desejo razoável ocupa na ética<br />

aristotélica: é a razão prática que, sendo finita, está sujeita a inclinações sensíveis. Daí a<br />

necessidade de, para gozar de universalidade, a vontade ligar-se à idéia de coerção, de dever,<br />

num discurso de ord<strong>em</strong> imperativa. Disso decorre um procedimento crítico, pelo qual a<br />

vontade é provada, submetida a exames, a depurações, de forma que a vontade<br />

incondicionalmente boa se iguale à autonomia, isto é, à vontade autolegisladora 260 .<br />

257<br />

RICOEUR, O si-mesmo como um outro, p.236, grifo do autor.<br />

258<br />

Cf. Id., p.337s.<br />

259<br />

“De tudo o que é possível conceber no mundo, e mesmo <strong>em</strong> geral fora do mundo, não existe nada que possa<br />

s<strong>em</strong> restrição [ohne Einschränkung] ser considerado bom se não existe uma boa-vontade”. KANT apud<br />

RICOEUR, op. cit., p.239.<br />

260<br />

Cf. Id., p.242.<br />

87


Numa primeira etapa, as máximas da ação – que são, para Kant, “proposições que<br />

encerram uma determinação geral da vontade da qual depend<strong>em</strong> muitas regras práticas” –<br />

dev<strong>em</strong> submeter-se à regra de universalização, para que seja eliminada a impureza do desejo –<br />

que se opõe à razão por ser de ord<strong>em</strong> patológica. Daí procede o formalismo expresso no<br />

imperativo categórico: “Age unicamente segundo a máxima que faz com que tu possas querer<br />

ao mesmo t<strong>em</strong>po que ela se torne uma lei universal” 261 .<br />

Kant interiorizou o locutor e o colocutor do imperativo, de forma que o sujeito é<br />

um si capaz de comandar e de obedecer (ou desobedecer) – pois, à s<strong>em</strong>elhança de Platão, ele<br />

diferenciou na alma uma parte controlada pela lei e outra que é capaz de hesitar entre a lei e o<br />

desejo. Outro passo da proposta kantiana advém com a idéia de liberdade, que já não<br />

corresponde à vontade finita (dependente dos fenômenos), mas à vontade <strong>em</strong> sua estrutura<br />

fundamental. Com isso, t<strong>em</strong>-se a noção de autolegislação ou autonomia, segundo a qual a<br />

vontade deixa-se determinar somente pela forma legislativa das máximas: “Uma vontade à<br />

qual a pura forma legislativa da máxima pode servir de lei é uma vontade livre” 262 .<br />

Nisso, Ricoeur afirma que o formalismo chega ao mais alto grau com a oposição<br />

entre a autonomia e a heteronomia, tornando possível o tratamento de uma ipseidade moral:<br />

“quando a autonomia substitui a obediência ao outro pela obediência a si-mesmo, a<br />

obediência perdeu todo o caráter de dependência e de submissão. A verdadeira obediência,<br />

poderíamos dizer, é a autonomia”. Nisso aparece o conceito de “fato da razão” (Factum der<br />

Vernunft), que é a consciência da ligação entre liberdade e lei tida como algo apodítico –<br />

atestação da autonomia. Importante é a consideração de que não é a uma tese egológica que a<br />

tese de um si legislador postula conduzir, mas sim à universalidade do querer 263 .<br />

Ricoeur esclarece que, dentre as categorias kantianas, a estima de si não pode ser<br />

identificada com o “amor de si” – a presunção ou excessiva auto-benevolência, que é<br />

ilegítima e nula – mas com o “respeito de si”, que é a afeição à lei. Diante disso, Ricoeur<br />

esclarece que “o amor de si [...] é a estima de si pervertida [...] para o mal. E o respeito de si é<br />

261 KANT, Fundamentos da metafísica dos costumes. apud RICOEUR, O si-mesmo como um outro, p.243.<br />

262 KANT apud RICOEUR, O si-mesmo como um outro, p.245.<br />

263 Cf. Id., p.246.<br />

88


a estima de si passada pelo crivo da norma universal [...] <strong>em</strong> suma, a estima de si sob o regime<br />

da lei” 264 .<br />

Por fim, Ricoeur destaca uma nova contribuição de Kant, encontrada no texto<br />

Ensaio sobre o mal radical (inserido <strong>em</strong> A religião nos limites da simples razão), no qual o<br />

autor, à diferença das considerações expostas acima – que se baseiam nos Fundamentos da<br />

metafísica dos costumes e Crítica à razão prática – tende a inocentar o desejo, a inclinação;<br />

ao mesmo t<strong>em</strong>po, porém, esse autor passa a localizar o mal no (livre) arbítrio, o qual seria<br />

suscetível de confundir a ord<strong>em</strong> de sobrepor a lei à inclinação. O probl<strong>em</strong>a do mal estaria<br />

ligado, então, à formação das máximas, <strong>em</strong> que a máxima má fundamental seria a propensão<br />

ao mal – o que comprometeria a efetuação da autonomia. Assim, radicalizando o mal, Kant<br />

torna-o uma tendência natural de todos os humanos e, por isso, algo que afetaria todas as suas<br />

decisões. Ricoeur serve-se desse estatuto do mal e do livre arbítrio para concluir:<br />

3.2.2.2 – O respeito às pessoas<br />

Porquanto há o mal, a perspectiva da “vida boa” deve assumir a prova da<br />

obrigação moral, que poderíamos reescrever nos termos seguintes: “Age<br />

unicamente segundo a máxima que faz com que tu possas querer ao mesmo<br />

t<strong>em</strong>po que não seja o que não deveria ser, a saber, o mal” 265 .<br />

A primeira afirmação de Ricoeur acerca da relação entre a idéia de respeito e a de<br />

autonomia do si é que ambas não são díspares, porquanto a primeira desenvolve a estrutura<br />

dialógica implícita da segunda. Se a boa-vontade parecia ser o termo de transição entre a<br />

perspectiva ética e a norma moral no plano do si, é a Regra de Ouro que assume essa posição<br />

no plano dialógico isto é, na transição da solicitude para o respeito. A Regra de Ouro é<br />

tomada, aí, <strong>em</strong> suas várias versões, seja a negativa – “não faças a teu próximo o que tu<br />

detestarias que te fosse feito”, versão do Hillel, de orig<strong>em</strong> judaica – seja as positivas – “e<br />

como quereis que os homens façam a vós, assim façais vós a eles”, b<strong>em</strong> como “amarás o teu<br />

próximo como a ti mesmo”, versões do Evangelho 266 . A especificidade da contribuição de<br />

cada uma dela é que<br />

264 Cf. RICOEUR, O si-mesmo como um outro, p.250-252.<br />

265 RICOEUR, Sé come un altro, p.318s (O si-mesmo como um outro, p.255), grifo do autor.<br />

266 Lucas 6,3 e Mt. 22,39.<br />

89


[...] essa última fórmula acentua, talvez, melhor que as precedentes a filiação<br />

entre a solicitude e a norma. Por outro lado, a fórmula de Hillel e as suas<br />

equivalentes evangélicas exprim<strong>em</strong> melhor a estrutura comum a todas essas<br />

expressões, a saber, a enunciação de uma norma de reciprocidade 267 .<br />

O principal motivo da ênfase de Ricoeur nessa Regra é que a reciprocidade<br />

exigida por ela pressupõe uma dissimetria entre o agente e o paciente, a mesma dissimetria<br />

que pode dar orig<strong>em</strong> a diversas formas de violência que resid<strong>em</strong> “no poder exercido sobre<br />

uma vontade por uma vontade”. Esse poder-sobre – dificilmente ausente <strong>em</strong> qualquer<br />

interação humana – varia desde a sua forma mais branda, a influência, até ocasiões de<br />

homicídio e de tortura – na qual ele situa o extr<strong>em</strong>o do mal 268 . Mas há também ocasiões de<br />

violência que são mais dissimuladas: aquelas exercidas através da linguag<strong>em</strong>, como a falsa<br />

promessa, tratada por Kant, e as violências ao discurso apontadas por Eric Weil, Habermas e<br />

Apel, como o caso da recusa do melhor argumento; também a astúcia insere-se aí, pois<br />

oferece dano à distinção entre o “meu” e o “teu” nas questões de propriedade. Valendo-se<br />

desses ex<strong>em</strong>plos, dos mais dissimulados aos mais explícitos, Ricoeur afirma que “a todas as<br />

figuras do mal responde o não da moral”: não mentirás, não roubarás, não matarás, não<br />

torturarás 269 .<br />

Ricoeur liga o respeito devido às pessoas com a autonomia através da segunda<br />

fórmula do imperativo kantiano: “age de modo que trates a humanidade, tanto na tua pessoa<br />

quanto na pessoa de qualquer outro, s<strong>em</strong>pre ao mesmo t<strong>em</strong>po como um fim e nunca<br />

simplesmente como um meio”. A peculiaridade desse imperativo é que ele conjuga a idéia de<br />

humanidade e de pessoas como fins nelas próprias, <strong>em</strong> que “humanidade”, por não fazer<br />

acepção de pessoas, estabelece a continuidade da universalidade abstrata da autonomia,<br />

enquanto “pessoa” considera a pluralidade pessoal 270 .<br />

Perante essa “tensão dissimulada”, Ricoeur apresenta a Regra de Ouro como o<br />

meio de transição da solicitude ao imperativo, o qual não seria outra coisa que a formalização<br />

da referida regra. Essa tese é sustentada porque, pelo conceito de “pessoa”, há uma abertura à<br />

267 RICOEUR, Sé come un altro, p.320s (O si-mesmo como um outro, p.256).<br />

268 “Nessas formas diversas, a violência equivale à diminuição ou à destruição do poder-fazer de outr<strong>em</strong>. Mas<br />

ainda há pior: na tortura, o que o carrasco procura atingir, e às vezes – ah! – consegue destruir, é a estima de si<br />

da vítima”. Id., Sé come un altro, p.321s (O si-mesmo como um outro, p.258).<br />

269 Cf. Id., p.258s.<br />

270 Id., p.259-261.<br />

90


diversidade, ao mesmo t<strong>em</strong>po que, ao considerá-la um “fim <strong>em</strong> si mesma”, impede-se tratá-la<br />

como um meio e propõe-se a reciprocidade – tal como prescreve a Regra de Ouro. Destarte,<br />

a Regra de Ouro e o imperativo do respeito devido às pessoas não têm<br />

somente o mesmo campo de exercício, mas têm além disso a mesma<br />

perspectiva: estabelecer a reciprocidade aí onde reina a falta de<br />

reciprocidade. E, por detrás da Regra de Ouro <strong>em</strong>erge a intuição inerente à<br />

solicitude, da alteridade verdadeira à raiz da pluralidade das pessoas. A esse<br />

preço, a idéia unificante e unitária da humanidade deixa de aparecer como<br />

uma duplicata da universalidade à obra no princípio de autonomia, e a<br />

segunda fórmula do imperativo categórico retoma sua originalidade<br />

inteira 271 .<br />

Dessa confrontação entre Kant e a Regra de Ouro, Ricoeur chega à atestação<br />

paralela da autonomia e da pessoa como fim <strong>em</strong> si: se a primeira é considerada um fato da<br />

razão, isso se confirma com a proposição ôntico-prática da existência da pessoa como fim <strong>em</strong><br />

si mesma 272 .<br />

3.2.2.3 – Os princípios de justiça<br />

O autor toma de Charles Perelman a expressão “regra de justiça” para designar<br />

uma concepção deontológica de justiça, afirmando que ela “[...] exprime no plano das<br />

instituições a mesma exigência normativa, a mesma formulação deontológica que a<br />

autonomia, <strong>em</strong> termos pré-dialógicos, e que o respeito das pessoas, <strong>em</strong> termos dialógico e<br />

interpessoal” 273 . Nesse novo momento, a moral herda da ética a questão da justa parte, que<br />

traz consigo uma série de ambigüidades. É por isso que a abordag<strong>em</strong> deontológica necessita<br />

[...] estabelecer-se solidamente no campo institucional <strong>em</strong> que se aplica a<br />

idéia de justiça contratualista, mais precisamente com a ficção de um<br />

contrato social graças ao qual uma certa reunião de indivíduos consegue<br />

superar um estado, suposto primitivo, de natureza, para aderir ao estado de<br />

direito 274 .<br />

271<br />

RICOEUR, Sé come un altro, p.326s (O si-mesmo como um outro, p.263).<br />

272<br />

Cf. Id., p.263s.<br />

273<br />

Id., p.265.<br />

274<br />

Id., Sé come un altro, p.330 (O si-mesmo como um outro, p. 267).<br />

91


O pensador que Ricoeur toma para essa abordag<strong>em</strong> é Rawls, com sua Teoria da<br />

justiça, na qual procurou dar uma solução ao enigma da fundação da república – que Kant e<br />

Rousseau não teriam realizado satisfatoriamente 275 – b<strong>em</strong> como uma objeção à idéia de justiça<br />

do utilitarismo – segundo a qual deve-se sacrificar o prazer privado <strong>em</strong> prol do prazer da<br />

maioria, não obstante ger<strong>em</strong>-se bodes expiatórios. Rawls propôs uma solução alternativa,<br />

baseada na noção de eqüidade (fairness), que caracterizaria a situação original do contrato a<br />

partir da qual derivaria a justiça das instituições 276 .<br />

Rawls partiu de uma posição original marcada pela eqüidade entre os m<strong>em</strong>bros, a<br />

fim de que eles escolhess<strong>em</strong> os mesmos princípios – o que somente poderia ocorrer num<br />

âmbito hipotético. Essa situação original é descrita na “fábula do véu de ignorância” 277 , que se<br />

justifica pela seguinte razão: “uma vez que os parceiros ignoram o que os diferencia e que<br />

eles são todos igualmente racionais e colocados na mesma situação, é claro que serão todos<br />

convencidos pelo mesmo argumento” 278 .<br />

Os princípios de justiça escolhidos nesse contexto seriam de ord<strong>em</strong> distributiva –<br />

à s<strong>em</strong>elhança de Aristóteles – sendo que a distribuição se estenderia a tudo o que pudesse ser<br />

considerado como coisa a repartir: direitos e deveres, benefícios e cargos indistintamente. E<br />

eles seriam fundamentalmente dois: um que garante iguais liberdades de cidadania (como a<br />

livre-expressão, o voto etc) e outro, chamado “princípio da diferença”, que se aplica a<br />

condições inescapáveis de desigualdade, como aquela que dá prioridade aos menos<br />

favorecidos economicamente, a fim de evitar-lhes o sacrifício <strong>em</strong> prol do b<strong>em</strong> comum. Rawls<br />

justifica a escolha desses princípios com base na teoria da decisão <strong>em</strong> contextos de incerteza,<br />

através do argumento do maximin – decidir-se por aquilo que maximiza a parte mínima – que,<br />

275 Pois Rousseau propôs um legislador como meio para resolver os conflitos políticos, enquanto Kant postulou,<br />

s<strong>em</strong> explicação consistente, um contrato no qual cada m<strong>em</strong>bro preteriria de sua liberdade selvag<strong>em</strong> a favor de<br />

uma liberdade civil. Cf. RICOEUR, O si-mesmo como um outro, p.268.<br />

276 Cf. Id., p.268s.<br />

277 “Entre as características essenciais dessa situação, está o fato de que ninguém conhece seu lugar na sociedade,<br />

sua posição de classe ou seu status social, a sorte que lhe é reservada nas repartições das capacidades e dos dons<br />

naturais, a sua inteligência, a força etc. Assumirei que os parceiros ignoram suas próprias concepções do b<strong>em</strong> ou<br />

suas tendências psicológicas particulares”. RAWLS, Teoria da justiça apud RICOEUR, Sé come um altro, p.333<br />

(O si-mesmo como um outro, p.271).<br />

278 RAWLS apud RICOEUR, O si-mesmo como um outro, p.272.<br />

92


aplicado a uma situação eqüitativa, explica o fato de os parceiros decidir<strong>em</strong> por aquilo que<br />

não encontra objeção de nenhum indivíduo 279 .<br />

A teoria de Rawls provoca, porém, um questionamento, que se refere ao modo<br />

pelo qual pode ser ligado seu modelo de um acordo hipotético com uma sociedade real – pois,<br />

diferente do princípio de autonomia, baseado num “fato da razão”, os princípios de justiça se<br />

baseiam numa teoria da decisão num contexto de incerteza. Assim, sua teoria realmente<br />

desligada de uma concepção teleológica de justiça? Ricoeur responde que, apesar de ela ser a<br />

concepção formal do senso de justiça, esse é s<strong>em</strong>pre pressuposto nela, já que, para decidir<strong>em</strong><br />

os dois princípios de justiça tratados, cada um dos m<strong>em</strong>bros partiria de uma pré-compreensão<br />

do justo e do injusto. O próprio Rawls, por não encontrar uma prova independente de sua<br />

teoria para mostrar que seus dois princípios seriam, de fato, verdadeiros, propôs um equilíbrio<br />

refletido entre a teoria que ele apresenta e as “convicções b<strong>em</strong> pesadas” (considered<br />

convictions), sendo que aquela entraria como exame dessas, livrando-as dos preconceitos e<br />

dúvidas – o que estaria próximo da regra de universalização kantiana 280 .<br />

Ao final da análise deontológica <strong>em</strong> seus três momentos, Ricoeur salienta que elas<br />

têm <strong>em</strong> comum o formalismo do princípio como conseqüência da pretensão de universalidade<br />

da regra. Nisso, o formalismo equivale<br />

3.2.3 – Sabedoria prática como convicção<br />

[...] a um distanciamento, do qual se pode seguir a expressão <strong>em</strong> cada uma<br />

das três esferas do formalismo: distanciamento da inclinação, na esfera da<br />

vontade racional, do tratamento de outros simplesmente como um meio, na<br />

esfera dialógica, do utilitarismo, enfim, na esfera das instituições 281 .<br />

Ricoeur justifica o retorno da moral da obrigação à ética pelo fato de que aquela<br />

[...] gera situações conflituais <strong>em</strong> que a sabedoria prática não t<strong>em</strong> outro<br />

recurso, a nosso ver, que recorrer, no quadro do julgamento moral <strong>em</strong><br />

279 Cf. RICOEUR, O si-mesmo como um outro, p.274-276. O argumento mais destacado nessa teoria da decisão<br />

é o chamado maximin, segundo o qual os parceiros decid<strong>em</strong>-se por aquilo que maximiza a parte mínima. Vê-se<br />

nisso, pois, uma postura contrária à do utilitarismo, que justifica privilegiar a maioria <strong>em</strong> detrimento da minoria.<br />

280 Cf. Id., p.276s.<br />

281 Id., Sé come un altro, p.341 (O si-mesmo como um outro, p.279).<br />

93


situação, à intuição inicial da ética, a saber, a visão ou a perspectiva da “vida<br />

boa” com e para os outros nas instituições justas 282 .<br />

Com isso, porém, o autor não intenta n<strong>em</strong> acrescer uma instância maior que a<br />

moralidade – a Sittlichkeit de Hegel – tampouco promover uma retratação da moral – que,<br />

como se viu, t<strong>em</strong> valor de provação da perspectiva da vida boa 283 .<br />

Para desenvolver tal projeto, Ricoeur toma um caminho centrado nos conflitos<br />

próprios da aplicação da moralidade, a fim de esclarecer aquilo que ele chama “sabedoria<br />

prática”. Na busca desses conflitos, ele abre sua investigação à “uma das vozes da nãofilosofia”<br />

que é a tragédia grega, ao postular que ela permite suspeitar tanto das “ilusões do<br />

coração” – que incid<strong>em</strong> sobre a perspectiva da vida boa – quanto das “ilusões nascidas da<br />

hybris [orgulho exagerado] da própria razão prática” – que incid<strong>em</strong> sobre a norma moral. A<br />

tragédia escolhida é a Antígona 284 , do autor Sófocles, na qual Ricoeur particularmente<br />

reconhece uma “instrução insólita da ética pelo trágico”, promovida sobretudo por um fator<br />

peculiar a esse gênero literário: o tratamento de agentes e suas ações de uma forma <strong>em</strong> que<br />

esses são submissos a forças que os superam, o que gera conflitos 285 .<br />

Ricoeur ressalta a estreiteza de perspectivas de ambos os protagonistas: enquanto<br />

Creonte restringe a classificação de amigo ou inimigo (philos ou ekhthros) à categoria política<br />

– aquele que serve ou não serve à cidade – Antígona fecha sua classificação na questão do<br />

laço familiar – de forma que somente o irmão morto é amigo. Nessa análise, Ricoeur afirma<br />

que “são realmente duas visões parciais e unívocas da justiça que opõ<strong>em</strong> os protagonistas. A<br />

estratégia de simplificação, [...] não torna Antígona menos desumana que Creonte”. Um outro<br />

traço é, ainda, destacado pelo autor: o apelo constante do coro para deliberar b<strong>em</strong> (eubolia),<br />

ou seja, para ser sábio (to phronein). S<strong>em</strong> desejar igualar o ensinamento trágico (“sabedoria<br />

282<br />

RICOEUR, O si-mesmo como um outro, p.281.<br />

283<br />

Cf. Id., p.281s.<br />

284<br />

Ricoeur não t<strong>em</strong> a preocupação de narrar a referida tragédia. É importante, porém, tomar alguns traços<br />

importantes dela. Antígona, que é fruto da união incestuosa de Édipo com Jocasta, procura reconciliar os irmãos<br />

Etéocles e Polinice, mas não obtém sucesso. Polinice sitia a cidade e acaba morrendo nas batalhas, junto ao<br />

irmão. Creonte sepulta Etéocles com todas as honras, mas proíbe que o mesmo seja feito com Polinice, por<br />

considerá-lo inimigo da cidade. Antígona, movida pelo amor ao irmão, julga injusta a proibição e enterra<br />

Polinice <strong>em</strong> segredo, o que leva Creonte condená-la à prisão <strong>em</strong> uma caverna, onde ela se enforca. Cf.<br />

ENCICLOPÉDIA BARSA. Rio de Janeiro/São Paulo: Helen Benton, 1975, v.1,p.431.<br />

285<br />

Nisso que Steiner designou “fundo agonístico da prova humana” – por apresentar uma série de antíteses,<br />

como aquelas entre hom<strong>em</strong> e mulher, sociedade e indivíduo, deuses e homens – Ricoeur afirma que “o<br />

reconhecimento de si é obtido ao preço de uma dura aprendizag<strong>em</strong> adquirida no curso de uma longa viag<strong>em</strong><br />

através desses conflitos persistentes cuja universalidade é inseparável de sua localização, cada vez inexcedível”.<br />

RICOEUR, op. cit., p.283s.<br />

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trágica”, para Jaspers) ao ensinamento moral, o que deveras Ricoeur sublinha na tragédia é<br />

que ela<br />

[...] gera uma aporia ético-prática que se acrescenta a todas as que as aporias<br />

da identidade narrativa [...]. Recusando levar uma “solução” aos conflitos<br />

que a ficção tornou insolúveis, a tragédia, após ter desorientado o olhar,<br />

condena o hom<strong>em</strong> da praxis a orientar de novo a ação com seus próprios<br />

riscos e custos, no sentido de uma sabedoria prática <strong>em</strong> situação que<br />

responda melhor à sabedoria trágica 286 .<br />

Por fim, confrontando a tragédia com a convicção moral, o autor enfatiza que a<br />

causa maior dos conflitos éticos é a unilateralidade de caráter e de princípios morais, diante da<br />

qual apresenta-se um caminho: “do phronein trágico à phronésis prática: tal seria a máxima<br />

suscetível de subtrair a convicção moral à alternativa destruidora da univocidade ou do<br />

arbitrário” 287 .<br />

3.2.3.1 – Instituição e conflito: da Sittlichkeit à phronésis<br />

Ricoeur faz um caminho inverso nesse novo momento, partindo do plano<br />

institucional à autonomia, com o fim de d<strong>em</strong>onstrar que a Sittlichkeit hegeliana não representa<br />

uma terceira instância – superior à ética e moral – mas sim um dos lugares onde a sabedoria<br />

prática é exercida 288 .<br />

Para tratar a questão dos conflitos no plano das instituições, Ricoeur retoma a tese<br />

de Rawls de uma justiça processual para mostrar que os conflitos aparec<strong>em</strong> quando se leva <strong>em</strong><br />

consideração não somente a distribuição, mas sobretudo a diversidade dos bens a distribuir,<br />

ou seja, as diferenças <strong>em</strong> relação a cada b<strong>em</strong>. O próprio Rawls abriu uma brecha a essa<br />

diversidade ao falar <strong>em</strong> “bens sociais primeiros”, que r<strong>em</strong>ete a conceitos teleológicos 289 . A<br />

respeito dessa diversidade dos bens, Michael Walzer decompôs a idéia de justiça <strong>em</strong> “esferas<br />

de justiça”, distinguindo-as <strong>em</strong> várias especificidades: como regras que reg<strong>em</strong> a cidadania,<br />

segurança pública, <strong>em</strong>pregos etc. Sua tese abre espaço à noção de conflitos sociais, seja<br />

286 RICOEUR, O si-mesmo como um outro, p.290.<br />

287 Id., p.293.<br />

288 Cf. Id., 293.<br />

289 Id., p.294.<br />

95


àqueles referentes à arbitrag<strong>em</strong> própria de cada esfera, seja aos que alud<strong>em</strong> às invasões de<br />

uma esfera <strong>em</strong> outra 290 .<br />

Para elucidar esse lugar de conflitos, Ricoeur adentra a prática política lançando<br />

mão do pensamento hegeliano que, <strong>em</strong> suas considerações acerca do sist<strong>em</strong>a de direito,<br />

afirmou que a idéia de um direito abstrato – como aquele apresentado pela moral kantiana –<br />

seria incapaz de unir concretamente os homens, dando marg<strong>em</strong> ao atomismo político. Daí a<br />

necessidade de uma moralidade efetiva e concreta, a Sittlichkeit, que encontra seu centro no<br />

campo das instituições, mormente do Estado 291 .<br />

Quanto a essa noção hegeliana, Ricoeur enfatiza que ela corrobora o entendimento<br />

de que um indivíduo somente se torna humano por meio de certas instituições. O autor não<br />

consente, porém, com a oposição que Hegel operou entre a Sittlichkeit e a Moralität, <strong>em</strong> que<br />

aquela transcenderia essa, tampouco acolhe a tese de que as instituições teriam uma<br />

espiritualidade distinta dos indivíduos, de forma que o Estado seria dotado de um saber de si.<br />

Destarte, é a própria consciência moral que Hegel despreza.<br />

Para nós, que atravessamos os acontecimentos monstruosos do século XX<br />

ligados ao fenômeno totalitário, t<strong>em</strong>os razões de ouvir o veredicto inverso,<br />

muito mais sobrecarregado, pronunciado pela própria história da boca das<br />

vítimas. Quando o espírito de um povo é pervertido a ponto de alimentar<br />

uma Sittlichkeit homicida, é finalmente na consciência moral de um pequeno<br />

número de indivíduos, inacessíveis ao medo e à corrupção, que se refugia o<br />

espírito que desertou das instituições tornadas criminais 292 .<br />

Para “desmistificar o Estado hegeliano”, Ricoeur investiga a prática política para<br />

identificar nela o trágico da ação. Assim, partindo da distinção de Hannah Arendt entre poder<br />

e dominação – <strong>em</strong> que o poder brotaria da vontade de viver junto – o autor reconhece que esse<br />

querer viver junto é “esquecido como orig<strong>em</strong> da instância política e recoberto pelas estruturas<br />

hierárquicas de dominação entre governantes e governados”. A política irrompe como<br />

conjunto das práticas organizadas conforme a distribuição da dominação que abre conflitos<br />

situados <strong>em</strong> três níveis 293 .<br />

290 Cf. RICOEUR, O si-mesmo como um outro, p.294-296.<br />

291 Cf. Id., p.297-299.<br />

292 Id., p.300.<br />

293 Cf. Id., p.301.<br />

96


No primeiro nível encontra-se o conflito nas atividades de deliberação num Estado<br />

de direito, as quais visam estabelecer provisoriamente a ord<strong>em</strong> de prioridade das solicitações<br />

de cada esfera de justiça. Para Ricoeur, é próprio da d<strong>em</strong>ocracia a presença de conflitos e<br />

esses permanec<strong>em</strong> abertos e renegociáveis, de forma que não pod<strong>em</strong> ser considerados uma<br />

anomalia – porquanto o b<strong>em</strong> público não pode ser determinado científica ou dogmaticamente.<br />

Ad<strong>em</strong>ais, “a discussão política é s<strong>em</strong> conclusão, se b<strong>em</strong> que não seja s<strong>em</strong> decisão”. Para<br />

Ricoeur, é propriamente a deliberação que promove a sujeição da Sittlichkeit hegeliana à<br />

phronésis aristotélica 294 .<br />

No segundo nível estão os conflitos que tang<strong>em</strong> a discussão dos fins do “bom<br />

governo”, isto é, a preferência por uma forma de Estado conforme os t<strong>em</strong>as da liberdade,<br />

prosperidade, segurança etc. É devido à pluralidade irredutível desses fins que se torna<br />

impossível realizá-los <strong>em</strong> sua totalidade simultaneamente, o que exige recurso à phronésis, a<br />

pesquisa da boa constituição conforme as conjunturas (sejam essas de ord<strong>em</strong> geográfica,<br />

histórica ou sócio-cultural) 295 .<br />

No terceiro nível Ricoeur trata do próprio processo de legitimação da d<strong>em</strong>ocracia,<br />

mais especificamente da crise de legitimação relativa à “falta de fundamento que parece afetar<br />

a própria escolha de um governo do povo, para o povo e pelo povo”. O autor toma Claude<br />

Lefort, para qu<strong>em</strong> a d<strong>em</strong>ocracia “é o regime que aceita suas contradições a ponto de<br />

institucionalizar o conflito”. Os homens teriam razões de preferir a d<strong>em</strong>ocracia ao<br />

totalitarismo baseadas no querer viver juntos, como ilustra a ficção de um contrato social.<br />

Nisso, pois, é o “bom conselho” que aparece como desafio à crise de legitimação:<br />

Se e na medida <strong>em</strong> que esse “bom conselho” prevalece, a Sittlichkeit<br />

hegeliana – que também se enraíza nos Sitten, nos “costumes” – mostra-se<br />

equivalente da phronésis de Aristóteles: uma phronésis para diversos ou,<br />

antes, pública, como o próprio debate 296 .<br />

294 “No Estado de direito, a noção aristotélica de deliberação coincide com a discussão pública, com esse<br />

‘estatuto público’ (Öffentlichkeit) reclamado com tanta insistência pelos pensadores das Luzes; por sua vez, a<br />

phronésis aristotélica t<strong>em</strong> por equivalente o julgamento <strong>em</strong> situação que, nas d<strong>em</strong>ocracias ocidentais, procede da<br />

eleição livre. A esse respeito é inútil – quando não perigoso – prever um consenso que ponha fim aos conflitos”.<br />

RICOEUR, O si-mesmo como um outro, p.302.<br />

295 “Essa escolha é um novo ex<strong>em</strong>plo do julgamento político <strong>em</strong> situação, <strong>em</strong> que a eubolia não t<strong>em</strong> outro apoio<br />

que não a convicção dos constituintes, finalmente seu senso de justiça – virtude das instituições – no momento<br />

de uma escolha ‘histórica’”. Id., p.304.<br />

296 Id., p.306.<br />

97


3.2.3.2 – Respeito e conflito: do respeito à lei à solicitude<br />

Também o respeito das pessoas constitui uma zona de conflitos, pois o segundo<br />

imperativo categórico kantiano torna possível a afronta entre a alteridade das pessoas e a<br />

universalidade das regras, afastando o respeito da lei e o respeito das pessoas. Nessa cisão, a<br />

sabedoria prática pode “consistir <strong>em</strong> dar a prioridade ao respeito das pessoas, <strong>em</strong> nome da<br />

solicitude que se dirige às pessoas na sua singularidade insubstituível” 297 .<br />

Se Kant pensava num caminho ascendente dos comportamentos regulares (prática<br />

cotidiana) às máximas e dessas à regra, Ricoeur mostra que o conflito surge no caminho<br />

inverso, da aplicação da norma à situação concreta, quando a alteridade das pessoas não pode<br />

deixar de ser considerada. Assim, partindo da afirmação kantiana de que o agente – <strong>em</strong> sua<br />

liberdade e movido pelo amor de si – poderia fazer uma exceção <strong>em</strong> favor próprio, deixando<br />

de elevar uma máxima ao status de lei universal, Ricoeur se pergunta sobre a possibilidade da<br />

exceção a favor do outro 298 .<br />

Para responder a essa questão, o autor <strong>em</strong>preende uma análise da proibição da<br />

falsa promessa <strong>em</strong> Kant, para qu<strong>em</strong> tal proibição ocorreria <strong>em</strong> virtude da regra constitutiva da<br />

promessa – “A coloca-se sob a obrigação de fazer X <strong>em</strong> favor de B nas circunstâncias Y” –<br />

cuja tônica recai sobre aquele que se obriga. Prometer falsamente, então, iria de encontro à<br />

integridade pessoal daquele que promete. Para Ricoeur, porém, prometer não é mero ato de<br />

discurso provido de engajamento monológico, pois isso faria da promessa uma “aposta<br />

estúpida”. Prometer implica uma obrigação de manter a promessa baseada na fidelidade ao<br />

outro – o que se aproxima da regra de reciprocidade (Regra de Ouro).<br />

A obrigação de se manter a si mesmo guardando suas promessas é ameaçada<br />

de condensar-se na dureza estóica da simples constância, se ela não é<br />

irrigada pela resolução de corresponder a uma expectativa, até a uma<br />

reclamação vinda do outro. [...] É ao outro que eu quero ser fiel. A essa<br />

fidelidade, Gabriel Marcel dá o belo nome de disponibilidade 299 .<br />

Pela disponibilidade, aquele que promete firma a intenção de corresponder à<br />

expectativa do outro e permite que esse conte com ele. É essa dinâmica que justifica a acurada<br />

297<br />

RICOEUR, O si-mesmo como um outro, p.307.<br />

298<br />

Cf. Id., p.308s.<br />

299<br />

Id., p.313, grifo do autor.<br />

98


análise da promessa que Ricoeur desenvolve, que não t<strong>em</strong> outro fim senão o de adentrar o<br />

campo da solicitude, para identificar nele a presença da sabedoria prática.<br />

Se a fidelidade consiste <strong>em</strong> responder à expectativa do outro que conta<br />

comigo, é essa expectativa que devo tomar como medida da aplicação da<br />

regra. Uma outra espécie de exceção <strong>em</strong> favor do outro. A sabedoria prática<br />

consiste <strong>em</strong> inventar as condutas que mais satisfarão à exceção que requer a<br />

solicitude traindo o menos possível a regra 300 .<br />

O autor apresenta os ex<strong>em</strong>plos da “vida acabando” e da “vida começando” para<br />

ilustrar a aplicação da sabedoria prática. Quanto ao primeiro, que se refere à verdade a ser dita<br />

às pessoas moribundas, duas atitudes básicas se contrapõ<strong>em</strong>: dizer a verdade<br />

incondicionalmente, s<strong>em</strong> avaliar as capacidades de recepção dessa verdade pelo doente; ou<br />

mentir, movido pelo receio de piorar a agonia do moribundo. Em meio a isso, a sabedoria<br />

prática reclama reflexão sobre a relação felicidade-sofrimento, inventando atitudes pertinentes<br />

à singularidade dos casos, considerando que “uma coisa é enunciar a doença, uma outra,<br />

revelar o grau de gravidade dela e a pouca probabilidade de sobrevida, uma outra, desferir a<br />

verdade clínica como uma condenação à morte” 301 .<br />

O ex<strong>em</strong>plo da “vida começando” adentra o campo da bio-ética e é de ord<strong>em</strong> mais<br />

complexa, porque subsume considerações ontológicas referentes à pergunta sobre que espécie<br />

de seres são os <strong>em</strong>briões. Nesse caso, as posições que se extr<strong>em</strong>am provêm daqueles que<br />

lançam mão do critério biológico, segundo o qual se une radicalmente a pessoa à vida e se<br />

postula o direito à “probabilidade de vida” do <strong>em</strong>brião – subjazendo, aí, uma ontologia<br />

substancialista ligada a uma teologia para a qual somente Deus é mestre da vida; e daqueles<br />

que somente consideram pessoa, no sentido forte, os indivíduos adultos, como é próprio do<br />

ponto de vista pragmático, firmado numa ontologia progressiva – que vê no <strong>em</strong>brião um ser<br />

<strong>em</strong> desenvolvimento, uma pessoa <strong>em</strong> potencial. Perante tal <strong>em</strong>bate, o julgamento prudencial<br />

conjuga a ciência – que descreve as propriedades desse ser e que avança nas técnicas – com a<br />

apreciação dos direitos e deveres para com esse ser. Também é considerado o “princípio<br />

responsabilidade”, que Hans Jonas identificava com a ação de pesar os riscos <strong>em</strong> relação às<br />

futuras gerações 302 .<br />

300<br />

RICOEUR, O si-mesmo como um outro, p.314.<br />

301<br />

Id., p.315.<br />

302<br />

“Em tal sentido, a reticência, por ex<strong>em</strong>plo, <strong>em</strong> matéria de manipulação de <strong>em</strong>briões supranumerários, não é<br />

forçadamente atributo dos defensores do “direito à vida” dos <strong>em</strong>briões humanos. Ela faz parte daquela sabedoria<br />

99


Nos três casos – falsa promessa, “vida acabando” e “vida começando” – Ricoeur<br />

salienta que há traços comuns, a saber: as posições adversas dev<strong>em</strong> se mover no mesmo<br />

princípio de respeito, diferindo-se tão somente quanto à extensão de sua aplicação; a pesquisa<br />

do “justo meio” (mésotés) exige um tato moral refinado, que não pode ser reduzido ao frágil<br />

compromisso 303 ; o julgamento moral é tanto menos arbitrário quanto mais o decididor<br />

aconselhar-se com as pessoas mais competentes e sábias – abrindo a convicção à pluralidade<br />

do debate, pois “o phronimos não é forçosamente um hom<strong>em</strong> só” 304 .<br />

Em suma, quando o respeito causa conflitos, ele deve r<strong>em</strong>eter à solicitude, a qual<br />

considera a alteridade das pessoas – inclusive das “pessoas potenciais”. Ricoeur nota, porém,<br />

que não se trata de uma solicitude ingênua, mas sim crítica, experimentada pelas condições<br />

morais do respeito. “Essa solicitude crítica é a forma que toma a sabedoria prática na região<br />

das relações interpessoais” 305 .<br />

3.2.3.3 – Autonomia e conflito: argumentação e convicção<br />

Ao final do caminho de retorno da moral à ética e após desenvolver as aporias<br />

próprias das esferas institucional e interpessoal, Ricoeur desenvolve os conflitos pertinentes<br />

ao plano fundamental e metacritério da moralidade: a autonomia. Para tanto, o autor<br />

<strong>em</strong>preende uma longa via de reinterpretação desse princípio kantiano, marcada por três<br />

momentos 306 .<br />

A primeira revisão diz respeito à oposição entre a autonomia e a heteronomia.<br />

Enquanto Kant tomava a heteronomia como submissão do próprio julgamento ao julgamento<br />

de outr<strong>em</strong> – identificando-a, pois, com o estado de “minoridade” – e tomava a autonomia <strong>em</strong><br />

seu sentido de responsabilidade pelo próprio julgamento, Ricoeur nota que a autonomia deve<br />

prática requerida pelas situações conflituais que brotam do respeito mesmo <strong>em</strong> um âmbito no qual v<strong>em</strong> derrotada<br />

a dicotomia entre pessoa e coisa”. Cf. Id., Sè come un altro, p.380s (O si-mesmo como um outro, p. 219).<br />

303 O próprio Aristóteles afirmava que “[...] na ord<strong>em</strong> da substância e da definição que exprime a qüididade, a<br />

virtude é uma mediação, enquanto que, na ord<strong>em</strong> da excelência e do perfeito, é um cimo”. Cf. Id., p.319, nota de<br />

rodapé.<br />

304 Id., p.319.<br />

305 Id., p.321.<br />

306 Cf. Id., p.320.<br />

100


muito à heteronomia, porque a tomada de responsabilidade é “solidária e dependente da regra<br />

de justiça e da regra de reciprocidade” 307 .<br />

A segunda revisão importante na autonomia diz respeito ao uso restritivo do<br />

critério de universalização – no qual a restrição t<strong>em</strong> por escopo descartar as máximas providas<br />

de contradição interna. Segundo a ótica do autor, esse uso kantiano é insuficiente porque a<br />

não-contradição isolada de uma máxima não implica necessariamente a coerência do conjunto<br />

das regras, isto é, do sist<strong>em</strong>a moral. Por isso Ricoeur busca recurso no chamado “raciocínio<br />

jurídico”, o qual constrói a coerência de um sist<strong>em</strong>a jurídico por meio da flexibilidade e<br />

inventividade – isto é, elaborando conceitos novos diante dos casos s<strong>em</strong> precedentes 308 .<br />

Nessa busca, Ricoeur encontra o que Alan Donagan denominou “pr<strong>em</strong>issas<br />

especificantes”, cuja função seria delimitar e corrigir o conjunto das ações às quais é aplicado<br />

o imperativo formal – como acontece no caso da legítima defesa, que limita a aplicação da<br />

interdição de matar à categoria do homicídio. Com essas pr<strong>em</strong>issas v<strong>em</strong>, porém, uma<br />

dificuldade: amiúde elas se encontram tácitas e marcam a dominação e a violência <strong>em</strong> meio às<br />

convicções morais – como a tragédia de Antígona apresenta nas posturas reducionistas dos<br />

protagonistas. Perante essa dificuldade, exige-se uma filosofia moral crítica <strong>em</strong> relação a<br />

preconceitos e ideologias, a fim de garantir a reconstrução dessas pr<strong>em</strong>issas tendo <strong>em</strong> vista a<br />

coerência do sist<strong>em</strong>a moral 309 .<br />

Por fim, na terceira revisão do legado kantiano, Ricoeur inspira-se na Ética do<br />

discurso (ou da discussão) de Karl-Otto Apel e Jünger Habermas, que defend<strong>em</strong> a<br />

universalidade e reconstro<strong>em</strong> o formalismo no plano da moral da comunicação. O que<br />

Ricoeur sublinha <strong>em</strong> ambos é o <strong>em</strong>penho de justificação das normas de comunicação, as quais<br />

vê<strong>em</strong> a colaborar para a explicitação da dimensão moral da ipseidade. Assim,<br />

101<br />

[...] a força da moral da comunicação é ter fundido numa só probl<strong>em</strong>ática os<br />

três imperativos kantianos: o princípio de autonomia segundo a categoria de<br />

unidade, o princípio do respeito consoante à categoria de pluralidade, e o<br />

princípio do reinado dos fins segundo a categoria de totalidade. Por outras<br />

307 RICOEUR, O si-mesmo como um outro, p.322. A figura do outro que deve ser assumida pela autonomia é a<br />

do mestre do direito perante o discípulo.<br />

308 Cf. Id., p.322s.<br />

309 Cf. Id., p.325-327.


102<br />

palavras, o si é fundado de uma vez na sua dimensão de universalidade e na<br />

sua dimensão dialógica, tanto interpessoal quanto institucional 310 .<br />

Quanto ao t<strong>em</strong>a da coerência, essa está ligada a uma teoria da argumentação que<br />

se realiza inteiramente na atividade comunicativa, com discussões reais cuja finalidade é<br />

estabelecer normas a partir dos conflitos da vida cotidiana. Porquanto as discussões práticas<br />

são discussões reais, a preocupação de Habermas não diz respeito às condições históricas de<br />

efetuação das discussões, mas sim à fundação da exigência de universalização – fundação<br />

essa que objetiva contrapor-se às desconfianças dos céticos a respeito dos acordos morais<br />

produzidos argumentativamente. Com a pragmática transcendental, ele e Apel d<strong>em</strong>onstram<br />

que o princípio de universalização encontra-se implícito nas pressuposições de qualquer<br />

argumentação e a “comunidade ilimitada de comunicação” permitiria unir a autonomia do<br />

juízo de cada m<strong>em</strong>bro com a expectativa do consenso de todos 311 .<br />

Se pela via da justificação a ética da discussão logra credibilidade, pela via da<br />

efetuação (aplicação à situação concreta) ela enfrenta uma série de conflitos que dão razão às<br />

objeções contextualistas. O dil<strong>em</strong>a entre universalismo e contextualismo se apresenta<br />

naqueles mesmos conflitos tomados no plano institucional e interpessoal: diversidade dos<br />

bens a distribuir, escolhas políticas e os casos de consciência da vida acabando e começando –<br />

pois os sist<strong>em</strong>as de distribuição, as escolhas políticas e até mesmo as soluções para os casos<br />

de consciência têm forte afeição pela historicidade 312 .<br />

Diante desse dil<strong>em</strong>a entre universalismo e contextualismo, Ricoeur propõe<br />

rediscutir a ética da argumentação por considerá-la superior tanto à regra de justiça quanto à<br />

do respeito – ambas fontes de conflito. O autor reconhece que a ética da argumentação evita a<br />

assunção incorreta das objeções contextualistas – que incorr<strong>em</strong> num relativismo cultural –<br />

mas não deixa de tecer sua crítica a essa ética que segue a estratégia kantiana da purificação e<br />

opõe-se ao que Habermas chamou “convenção” e “tradição” – pois isso nega a mediação<br />

contextual e desliga-se da realidade. Para superar esse dil<strong>em</strong>a, Ricoeur propõe reformular a<br />

ética da argumentação de modo a “[...] integrar as objeções do contextualismo, ao mesmo<br />

310 RICOEUR, O si-mesmo como um outro, p.328<br />

311 Diante da questão do universalismo, Ricoeur posiciona-se mais a favor da ética da discurso habermasiana<br />

pelo fato de que, diferente de Apel, Habermas não têm pretensão de dar à justificação pragmático-transcendental<br />

um aspecto de “fundação última”. Id., p.329s.<br />

312 Cf. Id., p.331-333.


t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que este levaria a sério a exigência de universalização para se concentrar sobre as<br />

condições de pôr <strong>em</strong> contexto essa exigência” 313 .<br />

Para engendrar essa reformulação, Ricoeur substitui a oposição entre<br />

argumentação e convenção pela dialética da argumentação e convicção, que produz resultado<br />

prático no julgamento moral <strong>em</strong> situação. Como a argumentação não passa de um jogo de<br />

linguag<strong>em</strong> abstrato <strong>em</strong> virtude de sua exigência de universalização, ela faz recurso a outros<br />

jogos (como, por ex<strong>em</strong>plo à narrativa de uma vida), porque é sobre assuntos da vida que se<br />

deve discutir. É por isso que<br />

103<br />

a argumentação coloca-se não somente como antagonista da tradição e da<br />

convenção mas como instância crítica operando no seio de convicções que<br />

ela t<strong>em</strong> por tarefa não eliminar mas levar à categoria de “convicções b<strong>em</strong><br />

pesadas”, o que Rawls chama um equilíbrio refletido. Um tal equilíbrio<br />

refletido entre a exigência de universalidade e o reconhecimento das<br />

limitações contextuais que o afetam é que é o lance do julgamento <strong>em</strong><br />

situação [...] 314 .<br />

Assim, pois, as convicções não pod<strong>em</strong> deixar de ser consideradas, porque<br />

expressam posicionamentos que concorr<strong>em</strong> para avaliações dos bens diversos da praxis e da<br />

concepção individual e coletiva de uma vida completa. Elas compõ<strong>em</strong> a argumentação porque<br />

o que s<strong>em</strong>pre se discute é “[...] a melhor maneira de cada parceiro do grande debate visar,<br />

para além das mediações institucionais, a uma vida completa com e para os outros, nas<br />

instituições justas”. Destarte, a conjugação entre deontologia e teleologia se dá de forma<br />

máxima – e igualmente frágil – “no equilíbrio refletido entre ética da argumentação e<br />

convicções b<strong>em</strong> pesadas” 315 .<br />

Ricoeur apresenta um ex<strong>em</strong>plo disso na discussão acerca dos direitos humanos, os<br />

quais, a despeito de ser<strong>em</strong> confirmados pela maioria dos Estados, são apontados como<br />

produto da cultura ocidental. Diante dessa situação, Ricoeur conserva a pretensão universal de<br />

alguns valores nos quais o universal e o histórico se entrecruzam para, então, disponibilizar<br />

essas pretensões à discussão no nível das convicções acerca das formas concretas de vida –<br />

exigindo que as partes admitam a presença de outros universais <strong>em</strong> potência subjacentes a<br />

313 RICOEUR, O si-mesmo como um outro, p.335.<br />

314 Id., p.336.<br />

315 Id., p.336s.


culturas diferentes. A sabedoria prática atinge aí, pois, a feição da “arte da conversação”,<br />

meio no qual a ética da argumentação pode ser provada 316 .<br />

104<br />

Somente uma discussão real <strong>em</strong> que as convicções sejam convidadas a se<br />

elevar acima das convenções poderá dizer, no fim de uma longa história<br />

ainda por vir, quais universais pretendidos tornar-se-ão universais<br />

reconhecidos por “todas as partes interessadas” (Habermas).<br />

Ao concluir o itinerário dessa “pequena ética” – como o autor mesmo definiu –<br />

Ricoeur sintetiza que a sabedoria prática aí proposta subsume e concilia os três momentos<br />

tratados: a phronésis aristotélica, a Moralität kantiana e a Sittlichkeit hegeliana, de forma que<br />

a phronésis – que t<strong>em</strong> por horizonte a “vida boa”, por mediação a deliberação, por ator o<br />

phronimos e por área de aplicação as situações singulares – ao assumir um caráter mais<br />

crítico, pode identificar-se à Sittlichkeit, que perde, por sua vez, seu caráter soberano. Assim,<br />

É através do debate público, do colóquio amigável, das convicções<br />

partilhadas, que o julgamento moral <strong>em</strong> situação se forma. Da sabedoria<br />

prática que convém a esse julgamento, pod<strong>em</strong>os dizer que a Sittlichkeit aí<br />

“repete” a phronésis, uma vez que a Sittlichkeit “mediatiza” a phronésis 317 .<br />

É assim, pois, que a sabedoria prática preserva a convicção moral da alternativa<br />

nociva da univocidade e da arbitrariedade.<br />

3.3 – HORIZONTE ONTOLÓGICO DA HERMENÊUTICA DO SI<br />

Dentre todos os estudos de O si-mesmo como um outro, o último, intitulado “A<br />

respeito de qual ontologia?” é o que apresenta caráter mais “exploratório” e se dedica a<br />

explicitar as implicações ontológicas de todos os estudos precedentes da hermenêutica do si.<br />

O probl<strong>em</strong>a-base aí é: “Qual modo de ser é, portanto, o do si, que espécie de ente ou de<br />

entidade ele é?” Diante desse questionamento, aparece uma concepção polissêmica de ser<br />

inspirada <strong>em</strong> Platão e Aristóteles 318 .<br />

316 Cf. RICOEUR, O si-mesmo como um outro, p.337s.<br />

317 Id., p.339.<br />

318 Cf. Id., p.347s.


O estudo retoma as mesmas três intenções que permeiam toda a obra e, acerca da<br />

dialética entre ipseidade e alteridade, apresenta-se um discurso de “segundo grau”, já não<br />

referente às categorias das pessoas e coisas – aspectos mais fenomenológicos – mas sim<br />

referente às metacategorias ou “grandes gêneros” platônicos do Mesmo e do Outro. Não se<br />

trata de uma mera repetição da ontologia platônica: é um esforço de reinterpretação e<br />

reapropiação pelas quais o Mesmo de Platão não equivale à ipseidade, tampouco o Outro ao<br />

diverso de si. O objetivo de Ricoeur é, com isso, desenvolver “[...] o potencial de sentido<br />

deixado s<strong>em</strong> <strong>em</strong>prego, até reprimido, pelo próprio processo de sist<strong>em</strong>atização e de<br />

escolarização” dos grandes corpos doutrinários 319 .<br />

3.3.1 – Atestação do si<br />

Primeiramente quanto à articulação entre reflexão (ontologia) e análise<br />

(lingüística), Ricoeur procura balizar a atestação conforme a categoria aristotélica de “serverdadeiro”,<br />

à qual Aristóteles opunha o “ser-falso”. Se por um lado é possível afirmar s<strong>em</strong><br />

desvios o “ser-verdadeiro” da mediação da reflexão pela análise – pois as contribuições das<br />

filosofias analíticas ajudam a dizer o ser, já que a linguag<strong>em</strong> é dotada de uma “ve<strong>em</strong>ência<br />

ontológica” – por outro Ricoeur diz ser necessário reinterpretar o “ser-verdadeiro” aristotélico<br />

para relacioná-lo à atestação, de modo que ele admita ser permeado pela suspeita. Assim,<br />

“[...] o que é atestado, <strong>em</strong> último caso, é a ipseidade, ao mesmo t<strong>em</strong>po na sua diferença com<br />

respeito à mesmidade e na sua relação dialética com a alteridade” 320 .<br />

3.3.2 – Ser poderoso e efetivo<br />

Quanto à dialética entre mesmidade e ipseidade, Ricoeur procura ligar o ser do si<br />

à acepção do ser como ato (energéia) e potência (dynamis) postulados por Aristóteles,<br />

sobretudo porque esse distintivo do ser não somente pode ser mais b<strong>em</strong> reconhecido no agir<br />

humano (praxis), mas se estende a outros campos e aponta para um “fundo de ser ao mesmo<br />

t<strong>em</strong>po poderoso e efetivo” 321 .<br />

319 Cf. RICOEUR, O si-mesmo como um outro, p.348s.<br />

320 Id., p.353, grifo do autor.<br />

321 Cf. Id., p.354-360.<br />

105


Para esclarecer essa noção, Ricoeur recorre a Heidegger, cuja obra Ser e t<strong>em</strong>po<br />

inspirou a hermenêutica da ipseidade. Nela, por ex<strong>em</strong>plo, Ricoeur encontra apoio para afirmar<br />

que mesmidade e ipseidade são dois modos de ser – não apenas duas significações distintas –<br />

porquanto se fundam respectivamente no Dasein e na Vorhandenheit (ser-simplesmentedado)<br />

322 . Quanto à reinterpretação do par energéia-dynamis, porém, a noção de facticidade<br />

parece insuficiente, o que leva Ricoeur a buscar <strong>em</strong> Spinoza uma reapropriação adequada da<br />

ontologia aristotélica, advinda com a noção de conatus: o poder ou esforço de cada coisa para<br />

perseverar no seu ser – potência essa que não está fora da essência atual da coisa. Esse<br />

dinamismo interno de cada coisa, sobretudo do hom<strong>em</strong>, é o que mais se destaca ao olhar de<br />

Ricoeur 323 .<br />

3.3.3 – A poliss<strong>em</strong>ia do Outro<br />

106<br />

Se Heidegger soube conjugar o si e o ser-no-mundo, Spinoza – de<br />

proveniência, é verdade mais que grega – é o único a ter sabido articular o<br />

conatus sobre esse fundo de ser ao mesmo t<strong>em</strong>po efetivo e poderoso que ele<br />

chama essentia actuosa 324 .<br />

Quanto à dialética dominante e que se expressa no título da obra <strong>ricoeur</strong>iana –<br />

ipseidade e alteridade – Ricoeur desenvolve uma extensa abordag<strong>em</strong> da poliss<strong>em</strong>ia da<br />

alteridade, cuja vantag<strong>em</strong> é impedir que o si ocupe um lugar de fundamento. Ricoeur lança<br />

mão do discurso fenomenológico e ontológico para acessar a referida metacategoria pelas<br />

experiências da passividade que formam um tripé: passividade da carne, passividade da<br />

relação do si com o diverso de si e passividade do si <strong>em</strong> relação a si mesmo, que é a<br />

consciência 325 .<br />

322 Corrobora isso, ainda, as duas distinções heideggerianas de permanência no t<strong>em</strong>po: uma próxima à<br />

substancial (no sentido kantiano) e a manutenção de si (Selbständigkeit), às quais correspond<strong>em</strong> a permanência<br />

do caráter e a constância moral da promessa. Cf. Id., O si-mesmo como um outro, p.361s.<br />

323 Cf. Id., p.260-270.<br />

324 Id., p.370, grifo do autor.<br />

325 Cf. Id., p.371s.


3.3.3.1 – Alteridade da carne<br />

Ricoeur adentra a questão do corpo próprio pela noção de sofrimento, que é a<br />

diminuição do poder de agir e do esforço de existir. O sofrer si-mesmo entrecruza a<br />

passividade de ser vítima do diverso de si e,<br />

107<br />

[...] numa dialética afiada entre práxis e pathos, o corpo próprio torna-se o<br />

título <strong>em</strong>bl<strong>em</strong>ático de uma vasta investigação que, para além do simples<br />

(ser) s<strong>em</strong>pre meu do corpo próprio, designa toda a esfera de passividade<br />

íntima e, portanto, de alteridade, da qual ele constitui o centro de<br />

gravidade 326 .<br />

Com Maine de Biran, Ricoeur encontra o corpo próprio ligado à idéia de ato e não<br />

de substância, de modo que “eu sou” significa “eu vou, eu movo, eu faço”. Nisso, diante do<br />

corpo <strong>em</strong> seu aspecto ativo (a resistência que cede ao esforço), t<strong>em</strong>-se o aspecto passivo<br />

(como mostram as variações de b<strong>em</strong>-estar e mal-estar e a resistência que as outras coisas<br />

oferec<strong>em</strong>), o que faz do corpo mediador entre a intimidade do eu e a exterioridade do mundo.<br />

Além disso, é, sobretudo <strong>em</strong> Husserl que Ricoeur encontra a contribuição mais profícua à<br />

ontologia da carne, mesmo <strong>em</strong> relação à Heidegger. Se Husserl operava uma distinção entre<br />

carne (leib) e corpo (körper) – <strong>em</strong> que a carne é o corpo que pertence ao ego e é tornada<br />

referência de todos os d<strong>em</strong>ais corpos – Ricoeur propõe o trajeto inverso: mundanizar a carne,<br />

a fim de que ela apareça como um corpo entre os corpos 327 .<br />

É aqui que a alteridade do outro como estranho, diverso de mim, parece<br />

dever estar não somente entrelaçada com a alteridade da carne que eu sou,<br />

mas considerada a seu modo como prévia à redução ao próprio. Pois minha<br />

carne só aparece como um corpo entre os corpos quando seu sou eu-mesmo<br />

um outro entre todos os outros, numa apreensão da natureza comum, urdida,<br />

como diz Husserl, na rede da inter<strong>subjetividade</strong> 328 .<br />

Ricoeur recorre ainda a Heidegger para, <strong>em</strong> sua abordag<strong>em</strong> do ser-lançado,<br />

encontrar no existencial da afeição (Befindlichkeit) a conjunção entre a familiaridade a si do<br />

Dasein e a dos modos diversos de aparecer do mundo, de modo a exprimir “mais ou menos o<br />

paradoxo de uma alteridade constitutiva do si e dá, assim, numa primeira vez, toda a sua força<br />

à expressão: ‘si-mesmo como um outro’”. Se Heidegger não conferiu um existencial distinto à<br />

326 RICOEUR, Sé come un altro, p.434 (O si-mesmo como um outro, p.374).<br />

327 Cf. Id., p.376-380.<br />

328 Id., p.380.


noção de carne por receio de situar o Dasein na espacialidade do ser-simplesmente-dado<br />

(Vorhandenheit), Ricoeur assevera que é na “espacialidade das coisas disponíveis e<br />

manejáveis que a espacialidade do Dasein se destaca a muito custo” 329 .<br />

3.3.3.2 – Alteridade do diverso de si<br />

A segunda significação da metacategoria da alteridade diz respeito à alteridade do<br />

outro, isto é, do diverso de si. Retomando as contribuições dos estudos anteriores, Ricoeur<br />

assevera que<br />

108<br />

uma nova dialética do Mesmo e do Outro é suscitada por essa hermenêutica,<br />

que de múltiplas maneiras confirma que aqui o Outro não é somente a<br />

contrapartida do Mesmo mas pertence à constituição íntima de seu sentido.<br />

No plano propriamente fenomenológico, com efeito, as maneiras múltiplas<br />

cujo diverso de si afeta a compreensão de si por si marcam precisamente a<br />

diferença entre o ego que se coloca e o si que apenas se reconhece através<br />

dessas afeições mesmas 330 .<br />

Para construir uma nova proposta, Ricoeur parte de Husserl e Lévinas, cuja<br />

relação da ipseidade com a alteridade seria estabelecida de modo unilateral. Ricoeur objeta<br />

Husserl afirmando que o outro (alter ego) não é constituído com base na epoché (redução<br />

transcendental ao ego, esfera do próprio), mas a pressupõe. Entretanto, Ricoeur entrevê uma<br />

importante combinação entre diferença e similitude no ponto paradoxal do modo de doação<br />

do outro: <strong>em</strong>bora as vivências do outro não possam ser vividas pelo ego (cuja doação é<br />

intuitiva); ao mesmo t<strong>em</strong>po o corpo do outro é percebido como carne analogicamente à carne<br />

do ego – de forma que ele deixa de ser considerado como estranho para ser tomado como<br />

“meu s<strong>em</strong>elhante” 331 .<br />

No caminho inverso, Ricoeur encontra Lévinas que entende o Mesmo como<br />

totalidade, fechamento e separação – um si indistinto do eu, pois – o que gera uma ruptura<br />

radical entre o eu e o outro. Nesse aspecto, a alteridade é tida como exterioridade absoluta, já<br />

não tratada por uma via gnosiológica, mas ética: o outro não pode ser apreendido nas<br />

representações de um eu – porquanto a epifania do rosto do outro não é um aparecer, mas uma<br />

329 RICOEUR, O si-mesmo como um outro, p.382s.<br />

330 Id., p.383, grifo do autor.<br />

331 Cf. Id., p.385-390.


voz que diz “tu não matarás”. Para Ricoeur, diante dessa distância absoluta entre o Mesmo e o<br />

Outro, somente uma ipseidade definida pela abertura poderia explicar a acolhida pelo eu do<br />

“tu não matarás” saído do outro. Ao final da confrontação entre Husserl e Lévinas, Ricoeur<br />

conclui que<br />

109<br />

[...] não há nenhuma contradição por considerar como dialeticamente<br />

compl<strong>em</strong>entares o movimento do Mesmo para o Outro e o do Outro para o<br />

Mesmo. Os dois movimentos não se anulam uma vez que um se desenvolve<br />

na dimensão gnosiológica do sentido, o outro, na ética da injunção. A<br />

destinação à responsabilidade, de acordo com a segunda dimensão, r<strong>em</strong>ete<br />

ao poder de autodesignação, transferido, conforme a primeira dimensão, a<br />

toda a terceira pessoa supostamente capaz de dizer “eu” [sic] 332 .<br />

3.3.3.3 – Alteridade da consciência: o ser-imposto<br />

Por fim, na última significação da alteridade, Ricoeur trata o t<strong>em</strong>a da consciência<br />

– no sentido que Heidegger atribuía à Gewissen, consciência moral. Ricoeur não deixa de<br />

reconhecer que é um t<strong>em</strong>a cheio de ciladas, sobretudo porque o fenômeno da consciência está<br />

ligado à atestação – na qual se confund<strong>em</strong> ser-verdadeiro e ser-falso 333 – <strong>em</strong> que a metáfora<br />

da “voz da consciência” surge como uma alteridade peculiar, ao mesmo t<strong>em</strong>po interior e<br />

superior ao si. Diante dela, Hegel e Nietzsche adotaram uma perspectiva de suspeita, tomando<br />

a consciência como “má consciência”. Heidegger, <strong>em</strong> contrapartida, desmoralizou a<br />

consciência e tomou-a como um apelo que sai do Dasein e, não obstante o supera – um traço<br />

de “estran(h/geir)eza” – e o convoca ao ser-<strong>em</strong>-dívida – não <strong>em</strong> relação ao outro, mas <strong>em</strong><br />

relação ao poder-ser mais conveniente 334 .<br />

Como as duas alternativas exclu<strong>em</strong>, respectivamente, o fenômeno da atestação e o<br />

da injunção, Ricoeur propõe uma nova significação da alteridade própria à consciência: o<br />

“ser-imposto” no qual se encontra a metáfora da voz unida à tríade ética: o chamado ético de<br />

“viver b<strong>em</strong> com e para o outro nas instituições justas” (como ilustra o “Tu, ama-me!” do<br />

Cântico dos cânticos); a lei (expressa pelo “Tu não matarás”) e a convicção (quando o si, no<br />

trágico da ação, diz: “Aqui eu me detenho! Não posso de outro modo”!) – que permite a<br />

332 RICOEUR, O si-mesmo como um outro, p.396.<br />

333 “A consciência é na verdade o lugar por excelência <strong>em</strong> que as ilusões sobre si-mesmo são intimamente<br />

misturadas à veracidade da atestação”. Id., p.397.<br />

334 Cf. Id., p.397-408.


Ricoeur repetir a exclamação heideggeriana transmitida por Gadamer: “phronésis é<br />

Gewissen!”. Assim,<br />

110<br />

a consciência como atestação-injunção, [sic] significa que essas<br />

“possibilidades mais convenientes” do Dasein são originariamente<br />

estruturadas pelo optativo do b<strong>em</strong>-viver, o qual governa a título secundário o<br />

imperativo do respeito e alcança a convicção do julgamento moral <strong>em</strong><br />

situação. Se assim é, a passividade do ser-imposto consiste na situação de<br />

escuta na qual o sujeito ético encontra-se colocado com relação à voz que<br />

lhe é dirigida na segunda pessoa. Encontrar-se interpelado na segunda<br />

pessoa, no centro mesmo do optativo do b<strong>em</strong>-viver, depois da interdição de<br />

matar, após a procura da escolha apropriada à situação, é reconhecer-se<br />

imposto a viver-b<strong>em</strong> com e para o outro nas instituições justas e a se<br />

estimar a si mesmo como portador desse desejo. A alteridade do Outro é,<br />

então, a contrapartida, no plano da dialética, dos “grandes gêneros” dessa<br />

passividade específica do ser-imposto 335 .<br />

Para definir o estatuto do Outro no fenômeno da consciência, o autor toma a<br />

contribuição de Freud, cuja perspectiva genética reconhece a consciência moral no superego –<br />

identificação com figuras antepassadas, cujas vozes se fariam ouvir na mente. Mas, para<br />

Ricoeur, o superego não esgota o sentido da alteridade da consciência – sobretudo porque tais<br />

vozes não poderiam ser interiorizadas s<strong>em</strong> a estrutura de acolhida do si – e tampouco o<br />

esgotam a “estran(h/geir)eza” segundo Heidegger e a exterioridade segundo Lévinas, o que<br />

permite a Ricoeur afirmar que a terceira modalidade de alteridade não pode ser outra que não<br />

o “ser-imposto como estrutura da ipseidade” 336 .<br />

Por outro lado, Ricoeur não deixa de concordar com Lévinas quanto à implicância<br />

do outro na injunção e preserva a equivocidade do estatuto desse Outro:<br />

Talvez o filósofo, como filósofo, deva confessar que ele não sabe e não pode<br />

dizer se esse Outro, fonte de injunção, é um outro que eu possa considerar<br />

ou que possa me encarar, ou meus ancestrais, dos quais já não há<br />

representação, tanto minha dívida a seu respeito é constitutiva de mim-<br />

mesmo, ou Deus – Deus vivo, Deus ausente – ou um lugar vazio. Sobre essa<br />

aporia do Outro o discurso filosófico se detém 337 .<br />

335 RICOEUR, O si-mesmo como um outro, p.410, grifo do autor.<br />

336 “A unidade profunda da atestação de si e da injunção vinda do outro justifica que seja reconhecida, na sua<br />

especificidade irredutível, a modalidade de alteridade que corresponde, no plano dos “grandes gêneros”, à<br />

passividade da consciência no plano fenomenológico”. Id., p.413.<br />

337 Id.


Ao final dessa explicitação do ser do si, sobretudo a que brota da dialética entre<br />

ipseidade e alteridade, pode-se entender o alcance e a profundidade do título da obra <strong>em</strong><br />

consideração. Autonomia e heteronomia se un<strong>em</strong>, de modo que “o Si-mesmo [...] e o outro se<br />

implicam mutuamente. Cada um deles são um eu, um tu e um ele, correlativamente<br />

vinculados para ser<strong>em</strong> autônomos” 338 .<br />

338 Ainda no ano de 1991, um ano depois da publicação de Soi-même comme un autre, Ricoeur dirá que<br />

“Enquanto <strong>em</strong> Descartes o ponto de partida é o sujeito como eu e como eu pensante, na narração ‘superamos’ a<br />

primeira pessoa [...] A ampliação da tradição reflexiva consiste <strong>em</strong> haver passado do pensamento à ação, <strong>em</strong><br />

haver abordado ao hom<strong>em</strong> como autor de seus atos [...] Entendo que o cogito cartesiano é um cogito solitário; há<br />

uma só pessoa. Em mudança, a ação é s<strong>em</strong>pre uma ação com outros e, por isso, o probl<strong>em</strong>a do outro está<br />

implicado na narração [...] considero que tanto a fenomenologia da inter<strong>subjetividade</strong> como a teoria da ação<br />

representam uma grande conquista”. CLAVEL, Juan Masiá. Revisión de la heteronomía en diálogo con P.<br />

Ricoeur. Isegoría (Revista de Filosofía Moral y Política), Madrid, n.5, mayo 1992, p.26.<br />

111


CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />

Seria uma pretensão assaz exagerada valer-me da expressão “considerações<br />

finais” ou “conclusão” no sentido de um ponto-final ou esclarecimento último acerca das<br />

probl<strong>em</strong>áticas aqui apresentadas. B<strong>em</strong> ao contrário! – eu diria – até mesmo porque os<br />

significados com os quais entrei <strong>em</strong> contato não cessam de mover-se e constituir novos<br />

sentidos, dizendo mais ou mesmo desdizendo aquilo que aqui foi exposto. Emprego aqui<br />

“conclusões finais” no sentido de um espaço de avaliação das conquistas e lacunas desse<br />

trabalho.<br />

A laboriosidade filosófica que Paul Ricoeur d<strong>em</strong>onstra <strong>em</strong> sua proposta<br />

hermenêutica, sobretudo <strong>em</strong> O si-mesmo como um outro, é digna de admiração, não por<br />

fornecer a verdade infalível sobre os t<strong>em</strong>as tratados, mas, antes, porque se mantém s<strong>em</strong>pre<br />

aberta a novos desenvolvimentos – como o confirmam a sua peculiar capacidade de diálogo<br />

com diversos pensadores e ciências, b<strong>em</strong> como o próprio estatuto da noção de “atestação”. Eis<br />

a postura do sábio, que, à guisa de Sócrates, reconhece uma Filosofia que não detém o saber<br />

total e, por isso, está s<strong>em</strong>pre <strong>em</strong> construção.<br />

Se se pode dizer que Ricoeur apresenta uma proposta hermenêutica notável é<br />

porque, ao construí-la segundo a “via-longa”, ele lha confere um poder insólito de ligar-se à<br />

vida. Assim, como a hermenêutica <strong>ricoeur</strong>iana propõe-se a interpretar sobretudo a existência<br />

humana por meio dos vários signos nos quais ela se objetiva – como nas ações, como<br />

insistimos – essa hermenêutica conduz à compreensão de um ser que é efetividade e<br />

dinamicidade e que faz experiência do outro na intimidade de si-mesmo.<br />

Ao fundar a Ética na <strong>subjetividade</strong> humana – a <strong>subjetividade</strong> de ser-imposto pela<br />

alteridade, como vimos – Ricoeur aproxima a maneira de agir da maneira de ser. Eis a mútua<br />

fecundação entre Ética e Ontologia, de uma maneira tal que justifica falar <strong>em</strong> ser “si-mesmo<br />

112


como um outro”. Com isso, ad<strong>em</strong>ais, apresenta-se uma concepção do mal: quando nossas<br />

ações não correspond<strong>em</strong> a esse nosso ser-imposto – ou seja, quando preferimos agir segundo<br />

a ilusão de um ego fechado <strong>em</strong> si – tornamos possível toda sorte de mal no mundo, seja <strong>em</strong><br />

foro íntimo, seja-o <strong>em</strong> relação ao outro diante ou distante de mim.<br />

Destarte, pode-se considerar que Ricoeur logrou sucesso <strong>em</strong> seu intento de<br />

fornecer à moral uma base mais profunda do que a lei, fonte de tantos conflitos <strong>em</strong> todas as<br />

esferas – como ilustra sabiamente a voz não-filosófica de Antígona. Submeter-se a algo mais<br />

profundo, o “chamado a viver b<strong>em</strong> com e para os outros nas instituições justas”, torna-se,<br />

pois, uma afirmação de insólito valor, porque cancela a perversa inversão de uma vida<br />

submissa à lei, quando essa é que deve estar a serviço da vida. Eis a reapropriação crítica da<br />

phronésis aristotélica, que, ao final, supera as dicotomias entre universalismo e<br />

contextualismo, b<strong>em</strong> como entre univocidade e arbitrariedade, através da proposta de uma<br />

rica dialética entre argumentação e convicção – pela qual se confirma um si <strong>em</strong> vista do outro.<br />

113<br />

Se toda leitura permite que alguém entre <strong>em</strong> contato com a alteridade do “mundo<br />

do texto”, há certos autores cujas obras têm a extraordinária capacidade de ampliar essa<br />

alteração do si, a qual impede ao leitor de permanecer o mesmo (no sentido de mesmidade).<br />

Paul Ricoeur insere-se nessa distinta classe, afinal, ao enobrecer o valor das narrativas<br />

históricas e fictícias, ele é capaz de dilatar as veredas da nossa autocompreensão para que<br />

reconheçamos nosso ser <strong>em</strong> plena consonância com nossa cultura.<br />

Assim, a hermenêutica <strong>ricoeur</strong>iana revela ser de grande valia, sobretudo porque<br />

todos os seus percursos – justamente por versar<strong>em</strong> sobre a existência humana – se negam a se<br />

encerrar numa theoria desconexa da praxis. Trata-se de uma proposta que interpreta o mundo<br />

(todo o horizonte da preocupação do si) para, a partir de sua explicação e compreensão,<br />

vislumbrar novos modos de ser com base nos quais pod<strong>em</strong>os atuar a transformação desse<br />

mesmo mundo.<br />

Muitas são, pois, as contribuições que o desenvolvimento dessa pesquisa me<br />

concedeu. Primeiramente, ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que ela consistiu <strong>em</strong> um desafio para a minha<br />

pessoa, o aparato conceitual <strong>ricoeur</strong>iano e o diálogo do autor com diversos pensadores e<br />

correntes permitiu-me expandir o cabedal de conhecimento e torná-lo mais diversificado e<br />

interdisciplinarmente enriquecido. O tratamento das t<strong>em</strong>áticas e, sobretudo dos métodos


hermenêuticos ofereceu-me, outrossim, grande subsídio para futuros estudos teológicos,<br />

particularmente no que alude à exegese bíblica. Disso, resta a lição de que o bom pensador<br />

deve estar aberto às diversas contribuições intelectuais, não para estar pronto a repeti-las, mas<br />

para reinterpretá-las e inová-las.<br />

Enfim, dois sentimentos antagônicos se revezam no momento <strong>em</strong> que este<br />

trabalho se conclui. O primeiro é de contentamento, pela vasta possibilidade que essa pesquisa<br />

ofereceu no desenvolvimento de minhas próprias potencialidades enquanto acadêmico <strong>em</strong><br />

vias de findar um curso tão insigne como o de Filosofia. O outro sentimento que irrompe <strong>em</strong><br />

mim, não menos notável, é a insatisfação, se considerada a distância entre o que foi feito com<br />

aquilo que poderia ter sido feito – ou mesmo deveria ser feito – conforme o convida a<br />

grandeza da obra <strong>ricoeur</strong>iana.<br />

114<br />

Se falo <strong>em</strong> insatisfação, aludo primeiramente à limitação pessoal diante dos<br />

conceitos e raciocínios do autor, cuja nacionalidade explica muito de um estilo indireto de<br />

escrever, que reclama uma leitura mais exigente e acurada – à qual n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre correspondi.<br />

Aqui recordo o fato de não poder ter lido o livro-base <strong>em</strong> seu original, o que certamente<br />

garantiria maior fidelidade ao pensamento do autor por livrar dos riscos das traduções. Cada<br />

vez mais me convenço da pertinência da expressão italiana “tradurre, tradire” (traduzir, trair)<br />

e considero que s<strong>em</strong> o confronto com as traduções <strong>em</strong> português e italiano, a compreensão do<br />

significado de alguns trechos da obra referida seria bastante desvirtuada.<br />

Também l<strong>em</strong>bro que o t<strong>em</strong>po – o inexorável Kronos – impõe uma série de<br />

restrições e exige grande disciplina de estudo. Confesso minhas limitações também aí e<br />

reconheço que o terceiro capítulo – escopo principal deste trabalho – foi o que dispôs de<br />

menos espaço t<strong>em</strong>poral para ser escrito. Também era minha intenção dedicar uma análise<br />

mais precisa das categorias <strong>ricoeur</strong>ianas úteis ao Aconselhamento Filosófico – projeto esse<br />

que teve de ser reduzido a mero esboço, no apêndice desta pesquisa.<br />

É com modéstia, pois, que este trabalho quer se apresentar – como não deveria<br />

deixar de ser diante da imensurável magnitude de nossos mestres filosóficos – num<br />

reconhecimento de que, apesar das deficiências, maiores são as riquezas que este trabalho me<br />

proporcionou. Quiçá elas sirvam ao menos de inspiração a todos quantos queiram deixar-se<br />

encantar pela obra de Paul Ricoeur!


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VAZ, Henrique de Lima. Escritos de Filosofia VI. Introdução à Ética Filosófica 1. 2.ed. São<br />

Paulo: Loyola, 2002.<br />

119


APÊNDICE<br />

120


APÊNDICE<br />

Faz-se aqui, como já referido na introdução deste trabalho, o exercício de<br />

composição de um inventário de categorias <strong>ricoeur</strong>ianas que poderiam auxiliar na<br />

fundamentação do chamado “Aconselhamento Filosófico”. Trata-se de um exercício<br />

incipiente, propriamente um esboço, sobre o qual se poderá construir uma pesquisa mais<br />

sist<strong>em</strong>ática.<br />

A preocupação com a justificativa e fundamentação dessa prática é fruto de<br />

comunicações do Prof. Dr. Frei Márcio Luis Costa nas disciplinas de “Tópicos especiais <strong>em</strong><br />

hermenêutica” e “Filosofia da linguag<strong>em</strong>”, b<strong>em</strong> como de discussões no grupo de estudos de<br />

Heidegger e num projeto inconcluso denominado “Formação acadêmica para uma práxis<br />

filosófica: ética aplicada e aconselhamento filosófico”.<br />

Parte-se da idéia-comum de que a Hermenêutica se mostra valiosa e necessária ao<br />

Aconselhamento Filosófico porque esse consiste propriamente numa atividade interpretativa,<br />

desenvolvida totalmente através da linguag<strong>em</strong>. Isso faz do Aconselhamento Filosófico uma<br />

hermenêutica da implicação não-interventora, <strong>em</strong> que seu caráter “curativo” brota de uma<br />

relação de ajuda – e não de uma atividade clínica 339 .<br />

Utilizar-se-á convencionalmente os termos “aconselhador filosófico” para o<br />

profissional que conduz a referida prática e “aconselhado” para o sujeito que utiliza esse<br />

serviço – apesar das discussões a respeito dos termos mais adequados que ainda distam muito<br />

de se concluír<strong>em</strong>. As categorias listadas a seguir part<strong>em</strong> das mesmas referências já utilizadas<br />

– sobretudo das obras Da interpretação, O si-mesmo como um outro e Teoria da<br />

interpretação – e consist<strong>em</strong> <strong>em</strong> pistas que pod<strong>em</strong> regular o Aconselhamento Filosófico:<br />

339 Cf. COSTA, Márcio Luís. Pensar, intervir e modificar: uma hermenêutica curativa? In: SEMANA<br />

FILOSÓFICA DA UCDB, 25.,Campo Grande, 2004, p.1-6.<br />

121


122<br />

• Via-longa: essa expressão denota que a prática do aconselhamento filosófico<br />

exige um esforço laborioso e paciente, tanto por parte do aconselhador, quanto do<br />

aconselhado. Trata-se de um caminho que não se deixa seduzir por respostas<br />

simples e prontas, mas aceita todos os desvios e mediações necessárias à reflexão<br />

– de modo que a compreensão de si mesmo ou autoconsciência não é ponto de<br />

partida, mas uma tarefa.<br />

• Explicação-compreensão: “explicar mais para compreender melhor” pode ser<br />

assumido como uma das posturas mais fundamentais no aconselhamento<br />

filosófico. Agindo conforme essa dialética, o aconselhado seria estimulado a<br />

expressar na linguag<strong>em</strong> seus conteúdos noéticos e, com estímulo e auxílio do<br />

aconselhador, decomporia os vários significados de suas vivências – momento da<br />

explicação – para, a partir de então, promover a síntese desses conteúdos<br />

elaborando novos sentidos – momento da compreensão.<br />

• Narrativa: essa categoria está diretamente ligada à anterior e revela que é a<br />

narrativa de uma vida que brota do exercício de explicação-compreensão. Para<br />

contar a própria vida, o aconselhado precisaria <strong>em</strong>penhar-se para compor um<br />

enredo a partir dos vários personagens (reais), acontecimentos e ações de sua<br />

vida, o que exige um exercício racional de conectar esses vários el<strong>em</strong>entos de<br />

acordo com a t<strong>em</strong>poralidade. O fato de que o si não pode deixar de ser ativo e<br />

narrador indica que ele é convocado a construir a sua vida como se compõe um<br />

po<strong>em</strong>a.<br />

• Identidade narrativa: ao elaborar uma narrativa, o aconselhado faz-se, ao mesmo<br />

t<strong>em</strong>po, autor e personag<strong>em</strong> da história que é contada. T<strong>em</strong>-se, pois, a construção<br />

da identidade pessoal do próprio aconselhado, que se reconhece enquanto id<strong>em</strong><br />

(mesmidade do caráter) e enquanto ipse (si-mesmo <strong>em</strong> meio às mudanças), de<br />

modo que o sujeito se percebe como ser efetivo e poderoso, ao mesmo t<strong>em</strong>po –<br />

porque ligado a uma série de outros personagens.


123<br />

• Símbolo: o aconselhador filosófico deve estar atento aos símbolos (expressões de<br />

múltiplos sentidos) expressos na fala do aconselhador, a fim de engendrar um<br />

trabalho interpretativo que une hermenêutica da manifestação e restauração de<br />

sentido – a vontade de ouvir o aconselhado, motivado pela confiança de que o<br />

sentido patente revela o sentido latente – com hermenêutica da suspeita – a<br />

vontade de suspeitar do que é expresso, isto é, de desmistificar e de purificar as<br />

ilusões, a fim de que irrompam os sentidos patentes (s<strong>em</strong>pre mais autênticos) que<br />

estejam dissimulados nos sentidos patentes.<br />

• Aproximação e distanciamento: esse procedimento, que é preconizado por<br />

Ricoeur diante de um texto qualquer, corrobora a importância de o aconselhado<br />

objetivar e explicar seus conteúdos noéticos através da fala ou da escrita<br />

(momento do distanciamento), para, assim, estimular a própria reflexão, pela qual<br />

ele pode voltar-se a si mesmo com um novo olhar e nova compreensão (momento<br />

da aproximação).<br />

• Conatus: essa noção de Spinoza impede a redução da existência humana à<br />

vacuidade do “eu sou” e concilia essa existência com dimensões não-cognitivas –<br />

como volição, motivação, <strong>em</strong>oção, corpo e ação. Isso v<strong>em</strong> a afirmar a exigência<br />

de o aconselhado ser conduzido por um caminho de interpretação dos diversos<br />

signos de sua vida, pelos quais ele pode compreender sua própria existência.<br />

• Mundo do texto: indica a importância de o aconselhado ser instigado a praticar a<br />

leitura de textos diversos, tanto históricos quanto fictícios, para, através de sua<br />

interpretação, expandir seus próprios horizontes e deparar-se com novos modos<br />

de ser. Num segundo momento, o aconselhado partilharia com o aconselhador a<br />

gama de novos sentidos incorporados a si-mesmo.

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