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A mensagem de Eclesiastes - Derek Kidner.pdf - Webnode

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Digitalizado por Amigo anônimo<br />

www.semeadoresdapalavra.net


A Mensagem <strong>de</strong><br />

<strong>Eclesiastes</strong><br />

<strong>Derek</strong> <strong>Kidner</strong><br />

Nossos e-books são disponibilizados gratuitamente, com a única<br />

finalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> oferecer leitura edificante a todos aqueles que não tem<br />

condições econômicas para comprar.<br />

Se você é financeiramente privilegiado, então utilize nosso acervo<br />

apenas para avaliação, e, se gostar, abençoe autores, editoras e<br />

livrarias, adquirindo os livros.<br />

A MENSAGEM DE ECLESIASTES<br />

©Inter-Varsity Press, Leicester, Inglaterra<br />

SEMEADORES DA PALAVRA e-books evangélicos<br />

A Mensagem <strong>de</strong> <strong>Eclesiastes</strong>, <strong>de</strong> <strong>Derek</strong> <strong>Kidner</strong>, foi publicado em inglês em 1976 pela Inter-Varsity<br />

Press, Inglaterra, com o título A time to mourn, and a time to dance.<br />

A tradução em português e a publicação e distribuição pela ABU Editora, nos países <strong>de</strong> fala<br />

portuguesa é um projeto <strong>de</strong> David C. Cook Foundation, uma organização filantrópica<br />

constituída segundo as leis do Estado <strong>de</strong> Illinois, cuja finalida<strong>de</strong> é a divulgação do evangelho <strong>de</strong><br />

Cristo.<br />

Direitos reservados pela<br />

ABU Editora SC<br />

Caixa postal 30505<br />

01051 – São Paulo – SP<br />

Tradução <strong>de</strong> Yolanda Mirdsa Krievin<br />

Revisão <strong>de</strong> estilo <strong>de</strong> Silêda Silva Steuernagel e Milton A. Andra<strong>de</strong><br />

Revisão <strong>de</strong> provas <strong>de</strong> Solange Domingues da Silva<br />

O texto bíblico utilizado neste livro é o da Edição Revista e Atualizada no Brasil, da Socieda<strong>de</strong><br />

Bíblia do Brasil, exceto quando outra versão é indicada. Comentários do autor quanto às<br />

diferentes versões inglesas foram, sempre que possível, adaptados às principais versões da<br />

Bíblia em português.<br />

1ª Edição – 1989<br />

2


Conteúdo<br />

Primeira Parte ..................................................................................................................................................................... 5<br />

O que este livro está fazendo na Bíblia? - Uma visão geral ......................................................................... 5<br />

Segunda Parte................................................................................................................................................................... 10<br />

O que o livro diz! - um breve comentário........................................................................................................ 10<br />

<strong>Eclesiastes</strong> 1:1-11 - O autor, o tema e o reconhecimento do cenário ............................................. 10<br />

<strong>Eclesiastes</strong> 1:12-2:26 - Em busca <strong>de</strong> satisfação ........................................................................................ 13<br />

<strong>Eclesiastes</strong> 3:1-15 - A tirania do tempo ....................................................................................................... 18<br />

<strong>Eclesiastes</strong> 3:16-4:3 - A aspereza da vida .................................................................................................. 20<br />

<strong>Eclesiastes</strong> 4:4-8 - Corrida <strong>de</strong>senfreada ..................................................................................................... 22<br />

Primeiro Resumo: Retrospectiva <strong>de</strong> <strong>Eclesiastes</strong> 1:1-4:8 ..................................................................... 23<br />

<strong>Eclesiastes</strong> 4:9-5:12 - Interlúdio: Algumas reflexões, máximas e verda<strong>de</strong>s ................................ 24<br />

<strong>Eclesiastes</strong> 5:13-6:12 - A amargura do <strong>de</strong>sapontamento .................................................................... 28<br />

Segundo Resumo: Retrospectiva <strong>de</strong> <strong>Eclesiastes</strong> 4:9-6:12 .................................................................... 32<br />

<strong>Eclesiastes</strong> 7:1-22 - Interlúdio: Mais reflexões, máximas e verda<strong>de</strong>s ............................................. 32<br />

<strong>Eclesiastes</strong> 7:23-29 - A busca continua ....................................................................................................... 35<br />

<strong>Eclesiastes</strong> 8:1-17 - Frustração ...................................................................................................................... 37<br />

<strong>Eclesiastes</strong> 9:1-18 - Perigo ............................................................................................................................... 40<br />

Terceiro Resumo: Retrospectiva <strong>de</strong> <strong>Eclesiastes</strong> 7:1-9:18 ................................................................... 44<br />

<strong>Eclesiastes</strong> 10:1-20 - Interlúdio: Sê pru<strong>de</strong>nte! .......................................................................................... 44<br />

<strong>Eclesiastes</strong> 11:1-12:8 - Em direção do alvo ............................................................................................... 48<br />

<strong>Eclesiastes</strong> 12:9-14 - Conclusão ..................................................................................................................... 53<br />

Terceira Parte ................................................................................................................................................................... 56<br />

E nós, o que temos a dizer? - um epílogo ........................................................................................................ 56<br />

Prefácio Geral<br />

A Bíblia Fala hoje constitui uma série <strong>de</strong> exposições tanto do Antigo como do Novo<br />

Testamento, que se caracterizam por um triplo objetivo: expor acuradamente o texto bíblico,<br />

relacioná-lo com a vida contemporânea e proporcionar uma leitura agradável.<br />

Esses livros não são, pois, “comentários”, já que um comentário busca mais elucidar o<br />

texto do que aplicá-lo, e ten<strong>de</strong> a ser uma obra mais <strong>de</strong> referência do que literária. Por outro lado,<br />

esta série também não apresenta aquele tipo <strong>de</strong> “sermões” que, preten<strong>de</strong>ndo ser<br />

contemporâneos e <strong>de</strong> leitura acessível, <strong>de</strong>ixam <strong>de</strong> abordar a Escritura com suficiente serieda<strong>de</strong>.<br />

As pessoas que contribuíram nesta série unem-se na convicção <strong>de</strong> que Deus ainda fala<br />

através do que já falou, e que nada é mais necessário para a vida, o crescimento e a saú<strong>de</strong> das<br />

igrejas ou dos cristãos do que ouvir e atentar ao que o Espírito lhes diz através da sua Palavra,<br />

tão antiga e, mesmo assim, sempre atual.<br />

J.A. Motyer<br />

J.R.W. Stott<br />

Editores da série<br />

3


Prefácio do Autor<br />

Qualquer pessoa que leia as Escrituras (até mesmo o menos eclesiástico dos homens) há<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>parar-se com o espírito altamente in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte e muito fascinante. Isto me leva a dizer<br />

duas coisas.<br />

Primeiro, <strong>de</strong>sejo agra<strong>de</strong>cer ao editor <strong>de</strong>sta série por me dar uma <strong>de</strong>sculpa para estudar o<br />

livro mais <strong>de</strong>talhadamente do que nunca.<br />

Segundo, quero sugerir que alguns leitores fariam bem em passar diretamente à Segunda<br />

Parte, um breve comentário, on<strong>de</strong> ouvirão o próprio Pregador, com interrupções minhas, é claro,<br />

sem aguardar o exame pretendido na Primeira Parte. Isso <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> da pessoa: se ela prefere<br />

primeiro ter um mapa das coisas ou mergulhar diretamente, andando às apalpa<strong>de</strong>las.<br />

De qualquer maneira, que seja uma viagem rumo ao alvo.<br />

<strong>Derek</strong> <strong>Kidner</strong><br />

Tyndale House<br />

Cambridge<br />

Principais Abreviaturas<br />

ANET Ancient Near Eastern Texts (Textos Antigos do Oriente Próximo) <strong>de</strong><br />

J.B. Pritchard (2ªed., OUP, 1955)<br />

AT Antigo Testamento<br />

Barton Ecclesiastes (<strong>Eclesiastes</strong>) <strong>de</strong> G.A. Barton (International Critical<br />

Commentary, Comentário Crítico Internacional), (T.&T. Clark, 1908)<br />

BJ Bíblia <strong>de</strong> Jerusalém, 1966<br />

BLH Bíblia na linguagem <strong>de</strong> Hoje (SBB)<br />

BV A Bíblia Viva (Ed Mundo Cristão)<br />

Delitzsch The Song of Songs and Ecclesiastes (O Cântico dos Cânticos e<br />

<strong>Eclesiastes</strong>) <strong>de</strong> F. Delitzsch (T.&T. Clark, 1891)<br />

ERAB Edição Revista e Atualizada no Brasil (SBB)<br />

ERC Edição Revista e Corrigida (IBB)<br />

ER Edição Revisada (seg. os Melhores Textos) (IBB)<br />

GR. Grego<br />

Heb. Hebraico<br />

Jones Proverbs, Ecclesiastes (Provérbios e <strong>Eclesiastes</strong>) <strong>de</strong> E. Jones (Torch<br />

Bible commentaries, SCM Press, 1961)<br />

LXX A Septuaginta (versão grega pré-cristã do Antigo Testamento)<br />

McNeile An Introduction to Ecclesiastes (Uma Introdução ao <strong>Eclesiastes</strong>) <strong>de</strong><br />

A.H. McNeile (CUP, 1904)<br />

mg. À margem<br />

MS(S) Manuscrito(s)<br />

NT Novo Testamento<br />

TM Texto Massorético<br />

Scott Proverbs, Ecclesiastes (Provérbios, <strong>Eclesiastes</strong>) <strong>de</strong> R.B.Y. Scott,<br />

Doubleday, 1965)<br />

4


Primeira Parte<br />

O que este livro está fazendo na Bíblia? -<br />

Uma visão geral<br />

A voz do Antigo Testamento tem muitas inflexões. Temos aí quase tudo, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a<br />

apaixonada pregação dos profetas até os comentários tranqüilos e pru<strong>de</strong>ntes do sábio,<br />

entremeados <strong>de</strong> um mundo <strong>de</strong> poesia, lei, histórias, salmos e visões.<br />

Nenhum há, porém, que se assemelhe ao Coelet 1 (ou Qoheleth, seu intraduzível título<br />

original). Não existe, em todo este gran<strong>de</strong> volume, um único livro que tenha as mesmas ênfases.<br />

Seu habitat, por assim dizer, fica entre os sábios que nos ensinam a usar os olhos e ouvidos<br />

para <strong>de</strong>scobrir os caminhos <strong>de</strong> Deus e os caminhos do homem. Alguns <strong>de</strong> seus ditados lembram<br />

o livro <strong>de</strong> Provérbios. E quando, vez por outra, essas incursões com ele nos levam às situações<br />

mais <strong>de</strong>sconcertantes, ele tem um jeito <strong>de</strong> parar e, com a sua sabedoria simples e franca, fazernos<br />

recobrar o ânimo e o equilíbrio. A sabedoria, muito prática e ortodoxa, é o seu campo<br />

básico; mas ele é um explorador. Sua preocupação é com as fronteiras da vida, e especialmente<br />

com as questões que a maioria <strong>de</strong> nós hesitaria explorar muito profundamente.<br />

Suas investigações são tão implacáveis que ele po<strong>de</strong> facilmente ser tomado por cético ou<br />

pessimista. Sua exclamação inicial, vaida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vaida<strong>de</strong>s! Ou Total futilida<strong>de</strong>!, quase que merece<br />

isso; mas para ele há algo mais do que po<strong>de</strong>ria caber numa única frase, mesmo que fosse uma<br />

frase-tema. Tanto assim que em certa ocasião alguns mestres quiseram sugerir que dois, ou três<br />

ou até mesmo nove 2 diferentes cabeças haviam trabalhado no livro, tais as suas contra-correntes<br />

e rápidas mudanças. Todas elas, porém, po<strong>de</strong>m ser consi<strong>de</strong>radas frutos <strong>de</strong> uma só mente,<br />

abordando os fatos da vida e da morte sob vários ângulos.<br />

No fundo <strong>de</strong>scobrimos o axioma <strong>de</strong> todos os sábios da Bíblia, que o temor do Senhor é o<br />

princípio da sabedoria. Porém a intenção <strong>de</strong> Coelet é levar-nos a esse ponto apenas no final,<br />

quando estivermos <strong>de</strong>sesperados por uma resposta. Embora seja insinuada algumas vezes, o seu<br />

método principal é começar pelo fim: a <strong>de</strong>terminação <strong>de</strong> ver até on<strong>de</strong> alguém consegue ir sem<br />

essa base. Ele se coloca – e a nós – no lugar do humanista ou do secularista. Não do ateu, pois no<br />

seu tempo o ateísmo não era uma preocupação, mas da pessoa que começa a pensar a partir do<br />

homem e do mundo visível e que conhece Deus apenas à distância.<br />

Naturalmente isto traz complicações. Surgem tensões entre o eu mais profundo do<br />

escritor, como homem <strong>de</strong> convicção com uma fé a compartilhar, e o seu eu temporário, <strong>de</strong> um<br />

homem que caminha às apalpa<strong>de</strong>las à luz da natureza. Este segundo eu tem os seus próprios<br />

conflitos, familiares a todos nós, entre as vozes da consciência, dos interesses próprios e da<br />

experiência, e entre Deus como reconhecemos e Deus como o tratamos.<br />

Depois que captarmos o que se passa no livro <strong>de</strong> um modo geral, não nos será difícil<br />

encontrar o caminho através <strong>de</strong>le; e o comentário fornecerá um pouco mais <strong>de</strong> ajuda. Enquanto<br />

isso, convém juntar alguns dos ensinamentos que se encontram espalhados por suas páginas, e<br />

buscar o conteúdo geral do argumento.<br />

Fatos a encarar acerca <strong>de</strong> Deus<br />

Se uma pessoa crê realmente em Deus, as implicações disto <strong>de</strong>vem ser seguidas à risca. E o<br />

que Coelet espera que façamos, sem imaginar que po<strong>de</strong>mos tomar liberda<strong>de</strong>s com o nosso<br />

1 A palavra tem a ver com o termo hebraico usado para “reunir” ou “juntar”, e a sua forma sugere algum<br />

tipo <strong>de</strong> cargo público. Era possivelmente um status eclesiástico (como um convocador da assembléia ou<br />

aquele que a ela fala), uma vez que a palavra-padrão para congregação ou igreja tem a mesma raiz. As<br />

muitas tentativas <strong>de</strong> traduzir este título incluem as seguintes: <strong>Eclesiastes</strong>, O Pregador, O Orador, O<br />

Presi<strong>de</strong>nte, O Porta-voz, O Filósofo. Po<strong>de</strong>ríamos talvez acrescentar O Professor!<br />

2 Como diz D.C Siegfried, “Prediger und Hohelied”, em W. Nowack, Handkommentar zum Alten Testament<br />

(Gottingen, 1898)<br />

5


criador ou manipulá-lo segundo nossos interesses. Somos confrontados com Deus na sua<br />

condição mais temível: como alguém que não se impressiona com a nossa tagarelice, nem com<br />

nossas ofertas rituais ou com nossas promessas vazias. Os primeiros parágrafos co capítulo 5<br />

<strong>de</strong>stacam estes pontos <strong>de</strong> maneira vigorosa: “...Deus está nos céus, e tu na terra; portanto sejam<br />

poucas as tuas palavras... porque não se agrada <strong>de</strong> todos.”<br />

Deus se revela a nós neste livro sob três aspectos principais: como Criador, como<br />

Soberano e como a Sabedoria Inescrutável. Não que estes termos sejam exatamente assim<br />

aplicados a ele, com exceção do primeiro; mas po<strong>de</strong>m servir com um conveniente ponto <strong>de</strong><br />

convergência.<br />

Como Criador, ele arma todo o cenário. Somos lembrados <strong>de</strong> que o seu mundo tem uma<br />

forma própria <strong>de</strong>finida, que não po<strong>de</strong> ser mudada a nosso gosto (e este, convenhamos, tem uma<br />

certa resistência inata que é bastante complacente para conosco, como planejadores e<br />

padronizadores); 3 pois “quem po<strong>de</strong>rá endireitar o que ele torceu?” (7:13). Esse mundo tem<br />

também o seu próprio ritmo inexorável ao qual nos encontramos presos: tempo para isso e<br />

tempo para aquilo, sem nos <strong>de</strong>ixar muita escolha, como o capítulo 3 <strong>de</strong>staca. Mesmo como<br />

procriadores, nada mais fazemos do que ativar o misterioso processo pelo qual Deus cria uma<br />

nova vida. “Assim como tu não sabes qual o caminho do vento, nem como se formam os ossos no<br />

ventre da mulher grávida, assim também não sabes as obras <strong>de</strong> Deus, que faz todas as cousas”<br />

(11:5).<br />

No entanto, não po<strong>de</strong>mos nos dar ao luxo <strong>de</strong> acusar o Criador pelas nossas confusões e<br />

nossas malda<strong>de</strong>s, com a Teodicéia Babilônica acusa os <strong>de</strong>uses, 4 pois “Deus fez o homem reto”. A<br />

responsabilida<strong>de</strong> fica on<strong>de</strong> merece, nas conseqüências <strong>de</strong>sta observação: “mas ele [o homem] se<br />

meteu em muitas astúcias” (7:29).<br />

Como Soberano, entretanto, Deus <strong>de</strong>termina as frustrações que encontramos na vida. A<br />

rotina da existência que é apresentada logo no início do livro (a propósito, Coelet teria feito uma<br />

carranca diante do título espetacular: “Parem o mundo, eu quero <strong>de</strong>scer!”) – essa rotina é<br />

<strong>de</strong>creto <strong>de</strong> Deus. “... Este enfadonho trabalho impôs Deus aos filhos dos homens, para nele os<br />

afligir... e eis que tudo era vaida<strong>de</strong> e correr atrás do vento” (1:13, 14). É verda<strong>de</strong> que existe nas<br />

palavras <strong>de</strong> 7:29, que acabamos <strong>de</strong> ler, uma insinuação <strong>de</strong> que foia queda do homem que <strong>de</strong>u<br />

lugar a esse <strong>de</strong>creto. Também é verda<strong>de</strong> que, em Romanos 8:18-25, Paulo pega essa figura da<br />

“criação... sujeita à vaida<strong>de</strong>” para o forte impulso que esta gera. A ênfase <strong>de</strong> <strong>Eclesiastes</strong>, contudo,<br />

está nas coisas que parecem nunca mudar, e sobre os <strong>de</strong>sapontamentos com os quais temos <strong>de</strong><br />

conviver aqui e agora.<br />

Tudo isto vem <strong>de</strong> Deus: a trama geral da vida e seus mínimos <strong>de</strong>talhes, estejam ou não <strong>de</strong><br />

acordo como nosso gosto e o nosso senso <strong>de</strong> proprieda<strong>de</strong>. Algumas vezes eles fazem sentido<br />

para nós, pois via <strong>de</strong> regra o pecador recebe uma dose extra <strong>de</strong> frustração ao ver que Deus cuida<br />

dos seus (2:26); mas o fato é que nada nos pertence e não po<strong>de</strong>mos contar com nada. Se o<br />

pecador é atormentado, ele não é o único. A tragédia po<strong>de</strong> abater-se sobre qualquer um, e Deus<br />

está por trás <strong>de</strong> tudo. O capítulo 6:1-6 é uma das passagens on<strong>de</strong> isto é consi<strong>de</strong>rado: apresenta o<br />

fato <strong>de</strong> que, quanto mais a gente se acha com o direito e quanto mais coisas se tem, mais difícil se<br />

torna quando Deus o retira, o que po<strong>de</strong> acontecer a qualquer momento (6:2ss) e ele certamente<br />

o fará. Pois “não vão todos para o mesmo lugar?” (v. 6b) – isto é, para a sepultura.<br />

Assim somos impulsionados a enfrentar os mistérios dos caminhos <strong>de</strong> Deus nos termos<br />

<strong>de</strong>sses três títulos, ele vem agora ao nosso encontro como Sabedoria Inescrutável, reduzindo os<br />

nossos mais brilhantes pensamentos a pouco mais que conjecturas.<br />

A passagem on<strong>de</strong> isto aparece <strong>de</strong> forma mais promissora e cheia <strong>de</strong> graça é 3:11, um dos<br />

inesperados pontos culminantes do livro. “Tudo fez formoso no seu <strong>de</strong>vido tempo; também pôs a<br />

eternida<strong>de</strong> no coração do homem, sem que este possa <strong>de</strong>scobrir as obras que Deus fez <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o<br />

princípio até o fim.” Esta simples sentença capta a beleza <strong>de</strong>slumbrante e assustadora <strong>de</strong> um<br />

mundo tão mutante que o seu padrão total fica além do nosso entendimento. Mas é um padrão.<br />

Nós, ao contrário dos animais, po<strong>de</strong>mos captar o suficiente para termos a certeza disso, ainda<br />

que nunca o suficiente para percebermos o todo.<br />

Uma das conseqüências é que não po<strong>de</strong>mos extrapolar o presente. Se as coisas vão bem ou<br />

3 Cf. 11:1-6<br />

4 Veja o comentário sobre 7:29<br />

6


mal, temos <strong>de</strong> aceitá-las como são, sabendo que o quadro completo mudará e continuará<br />

mudando. “Deus fez assim este como aquele” – os bons e os maus tempos – “para que o homem<br />

nada <strong>de</strong>scubra do que há <strong>de</strong> vir <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>le” (7:14).<br />

Obviamente o futuro está assim oculto. O que não é tão óbvio é que o presente, que<br />

permanece aberto à nossa inspeção, também nos engana. Assim como o futuro, ele pertence a<br />

Deus. “Então contemplei toda a obra <strong>de</strong> Deus, e vi que o homem não po<strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r a obra<br />

que se faz <strong>de</strong>baixo do sol” (8:17) – não po<strong>de</strong>, em outras palavras, compreen<strong>de</strong>r as ativida<strong>de</strong>s<br />

comuns que o cercam. “por mais que trabalhe o homem para <strong>de</strong>scobrir”, Coelet prossegue, “não<br />

a enten<strong>de</strong>rá”. Filosofias são criadas, mas cada uma <strong>de</strong>las acabará sendo insuficiente: “ainda que o<br />

sábio diga que virá a conhecer, bem por isso a po<strong>de</strong>rá achar”. Isto está enfaticamente expresso<br />

em 7:23,24: “(Eu) disse: Tornar-me-ei sábio, mas a sabedoria estava longe <strong>de</strong> mim. O que está<br />

longe e mui profundo, quem o achará?”<br />

Esta obscurida<strong>de</strong> é intelectualmente provocante; apesar disso, po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>sfrutrar um<br />

gran<strong>de</strong> problema como exercício mental. “A questão é totalmente outra se nos pomos a<br />

conjeturar se o universo, ou até mesmo Deus, é ou não é hostil. Mas é exatamente isto que não<br />

po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>scobrir sozinhos, e nada há que possamos fazer para assumir o controle. Este parece<br />

ser o significado <strong>de</strong> 9:1, ao falar das coisas que “estão nas mãos <strong>de</strong> Deus”. Mas que tipo <strong>de</strong> Deus?<br />

Para o homem que conhece o Deus <strong>de</strong> Israel, nada po<strong>de</strong>ria parecer mais tranqüilizador; mas<br />

para quem esteja tateando em busca do significado da vida é uma idéia paralisante. “Se é amor<br />

ou se é ódio que está à sua espera, não o sabe o homem”. Ele <strong>de</strong>ve orientar pelos prazeres da<br />

natureza ou por sua cruelda<strong>de</strong>? Pelos sorrisos da sorte ou por suas carrancas – e esta<br />

certamente não po<strong>de</strong> ser controlada, seja através <strong>de</strong> um bom comportamento ou <strong>de</strong> uma boa<br />

gerência.<br />

Isto nos leva ao outro aspecto da vida que somos convidados a examinar.<br />

Fatos a enfrentar a partir da experiência<br />

Uma das passagens mais fascinantes do livro é uma viagem <strong>de</strong> exploração através das<br />

recompensas e satisfações da experiência. 5 Com Coelet, vestimos o manto <strong>de</strong> um Salomão, o mais<br />

brilhante e menos limitado dos homens, para iniciar essa pesquisa. Tendo todos os dons e<br />

po<strong>de</strong>res à nossa disposição, seria estranho se voltássemos <strong>de</strong> mãos vazias.<br />

Começamos com a sabedoria – a mais promissora das buscas. Neste mundo <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>nado,<br />

porém, “na muita sabedoria há muito enfado” (1:18) e isso <strong>de</strong>corre da própria percepção<br />

adquirida. E, em última análise, seja o que for que a sabedoria possa fazer por alguém, ela nada<br />

po<strong>de</strong> fazer quanto ao final da vida. Nesta crise o sábio fica tão <strong>de</strong>sarmado quanto o estulto (2:15-<br />

17), e se sua sabedoria não vale nada neste aspecto, não passa <strong>de</strong> um fracasso pretensioso.<br />

Então passamos para a “loucura” e a “estultícia” (1:17; 2:3b). e isto parece bem atual,<br />

fazendo coro com algumas <strong>de</strong> nossas tentativas <strong>de</strong> <strong>de</strong>sviar-nos do que é racional, passando a<br />

explorar o absurdo e o mundo das alucinações. O prazer, naturalmente, é um outro reino: um<br />

reino <strong>de</strong> muitos aspectos que apena para os apetites sensuais numa das pontas da escala (2:3,<br />

8c) e para as alegrias da estética do especialista e o trabalho criativo na outra.<br />

Mesmo na melhor das hipóteses, esta busca só vai nos satisfazer <strong>de</strong> passagem. Então vem<br />

o reconhecimento: “Consi<strong>de</strong>rei todas as obras que fizeram as minhas mãos” (2:11) e, pensando<br />

na morte, o cômputo final resulta em nada. O que torna tudo ainda mais doloroso é saber que<br />

este resultado nulo é uma obliteração, um <strong>de</strong>sfazimento. Os valores existem, sim: “a sabedoria é<br />

mais proveitosa do que a estultícia quanto a luz traz mais proveito do que as trevas” (2:13); mas<br />

nenhum valor permanecerá quando não estivermos mais aqui, ou se não houver ninguém para<br />

lhes dar valor.<br />

O segundo fato é a existência do mal. Este é tão tirano quanto a própria morte, e ainda<br />

mais trágico. A transitorieda<strong>de</strong> da vida é muito triste, mas os seus males po<strong>de</strong>m ser suportáveis.<br />

Coelet observa tanto os pecados banais quanto os gran<strong>de</strong>s: a inveja que inspira ou até<br />

mesmo resulta em sucesso (4:4); a fixação no dinheiro que transforma o magnata solitário em<br />

uma figura patética e sem sentido (4:7,8); e a vaida<strong>de</strong> que mantém por muito tempo um tolo no<br />

seu posto (4:13), consi<strong>de</strong>rando apenas alguns <strong>de</strong>les. Mas ele lamenta principalmente “as<br />

opressões que se fazem <strong>de</strong>baixo do sol” (4:1). “No lugar do juízo reinava a malda<strong>de</strong>” (3:16). “A<br />

5 Veja os comentários mais completos sobre esta passagem (1:16-2:26).<br />

7


violência na mão dos opressores” (4:1). A própria estrutura da socieda<strong>de</strong> contribui para essas<br />

coisas (5:8); no entanto, estas não são enfermida<strong>de</strong>s apenas dos governantes, mas da<br />

humanida<strong>de</strong>. “Não há homem justo sobre a terra” (7:20); realmente, “o coração dos homens está<br />

cheio <strong>de</strong> malda<strong>de</strong>, neles há <strong>de</strong>svarios enquanto vivem” (9:3). O leitor po<strong>de</strong> refletir sobre a<br />

insanida<strong>de</strong> coletiva que visivelmente toma conta <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> tempos em tempos, mas<br />

não po<strong>de</strong> ignorar também a loucura que permanece invisível porque participa <strong>de</strong>la como o clima<br />

do seu século.<br />

Ainda por cima, como se a morte e o mal não bastassem, há ainda o fator menor, mas<br />

igualmente incontrolável, “do tempo e do acaso”, que é preciso reconhecer (9:11). O homem bem<br />

organizado po<strong>de</strong> regalar-se na sua auto-suficiência, porém Coelet vê através <strong>de</strong>la, é pura<br />

<strong>de</strong>cepção. Até mesmo os prêmios mais específicos e mais previsíveis da vida (para não se falar<br />

da busca <strong>de</strong> algo <strong>de</strong>finitivo) po<strong>de</strong>m se per<strong>de</strong>r, e o homem acaba sem nada. “Não é dos ligeiros o<br />

prêmio, nem dos valentes a vitória” – pelo menos, não e assim tão garantido. “Pois o homem não<br />

sabe a sua hora” (9:12). Ele po<strong>de</strong> até fingir que sabe, mas o faz-<strong>de</strong>-conta não serve como base<br />

para a sua vida. Basta lembrarmos o comentário final acerca do homem que pensou em tudo<br />

menos nisso: “Deus lhe disse: Louco!...”<br />

De volta ao alicerce<br />

Se pouca coisa restou <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>sta análise, é exatamente isto que o escrito preten<strong>de</strong>, mas<br />

apenas como trabalho preliminar. Ele está <strong>de</strong>molindo para reconstruir. Se prestarmos atenção,<br />

veremos que as perguntas penetrantes que ele levanta são aquelas que a própria vida nos faz.<br />

Ele po<strong>de</strong> fazê-las porque nos capítulos finais tem boas novas para nós, contanto que paremos <strong>de</strong><br />

fazer <strong>de</strong> conta que as coisas mortais no bastam, a nós que temos a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> receber o que é<br />

eterno.<br />

São novas, paradoxalmente, <strong>de</strong> juízo.<br />

Para tornar esse paradoxo mais inteligível, seria bom divagarmos por algum tempo<br />

examinando um velho exemplo <strong>de</strong> secularismo radical, sem o abrandamento <strong>de</strong> nossas<br />

mo<strong>de</strong>rnas fantasias utópicas e sem a formalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> algum sentimento transcen<strong>de</strong>nte: apenas<br />

pela sua própria espirituosida<strong>de</strong> e fria imparcialida<strong>de</strong>. A passagem, muito livremente<br />

parafraseada e apresentada aqui, é o diálogo entre um senhor e seu servo, ambos mesopotâmios,<br />

escrito talvez antes do tempo <strong>de</strong> Moisés. 6<br />

– Servo, obe<strong>de</strong>ça-me<br />

– Sim, senhor, sim.<br />

– A carruagem... Prepare-a. Vou ao palácio.<br />

– Vá, meu senhor, vá!... O rei há <strong>de</strong> ser benevolente.<br />

– Não, servo, não vou ao palácio.<br />

– Não vá, meu senhor, não vá. O rei po<strong>de</strong> enviá-lo a algum lugar longínquo. O senhor não<br />

terá mais um momento <strong>de</strong> paz.<br />

Então ele resolve jantar, o que o servo acha muito conveniente. Não há nada mais<br />

agradável e confortador, não é mesmo? Mas o capricho passa: ele resolve não jantar mais. O<br />

servo acha isto muito a<strong>de</strong>quado: existe algo mais vulgar do que comer?<br />

E assim o diálogo prossegue. Ele vai caçar... Mas resolve não ir mais. Ou, quem sabe vai<br />

li<strong>de</strong>rar uma rebelião... ou não. Guardará um silencia esmagador quando encontrar o seu rival...<br />

Ou melhor ainda, vai falar com ele. Cada idéia é rematada pelo servo com alguma observação<br />

bajuladora, e cada idéia oposta com uma observação ainda mais profunda.<br />

Então ele sente <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> amar (“Oh, sim! Não há nada melhor do que isso, senhor, para<br />

espairecer.”), mas logo muda <strong>de</strong> idéia (“Que sabedoria! As mulheres são uma armadilha, uma<br />

faca na garganta.”). Isso! Ele será um filantropo. Mas, por outro lado... (“Certo, senhor; <strong>de</strong> que<br />

adiantaria? Pergunte aos esqueletos no cemitério!”).<br />

Neste espírito ilusório e fútil, idéia após idéia, valor após valor são apanhados, <strong>de</strong>sejados e<br />

abandonados. No final, o cavalheiro brinca com uma questão séria: “O que seria bom?” Sua<br />

própria resposta nos apanha <strong>de</strong> surpresa: “Quebrar o pescoço, o meu e o teu, jogar os dois no rio,<br />

isto seria bom.” É claro que ele muda <strong>de</strong> idéia: ele vai quebrar apenas o pescoço do seu servo e<br />

mandá-lo na frente.<br />

6 Traduzido, por exemplo em ANET, pág 438<br />

8


Como já era <strong>de</strong> se esperar, o servo tem a última palavra: como po<strong>de</strong>ria o senhor sobreviver<br />

por três dias que fossem, sem ninguém para tomar conta <strong>de</strong>le?<br />

Talvez apreciemos esta conversa <strong>de</strong> acabar com tudo em um pacto <strong>de</strong> morte. É um final<br />

interessante para a comédia. Mas a verda<strong>de</strong> é mais real do que parece, pois quando apren<strong>de</strong>mos<br />

a rir <strong>de</strong> tudo, logo <strong>de</strong>scobrimos que não temos mais nada que valha a pena uma risada. A<br />

trivialida<strong>de</strong> é mais asfixiante do que a tragédia, e a indiferença é o comentário mais <strong>de</strong>sesperado<br />

<strong>de</strong> todos.<br />

A função <strong>de</strong> <strong>Eclesiastes</strong> é levar-nos ao ponto <strong>de</strong> começarmos a temer que esse comentário<br />

seja o mais honesto. É o que acontece, quando tudo morre. Enfrentamos a espantosa conclusão<br />

<strong>de</strong> que nada tem significado, nada vale a pena <strong>de</strong>baixo do sol. É então que po<strong>de</strong>mos ouvir a boa<br />

nova <strong>de</strong> que tudo vale a pena, “porque Deus há <strong>de</strong> trazer a juízo todas as obras até as que estão<br />

escondidas, quer sejam boas, quer sejam más”.<br />

É assim que o livro termina. Sobre esta rocha po<strong>de</strong>mos até ser <strong>de</strong>struídos: mas é uma<br />

rocha, e não areia movediça. Po<strong>de</strong> ser que também possamos edificar.<br />

9


Segunda Parte<br />

O que o livro diz!<br />

- um breve comentário<br />

<strong>Eclesiastes</strong> 1:1-11 -<br />

O autor, o tema e o reconhecimento do cenário<br />

Apresentando o autor<br />

1:1 Palavra do Pregador, filho <strong>de</strong> Davi, rei <strong>de</strong> Jerusalém:<br />

Existe na forma Omo este escritor se anuncia um quê <strong>de</strong> mistério – e este toque curioso<br />

não parece ser involuntário. Primeiro, ele chega quase ao ponto <strong>de</strong> se chamar Salomão, mas não<br />

o faz. Este nome mão aparece no livro, ao passo que tanto Provérbios quanto Cantares <strong>de</strong>claram<br />

abertamente a sua autoria. Depois vem a curiosida<strong>de</strong> do título duplo, eclesiástico e real, 7 quase<br />

como se alguém falasse <strong>de</strong> “O Vigário, Rei da Inglaterra!” Veremos uma outra observação<br />

enigmática no versículo 16, com a reivindicação <strong>de</strong> uma sabedoria que sobrepujava “a todos os<br />

que antes <strong>de</strong> mim existiram Jerusalém”. Isto exclui qualquer sucessor do incomparável Salomão,<br />

mas quase exclui também o próprio Salomão, que teve apenas um pre<strong>de</strong>cessor israelita. 8<br />

Se acrescermos a isto o fato <strong>de</strong> que todos os sinais <strong>de</strong> realeza <strong>de</strong>saparece <strong>de</strong>pois dos dois<br />

primeiros capítulos, 9 torna-se evi<strong>de</strong>nte que <strong>de</strong>vemos consi<strong>de</strong>rar o título que não é real como<br />

sendo o título do autor, e o real como um simples meio <strong>de</strong> dramatizar a busca por ele <strong>de</strong>scrita<br />

nos capítulos ume dois. Ele nos <strong>de</strong>screve um super-Salomão (como dá a enten<strong>de</strong>r como termo<br />

“sobrepujei” em 1:16) para <strong>de</strong>monstrar que o homem mais dotado que posssamos imaginar, que<br />

ultrapasse qualquer outro rei que já tenha ocupado o trono <strong>de</strong> Davi, ainda retornaria com as<br />

mãos vazias na busca da auto-satisfação. 10<br />

Da <strong>de</strong>scrição mais completa do autor em 12:9ss. temos o retrato <strong>de</strong> um mestre cuja<br />

vocação é ensinar, pesquisar, editar e escrever. O que o seu livro como um todo nos ensina<br />

indiretamente é que ele é tão sensível quanto corajoso, eu m mestre do estilo.<br />

O tema<br />

1: 2 Vaida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vaida<strong>de</strong>s, diz o Pregador; vaida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vaida<strong>de</strong>s, tudo é vaida<strong>de</strong>.<br />

Um pouquinho <strong>de</strong> fumaça, uma rajada <strong>de</strong> vento, um simples sopro – nada que se possa<br />

pegar com as mãos, a coisa mais próxima do zero. Isto é a vaida<strong>de</strong> que se trata este livro.<br />

O que nos perturba esta leitura sobre a vida é que tal nulida<strong>de</strong> não é consi<strong>de</strong>rada como<br />

uma simples chamuscada sobre a superfície das coisas, ainda que tenha um certo charme. É a<br />

soma total das coisas.<br />

Se este é o caso, como argumenta no resto do livro, vaida<strong>de</strong> acaba tornando-se uma<br />

7 Veja a nota <strong>de</strong> rodapé à pág 1, quanto ao significado <strong>de</strong> Coelet (“O Pregador”).<br />

8 Também o sentido e um longo retrospecto nesta frase parece ter surgido <strong>de</strong>vido à forma aparentemente<br />

avançado do hebraico neste livro, o qual parece ser um estágio no meio do caminho entre o hebraico<br />

clássico e o rabínico. Contudo, isto não é conclusivo, uma vez que se po<strong>de</strong> argumentar que muitos dos seus<br />

aspectos são do dialeto fenício, não indicando data. Sobre isto, veja os comentários feitos pod M.J. Dahood<br />

em Biblica 33 (1952), pg 32-52 e 191-221; também em Bibliba 39 (1958), pg 302-318; e por G.L. Archer<br />

em Bulletin of the Evangelical Theological Society 12 (1969) pg 167-181. Este último argumenta em favor<br />

da autoria <strong>de</strong> Salomão, chamando a atenção para os seus laços íntimos com os fenícios.<br />

9 Apenas o título Coelet (“O Pregador) será usado daqui em diante (7:27; 12:8-10), e a postura do escritor<br />

se tornará a <strong>de</strong> um simples observador, não a <strong>de</strong> um governante.Veja, por exemplo, 3:16; 4:1-3 5:8ss.<br />

10 Veja também o comentário e anota <strong>de</strong> rodapé sobre 1:12<br />

10


palavra <strong>de</strong>sesperadora. Ela <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> significa simplesmente o que é banal e passageiro e passa a<br />

<strong>de</strong>screver, <strong>de</strong>sastrosamente, aquilo que não tem sentido. O autor dobra e redobra esta palavra<br />

amarga, usando-a duas vezes na mesma frase, como se fosse uma paródia do conhecido<br />

superlativo “santo dos santos”. A nulida<strong>de</strong> completa apresenta-se aqui em mudo contraste com a<br />

santida<strong>de</strong> completa, aquela realida<strong>de</strong> po<strong>de</strong>rosa que <strong>de</strong>u forma e característica à tradicional<br />

pieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Israel. Finalmente ele conclui <strong>de</strong> maneira sucinta: “Tudo é vaida<strong>de</strong>.” Em termos<br />

atuais a conclusão po<strong>de</strong>ria ser:<br />

“Futilida<strong>de</strong> total... futilida<strong>de</strong> total. Tudo isso não passa <strong>de</strong> futilida<strong>de</strong>”<br />

Porém o que é “tudo isso” será que inclui a divinda<strong>de</strong> – ou mesmo o próprio Deus? Ou será<br />

que todas as coisas estão <strong>de</strong>sprovidas disso?<br />

O autor não tem pressa <strong>de</strong> respon<strong>de</strong>r. Antes <strong>de</strong> dar alguns toques sobre o seu próprio<br />

ponto <strong>de</strong> vista, ele quer que examinemos muito <strong>de</strong> perto o mundo que vemos e as respostas que<br />

este parece nos dar. A primeira <strong>de</strong>stas leves indicações vem logo a seguir na frase <strong>de</strong>baixo do sol<br />

(1:3), que vai se transformar em uma espécie <strong>de</strong> tônica do livro, repetindo-se cerca <strong>de</strong> trinta<br />

vezes em seus doze pequenos capítulos. A menos que isto não passe <strong>de</strong> um hábito (se bem que<br />

este autor não é <strong>de</strong> <strong>de</strong>sperdiçar palavras) , fica bem claro que o quadro que ele tem em mente é<br />

exclusivamente o mundo que po<strong>de</strong>mos ver, e que o nosso ponto <strong>de</strong> vista está ao nível do chão.<br />

Neste caso não só a exclamação “Vaida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vaida<strong>de</strong>s!”, mas todos os comentários sobre a<br />

vida que se lhe acrescentam já têm seus limites, seu sistema <strong>de</strong> coor<strong>de</strong>nadas, esboçados nessa<br />

frase. No final do livro serão traçadas linhas muito firmes, e Coelet se revelará um homem <strong>de</strong> fé.<br />

Até lá, elas são introduzidas co o mais leve dos toques, e suas implicações serão <strong>de</strong>scobertas<br />

posteriormente. Po<strong>de</strong>mos tradicionalmente chamar este homem <strong>de</strong> “o Pregador”; mas ele<br />

coloca-se tão perto <strong>de</strong> seus ouvintes que suas palavras po<strong>de</strong>riam lhes parecer a personificação<br />

<strong>de</strong> seus pensamentos mais radicais. A diferença é que ele segue essas trilhas <strong>de</strong> pensamento<br />

para muito além do que eles se disporiam a ir. Caminho após caminho, todos são<br />

incansavelmente explorados até chegar ao ponto do nada. No final, apenas um caminho ficará.<br />

O processo foi tão admiravelmente <strong>de</strong>scrito por G.S. Hendry que seria uma pena não citá-lo<br />

neste ponto:<br />

“Coelet escreve a partir <strong>de</strong> premissas ocultas,e o seu livro é na realida<strong>de</strong> uma gran<strong>de</strong> obra<br />

<strong>de</strong> apologética... Seu aparente mundanismo é ditado pelo seu alvo: Coelet dirige-se ao público em<br />

geral, cuja visão é limitada pelos horizontes <strong>de</strong>ste mundo; ele vai ao encontro <strong>de</strong>sse público no<br />

seu próprio espaço, e prossegue convencendo-o <strong>de</strong> sua inerente vaida<strong>de</strong>. Isto se confirma ainda<br />

mais CPOR sua expressão característica ‘<strong>de</strong>baixo do sol’, com a qual ele <strong>de</strong>screve o que o Novo<br />

Testamento chama <strong>de</strong> ‘o mundo’... Seu livro é <strong>de</strong> fato uma crítica ao secularismo e à religião<br />

secularizada.” 11<br />

A rotina<br />

1: 3 Que proveito tem o homem <strong>de</strong> todo o seu trabalho, com que se afadiga <strong>de</strong>baixo do sol?<br />

4 Geração vai e geração vem; mas a terra permanece para sempre.<br />

5 Levanta-se o sol, e põe-se o sol, e volta ao seu lugar, on<strong>de</strong> nasce <strong>de</strong> novo.<br />

6 O vento vai para o sul e faz o seu giro para o norte; volve-se, e revolve-se, na sua carreira, e<br />

retorna aos seus circuitos.<br />

7 Todos os rios correm para o mar, e o mar não se enche; ao lugar para on<strong>de</strong> correm os rios,<br />

para lá tornam eles a correr.<br />

8 Todas as coisas são canseiras tais, que ninguém as po<strong>de</strong> exprimir; os olhos não se fartam<br />

<strong>de</strong> ver, nem se enchem os ouvidos <strong>de</strong> ouvir.<br />

9 O que foi é o que há <strong>de</strong> ser; e o que se fez, isso se tornará a fazer; nada há, pois, novo<br />

<strong>de</strong>baixo do sol.<br />

10 Há alguma coisa <strong>de</strong> que se possa dizer: Vê, isto é novo? Não! Já foi nos séculos que foram<br />

antes <strong>de</strong> nós.<br />

11 Já não há lembrança das coisas que prece<strong>de</strong>ram; e das coisas posteriores também não<br />

haverá memória entre os que hão <strong>de</strong> vir <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>las.<br />

11 G.S. Hendry, Introdução ao artigo “<strong>Eclesiastes</strong>”, em The New Bible Commentary Revised (IVP, 1970) pg<br />

570<br />

11


Já <strong>de</strong>mos uma olhada nesta passagem para observar a frase <strong>de</strong>baixo do sol, que arma o<br />

cenário para o livro como um todo <strong>de</strong> acordo com esta introdução, a seqüencia consi<strong>de</strong>ra a vida<br />

<strong>de</strong>ntro dos limites mundanos que são iguais para todos os homens.<br />

Que proveito tem o homem...? é uma pergunta prática e característica. A palavra aqui<br />

traduzida como “proveito” extraída do mundo dos negócios, só se encontra neste livro nas<br />

Escrituras. 12 Mas antes <strong>de</strong> a excluirmos como cínica ou mercenária, lembremo-nos <strong>de</strong> uma<br />

pergunta parecida no Evangelho: “Que aproveita ao homem... ?” 13 Esta não é a única passagem<br />

em que Cristo e Coelet falam a mesma linguagem. É uma pergunta justa. Qualquer idéia<br />

romântica que pudéssemos ter, enfrentado uma situação <strong>de</strong>sesperadora, ela logo se evaporaria<br />

se não houvesse um outro tipo <strong>de</strong> situação. Mas quem nos garante que um dia a situação será<br />

outra? “A gente gasta a vida trabalhando, se esforçando, e a final que vantagem leva em tudo<br />

isso?” 14 – esta po<strong>de</strong>ria ser uma tradução livre <strong>de</strong>ste versículo.<br />

Ah! Mas existe quem ache que po<strong>de</strong> transformar o mundo em um lugar melhor, ou pelo<br />

menos <strong>de</strong>ixar alguma coisa para aqueles que virão <strong>de</strong>pois. Como se já esperasse esta resposta,<br />

Coelet aponta para o constante fazer e <strong>de</strong>sfazer na história da humanida<strong>de</strong>: gerações após<br />

gerações se levantam e caem, homens vêm e logo são esquecidos; tudo isto tendo como<br />

impassível cenário a terra, que vê todas as gerações passarem e continua existindo. Sem dúvida<br />

ela verá o último <strong>de</strong> nós que ficar em cena – e o que homem lucrará com isso?<br />

Além disso, por mais que a terra continue existindo, o próprio padrão do mundo é tão<br />

intranqüilo e repetitivo quanto o nosso. Tantas coisas que começam bem voltam atrás. Tantas<br />

jornadas acabam on<strong>de</strong> começaram. Coelet <strong>de</strong>staca três exemplos <strong>de</strong>sta rotina infinita da<br />

natureza, começando como mais óbvio <strong>de</strong> todos, o sol, que percorre a sua gran<strong>de</strong> curva no céu<br />

até o seu <strong>de</strong>clínio; e, tendo concluído, apressa-se 15 em repetir o que fez dia após dia. Os outros<br />

dois exemplos parecem a princípio oferecer uma válvula <strong>de</strong> escape do círculo vicioso – pois o<br />

que seria mais livre do que o vento ou menos reversível do que uma torrente? Mas acompanhe o<br />

processo até o fim e você retornará ao começo. O vento “volve-se e revolve-se”; e as águas, como<br />

é dito em Jó 36:27ss, são recolhidas para regar a terra novamente. Assim as coisas mais<br />

regulares do mundo, que nos falam em nome <strong>de</strong> Deus e <strong>de</strong> suas misericórdias que “se renovam a<br />

cada manhã”, dar-nos-ão uma resposta muito diferente se buscarmos algum significado nelas<br />

mesmas. O versículo 8 resume esse infindável ciclo taxando-o <strong>de</strong> indizível canseira. 16<br />

Tudo isto apresenta um espelho para o cenário humano. Como o oceano, os nossos<br />

sentidos são alimentados mais e mais, mas nunca se satisfazem. Como o ciclo da natureza,a<br />

nossa história está sempre retornando, <strong>de</strong>ixando <strong>de</strong> cumprir a sua promessa. E a jornada<br />

continua, sem nunca chegarmos ao <strong>de</strong>stino. Debaixo do sol não existe um lugar para on<strong>de</strong> ir,<br />

nada que satisfaça completamente ou que seja realmente novo. Quanto a colocarmos as nossas<br />

esperanças na posterida<strong>de</strong>, no final a posterida<strong>de</strong> terá perdido qualquer lembrança dos que<br />

ficaram no passado (v.11).<br />

A esta altura, temos que fazer uma pausa para esclarecer duas coisas. Primeiro, o que<br />

vamos fazer com o famoso ditado: Não há nada novo <strong>de</strong>baixo do sol? Até que ponto ele é<br />

verda<strong>de</strong>iro? Talvez a própria forma como costumamos usá-lo nos dê a melhor resposta. Nós o<br />

enunciamos como um comentário geral sobre o cenário da humanida<strong>de</strong>, e não como um<br />

pronunciamento sobre as invenções. Ninguém – muito menos Coelet – há <strong>de</strong> negar a capacida<strong>de</strong><br />

inventiva do homem. Mas plus ça change, plus c’est La même chose: quanto mais as coisas<br />

mudam, mais se revelam as mesmas. As coisas antigas prosseguem em seu novo disfarce. Como<br />

raça, jamais apren<strong>de</strong>mos.<br />

12 A BLH força um pouco a tradução do v.12 dizendo: “Será que um rei po<strong>de</strong> fazer alguma coisa que seja<br />

nova? Não. Só po<strong>de</strong> fazer o que fizeram os reis que reinaram antes <strong>de</strong>le”<br />

13 Mc 8:36<br />

14 1:3 (BLH)<br />

15 A palavra aqui traduzida como volta (v.5) é literalmente o verbo “ofegar”, se <strong>de</strong> avi<strong>de</strong>z ou <strong>de</strong> cansaço o<br />

autor não diz. Em outras passagens o termo tem quase uma conotação <strong>de</strong> avi<strong>de</strong>z (p.e. Jó 5:5; 7:2; Sl<br />

119:131), mas o contexto é sombrio (cf. v.8) e a palavra po<strong>de</strong> indicar também <strong>de</strong>sespero (Is 42:14)<br />

16 Uma outra tradução do versículo 8a, favorecida por alguns comentaristas seria: “Todas as palavras são<br />

frágeis”, isto é, “a cena está além da <strong>de</strong>scrição”. Mas o adjetivo em outras passagens significa “cansado” (Dt<br />

25:18; 2Sm 17:2) e a passagem como um todo não está enfatizando a complexida<strong>de</strong>, mas o ciclo incessante<br />

da natureza.<br />

12


A segunda pergunta é sobre quanto abrange o tema do círculo vicioso. Para alguns<br />

escritores esta idéia lembra os estóicos e sua visão totalmente circular do tempo, através da qual<br />

toda a trama da existência <strong>de</strong>ve tecer o seu próprio padrão repetidas vezes, até os mínimos<br />

<strong>de</strong>talhes, a intervalos pre<strong>de</strong>terminados, infinitamente. Desta forma todo o futuro estaria<br />

<strong>de</strong>stinado a voltar à mesma situação na qual você, leitor, encontra-se agora; e isto não uma só<br />

vez, mas vezes incontáveis.<br />

Por si mesmos, os versículos 9 e 10 (O que foi, é o que há <strong>de</strong> ser...) significariam exatamente<br />

isso. Mas eles se encontram em um livro que apresenta escolhas morais genuínas usando<br />

palavras tais como “justo” e “perverso”, e que aponta para um julgamento futuro que não teria<br />

sentido caso fôssemos apanhados em um processo que não nos <strong>de</strong>sse alternativas. O que vemos<br />

aqui é a fadiga <strong>de</strong> se lutar e não conseguir nada; e, embora seja muito diferente do fatalismo que<br />

estivemos consi<strong>de</strong>rando, também está muito longe do sentido <strong>de</strong> peregrinação que domina o<br />

Antigo Testamento.<br />

Seria isto um sinal <strong>de</strong> falta <strong>de</strong> convicção? Gerhard vol Rad comenta que com este autor “a<br />

literatura da Sabedoria per<strong>de</strong>u o último contato coma antiga maneira <strong>de</strong> pensar <strong>de</strong> Israel em<br />

termos <strong>de</strong> história conservadora e, muito consistentemente, retroce<strong>de</strong>u ao modo cíclico <strong>de</strong><br />

pensar comum no Oriente... apenas... <strong>de</strong> uma forma total secular”. 17 Este é um comentário<br />

correto, se “o modo cíclico <strong>de</strong> pensar” significa apenas uma preocupação com a sucessão das<br />

estações e com os ritmos da vida. 18 Mas é fácil esquecer que, se Coelet está assumindo a posição<br />

do homem do mundo para mostrar no que isto implica, é justamente o ponto <strong>de</strong> vista que ele<br />

tem que expor. E se assim o faz para <strong>de</strong>nunciar tal posição e <strong>de</strong>spertar o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> alguma coisa<br />

melhor, como os últimos capítulos vão mostrar, então não <strong>de</strong>ve ser i<strong>de</strong>ntificado com ela a não<br />

ser por causa <strong>de</strong> sua solidarieda<strong>de</strong> e <strong>de</strong> sua profunda visão interior.<br />

<strong>Eclesiastes</strong> 1:12-2:26 -<br />

Em busca <strong>de</strong> satisfação<br />

O investigador<br />

1: 12 Eu, o Pregador, venho sendo rei <strong>de</strong> Israel, em Jerusalém.<br />

13 Apliquei o coração a esquadrinhar e a informar-me com sabedoria <strong>de</strong> tudo quanto suce<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>baixo do céu; este enfadonho trabalho impôs Deus aos filhos dos homens, para nele os afligir.<br />

O poema que acabamos <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rar estabelece a tônica do livro através do seu tema e do<br />

quadro que apresenta <strong>de</strong> um mundo infinitamente ocupado e <strong>de</strong>sesperadamente inconclusivo.<br />

Agora o foco se <strong>de</strong>fine. Voltamo-nos <strong>de</strong> analogias e impressões para o que po<strong>de</strong>mos<br />

conhecer diretamente através da experiência. Vamos esquadrinhar uma vastidão <strong>de</strong> ocupações<br />

humanas, indagando se existe na terra alguma coisa que tenha valor duradouro. O autor nos<br />

impressiona coma urgência da investigação: acabamos fazendo parte <strong>de</strong>la. Mas a sua curiosa<br />

mescla <strong>de</strong> títulos, “Coelet” e “Rei”, alerta-nos para o caráter duplo com que ele se apresenta,<br />

como já vimos no início. 19 Nesta passagem, o pregador torna-se um segundo Salomão, para que<br />

em nossa imaginação possamos fazer o mesmo. Armados <strong>de</strong> tais vantagens, nossa pesquisa irá<br />

muito além <strong>de</strong> uma experiência simples e limitada: será algo grandioso, explorando tudo o que o<br />

mundo possa oferecer a um homem <strong>de</strong> gênio e <strong>de</strong> riqueza ilimitados. Nesta área <strong>de</strong><br />

conhecimento, po<strong>de</strong>mos aceitar suas <strong>de</strong>scobertas como <strong>de</strong>finitivas. Cotando suas palavras<br />

(2:12): “Que fará o homem que seguir ao rei?”<br />

17 G. Von Rad, Old Testsament Theology (trad. Inglesa Oliver e Boyd, 1962), I, Pg 455<br />

18 O. Loretz, Qohelet und <strong>de</strong>r Alte Orient (Her<strong>de</strong>r, 1964), pg 247ss, critica von Rad e outros por<br />

<strong>de</strong>screverem o pensamento do antigo Oriente ou <strong>de</strong> Coelet como cíclico. Mas com cíclico quer dizer o firme<br />

<strong>de</strong>terminismo do sistema estóico (Lonretz, pg 251), que Von Rad não está discutindo neste ponto.<br />

19 Veja os comentários acerca <strong>de</strong> 1:1. Compare a expressão: “Eu venho sendo rei” (ou “me tornei rei”, que<br />

seria a tradução mais natural), no versículo 12, com Zc 11:7ss: “Apascentei as ovelhas (ou, tornei-me<br />

pastor)... Dei cabo <strong>de</strong> três pastores...”, etc.... que usam igualmente uma linguagem autobiográfica, que não<br />

<strong>de</strong>ve ser tomada literalmente, ou com a intenção <strong>de</strong> enganar, mas que visa apresentar-nos uma sequência<br />

iluminadora dos acontecimentos com muita vivacida<strong>de</strong>.<br />

13


Talvez possamos, <strong>de</strong> passagem, comparar este reconhecimento superficial com outra<br />

passagem escrita na primeira pessoa: o exame do coração humano que Paulo <strong>de</strong>screve no final<br />

<strong>de</strong> Romanos 7. Cada uma <strong>de</strong>stas duas confissões tem uma referência mais ampla do que o<br />

homem que está falando. Entre elas, Coelet e Paulo exploram para nós o mundo exterior e o<br />

interior do homem, sua busca por um significado e sua luta por uma vitória moral.<br />

Com sua habitual franqueza, Coelet logo nos <strong>de</strong>clara o pior: sua pesquisa resultou em<br />

nada. Para nos poupar do <strong>de</strong>sapontamento <strong>de</strong> nossas esperanças, ele nos adverte do resultado<br />

(1:13b-15) antes <strong>de</strong> nos levar consigo em sua jornada (1:16-2:11); e finalmente compartilha<br />

conosco as conclusões a que chegou (2:12-26).<br />

O Resumo<br />

1: 13 Apliquei o coração a esquadrinhar e a informar-me com sabedoria <strong>de</strong> tudo quanto<br />

suce<strong>de</strong> <strong>de</strong>baixo do céu; este enfadonho trabalho impôs Deus aos filhos dos homens, para nele os<br />

afligir.<br />

14 Atentei para todas as obras que se fazem <strong>de</strong>baixo do sol, e eis que tudo era vaida<strong>de</strong> e<br />

correr atrás do vento.<br />

15 Aquilo que é torto não se po<strong>de</strong> endireitar; e o que falta não se po<strong>de</strong> calcular.<br />

Discreta, mas significativamente, Coelet resume suas <strong>de</strong>scobertas em termos que por um<br />

breve momento saem do campo <strong>de</strong> visão do secularista. Ele vê a inquietação da vida que<br />

qualquer observador po<strong>de</strong>ria perceber; no entanto, relaciona-a coma vonta<strong>de</strong> divina: foi Deus<br />

que a impôs aos filhos dos homens. Isto talvez pareça mais amargura do que fé, mas é na verda<strong>de</strong><br />

uma indicação <strong>de</strong> algo positivo que será retomado nos capítulos finais. Na pior das hipóteses,<br />

implicaria que, por <strong>de</strong>trás da nossa situação, existe sempre algum sentido (e não o contra-senso<br />

do acaso), mesmo que este nos pareça totalmente <strong>de</strong>sanimador. Mas bem que po<strong>de</strong>ria também<br />

fazer parte da justa disciplina que Deus nos impôs como seqüela da Queda. Foi assim que Paulo<br />

(com uma evi<strong>de</strong>nte perspectiva <strong>de</strong> <strong>Eclesiastes</strong>) interpretou o sofrimento do mundo: “Pois a<br />

criação está sujeita à vaida<strong>de</strong>... por causa daquele que a sujeitou, na esperança...” 20<br />

Essa esperança, contudo, fica totalmente além do nosso próprio alcance, como veremos<br />

adiante. E o versículo 15 traz mais dois lembretes das nossas limitações, coma concisão <strong>de</strong> um<br />

provérbio. A ER capta bem o sentido: “O que é torto não se po<strong>de</strong> endireitar; o que falta não se<br />

po<strong>de</strong> enumerar.” Se esta tortuosida<strong>de</strong> e esta falta significam as nossas próprias falhas <strong>de</strong> caráter<br />

ou as circunstâncias que não po<strong>de</strong>mos alterar, 21 <strong>de</strong>paramo-nos novamente com o que po<strong>de</strong>mos<br />

fazer. Com esta advertência, juntemo-nos agora a Coelet em suas diversas experiências.<br />

Experimentando a vida<br />

1: 16 Disse comigo: eis que me engran<strong>de</strong>ci e sobrepujei em sabedoria a todos os que antes <strong>de</strong><br />

mim existiram em Jerusalém; com efeito, o meu coração tem tido larga experiência da sabedoria e<br />

do conhecimento.<br />

17 Apliquei o coração a conhecer a sabedoria e a saber o que é loucura e o que é estultícia; e<br />

vim a saber que também isto é correr atrás do vento.<br />

18 Porque na muita sabedoria há muito enfado; e quem aumenta ciência aumenta tristeza.<br />

2: 1 Disse comigo: vamos! Eu te provarei com a alegria; goza, pois, a felicida<strong>de</strong>; mas também<br />

isso era vaida<strong>de</strong>.<br />

2 Do riso disse: é loucura; e da alegria: <strong>de</strong> que serve?<br />

3 Resolvi no meu coração dar-me ao vinho, regendo-me, contudo, pela sabedoria, e entregarme<br />

à loucura, até ver o que melhor seria que fizessem os filhos dos homens <strong>de</strong>baixo do céu, durante<br />

os poucos dias da sua vida.<br />

4 Empreendi gran<strong>de</strong>s obras; edifiquei para mim casas; plantei para mim vinhas.<br />

5 Fiz jardins e pomares para mim e nestes plantei árvores frutíferas <strong>de</strong> toda espécie.<br />

6 Fiz para mim açu<strong>de</strong>s, para regar com eles o bosque em que rever<strong>de</strong>ciam as árvores.<br />

20 Rm 8:20<br />

21 A segunda alternativa parece ser a mais provável, à vista <strong>de</strong> 7:13 com 7:29, que falam <strong>de</strong> Deus como<br />

sendo o autor das coisas “tortas” no sentido <strong>de</strong> fatos estranhos e irreversíveis, mas não moralmente maus.<br />

14


7 Comprei servos e servas e tive servos nascidos em casa; também possuí bois e ovelhas, mais<br />

do que possuíram todos os que antes <strong>de</strong> mim viveram em Jerusalém.<br />

8 Amontoei também para mim prata e ouro e tesouros <strong>de</strong> reis e <strong>de</strong> províncias; provi-me <strong>de</strong><br />

cantores e cantoras e das <strong>de</strong>lícias dos filhos dos homens: mulheres e mulheres.<br />

9 Engran<strong>de</strong>ci-me e sobrepujei a todos os que viveram antes <strong>de</strong> mim em Jerusalém;<br />

perseverou também comigo a minha sabedoria.<br />

10 Tudo quanto <strong>de</strong>sejaram os meus olhos não lhes neguei, nem privei o coração <strong>de</strong> alegria<br />

alguma, pois eu me alegrava com todas as minhas fadigas, e isso era a recompensa <strong>de</strong> todas elas.<br />

11 Consi<strong>de</strong>rei todas as obras que fizeram as minhas mãos, como também o trabalho que eu,<br />

com fadigas, havia feito; e eis que tudo era vaida<strong>de</strong> e correr atrás do vento, e nenhum proveito<br />

havia <strong>de</strong>baixo do sol.<br />

Para um pensador tão famoso, a investigação tinha naturalmente <strong>de</strong> começar com a<br />

sabedoria, a qualida<strong>de</strong> mais louvada em seus círculos. Contudo, ele nada diz sobre seu primeiro<br />

princípio, o temor do Senhor, e po<strong>de</strong>mos presumir que a sabedoria da qual ele fala é (segundo o<br />

seu método) o melhor pensamento que o homem po<strong>de</strong> ter por si mesmo. A sabedoria é<br />

esplêndida em toda a sua extensão: nada se po<strong>de</strong> comparar a ela (2:13); mesmo assim, ela não<br />

dá respostas às nossas dúvidas acerca da vida. Apenas as aguça ainda mais com sua perspicácia.<br />

Assim Coelet consi<strong>de</strong>ra a sabedoria com a <strong>de</strong>vida serieda<strong>de</strong>, como uma disciplina que se<br />

ocupa <strong>de</strong> questões máximas, e não simplesmente como um instrumento para realizar as coisas.<br />

Se isto fosse tudo, nada po<strong>de</strong>ríamos esperar <strong>de</strong>la além do sucesso material. Mas a sabedoria<br />

preocupa-se coma verda<strong>de</strong>,e a verda<strong>de</strong> nos compele a admitir que o sucesso nos faz mal e que<br />

nada no mundo permanece. Ele ainda vai dizer algo mais sobre isto; por enquanto, seu primeiro<br />

ponto sobre o <strong>de</strong>scanso foi apresentado.<br />

Então ele mergulha na frivolida<strong>de</strong>. Mas uma parte <strong>de</strong>le se retrai – regendo-me, contudo,<br />

pela sabedoria – para ver a que a frivolida<strong>de</strong> como estilo <strong>de</strong> vida conduz, e o que faz ao homem.<br />

Imediatamente ele percebe o “paradoxo do hedonismo”: quanto mais se busca o prazer, menos<br />

ele é encontrado. De qualquer forma, a pessoa está buscando algo além do prazer e através <strong>de</strong>le,<br />

pois isto é mais que uma simples indulgência. É uma fuga <strong>de</strong>liberada da racionalida<strong>de</strong>, para<br />

chegar a um segredo da vida AL qual a razão talvez tenha bloqueado o caminho. Nisto resi<strong>de</strong> a<br />

força do versículo 3b: “entregar-me à loucura até ver o que melhor seria que fizessem os filhos<br />

dos homens...”<br />

Neste ponto nos aproximamos muito do nosso próprio tempo com o seu culto irracional<br />

em suas variadas formas, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o romantismo até a ânsia que manifestam os diferentes estados<br />

<strong>de</strong> consciência, e daí ao niilismo, que cultiva o feio, o obsceno e o absurdo, não por divertimento,<br />

mas como um ataque aos valores racionais. Embora nada disso apareça em Coelet, sua avaliação<br />

das experiências com a loucura prova que ele está perturbado e igualmente <strong>de</strong>sapontado com o<br />

veredito ainda mais forte acerca do riso (É loucura); e nas Escrituras tanto a “loucura” como a<br />

“estultícia” pressupõem mais perversida<strong>de</strong> moral do que <strong>de</strong>sarranjo mental. 22 Para merecer tal<br />

observação, o riso que acompanha este tipo <strong>de</strong> vida tem <strong>de</strong> ser cínico e <strong>de</strong>strutivo. Neste caso,<br />

não estamos muito longe <strong>de</strong> nossas comédias trágicas e do humor negro.<br />

Como que reagindo fortemente aos prazeres fúteis, agora se entrega às alegrias da<br />

criativida<strong>de</strong>. Dedica suas energias a um projeto digno <strong>de</strong> seus talentos estéticos, <strong>de</strong> seu domínio<br />

das artes e das ciências, e <strong>de</strong> sua habilida<strong>de</strong> para comandar um gran<strong>de</strong> empreendimento. Ele cria<br />

um pequeno mundo <strong>de</strong>ntro do mundo: multiforme, harmonioso e exótico, um Jardim do É<strong>de</strong>n<br />

secular, cheio <strong>de</strong> <strong>de</strong>leites civilizados e <strong>de</strong>liciosamente não civilizados (v.8), 23 sem frutos<br />

22 Por exemplo, em 9:3, “malda<strong>de</strong>” está associada a “mal” e, em 10:13, a palavra usada para “estultícia” é<br />

consi<strong>de</strong>rada como um passo na direção da “loucura perversa”. Da mesma forma, agir estultamente<br />

(usando uma palavra relacionada com “estultícia”) geralmente implica em uma atitu<strong>de</strong> fatalmente<br />

voluntariosa; cf 1Sm 13:13; 26:21; 2Sm 24:10).<br />

23 A palavra sidda, que aparece apenas aqui, tem sido aceita como significando “instrumento musical”<br />

(ERC). Mas em uma carta <strong>de</strong> Faraó Amenofis III ao príncile Milkilu <strong>de</strong> Gezer, em que são exigidas quarenta<br />

concubinas, a palavra egípcia para concubina está acompanhada <strong>de</strong> uma palavra cananita explicatória <strong>de</strong><br />

sidda. “Concubina” é usada então corretamente na ER. A BJ traz a palavra “cofres” (isto é, “arcas <strong>de</strong><br />

tesouro”), mas sugere em suas anotações “princesas” ou “concubinas” e a ERAB, não erra, então, com a<br />

tradução “mulheres”.<br />

15


proibidos – ou algo que ele assim consi<strong>de</strong>re (v.10). para tanto, ele resolve fugir do tédio dos ricos<br />

através <strong>de</strong> uma ativida<strong>de</strong> constante, <strong>de</strong>sfrutada e valorizada por seu próprio bem (v.10); e<br />

mantém um olho crítico sobre os seus projetos, mesmo enquanto os executa. “Perseverou<br />

também comigo a minha sabedoria”, ele nos diz (v.9). não per<strong>de</strong> <strong>de</strong> vista busca, a investigação do<br />

significado da vida, que constituía o motivo principal <strong>de</strong> tudo.<br />

No final qual foi o resultado? Um espírito menos exigente do que Coelet teria encontrado<br />

muita coisa positiva para contar. As realizações foram brilhantes. No nível material, a ambição<br />

perene do lavrador <strong>de</strong> fazer (com nossas palavras) “duas folhas <strong>de</strong> capim crescerem on<strong>de</strong> antes<br />

só havia uma” foi indiscutivelmente atingida; esteticamente falando, ele criou um paraíso único.<br />

Se “a beleza produz alegria”, ele não buscou em vão pelo que é infinito e absoluto.<br />

Assim pensamos nós.<br />

Coelet não pensa assim. Chamar tais coisas <strong>de</strong> eternas não passa <strong>de</strong> retórica, e nada que<br />

seja perecível vai satisfazê-lo. Nos termos coloquiais da BLH, ele diz: “Compreendi que tudo<br />

aquilo era ilusão, não tinha nenhum proveito. Era como se eu estivesse correndo atrás do vento”.<br />

A avaliação<br />

2: 12 Então, passei a consi<strong>de</strong>rar a sabedoria, e a loucura, e a estultícia. Que fará o homem<br />

que seguir ao rei? O mesmo que outros já fizeram.<br />

13 Então, vi que a sabedoria é mais proveitosa do que a estultícia, quanto a luz traz mais<br />

proveito do que as trevas.<br />

14 Os olhos do sábio estão na sua cabeça, mas o estulto anda em trevas; contudo, entendi<br />

que o mesmo lhes suce<strong>de</strong> a ambos.<br />

15 Pelo que disse eu comigo: como acontece ao estulto, assim me suce<strong>de</strong> a mim; por que,<br />

pois, busquei eu mais a sabedoria? Então, disse a mim mesmo que também isso era vaida<strong>de</strong>.<br />

16 Pois, tanto do sábio como do estulto, a memória não durará para sempre; pois, passados<br />

alguns dias, tudo cai no esquecimento. Ah! Morre o sábio, e da mesma sorte, o estulto!<br />

17 Pelo que aborreci a vida, pois me foi penosa a obra que se faz <strong>de</strong>baixo do sol; sim, tudo é<br />

vaida<strong>de</strong> e correr atrás do vento.<br />

18 Também aborreci todo o meu trabalho, com que me afadiguei <strong>de</strong>baixo do sol, visto que o<br />

seu ganho eu havia <strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar a quem viesse <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> mim.<br />

19 E quem po<strong>de</strong> dizer se será sábio ou estulto? Contudo, ele terá domínio sobre todo o ganho<br />

das minhas fadigas e sabedoria <strong>de</strong>baixo do sol; também isto é vaida<strong>de</strong>.<br />

20 Então, me empenhei por que o coração se <strong>de</strong>sesperasse <strong>de</strong> todo trabalho com que me<br />

afadigara <strong>de</strong>baixo do sol.<br />

21 Porque há homem cujo trabalho é feito com sabedoria, ciência e <strong>de</strong>streza; contudo,<br />

<strong>de</strong>ixará o seu ganho como porção a quem por ele não se esforçou; também isto é vaida<strong>de</strong> e gran<strong>de</strong><br />

mal.<br />

22 Pois que tem o homem <strong>de</strong> todo o seu trabalho e da fadiga do seu coração, em que ele anda<br />

trabalhando <strong>de</strong>baixo do sol?<br />

23 Porque todos os seus dias são dores, e o seu trabalho, <strong>de</strong>sgosto; até <strong>de</strong> noite não <strong>de</strong>scansa<br />

o seu coração; também isto é vaida<strong>de</strong>.<br />

24 Nada há melhor para o homem do que comer, beber e fazer que a sua alma goze o bem<br />

do seu trabalho. No entanto, vi também que isto vem da mão <strong>de</strong> Deus,<br />

25 pois, separado <strong>de</strong>ste, quem po<strong>de</strong> comer ou quem po<strong>de</strong> alegrar-se?<br />

26 Porque Deus dá sabedoria, conhecimento e prazer ao homem que lhe agrada; mas ao<br />

pecador dá trabalho, para que ele ajunte e amontoe, a fim <strong>de</strong> dar àquele que agrada a Deus.<br />

Também isto é vaida<strong>de</strong> e correr atrás do vento.<br />

O rápido e brusco veredito do versículo 11 precisava ser explicado <strong>de</strong>talhadamente, pois<br />

ao se aprofundar nas possibilida<strong>de</strong>s da vida, Coelet não estava agindo puramente por conta<br />

própria. Se ele, <strong>de</strong>ntro todas as outras pessoas, regressou <strong>de</strong> mãos vazias, mesmo no manto <strong>de</strong><br />

Salomão, que esperança resta para os <strong>de</strong>mais (v.12)? 24 Então ele retorna às gran<strong>de</strong>s alternativas,<br />

a sabedoria e a loucura, comparando-as e avaliando-as radicalmente. Teria alguma <strong>de</strong>las uma<br />

24 A BLH força um pouco a tradução do v.12 dizendo: “Será que um rei po<strong>de</strong> fazer alguma coisa que seja<br />

nova? Não. Só po<strong>de</strong> fazer o que fizeram os reis que reinaram antes <strong>de</strong>le.”<br />

16


esposta para esta busca <strong>de</strong> alguma coisa final? Eram estes os dois modos <strong>de</strong> vida que ele<br />

estivera testando nas suas experiências dos versículos 1:17-2:10, pois ele inclui na “loucura” não<br />

apenas a “insensatez” da auto-indulgência e do cinismo, mas também a busca do prazer em<br />

qualquer nível, mesmo no mais elevado, como uma fuga dos pensamentos dolorosos que se <strong>de</strong>ve<br />

enfrentar. Isto estava bastante claro na sequência <strong>de</strong> 1:18, on<strong>de</strong> aparece o comentário: “quem<br />

aumenta ciência, aumenta tristeza”, o que leva à firma resolução: “Vamos! eu te provarei com a<br />

alegria; goza, pois, a felicida<strong>de</strong>.”<br />

A simples comparação entre sabedoria e a loucura é <strong>de</strong>spretensiosa, mas a avaliação final<br />

é avassaladora. Nada po<strong>de</strong>ria ser mais óbvio do que as duas serem comparadas com a luz e as<br />

trevas (vs 13, 14a); mas Coelet tem a sagacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> lembrar que estas não passam <strong>de</strong> abstrações<br />

e que nós somos homens. De nada adiantaria nos recomendar o valor máximo da sabedoria, se<br />

no fim nenhum <strong>de</strong> nós é capaz <strong>de</strong> exercê-la, e muito menos <strong>de</strong> avaliá-la. É por isso, naturalmente,<br />

que as realizações puramente humanas que nós chamamos <strong>de</strong> duradouras não são nada disso.<br />

Como humanos nós po<strong>de</strong>mos reverenciá-las <strong>de</strong>ste modo, mas isto apenas porque nos falta a<br />

honestida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Coelet em ver que passados alguns dias, tudo cai no esquecimento (v.16). ele não<br />

tem ilusões, sem bem que nós é que não <strong>de</strong>veríamos tê-las, nós que ouvimos dos próprios<br />

secularistas que o nosso planeta está morrendo.<br />

Assim, pela primeira vez no livro (mas não a última, naturalmente), o fato da morte leva a<br />

pesquisa a uma súbita pausa. Se o mesmo (<strong>de</strong>stino) lhes suce<strong>de</strong> a ambos (v.14b), e o <strong>de</strong>stino é a<br />

extinção, todo o homem fica privado, <strong>de</strong> sua dignida<strong>de</strong> e todo projeto, <strong>de</strong> sua finalida<strong>de</strong>. Vemos<br />

estes dois resultados nos versículos 14-17 e 18-23.<br />

Quanto à dignida<strong>de</strong> do homem, o que é mais mortificante (que palavra apropriada!)<br />

quanto ao fato <strong>de</strong> que todos os homens, tanto sábios tanto tolos (ao que po<strong>de</strong>ríamos acrescentar<br />

“bons e maus”, ” santos e sádicos” Ou quaisquer outros antônimos) hão <strong>de</strong> finalmente se igualar<br />

na morte, é que, se isto é verda<strong>de</strong>, a última palavra acaba ficando com um fato brutal que arrasa<br />

qualquer juízo <strong>de</strong> valores que possamos fazer. Tudo po<strong>de</strong> nos dizer que a sabedoria não está no<br />

mesmo nível que a loucura, nem o bem com o mal. Mas tanto faz: se a morte é o fim da linha, a<br />

alegação <strong>de</strong> que não existe escolha alguma entre elas terá a sua última palavra. No final, as<br />

escolhas que positivamente sabemos ser significativas serão postas <strong>de</strong> lado como irrelevantes.<br />

Pelo que aborreci a vida. Se há uma mentira no centro da existência, e falta <strong>de</strong> sentido no<br />

final da mesma, quem tem a coragem <strong>de</strong> fazer alguma coisa? Se, como po<strong>de</strong>ríamos dizer, todas as<br />

cartas em nossa mão estão trunfadas, que importa como jogamos? Por que tratar um rei com<br />

maior respeito do que um velhaco?<br />

A propósito, esta amarga reação é um testemunho <strong>de</strong> nossa capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> avaliar a nossa<br />

condição <strong>de</strong>sobrigando-nos <strong>de</strong>la. Sentir-se ultrajado diante do que é universal e inevitável dá a<br />

idéia <strong>de</strong> um <strong>de</strong>scontentamento divino, uma indicação do que 3:11 vai sabiamente chamar <strong>de</strong><br />

“eternida<strong>de</strong>” na mente do homem. De fato, o versículo 16 usa esta palavra a fim <strong>de</strong> lamentar a<br />

falta <strong>de</strong> qualquer lembrança duradoura do sábio.<br />

Os versículos 18-23 consi<strong>de</strong>ram um mal menor, mas um mal que po<strong>de</strong> solapar o espírito<br />

do seu jeito: a frustrante incerteza <strong>de</strong> todos os nossos empreendimentos quando escapam ao<br />

nosso controle, como acontece mais cedo ou mais tar<strong>de</strong>. O homem do mundo dificilmente<br />

objetaria isto, com base em seus próprios princípios, contanto que eles durem toda a vida; mas<br />

ainda assim ele se importa, pois compartilha do nosso anseio íntimo pelas coisas permanentes.<br />

Quanto mais ele lutar durante a sua vida (e os versículos 22ss. mostram como essa luta po<strong>de</strong> ser<br />

obsessiva), mais incômoda será a idéia <strong>de</strong> seus frutos irem parar nas mãos <strong>de</strong> outras pessoas e,<br />

muito provavelmente em mãos erradas. Este é um outro golpe, já percebido antes no capítulo,<br />

contra a esperança <strong>de</strong> encontrar realização no trabalho duro e nos gran<strong>de</strong>s empreendimentos. O<br />

próprio sucesso acentua o anticlímax.<br />

Finalmente uma nota mais alegre se faz ouvir. Talvez nos tenhamos esforçado <strong>de</strong>mais. O<br />

trabalhador compulsivo dos versículos 22ss., sobrecarregando os seus dias com trabalho e as<br />

suas noites com preocupações, esqueceu-se das alegrias simples que Deus colocou à sua<br />

disposição. A questão principal para ele não era <strong>de</strong>cidir entre o trabalho e o repouso mas, se ele<br />

soubesse, entre as ativida<strong>de</strong>s sem sentido e as significativas. Como o versículo 24 <strong>de</strong>staca, o<br />

próprio trabalho que o tiraniza seria um presente potencialmente cheio <strong>de</strong> prazer vindo <strong>de</strong> Deus<br />

17


(e a própria alegria é um outro presente, v.25), 25 bastando apenas que ele se dispusesse a aceitálos<br />

como tal.<br />

Eis aí outro lado <strong>de</strong>ste “enfadonho trabalho [que] impôs Deus aos filhos dos homens”<br />

(1:13), pois em si mesmas e corretamente usadas, as coisas básicas da vida são doces e boas. O<br />

alimento, a bebida e o trabalho são exemplos <strong>de</strong>las, e Coelet nos faz lembrar ainda <strong>de</strong> outras. 26 O<br />

que as estraga é a nossa ânsia <strong>de</strong> extrair <strong>de</strong>las mais do que po<strong>de</strong>m dar; um sintoma do anseio<br />

que nos diferencia dos animais, mas cujo uso <strong>de</strong>turpado é um tema subjacente <strong>de</strong>ste livro.<br />

Assim por um momento, no versículo 26 o véu é levantado para nos mostrar uma outra<br />

coisa além da futilida<strong>de</strong>. O livro vai terminar com forte ênfase sobre esta nota positiva; mas, até<br />

lá, nesses vislumbres vemos o suficiente para ter a certeza <strong>de</strong> que há uma resposta, e que o autor<br />

não é um <strong>de</strong>rrotista. Ele nos <strong>de</strong>silu<strong>de</strong> para nos chamar à realida<strong>de</strong>.<br />

O que ele está dizendo neste versículo final po<strong>de</strong>ria ser lido <strong>de</strong>scuidadamente como uma<br />

cláusula <strong>de</strong> revogação para os favoritos <strong>de</strong> Deus, poupando-os dos riscos materiais que acabam<br />

<strong>de</strong> ser <strong>de</strong>scritos. A BLH esforça-se para não dar esta impressão, retirando a palavra “pecador”<br />

(sem motivo), substituindo-a por “os maus” e <strong>de</strong>screvendo aqueles que agradam a Deus como<br />

simplesmente aqueles “<strong>de</strong> quem ele gosta” ou “<strong>de</strong> quem ele gosta mais”. Mas mesmo sem esta<br />

distorção gratuita seria fácil passar por cima do vital contraste neste versículo, <strong>de</strong> um lado os<br />

dons espirituais <strong>de</strong> Deus que trazem satisfação (sabedoria, conhecimento, alegria) e que só<br />

aqueles que lhe agradam po<strong>de</strong>m <strong>de</strong>sejar ou receber, e do outro a frustração 27 <strong>de</strong> acumular o que<br />

não se po<strong>de</strong> guardar, que é a porção escolhida por aqueles que o rejeitam. O fato <strong>de</strong> que o<br />

estoque do pecador vai parar finalmente nas mãos do justo é apenas uma ironia final daquilo<br />

que não passava <strong>de</strong> vaida<strong>de</strong> e correr atrás do vento. E para o justo é uma reivindicação final, nada<br />

mais que isso. Tal como acontece com os mansos, que têm a promessa <strong>de</strong> herdar a terra, o<br />

tesouro <strong>de</strong>les está em outra parte e é <strong>de</strong> outro tipo.<br />

<strong>Eclesiastes</strong> 3:1-15 -<br />

A tirania do tempo<br />

3: 1 Tudo tem o seu tempo <strong>de</strong>terminado, e há tempo para todo propósito <strong>de</strong>baixo do céu:<br />

2 há tempo <strong>de</strong> nascer e tempo <strong>de</strong> morrer; tempo <strong>de</strong> plantar e tempo <strong>de</strong> arrancar o que se<br />

plantou;<br />

3 tempo <strong>de</strong> matar e tempo <strong>de</strong> curar; tempo <strong>de</strong> <strong>de</strong>rribar e tempo <strong>de</strong> edificar;<br />

4 tempo <strong>de</strong> chorar e tempo <strong>de</strong> rir; tempo <strong>de</strong> prantear e tempo <strong>de</strong> saltar <strong>de</strong> alegria;<br />

5 tempo <strong>de</strong> espalhar pedras e tempo <strong>de</strong> ajuntar pedras; tempo <strong>de</strong> abraçar e tempo <strong>de</strong><br />

afastar-se <strong>de</strong> abraçar;<br />

6 tempo <strong>de</strong> buscar e tempo <strong>de</strong> per<strong>de</strong>r; tempo <strong>de</strong> guardar e tempo <strong>de</strong> <strong>de</strong>itar fora;<br />

7 tempo <strong>de</strong> rasgar e tempo <strong>de</strong> coser; tempo <strong>de</strong> estar calado e tempo <strong>de</strong> falar;<br />

8 tempo <strong>de</strong> amar e tempo <strong>de</strong> aborrecer; tempo <strong>de</strong> guerra e tempo <strong>de</strong> paz.<br />

9 Que proveito tem o trabalhador naquilo com que se afadiga?<br />

10 Vi o trabalho que Deus impôs aos filhos dos homens, para com ele os afligir.<br />

11 Tudo fez Deus formoso no seu <strong>de</strong>vido tempo; também pôs a eternida<strong>de</strong> no coração do<br />

homem, sem que este possa <strong>de</strong>scobrir as obras que Deus fez <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o princípio até ao fim.<br />

12 Sei que nada há melhor para o homem do que regozijar-se e levar vida regalada;<br />

13 e também que é dom <strong>de</strong> Deus que possa o homem comer, beber e <strong>de</strong>sfrutar o bem <strong>de</strong> todo<br />

o seu trabalho.<br />

14 Sei que tudo quanto Deus faz durará eternamente; nada se lhe po<strong>de</strong> acrescentar e nada<br />

lhe tirar; e isto faz Deus para que os homens temam diante <strong>de</strong>le.<br />

15 O que é já foi, e o que há <strong>de</strong> ser também já foi; Deus fará renovar-se o que se passou.<br />

25 As palavras, separado <strong>de</strong>ste (v.25) são um acréscimo apoiado pela LXX. O TM diz “separado <strong>de</strong> mi”, que<br />

daria um bom sentido apenas se Deus estivesse falando na primeira pessoa. A tradução da ER e da ERC,<br />

“melhor do que eu”, é inteligível, mas dificilmente uma tradução aceitável.<br />

26 Cf 9:7-10; 11:7-10<br />

27 Trabalho, neste versículo é a mesma palavra que aparece na frase <strong>de</strong> 1:13, “este enfadonho trabalho<br />

impões Deus aos filhos dos homens, para nele os afligir”.<br />

18


Talvez “tirania” seja uma palavra forte <strong>de</strong>mais para o mo<strong>de</strong>rado fluxo e refluxo <strong>de</strong>scrito<br />

com essas palavras o qual nos leva durante a vida inteira <strong>de</strong> uma ativida<strong>de</strong> para outra oposta, e<br />

<strong>de</strong> volta novamente àquela. A <strong>de</strong>scrição é agradável, com uma varieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> humor e <strong>de</strong> ação<br />

revelando diferentes ritmos em nossas ocupações. Agrada-nos o ritmo, pois quem gostaria <strong>de</strong><br />

uma primavera perpétua (“tempo <strong>de</strong> plantar”, mas nunca colher), ou quem invejaria o homem<br />

<strong>de</strong> negócios que não dorme, que nós ficamos conhecendo no capítulo anterior?<br />

No contexto <strong>de</strong> uma busca <strong>de</strong> finalida<strong>de</strong>, no entanto, este movimento <strong>de</strong> cá para lá e <strong>de</strong> lá<br />

para cá não é nada melhor do que o círculo vicioso do capítulo primeiro; e, além disso, traz<br />

consigo suas próprias conseqüências perturbadoras. Uma <strong>de</strong>las é que nós dançamos ao som <strong>de</strong><br />

uma música, ou <strong>de</strong> muitas <strong>de</strong>las, que não foram compostas por nós; a segunda é que nada do que<br />

buscamos tem alguma permanência. Atiramo-nos a uma ativida<strong>de</strong> qualquer que nos dê<br />

satisfação, mas com que liberda<strong>de</strong> a escolhemos? Dentro <strong>de</strong> quanto tempo estaremos fazendo<br />

exatamente o oposto? Talvez as nossas escolhas nem sejam mais livres do que as nossas reações<br />

diante do inverno e do verão, ou da infância e da velhice, ditadas pela marcha do tempo e por<br />

mudanças espontâneas.<br />

Vista <strong>de</strong>sta forma, a repetição “tempo... e tempo” começa a tornar-se opressiva. Seja qual<br />

for a nossa capacida<strong>de</strong> e iniciativa, o nosso verda<strong>de</strong>iro senhor parece ser a inexorável mudança<br />

das estações: não apenas as que se encontram no calendário como também aquela maré <strong>de</strong><br />

acontecimentos que ora leva a um <strong>de</strong>terminado tipo <strong>de</strong> ação que nos parece a<strong>de</strong>quado, ora a um<br />

outro que coloca tudo <strong>de</strong> maneira inversa. Obviamente, pouco temos a dizer das situações que<br />

nos levam a chorar, a rir, a prantear e a saltar <strong>de</strong> alegria; mas os nossos atos mais <strong>de</strong>liberados<br />

também po<strong>de</strong>m ser condicionados pelo tempo, mãos do que supomos. “Quem diria”, falamos às<br />

vezes, “que chegaria o dia em que eu acabaria fazendo tal ou tal coisa, e achando que é o meu<br />

<strong>de</strong>ver!” Assim, a nação pacifista prepara-se para a guerra; ou o pastor <strong>de</strong> ovelhas pega a faca<br />

para matar a criatura que ele antes cuidou para que não morresse. O colecionador distribui o seu<br />

tesouro; amigos têm <strong>de</strong>savenças amargas; a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> falar vem <strong>de</strong>pois da necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

guardar silêncio. Nada do que fazemos parece, fica livre <strong>de</strong>sta relativida<strong>de</strong> e <strong>de</strong>sta pressão, quase<br />

uma imposição, vinda <strong>de</strong> fora.<br />

Nossa reação natural seria buscar a realida<strong>de</strong> em algo além das mudanças, tratando a<br />

esfera das experiências cotidianas como um mero passatempo. Para nossa surpresa, no versículo<br />

11 Coelet nos faz ver que essas perpétuas mudanças não são algo <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>nado, mas um padrão<br />

<strong>de</strong>slumbrante e revelador, uma dádiva <strong>de</strong> Deus. O problema não é que a vida se recuse a ficar<br />

parada, mas sim que nós só percebemos uma fração do seu movimento e do seu plano sutil e<br />

intricado. Em vez da ausência <strong>de</strong> mudanças, temos ma coisa melhor: um propósito dinâmico e<br />

divino, com um princípio e um fim. Em vez <strong>de</strong> uma perfeição congelada temos o movimento<br />

caleidoscópico <strong>de</strong> inúmeros processos, cada um com seu próprio caráter e com seu período <strong>de</strong><br />

florescer e amadurecer, formoso no seu <strong>de</strong>vido tempo, contribuindo para a obra-prima total que á<br />

obra do Criador. Nós captamos estes momentos brilhantes, mas mesmo à parte das trevas com<br />

que se entremeiam, eles <strong>de</strong>ixam-nos insatisfeitos <strong>de</strong>vido à falta <strong>de</strong> um significado total que<br />

possamos enten<strong>de</strong>r. Diferentemente dos animais, absorvidos pelo tempo, nós queremos vê-los<br />

em seu contexto pleno, pois conhecemos um pouco da eternida<strong>de</strong>: o suficiente pelo menos para<br />

comparar o efêmero com o “eterno”. 28 Parecemos alguém <strong>de</strong>sesperadamente míope,<br />

percorrendo centímetro por centímetro uma gran<strong>de</strong> tapeçaria ou pintura na tentativa <strong>de</strong><br />

enten<strong>de</strong>r o todo. Vemos o suficiente para reconhecer um pouco <strong>de</strong> sua qualida<strong>de</strong> mas o gran<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>senho se nos escapa, pois nunca po<strong>de</strong>mos nos afastar o suficiente para vê-lo como o Criador o<br />

vê, completo e por inteiro, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o princípio até o fim.<br />

Esta incompreensibilida<strong>de</strong> é <strong>de</strong>sanimadora para o secularista pensante, mas não para o<br />

crente. Ambos po<strong>de</strong>m refugiar-se na vida aproveitando-a ao máximo, mas o homem que não têm<br />

fé age no vazio. O versículo 12 não é tão frívolo como talvez pareça em algumas versões,l como<br />

na ER a frase final, enquanto viverem, lança uma sombra sobre qualquer empreendimento. Se<br />

28 Eternida<strong>de</strong> (v.11) é a mesma palavra traduzida por “eternamente” no v.14, mas usada aqui como<br />

substantivo. A LXX a traduz aqui e em outras passagens por aion, o substantivo que dá lugar ao adjetivo<br />

“eterno” no NT. Embora possa ser usada simplesmente em relação ao tempo passado ou futuro (cf a BLH),<br />

ou em relação a uma época, o contraste com a palavra tempo (isto é, estação) no v.11a aponta para um<br />

sentido mais forte do que fraco neste versículo. A ERC menciona aqui “o mundo”, usado no sentido arcaico<br />

<strong>de</strong> uma dispensação (cf. a frase “mundo sem fim”).<br />

19


nada é permanente, muito embora gran<strong>de</strong> parte do nosso trabalho vá sobreviver a nós, estamos<br />

apenas enchendo o tempo; e disso vamos nos dar conta mais cedo ou mais tar<strong>de</strong>.<br />

O crente, por outro lado, po<strong>de</strong> aceitar o mesmo tipo <strong>de</strong> programa <strong>de</strong>spretensioso, não<br />

como um tapa-buraco mas como uma tarefa. É um dom <strong>de</strong> Deus (v.13), uma porção distribuída<br />

em nossa vida cujo propósito é conhecido pelo Doador e é parte <strong>de</strong> sua obra eterna; pois Deus<br />

não faz nada em vão. Como o versículo 14 <strong>de</strong>staca, os planos divinos são diferentes dos nossos e<br />

em nada precisam ser corrigidos ou acrescidos: eles perduram. O eternamente <strong>de</strong>ste versículo<br />

combina com a eternida<strong>de</strong> colocada no coração do homem (v.11). Participar um pouco disto, por<br />

mais mo<strong>de</strong>stamente que seja, é um escape da “vaida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vaida<strong>de</strong>s”.<br />

Assim todo o parágrafo fala coma “bonda<strong>de</strong>” e a “severida<strong>de</strong>” simultâneas que<br />

encontramos na conhecida frase <strong>de</strong> Romanos 11:22: “... para com os que caíram, severida<strong>de</strong>; mas<br />

para contigo, a bonda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus...” O homem ligado às coisas da terra, à luz dos versículos 14 e<br />

15 e <strong>de</strong> toda essa seção é prisioneiro <strong>de</strong> um sistema que ele não consegue quebrar nem sequer<br />

vergar; e por trás disso está Deus na meio <strong>de</strong> fuga, e nenhum jeito <strong>de</strong> alijar-se da carga que o<br />

estorva ou incrimina. Mas o homem <strong>de</strong> Deus ouve estes versículos sem tais receios. Para ele o<br />

versículo 14 <strong>de</strong>screve a fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> divina que transforma o temor <strong>de</strong> Deus em um<br />

relacionamento filial e frutífero; 29 e o versículo 15 lhe assegura que Deus conhece todas as coisas<br />

<strong>de</strong> antemão, e nada fica esquecido. 30 Deus não tem empreendimentos abortivos, nem homens<br />

que ele tenha esquecido. Novamente Coelet <strong>de</strong>monstra, <strong>de</strong> passagem, que o <strong>de</strong>sespero que ele<br />

<strong>de</strong>screve não é o seu próprio, e nem precisa ser o nosso.<br />

Mas há muitos outros fatos acerca do mundo que ele precisa <strong>de</strong>stacar. Agora ele volta-se<br />

para o cenário da socieda<strong>de</strong> humana e a maneira <strong>de</strong> como nós exercemos o po<strong>de</strong>r.<br />

<strong>Eclesiastes</strong> 3:16-4:3 -<br />

A aspereza da vida<br />

3: 16 Vi ainda <strong>de</strong>baixo do sol que no lugar do juízo reinava a malda<strong>de</strong> e no lugar da justiça,<br />

malda<strong>de</strong> ainda.<br />

17 Então, disse comigo: Deus julgará o justo e o perverso; pois há tempo para todo propósito<br />

e para toda obra.<br />

18 Disse ainda comigo: é por causa dos filhos dos homens, para que Deus os prove, e eles<br />

vejam que são em si mesmos como os animais.<br />

19 Porque o que suce<strong>de</strong> aos filhos dos homens suce<strong>de</strong> aos animais; o mesmo lhes suce<strong>de</strong>:<br />

como morre um, assim morre o outro, todos têm o mesmo fôlego <strong>de</strong> vida, e nenhuma vantagem tem<br />

o homem sobre os animais; porque tudo é vaida<strong>de</strong>.<br />

20 Todos vão para o mesmo lugar; todos proce<strong>de</strong>m do pó e ao pó tornarão.<br />

21 Quem sabe se o fôlego <strong>de</strong> vida dos filhos dos homens se dirige para cima e o dos animais<br />

para baixo, para a terra?<br />

22 Pelo que vi não haver coisa melhor do que alegrar-se o homem nas suas obras, porque<br />

essa é a sua recompensa; quem o fará voltar para ver o que será <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>le?<br />

4: 1 Vi ainda todas as opressões que se fazem <strong>de</strong>baixo do sol: vi as lágrimas dos que foram<br />

oprimidos, sem que ninguém os consolasse; vi a violência na mão dos opressores, sem que ninguém<br />

consolasse os oprimidos.<br />

2 Pelo que tenho por mais felizes os que já morreram, mais do que os que ainda vivem;<br />

3 porém mais que uns e outros tenho por feliz aquele que ainda não nasceu e não viu as más<br />

obras que se fazem <strong>de</strong>baixo do sol.<br />

Não temos aqui propriamente uma mudança <strong>de</strong> assunto, pois a idéia <strong>de</strong> tempos<br />

29 Conf Sl 130:4, on<strong>de</strong> repousa sobre o perdão divino.<br />

30 O que se passou consi<strong>de</strong>ro uma referência ao passado. O “renovar-se” implica na ação <strong>de</strong> Deus para<br />

julgar ou para restaurar, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo da natureza do que é renovado. Outras interpretações consi<strong>de</strong>ram o<br />

que se passou como uma referência àquele que foi perseguido, tradução esta possível em muitos casos,<br />

mas que dificilmente seria apropriada aqui; ou consi<strong>de</strong>ram toda a frase como uma expressão da<br />

incansável busca <strong>de</strong> Deus dos acontecimentos no passado e, novamente, no futuro. A ERC diz: “Deus pe<strong>de</strong><br />

conta do que passou”.<br />

20


estabelecidos e do seu po<strong>de</strong>r sobre nós continua presente no versículo 17. Mas o problema da<br />

injustiça é <strong>de</strong>masiadamente comovente para ser tratado como simples ilustração <strong>de</strong>sse tema.<br />

Transforma-se num assunto à parte por um breve espaço <strong>de</strong> tempo no capítulo 4, e vai retornar<br />

<strong>de</strong> vez em quando em passagens posteriores. 31<br />

Primeiramente, entretanto, po<strong>de</strong>mos vê-lo na apresentação das inversões e súbitas<br />

mudanças <strong>de</strong> direção da vida, que são predominantes no capítulo 3. Pois se já uma coisa que<br />

clama por uma reviravolta é a injustiça. Eis aí finalmente alguma coisa obviamente proveitosa<br />

nas voltas e viravoltas <strong>de</strong> nossos negócios. O fato <strong>de</strong> que tudo na terra obe<strong>de</strong>ce à periodicida<strong>de</strong><br />

promete um fim ao longo inverno do mal e do <strong>de</strong>sgoverno. Reforça convicção puramente moral<br />

<strong>de</strong> que Deus julgará (v.17), sabendo que para este acontecimento, como para tudo o mais, ele já<br />

<strong>de</strong>signou uma época a<strong>de</strong>quada.<br />

Isso é muito bom, achamos nós; mas por que a <strong>de</strong>mora? Por que agora ainda não é o tempo<br />

a<strong>de</strong>quado para a justiça universal? A essa pergunta não enunciada, os versículos 18ss. dão uma<br />

resposta tipicamente dura, consi<strong>de</strong>rando que a nossa primeira necessida<strong>de</strong> não é ensinar a Deus<br />

o que ele <strong>de</strong>ve fazer, mas apren<strong>de</strong>r a verda<strong>de</strong> acerca <strong>de</strong> nós mesmos, uma lição que nós somos<br />

muito lentos em aceitar. (Mesmo o século vinte nos encontra ainda muito inclinados a negar a<br />

nossa malda<strong>de</strong> inata.) Portanto, quando o versículo 18 diz para que Deus os prove (ou melhor, os<br />

<strong>de</strong>smascare) 32 e eles vejam que são em si mesmos como animais, ficamos profundamente<br />

chocados. É verda<strong>de</strong> que o “como os animais” da ERAB é questionável. 33 Mas temos <strong>de</strong> admitir<br />

que totalmente à parte <strong>de</strong> nossas tendências par a cruelda<strong>de</strong> e para a sordi<strong>de</strong>z, que nos colocam<br />

em uma categoria ainda mais inferior, há pelo menos dois fatores que dão respaldo à acusação:<br />

a inclinação para a ganância e para a esperteza em nossos negócios (que é o assunto em<br />

discussão, versículo 16), e a mortalida<strong>de</strong> que os homens partilham com todas as criaturas da<br />

terra. O primeiro <strong>de</strong>stes tristes fatos reaparece no próximo capítulo; o segundo ocupa o restante<br />

<strong>de</strong>ste e recebe influências <strong>de</strong> outras partes do Antigo Testamento. o versículo 20, que nos<br />

apresenta o homem em sua caminhada do pó para o pó, como em Gênesis 3:19, confronta-nos<br />

com a Queda e coma ironia <strong>de</strong> que morremos como os animais porque nos imaginávamos<br />

<strong>de</strong>uses.<br />

Mas existe em nós alguma coisa que sobreviva a morte? Do seu ponto <strong>de</strong> vista privilegiado,<br />

<strong>Eclesiastes</strong> só po<strong>de</strong> respon<strong>de</strong>r: Quem sabe? 34 O fôlego <strong>de</strong> vida, ou o espírito, 35 nestes versículos é<br />

a vida que Deus dá tanto aos animais quanto aos homens, e cuja retirada resulta na morte, como<br />

diz o Salmo 104:29ss. Está claro que pelo menos isso temos em comum com os animais; mas se<br />

“espírito” implica em alguma coisa eterna para nós, ninguém po<strong>de</strong> chegar a uma conclusão<br />

apenas pela observação do texto aqui. 36<br />

Mas o eco do Salmo49, aquele que faz a mesma comparação entre os homens e os animais,<br />

nos faz lembrar que há uma resposta. O homem <strong>de</strong> fé po<strong>de</strong> dizer: “Mas Deus remirá a minha<br />

31 Veja 5:8ss; 8:10-15; 9:13-16; 10:5-7; 10:36ss<br />

32 A palavra para “provar” já parece ter o seu sentido posterior <strong>de</strong> “trazer à luz” (conf McNeile pg 64)<br />

33 O texto não precisa dizer nada mais além disso, que os homens agem como os animais, ou que são<br />

animais em certos sentidos indicados pelo contexto. Este versículo, um tanto difícil diz: “... para que Deus<br />

os prove (ou os exponha, veja nota anterior), e eles vejam que são em si mesmos como os animais.” No Sl<br />

14:2 quem vê a situação dos homens é Deus; aqui, ao contrário, o sujeito são as pessoas envolvidas (“e eles<br />

vejam”); mas uma mudança <strong>de</strong> vogal daria “mostrar” (como diz a BJ e a maioria das traduções mo<strong>de</strong>rnas<br />

seguindo a LXX ET AL.). As palavra “em si mesmos” foram interpretadas como erro <strong>de</strong> copista, uma vez<br />

que “animais” e “eles “ são palavras semelhantes; ou significando “entre si” (“<strong>de</strong>nunciá-los e mostrar que<br />

são animais uns para os outros”, BJ); ou, “<strong>de</strong> sua parte”; ou “em si mesmos” (Delitzsch). Eu me inclino a<br />

aceitar Delitzsch ou a BJ.<br />

34 Há versões, como a ERAB, que traduzem o versículo 21 como sendo uma afirmação implícita: “Quem<br />

sabe que o fôlego <strong>de</strong> vida (ou o espírito) dos filhos dos homens se dirige para cima”, etc. A vogal hebraica<br />

no começo <strong>de</strong> “se dirige” favorece esta versão (embora não <strong>de</strong> maneira exclusiva: veja o hebraico <strong>de</strong>, por<br />

exemplo, Nm 16:22; Lv 10:19), mas o hi que vem a seguir comprova o contrário. O ponto <strong>de</strong> vista<br />

geralmente <strong>de</strong>fendido por Coelet, e o presente contexto em particular, apóiam a tradução da ER: “Quem<br />

sabe se... ?”<br />

35 Ambas são traduções <strong>de</strong> ruah aqui (19, 21). Em Gn 2:7 foi usada uma palavra diferente para o hálito da<br />

vida que foi soprado nas narinas do homem no ato da criação.<br />

36 À primeira vista, Ec 12:7 respon<strong>de</strong> a esta pergunta. Mas não é preciso dizer mais do que foi dito em Sl<br />

104:29ss., que Deus dá e retira o hálito da vida <strong>de</strong> suas criaturas quando quer.<br />

21


alma do po<strong>de</strong>r da morte, pois ele me tomará para si” (Sl 49:15). É o homem “em sua ostentação”,<br />

o homem sem entendimento, que é “como os animais, que perecem”; 37 e este é o homem com o<br />

qual <strong>Eclesiastes</strong> se preocupa.<br />

Para tal pessoa o versículo 22 oferece o melhor que po<strong>de</strong> dar: a satisfação temporária <strong>de</strong><br />

executar bem o seu trabalho. Não é coisa <strong>de</strong> se <strong>de</strong>sprezar. A possibilida<strong>de</strong> é um legado <strong>de</strong> um<br />

mundo bem criado, como esclarece o versículo 13. Tudo o que está faltando (mas é virtualmente<br />

tudo) será a satisfação <strong>de</strong> aceitar esse trabalho como um dom do Criador (veja acima, versículo<br />

13), e oferecê-lo a ele.<br />

Com o capítulo 4:1-3 retornamos às opressões que se fazem <strong>de</strong>baixo do sol, assunto<br />

abordado em 3:16. A passagem é tão curta quanto dolorosa, pois se não há um meio <strong>de</strong> acabar<br />

com estas coisas (como na verda<strong>de</strong> ao existe, no tempo presente), pouco se po<strong>de</strong> acrescentar aos<br />

amargos fatos do versículo 1 além do lamento dos versículos 2 e 3. Talvez achemos que esta<br />

atitu<strong>de</strong> seja <strong>de</strong>rrotista, pois sempre há muita coisa que po<strong>de</strong> ser feita pelos que sofrem, quando<br />

queremos fazê-lo. Mas esta objeção dificilmente seria honesta. Coelet está observando a cena<br />

como um todo, e ele po<strong>de</strong> muito bem retrucar que após cada intervenção concebível ainda<br />

restariam inumeráveis bolsões <strong>de</strong> opressão nas “moradas <strong>de</strong> cruelda<strong>de</strong>” 38 – o suficiente para<br />

fazer os anjos chorarem, se não os homens. Ele po<strong>de</strong>ria acrescentar que não há coincidência<br />

alguma no fato <strong>de</strong> o po<strong>de</strong>r se encontrar do lado do opressor, uma vez que é o po<strong>de</strong>r que mais<br />

rapidamente <strong>de</strong>senvolve o hábito da opressão. Paradoxalmente, ele limita a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

uma reforma, porque quanto mais controle o reformador tiver, maior a tendência para a tirania.<br />

Assim um outro aspecto da vida terrena foi apresentado; e nada há mais triste em todo o<br />

livro do que a melancólica alusão, nos versículos 2 e 3, aos mortos e aos que ainda não nasceram,<br />

que são poupados da visão <strong>de</strong> tanta angústia. Isto é apropriado, pois embora <strong>de</strong> um modo geral<br />

<strong>Eclesiastes</strong> esteja preocupado com a frustração, aqui ele se ocupa como reino do mal, e como mal<br />

em sua chocante forma <strong>de</strong> cruelda<strong>de</strong>. Se a melancolia <strong>de</strong> Coelet nos choca excessivamente neste<br />

ponto, talvez <strong>de</strong>vamos nos perguntar se a nossa visão mais otimista brota da esperança e não da<br />

complacência. Se nós, os cristãos, vemos mais além do que ele se permitiu, não há motivos para<br />

nos pouparmos das realida<strong>de</strong>s do presente.<br />

<strong>Eclesiastes</strong> 4:4-8 -<br />

Corrida <strong>de</strong>senfreada<br />

4: 4 Então, vi que todo trabalho e toda <strong>de</strong>streza em obras provêm da inveja do homem<br />

contra o seu próximo. Também isto é vaida<strong>de</strong> e correr atrás do vento.<br />

5 O tolo cruza os braços e come a própria carne, dizendo:<br />

6 Melhor é um punhado <strong>de</strong> <strong>de</strong>scanso do que ambas as mãos cheias <strong>de</strong> trabalho e correr atrás<br />

do vento.<br />

7 Então, consi<strong>de</strong>rei outra vaida<strong>de</strong> <strong>de</strong>baixo do sol,<br />

8 isto é, um homem sem ninguém, não tem filho nem irmã; contudo, não cessa <strong>de</strong> trabalhar,<br />

e seus olhos não se fartam <strong>de</strong> riquezas; e não diz: Para quem trabalho eu, se nego à minha alma os<br />

bens da vida? Também isto é vaida<strong>de</strong> e enfadonho trabalho.<br />

Nesta pequena amostra <strong>de</strong> atitu<strong>de</strong>s para com o trabalho somos lembrados <strong>de</strong> alguns<br />

extremos, estranhos mas familiares. Primeiro, a ânsia competitiva. O versículo 4 não <strong>de</strong>ve sofrer<br />

tanta pressão, pois este escritor, como qualquer outro, <strong>de</strong>ve ter a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> apresentar os<br />

seus pontos com vigor. Po<strong>de</strong>remos tergiversar, se quisermos, lembrando-nos <strong>de</strong> pessoas tais<br />

como os párias solitários ou os lavradores necessitados, que lutam simplesmente pela<br />

sobrevivência, ou aqueles artistas que realmente amam a perfeição por amor a ela; mas<br />

permanece o fato <strong>de</strong> que gran<strong>de</strong> parte <strong>de</strong> nosso trabalho árduo e <strong>de</strong> nosso gran<strong>de</strong> esforço está<br />

misturada à ânsia <strong>de</strong> eclipsar os outros ou <strong>de</strong> não ser eclipsado. Até mesmo na rivalida<strong>de</strong> entre<br />

amigos isto exerce um papel maior do que possamos imaginar, pois po<strong>de</strong>mos até agüentar se<br />

37 Veja Sl 49:12,14,15 e 20. A ER e a BLH roubam do salmo o seu clímax, fazendo o versículo 20<br />

simplesmente repetir o v.12, quando no texto hebraico (e também na ERAB) há a frase: “O homem... sem<br />

entendimento”.<br />

38 Cf. Sl 74:20 (ERC)<br />

22


ultrapassados por algum tempo e por <strong>de</strong>terminadas pessoas, mas não com tanta regularida<strong>de</strong><br />

nem tão profundamente. Sentir-se um fracasso é <strong>de</strong>scobrir na alma a inveja que Coelet <strong>de</strong>tecta<br />

aqui, em sua patética forma <strong>de</strong> ressentimentos acalentados e queixumes autopiedosos. 39<br />

O segundo retrato (v.5) é pequeno e apresenta o extremo oposto: o indolente. Ele <strong>de</strong>spreza<br />

essas rivalida<strong>de</strong>s frenéticas. Mas recebe o seu verda<strong>de</strong>iro nome, tolo, pois a sua inércia é igual e<br />

oposta ao erro dos outros. Ele é o quadro da complacência e da auto<strong>de</strong>struição inconsciente, pois<br />

este comentário sobre ele <strong>de</strong>staca um prejuízo mais profundo do que o <strong>de</strong>sperdício do seu<br />

capital. Sua preguiça, além <strong>de</strong> acabar com o que ele tem, acaba também com o que ele é: <strong>de</strong>strói o<br />

seu autocontrole, o seu senso <strong>de</strong> realida<strong>de</strong>, a sua capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se cuidar e, finalmente, o seu<br />

auto-respeito.<br />

A estas duas formas infelizes <strong>de</strong> viver o versículo 6 apresenta uma alternativa sadia. A bela<br />

expressão um punhado <strong>de</strong> <strong>de</strong>scanso consegue transmitir a dupla idéia <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejos mo<strong>de</strong>stos e paz<br />

interior: uma atitu<strong>de</strong> tão distante da indolência egoísta do tolo quanto da luta <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>nada do<br />

diligente em busca da preeminência.<br />

“Dá-me a minha concha <strong>de</strong> quietu<strong>de</strong>,<br />

Meu cajado <strong>de</strong> fé para me apoiar,<br />

Minha dieta imortal <strong>de</strong> alegria,<br />

Meu cântaro <strong>de</strong> salvação,<br />

Minha veste <strong>de</strong> glória, real penhor da esperança,<br />

E assim vou iniciar<br />

A minha peregrinação” 40<br />

Mas se é que existe algo mais opressor do que a inveja, é o hábito, quando este se<br />

transforma em fixação. Os versículos 7e 8 <strong>de</strong>screvem o maníaco ganhador <strong>de</strong> dinheiro como<br />

alguém completamente <strong>de</strong>sumanizado, que se entregou à mera ganância e ao processo<br />

infindável <strong>de</strong> alimentá-la. Subitamente o escritor i<strong>de</strong>ntifica-se com tal homem, e nos leva a fazer<br />

o mesmo, através da pergunta: Para quem trabalho eu...? estas palavras aparecem sem serem<br />

anunciadas, como se expressassem o que a vida toda <strong>de</strong>sse homem está dizendo. Embora, a bem<br />

da clareza, estejamos examinando aqui a vida <strong>de</strong> um homem sem família, po<strong>de</strong>mos imaginar que<br />

a sua solidão não seja aci<strong>de</strong>ntal e que, além disse, ele não tenha amigos, vivendo como vive na<br />

sua rotina. Mesmo que tenha esposa e filhos, ele tem pouquíssimo tempo para lhes <strong>de</strong>dicar,<br />

convencido <strong>de</strong> que está lutando em benefício <strong>de</strong>les, embora o seu coração esteja em outro lugar,<br />

<strong>de</strong>dicado e enredado em seus projetos.<br />

À semelhança da rivalida<strong>de</strong> invejosa <strong>de</strong>scrita no versículo 4, este quadro <strong>de</strong> uma vida <strong>de</strong><br />

negócios solitária e sem sentido põe em cheque qualquer argumentação quanto às bênçãos do<br />

trabalho duro. Não é aqui que jaz a resposta para a frustração,e muito menos na indolência do<br />

versículo 8. Neste ponto Coelet parece fazer uma pausa em sua busca das coisas duradouras da<br />

vida, o que nos dá oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> olhar para trás e tornar a examinar o caminho que já<br />

percorremos com ele.<br />

Primeiro Resumo:<br />

Retrospectiva <strong>de</strong> <strong>Eclesiastes</strong> 1:1-4:8<br />

Até agora, em nossa perspectiva o cenário terreno, examinamos o que o mundo po<strong>de</strong><br />

oferecer em quatro ou cinco diferentes níveis. Começamos com uma impressão <strong>de</strong> sua total<br />

inquietu<strong>de</strong>, as repetições infinitas e inconclusivas que se acham na natureza e no cenário<br />

humano (1:1-11). Depois consi<strong>de</strong>ramos as satisfações dos diferentes estilos <strong>de</strong> vida, racionais e<br />

irracionais, frívolos e austeros: os prazeres da arte e do trabalho, da construção para o futuro<br />

(1:12-2:26). Se alguns <strong>de</strong>les têm alguma coisa para dar, nenhum sobrevive ao teste <strong>de</strong>cisivo da<br />

morte. Para encontrar alguma coisa que o tempo não <strong>de</strong>sfaça, temos <strong>de</strong> procurar em outro lugar.<br />

39 McNeile <strong>de</strong>staca que o Heb. Deste versículo simplesmente faz da inveja o predicado do trabalho e da<br />

<strong>de</strong>streza, isto é: “Então vi que... correspondia à inveja, etc”. Sendo incitado por ela e sendo um resultado<br />

<strong>de</strong>la. Muitas traduções mo<strong>de</strong>rnas (tais como a ERAB, a ER e a BLH) fazem da inveja o incentivo para o<br />

sucesso; e outras (como a ERC) fazem <strong>de</strong>la o efeito das realizações sobre os outros; o Heb. Deixa em aberto<br />

essas duas possibilida<strong>de</strong>s.<br />

40 Sir Walter Raleigh, “His Pilgrimage” (Sua Peregrinação)<br />

23


Mas o tempo, como foi apresentado no capítulo 3, além <strong>de</strong> ser inexorável, também nos faz flutuar<br />

ao sabor <strong>de</strong> marés e correntezas que são mais fortes do que nós. Não somos donos <strong>de</strong> nossas<br />

circunstâncias: nem sequer po<strong>de</strong>mos nos orientar <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>las.<br />

Uma nota mais sinistra insinua-se em 3:16 com o tema da tirania humana e sua cruelda<strong>de</strong>.<br />

É o fato amargo que faz da morte, mesmo no momento <strong>de</strong> maior <strong>de</strong>sespero, não mais o último<br />

inimigo, como a vimos no capítulo 2, mas o último amigo que nos resta.<br />

Finalmente vimos, em 4:4-8, não os per<strong>de</strong>dores nesta luta humana, mas os aparentes<br />

ganhadores e sobreviventes: aqueles que conseguiram ser por ela ou em si mesmos totalmente<br />

absorvidos. Ao que parece, estes entraram em um acordo com a vida. Mas será que receberam<br />

um prêmio duradouro? E será que a sua maneira <strong>de</strong> obtê-lo po<strong>de</strong>ria enfrentar uma inspeção? A<br />

expressão “corrida <strong>de</strong>senfreada” resume a idéia principal <strong>de</strong>stes versículos: uma rivalida<strong>de</strong><br />

frenética em um dos extremos, uma <strong>de</strong>sastrosa escolha no outro; e para os poucos que obtêm<br />

sucesso, uma vida <strong>de</strong>dicada à consecução <strong>de</strong> prêmios e mais prêmios sem significado algum.<br />

Após esta avaliação inclemente, será um alívio voltarmo-nos um pouco <strong>de</strong> nossa busca<br />

<strong>de</strong>sesperada por algo duradouro, para assuntos mais corriqueiros, pois a vida continua<br />

enquanto buscamos, e há maneiras melhores e piores <strong>de</strong> vivê-la. Pelo menos neste ponto<br />

po<strong>de</strong>mos ser sábios!<br />

Para começar, po<strong>de</strong>mos ser mais sensíveis do que os solitários e obsessivos ganhadores <strong>de</strong><br />

dinheiro que acabamos <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rar; e um padrão mais sábio do que o <strong>de</strong>les será o primeiro<br />

assunto dos comentários que se seguem acerca da vida.<br />

<strong>Eclesiastes</strong> 4:9-5:12 -<br />

Interlúdio: Algumas reflexões, máximas e verda<strong>de</strong>s<br />

Companheirismo<br />

4: 9 Melhor é serem dois do que um, porque têm melhor paga do seu trabalho.<br />

10 Porque se caírem, um levanta o companheiro; ai, porém, do que estiver só; pois, caindo,<br />

não haverá quem o levante.<br />

11 Também, se dois dormirem juntos, eles se aquentarão; mas um só como se aquentará?<br />

12 Se alguém quiser prevalecer contra um, os dois lhe resistirão; o cordão <strong>de</strong> três dobras não<br />

se rebenta com facilida<strong>de</strong>.<br />

Tendo examinado a pobreza do “solitário”, por maior que seja o seu sucesso exterior,<br />

agora vamos refletir sobre algo melhor; e melhor aqui será uma palavra-chave (4:9,13; 5:1,5), o<br />

que acontece com muita freqüência na avaliação <strong>de</strong> valores pelos escritores da Sabedoria.<br />

As idéias são simples e diretas; aplicam-se a muitas formas <strong>de</strong> companheirismo, inclusive<br />

(embora não explicitamente) ao casamento. Com uma brevida<strong>de</strong> graciosa elas <strong>de</strong>screvem o<br />

proveito, a elasticida<strong>de</strong>, o conforto 41 e a força que existem em uma verda<strong>de</strong>ira aliança; e por isso<br />

vale a pena aceitar suas exigências. Embora tais exigências não estejam explícitas aqui,<br />

dificilmente teríamos <strong>de</strong> expor os benefícios do companheirismo se este não envolvesse algum<br />

custo. Um preço óbvio é a in<strong>de</strong>pendência da pessoa: uma vez comprometida, ela tem <strong>de</strong><br />

consultar os interesses e a conveniência da outra, ouvir-lhe as idéias, ajustar-se ao seu modo <strong>de</strong><br />

andar e estilo <strong>de</strong> vida, e cumprir com as promessas. Quanto às recompensas, são todas benefícios<br />

conjuntos: um parceiro nunca haverá <strong>de</strong> explorar o outro.<br />

O cordão <strong>de</strong> três dobras talvez seja um lembrete <strong>de</strong> que o verda<strong>de</strong>iro companheirismo tem<br />

mais <strong>de</strong> uma forma. Embora os números, quando erradamente entendidos, possam ser divisivos<br />

e <strong>de</strong>sastrosos (veja o versículo 11), na sua forma certa, além <strong>de</strong> acrescentarem algo aos<br />

benefícios da união, também se multiplicam. Um exemplo óbvio <strong>de</strong>ste enriquecimento, e o<br />

predileto dos pregadores, é a força <strong>de</strong> um casamento, ou <strong>de</strong> qualquer aliança humana, quando<br />

Deus é o fio mestre que faz com eles o cordão triplo. Mas talvez o escritor estivesse pensando<br />

mais nesta metáfora em termos puramente humanos, <strong>de</strong> modo que, se aplicada ao casamento, o<br />

41 O versículo 11 po<strong>de</strong>ria aplicar-se ao casamento, mas possivelmente aplica-se mais aos viajantes que<br />

dormem ao relento. Barton observa que “as noites na Palestina são frias..., e o viajante solitário dorme às<br />

vezes unto <strong>de</strong> sua montaria para se aquecer na falta <strong>de</strong> outra companhia.”<br />

24


terceiro fio seria mais apropriadamente os filhos, com tudo o que eles acrescentam á qualida<strong>de</strong> e<br />

à força do laço original. Mesmo assim provavelmente estejamos sendo mais específicos do que<br />

ele pretendia que fôssemos.<br />

Aplausos populares<br />

4: 13 Melhor é o jovem pobre e sábio do que o rei velho e insensato, que já não se <strong>de</strong>ixa<br />

admoestar,<br />

14 ainda que aquele saia do cárcere para reinar ou nasça pobre no reino <strong>de</strong>ste.<br />

15 Vi todos os viventes que andam <strong>de</strong>baixo do sol com o jovem sucessor, que ficará em lugar<br />

do rei.<br />

16 Era sem conta todo o povo que ele dominava; tampouco os que virão <strong>de</strong>pois se hão <strong>de</strong><br />

regozijar nele. Na verda<strong>de</strong>, que também isto é vaida<strong>de</strong> e correr atrás do vento.<br />

Este parágrafo tem pontos obscuros, mas <strong>de</strong>screve uma coisa bastante familiar na vida<br />

pública: a popularida<strong>de</strong> efêmera dos gran<strong>de</strong>s. Apresenta as faltas <strong>de</strong> ambos os lados, começando<br />

com a teimosia do homem há muito tempo montado na sela, que ao se <strong>de</strong>ixa tocar e que já não<br />

tem mais a simpatia da nova geração, esquecido <strong>de</strong> como é ser jovem, fogoso e impaciente, como<br />

ele mesmo já foi. 42 Há muita semelhança com Davi no começo e no final <strong>de</strong> sua vida, para que<br />

reflitamos no fato <strong>de</strong> que os melhores homens po<strong>de</strong>m acabar assim sem que o percebam. MS o<br />

retrato não tema intenção <strong>de</strong> ser histórico.<br />

Po<strong>de</strong> acontecer que um homem melhor o suplante e venha a ser melhor se tiver as<br />

qualida<strong>de</strong>s certas, ainda que lhe falte ida<strong>de</strong> ou posição, como o versículo 13a <strong>de</strong>staca. Coelet,<br />

com o seu jeito <strong>de</strong> nos presentear uma cena vivamente colorida, <strong>de</strong>screve a enorme massa <strong>de</strong><br />

homens, e a vê do lado 43 do recém-chegado, que é jovem, sendo ela em quantida<strong>de</strong> incontável.<br />

Ele mesmo acaba seguindo o caminho do velho rei, não necessariamente pelas faltas que<br />

comete, mas simplesmente porque o tempo e a familiarida<strong>de</strong>, assim como a inquietu<strong>de</strong> dos<br />

homens, acabam por fazê-lo per<strong>de</strong>r o interesse. Ele atingiu o pináculo da glória humana apenas<br />

para ser abandonado ali. Este é contudo mais um processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>gradação humana, das<br />

realizações que finalmente se revelam vazias.<br />

Conversa piedosa<br />

5: 1 Guarda o pé, quando entrares na Casa <strong>de</strong> Deus; chegar-se para ouvir é melhor do que<br />

oferecer sacrifícios <strong>de</strong> tolos, pois não sabem que fazem mal.<br />

2 Não te precipites com a tua boca, nem o teu coração se apresse a pronunciar palavra<br />

alguma diante <strong>de</strong> Deus; porque Deus está nos céus, e tu, na terra; portanto, sejam poucas as tuas<br />

palavras.<br />

3 Porque dos muitos trabalhos vêm os sonhos, e do muito falar, palavras néscias.<br />

4 Quando a Deus fizeres algum voto, não tar<strong>de</strong>s em cumpri-lo; porque não se agrada <strong>de</strong><br />

tolos. Cumpre o voto que fazes.<br />

5 Melhor é que não votes do que votes e não cumpras.<br />

6 Não consintas que a tua boca te faça culpado, nem digas diante do mensageiro <strong>de</strong> Deus<br />

que foi inadvertência; por que razão se iraria Deus por causa da tua palavra, a ponto <strong>de</strong> <strong>de</strong>struir as<br />

obras das tuas mãos?<br />

7 Porque, como na multidão dos sonhos há vaida<strong>de</strong>, assim também, nas muitas palavras; tu,<br />

porém, teme a Deus.<br />

Prosseguindo com um interlúdio <strong>de</strong> retratos, Coelet volta aos olhos observadores para o<br />

42 As opiniões diferem quanto àquele que conheceu a prisão e a pobreza (v.140: se é o rei velho (como eu<br />

penso) ou se é o jovem nobre e sábio que o suplanta. Se é este último, então o versículo 15 apresenta-o<br />

espoliado por sua vez, já que o jovem é literalmente “o segundo jovem”; ou “o jovem sucessor”, (como<br />

traduzido na ERAB) isto é, o jovem rival do velho rei.<br />

43 A expressão literal é “com o jovem”. “Com” po<strong>de</strong> significar tanto “assim como” ou “junto com”. Este<br />

último sentido nos prepara melhor para a preeminência que o jovem <strong>de</strong>sfruta no versículo seguinte. Já a<br />

BLH <strong>de</strong>sperta um interesse maior, parafraseando: “Eu pensei em todas as pessoas que vivem neste mundo<br />

e imaginei que existe, entre elas, em algum lugar, um moço que tomara o lugar do rei”; mas é ir longe<br />

<strong>de</strong>mais.<br />

25


homem como adorador. Tal fomo os profetas, ele insiste na sincerida<strong>de</strong> nesta área; mas o seu<br />

tom é calmo, embora suas palavras sejam afiadas com a navalha. Enquanto os profetas proferem<br />

com veemência suas invectivas contra os maus e os hipócritas, o alvo do escritor é a pessoa bem<br />

intencionada que gosta <strong>de</strong> cantar e <strong>de</strong> ir à igreja, mas que ouve com um ouvido só e nunca faz o<br />

que se propõe fazer para Deus.<br />

Esse homem esqueceu-se <strong>de</strong> on<strong>de</strong> está e <strong>de</strong> quem ele é; acima <strong>de</strong> todas as coisas,<br />

esqueceu-se <strong>de</strong> quem Deu sé. A palavra tolo(s), várias vezes repetida é <strong>de</strong>nunciadora, pois ser<br />

negligente com Deus é um mal (v.1), uma culpa (v.6) e uma provocação que não ficará impune<br />

(v.6b). se nós nos sentirmos tentados a <strong>de</strong>ixar isto <strong>de</strong> lado por ser parte da severida<strong>de</strong> do Antigo<br />

Testamento, o Novo Testamento vai nos <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong>sconcertados com suas advertências contra<br />

palavras piedosas sem significado, ou para com a nossa maneira <strong>de</strong> lidar levianamente com as<br />

coisas sagradas (Mt 7:21ss.; 23:16ss.; 1Co 11;27ss.). nenhuma ênfase na graça po<strong>de</strong> justificar<br />

qualquer tomada <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>s com Deus, pois no próprio conceito da graça existe gratidão; e a<br />

gratidão não po<strong>de</strong> ser negligente.<br />

Ao repassarmos estes versículos com mais cuidado, somos advertidos nas primeiras<br />

palavras (com o equivalente à nossa expressão “Cuidado!”), <strong>de</strong> como Deus se esmerou em<br />

guardar o limiar <strong>de</strong> sua porta aqui na terra nos tempos antigos, até mesmo com a ameaça <strong>de</strong><br />

morte (“para que não morram nelas, ao contaminar o meu tabernáculo”, Lv 15:31). Num certo<br />

nível, isto nos torna claro o preço <strong>de</strong> nossa admissão no “santuário celestial” e a pureza que é<br />

exigida <strong>de</strong> nós (“pelo sangue <strong>de</strong> Jesus... purificados... e lavado o corpo com água pura”, Hb<br />

10:19ss), enquanto em um outro nível nos faz enten<strong>de</strong>r a consi<strong>de</strong>ração que <strong>de</strong>veríamos ter para<br />

com a igreja <strong>de</strong> Deus, o templo vivo. 44<br />

Ouvir (v.1b) tem uma força dupla no hebraico: prestar atenção e obe<strong>de</strong>cer. Portanto esta<br />

advertência nos lembra as famosas palavras <strong>de</strong> Samuel: “Eis que o obe<strong>de</strong>cer é melhor do que<br />

sacrificar” (1Sm 15:22). Aqui, entretanto, o culto inexpressivo não é premeditado; o pecado é<br />

mais do tolo 45 do que do velhaco, se é que isso melhora a situação! Coelet dificilmente nos<br />

encorajaria a pensar assim: o seu lembrete <strong>de</strong> que Deus não se agrada <strong>de</strong> tolos (v.4) é uma<br />

observação tão calmamente esmagadora quanto qualquer outra do livro.<br />

Dois provérbios <strong>de</strong>stacam a questão ligando a conversa dos tolos coma irrealida<strong>de</strong> dos<br />

sonhos. O elo é um tanto impalpável no versículo 3, e menos ainda no versículo 7, on<strong>de</strong> os<br />

sonhos parecem ser divagações que reduzem o culto a um ato puramente mecânico. O versículo<br />

3 parece significar que, pela sua própria quantida<strong>de</strong>, o excesso <strong>de</strong> palavras acaba em asneiras,<br />

exatamente como o excesso <strong>de</strong> trabalho acaba em pesa<strong>de</strong>los. 46 Tais palavras nos confrontam<br />

com o fato <strong>de</strong> que os tolos não são um <strong>de</strong>terminado tipo <strong>de</strong> pessoas, mas sim pessoas que se<br />

comportam <strong>de</strong> um <strong>de</strong>terminado jeito. No contexto do culto, é como <strong>de</strong>spejar uma avalanche <strong>de</strong><br />

frases piedosas que zombam <strong>de</strong> nosso Soberano (v.2) e ultrapassam nossos verda<strong>de</strong>iros<br />

pensamentos e intenções. Se formos eventualmente interrogados sobre o que dissemos na<br />

igreja, nossas justificativas soarão tão <strong>de</strong>feituosas quanto as palavras <strong>de</strong> um gozador ou <strong>de</strong> um<br />

mentiroso. 47<br />

Predadores oficiais<br />

5: 8 Se vires em alguma província opressão <strong>de</strong> pobres e o roubo em lugar do direito e da<br />

justiça, não te maravilhes <strong>de</strong> semelhante caso; porque o que está alto tem acima <strong>de</strong> si outro mais<br />

alto que o explora, e sobre estes há ainda outros mais elevados que também exploram.<br />

9 O proveito da terra é para todos; até o rei se serve do campo.<br />

44 Cf 1Co 3:16ss.; Ef 2:19ss.; 1Pe 2:5<br />

45 Sacrificio <strong>de</strong> tolos dá o sentido exato, mas a frase é mais exatamente “é melhor do que os sacrifícios que<br />

os tolos po<strong>de</strong>riam oferecer” (McNeile)<br />

46 Uma alternativa sugerida é que um sonho consiste <strong>de</strong> (“vem na forma <strong>de</strong>”) muitos trabalhos (isto é, uma<br />

torrente <strong>de</strong> acontecimentos e imagens), e a voz <strong>de</strong> um tolo consiste <strong>de</strong> uma torrente <strong>de</strong> palavras. Barton<br />

inclina-se para esta sugestão <strong>de</strong> T. Tyler, mas duvida que trabalho possa ter este significado.<br />

47 O mensageiro do versículo 6 tem sido interpretado <strong>de</strong> diversas maneiras: como “o anjo” (cf. a ERC e a<br />

ER) pois a língua Heb. Não distingue entre os mensageiros terrestres e celestes; como sacerdote (BLH; cf.<br />

Ml 2:27); como um funcionário do templo enviado para cobrar dívidas e impostos; e como o próprio Deus<br />

(cf a expressão “o anjo do Senhor”, usada neste sentido). Seja qual for o sentido, o ponto em questão é o<br />

pecado que a sua chegada <strong>de</strong>nuncia.<br />

26


Assim continuam as reflexões sobre como enfrentar as condições da vida <strong>de</strong> maneira<br />

realista. Agora, Coelet passa a fazer uma avaliação da burocracia. O quadro, senão é <strong>de</strong> todo<br />

universal, não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser bastante familiar. O vislumbre <strong>de</strong>sse panorama <strong>de</strong> autorida<strong>de</strong>s<br />

sugere possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> subterfúgios kafkanianos, para <strong>de</strong>sconcertar o cidadão que insiste em<br />

seus direitos: ele po<strong>de</strong> acabar sendo obstruído e <strong>de</strong>rrotado. Quanto à responsabilida<strong>de</strong> mora, ela<br />

po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong>ixada <strong>de</strong> lado com a mesma facilida<strong>de</strong>. Cada funcionário po<strong>de</strong> acusar o sistema,<br />

enquanto as autorida<strong>de</strong>s máximas governam a uma distância infinita das vidas que afetam. Mas<br />

Coelet <strong>de</strong>staca outro aspecto da burocracia: sua autoconcentração predatória, cada funcionário<br />

mantendo um olho malicioso sobre aquele que o segue na lista. 48 Delitzsch <strong>de</strong>screve este<br />

processo no antigo império persa! “O sátrapa ficava na li<strong>de</strong>rança dos governadores <strong>de</strong> estado.<br />

Em muitos casos, ele espoliava a província em seu próprio proveito. Mas acima do sátrapa<br />

ficavam os inspetores, que freqüentemente faziam a sua própria fortuna através <strong>de</strong> <strong>de</strong>núncias<br />

fatais; e acima <strong>de</strong> todos ficava o rei, ou melhor, a corte, com rivalida<strong>de</strong>s intrigantes entre os<br />

cortesãos e as mulheres reais.” 49 Não é <strong>de</strong> admirar que o cidadão da base <strong>de</strong> uma tal estrutura<br />

achasse que a justiça era um luxo que ele não podia almejar.<br />

De acordo com o ponto <strong>de</strong> vista do livro, o comentário sobre o assunto é seco e realista.<br />

Afinal, se estamos consi<strong>de</strong>rando o mundo em seus próprios termos <strong>de</strong> completo secularismo,<br />

não po<strong>de</strong>mos esperar ser a moral muito elevada quer do sistema que encontramos no po<strong>de</strong>r,<br />

quer <strong>de</strong> qualquer outra parte. Com todo este ódio contra a injustiça, Coelet não coloca<br />

esperanças em algum esquema utópico ou em uma revolução. Ele sabe o que existe <strong>de</strong>ntro do<br />

homem.<br />

Por isso o seu primeiro comentário é não te maravilhes <strong>de</strong> semelhante caso, e acaba<br />

concluindo que até mesmo a tirania é melhor do que a anarquia. O <strong>de</strong>staque do versículo 9 50<br />

parece ser que nada se ganharia caso se retornasse à estrutura simples dos velhos dias nôma<strong>de</strong>s.<br />

Um país <strong>de</strong>senvolvido precisa da força <strong>de</strong> um governo central, mesmo envolvendo o fardo do<br />

funcionalismo.<br />

Dinheiro<br />

5: 10 Quem ama o dinheiro jamais <strong>de</strong>le se farta; e quem ama a abundância nunca se farta da<br />

renda; também isto é vaida<strong>de</strong>.<br />

11 On<strong>de</strong> os bens se multiplicam, também se multiplicam os que <strong>de</strong>les comem; que mais<br />

proveito, pois, têm os seus donos do que os verem com seus olhos?<br />

12 Doce é o sono do trabalhador, quer coma pouco, quer muito; mas a fartura do rico não o<br />

<strong>de</strong>ixa dormir.<br />

O assunto <strong>de</strong>stas reflexões é um dos mais constrangedores para nós, como Jesus <strong>de</strong>u a<br />

enten<strong>de</strong>r ao advertir-nos contra o fazer <strong>de</strong> mamom um segundo Deus. Os três ditados expressam<br />

o fato como ele realmente é, <strong>de</strong>stacando a ânsia que ele gera, os parasitas que atrai e a dispepsia<br />

que é a sua típica recompensa.<br />

O versículo 10 é um clássico sobre o amor ao dinheiro, um bom companheiro <strong>de</strong> 1 Timóteo<br />

6:9ss. com suas famosas palavras acerca das conseqüências morais e espirituais <strong>de</strong>sse amor.<br />

Aqui o interesse é psicológico, embora a observação final, também isto é vaida<strong>de</strong>, nos dê a lição<br />

máxima que <strong>de</strong>vemos apren<strong>de</strong>r. A gana implacável que <strong>de</strong>sperta é muito óbvia no jogador, no<br />

magnata e no bem-pago materialista que nunca tem o suficiente, pois o amor ao dinheiro cresce<br />

na proporção com que é alimentado. Mas essa gana po<strong>de</strong> apresentar-se <strong>de</strong> maneira mais sutil, na<br />

48 A ERC torna o V.8b um tanto ameno (“porque o que mais alto é do que os altos para isso atenta”), mas a<br />

ER acha-se mais próxima do hebraico literal (“Pois quem está altamente colocado tem superior que o<br />

vigia; e há mais altos ainda sobre eles”). O plural “mais altos” po<strong>de</strong>ria ser um plural <strong>de</strong> majesta<strong>de</strong> e referirse<br />

ao rei ou a Deus; mas neste caso, <strong>de</strong>veria ser expresso com maior clareza. Quanto ao verbo, “vigia”<br />

implica em proteção; mas também po<strong>de</strong> ter um sentido hostil (“explora”) como na ERAB (cf 1Sm 19:11)<br />

49 Delitzsch, ad loc.<br />

50 Nenhuma traduçãod este versículo recebeu aprovação geral. Alguns comentaristas encontram nele o<br />

louvor a um rei que, tal como Uzias, gostava da lavoura; outros vêem que até mesmo um déspota <strong>de</strong>pen<strong>de</strong><br />

do solo (cf. ERAB, ER, ERC, BLH). Algumas <strong>de</strong>stas variações surgem com a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se anexar a<br />

palavra “servir” tanto ao “rei” como (no sentido <strong>de</strong> “cultivado”) ao “campo”. A pontuação massorética<br />

indica este último caso.<br />

27


forma <strong>de</strong> um <strong>de</strong>scontentamento geral: um <strong>de</strong>sejo não necessariamente <strong>de</strong> mais dinheiro, mas <strong>de</strong><br />

satisfação interior. Se existe coisa pior do que o vício gerado pelo dinheiro é o vazio que ele <strong>de</strong>ixa<br />

na vida das pessoas. O homem, com a eternida<strong>de</strong> no coração, precisa <strong>de</strong> um alimento melhor do<br />

que esse.<br />

O segundo dos três ditados (versículo 11) parece referir-se não apenas à complexa<br />

instituição que <strong>de</strong> certa forma cresce com o aumento da riqueza, mas também ao enxame <strong>de</strong><br />

parasitas. Sobre estes há uma profecia tragicômica em Isaías 22:23ss., que promete um alto<br />

cargo a um certo cortesão, mas adverte-o <strong>de</strong> que vai se ver <strong>de</strong>sastrosamente sobrecarregado:<br />

“Nele pendurarão toda responsabilida<strong>de</strong> da casa <strong>de</strong> seu pai”, aqueles que buscam numa posição;<br />

e o profeta, entusiasmando-se com o assunto, <strong>de</strong>screve tal homem como um cabi<strong>de</strong> em que se<br />

pendurou quase a meta<strong>de</strong> dos utensílios da cozinha, até que o cabi<strong>de</strong> e tudo o que contém vem<br />

abaixo. Nesse versículo, porém, não temos tal clímax; apenas a ironia <strong>de</strong> ter <strong>de</strong> viver o próprio<br />

prestígio e um pouquinho mais.<br />

O terceiro ditado sobre o dinheiro (v.12) tem como exemplo qualquer situação em que a<br />

riqueza e a indulgência dão-se as mãos. Aqui o rico não consegue dormi,não por causa do<br />

excesso <strong>de</strong> trabalho, como em 2:23, ou <strong>de</strong>vido à preocupação, como dá a enten<strong>de</strong>r a BLH (“o rico<br />

se preocupa tanto com as coisas que possui, que nem consegue dormir”). Não, simplesmente é<br />

porque come <strong>de</strong>mais, como bem coloca a ER (“a sacieda<strong>de</strong> do rico...”).<br />

Sejam quais forem os <strong>de</strong>sconfortos do trabalhador, este ele não terá. E sejam quais forem<br />

os fardos que Adão recebeu na Queda, havia na sentença uma dura misericórdia: “No suor do<br />

rosto comerás o pão”. Quanto a isto, há um comentário inconsciente nos nossos mo<strong>de</strong>rnos<br />

aparelhos <strong>de</strong> fazer exercícios e nas aca<strong>de</strong>mias <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, pois eles são um dos nossos absurdos<br />

humanos: jogamos fora dinheiro e esforço apenas para <strong>de</strong>sfazer os estragos causados pelo<br />

dinheiro e pelo conforto.<br />

<strong>Eclesiastes</strong> 5:13-6:12 -<br />

A amargura do <strong>de</strong>sapontamento<br />

No capítulo quarto, e na meta<strong>de</strong> <strong>de</strong>ste capítulo quintão <strong>de</strong> <strong>Eclesiastes</strong>, ocupamo-nos mais<br />

com o viver <strong>de</strong> maneira sensata no mundo como o encontramos (inclusive no mundo <strong>de</strong> nossas<br />

obrigações religiosas) do que com a preocupação quanto a se estamos conseguindo alguma coisa<br />

ou não. O problema ainda continua, refletido duas vezes no comentário “também isto é vaida<strong>de</strong>”<br />

(4:16; 5:10); agora ele torna-se novamente o centro das atenções enquanto Coelet cita algumas<br />

das amargas anomalias da vida. Ele conclui o capítulo6 – e com isso a primeira meta<strong>de</strong> do livro –<br />

enfatizando a pergunta que aparentemente já havia respondido antes: “Pois quem sabe o que é<br />

bom para o homem... <strong>de</strong>baixo do sol?”<br />

O choque<br />

5: 13 Grave mal vi <strong>de</strong>baixo do sol: as riquezas que seus donos guardam para o próprio dano.<br />

14 E, se tais riquezas se per<strong>de</strong>m por qualquer má aventura, ao filho que gerou nada lhe fica<br />

na mão.<br />

15 Como saiu do ventre <strong>de</strong> sua mãe, assim nu voltará, indo-se como veio; e do seu trabalho<br />

nada po<strong>de</strong>rá levar consigo.<br />

16 Também isto é grave mal: precisamente como veio, assim ele vai; e que proveito lhe vem<br />

<strong>de</strong> haver trabalhado para o vento?<br />

17 Nas trevas, comeu em todos os seus dias, com muito enfado, com enfermida<strong>de</strong>s e<br />

indignação.<br />

Um exemplo em miniatura coloca-nos agora face a face com a frustração; este autor<br />

prefere nos apresentar exemplos da própria vida e não apenas abstrações. Aqui, então, temos<br />

um homem que per<strong>de</strong> todo o seu dinheiro <strong>de</strong> um só golpe, <strong>de</strong>ixando a família <strong>de</strong>samparada. Isto<br />

até teria sentido se fosse um castigo para negócios ilícitos (“os bens que facilmente se ganham” e<br />

28


que merecem <strong>de</strong>saparecer, Pv 13:11), ou se fosse a fortuna ganha em jogos <strong>de</strong> azar 51 em vez das<br />

economias <strong>de</strong> um pai <strong>de</strong> família; ou, então, se fosse dinheiro perdido no jogo e não um fracasso<br />

nos negócios. 52 Mas, na verda<strong>de</strong>, trata-se <strong>de</strong> dinheiro ganho com trabalho e preocupações. A vida<br />

<strong>de</strong>le foi duplamente <strong>de</strong>sperdiçada, primeiro ganhando, <strong>de</strong>pois per<strong>de</strong>ndo. E, se este é um caso<br />

extremo, também nós enfrentamos algo parecido: todos nós partiremos tão nus quanto<br />

chegamos. “Mas isto não é justo!”, po<strong>de</strong>ríamos dizer. A reação do próprio Coelet não é tão<br />

impetuosa, pois ele está principalmente <strong>de</strong>stacando o que acontece, e não o que <strong>de</strong>veria<br />

acontecer, em u mundo no qual não po<strong>de</strong>mos ditar or<strong>de</strong>ns nem criar raízes. “Um mal fatal” 53<br />

talvez seja a tradução mais aproximada <strong>de</strong> sua expressão. Foi assim que ele apresentou o<br />

assunto (v.13); e agora ele repete: “é grave mal... e que proveito lhe vem <strong>de</strong> haver trabalhado<br />

para o vento?” (v.16).<br />

Neste ponto convém lembrar que esse homem talvez quisesse da vida mais do que ela lhe<br />

podia dar. Se os seus planos eram feitos apenas com base no que estava ao seu alcance e no que<br />

lhe prometia alguma segurança, então ele estava olhando na direção errada. Assim o parágrafo<br />

final vai nos acalmar, falando agora da vida em termos muito diferentes.<br />

Um caminho mais excelente<br />

5: 18 Eis o que eu vi: boa e bela coisa é comer e beber e gozar cada um do bem <strong>de</strong> todo o seu<br />

trabalho, com que se afadigou <strong>de</strong>baixo do sol, durante os poucos dias da vida que Deus lhe <strong>de</strong>u;<br />

porque esta é a sua porção.<br />

19 Quanto ao homem a quem Deus conferiu riquezas e bens e lhe <strong>de</strong>u po<strong>de</strong>r para <strong>de</strong>les<br />

comer, e receber a sua porção, e gozar do seu trabalho, isto é dom <strong>de</strong> Deus.<br />

20 Porque não se lembrará muito dos dias da sua vida, porquanto Deus lhe enche o coração<br />

<strong>de</strong> alegria.<br />

À primeira vista isto talvez pareça um mero elogio à simplicida<strong>de</strong> e à mo<strong>de</strong>ração. Mas, <strong>de</strong><br />

fato, a palavra-chave é Deus, e o segredo da vida que nos é apresentado é a abertura para com<br />

ele: uma disposição <strong>de</strong> aceitar tudo como vindo do céu, quer seja trabalho ou riqueza, ou ambos.<br />

Isto é mais do que boa e bela cousa (v.18): mais literalmente, é “uma coisa boa que é bela”.<br />

Novamente, uma nota positiva aparece, e no final do capítulo captamos um vislumbre do homem<br />

por quem a vida passa rapidamente, não porque ela é curta e sem sentido, mas porque, pela<br />

graça <strong>de</strong> Deus, ele a acha completamente arrebatadora. Este será o tema dos capítulos finais;<br />

antes, porém ainda há algo mais a ser explorado na experiência humana e em suas duras<br />

realida<strong>de</strong>s.<br />

Tantalização<br />

6: 1 Há um mal que vi <strong>de</strong>baixo do sol e que pesa sobre os homens:<br />

2 o homem a quem Deus conferiu riquezas, bens e honra, e nada lhe falta <strong>de</strong> tudo quanto a<br />

sua alma <strong>de</strong>seja, mas Deus não lhe conce<strong>de</strong> que disso coma; antes, o estranho o come; também isto<br />

é vaida<strong>de</strong> e grave aflição.<br />

3 Se alguém gerar cem filhos e viver muitos anos, até avançada ida<strong>de</strong>, e se a sua alma não se<br />

fartar do bem, e além disso não tiver sepultura, digo que um aborto é mais feliz do que ele;<br />

4 pois <strong>de</strong>bal<strong>de</strong> vem o aborto e em trevas se vai, e <strong>de</strong> trevas se cobre o seu nome;<br />

5 não viu o sol, nada conhece. Todavia, tem mais <strong>de</strong>scanso do que o outro,<br />

6 ainda que aquele vivesse duas vezes mil anos, mas não gozasse o bem. Porventura, não vão<br />

todos para o mesmo lugar?<br />

Imediatamente <strong>de</strong>paramo-nos com o fato <strong>de</strong> que o “po<strong>de</strong>r” <strong>de</strong> <strong>de</strong>sfrutar os dons <strong>de</strong> Deus,<br />

que nos foi apresentado em 5:19, é em si mesmo um dom que po<strong>de</strong> ou não nos ser concedido.<br />

Po<strong>de</strong>mos ser privados <strong>de</strong>le <strong>de</strong> diversas maneiras. Em 5:13ss., temos o fracasso nos negócios:<br />

aqui tudo foi sacrificado por um futuro que nunca se concretizou. Para este homem nunca houve<br />

51 Cf Pv 11:24-26 sobre a infeliz influência disso; e 28:22 sobre sua transitorieda<strong>de</strong>.<br />

52 Aventura (v.14) não implica necessariamente em risco; é a palavra traduzida por “trabalho” em 1:13;<br />

3:10; 5:3 (Heb 2), etc.<br />

53 Lit. “doença”. Implica em problema que é perturbador e esta profundamente enraizado.<br />

29


uma manha. Mas a vida po<strong>de</strong> ter longos períodos <strong>de</strong> brilho e <strong>de</strong> alegria, e ainda assim sucumbir<br />

em trevas, que parecerão ainda mais profundas por causa da luz que <strong>de</strong>sfizeram. O homem do<br />

versículo 2, exatamente por ser notável, tem mais a per<strong>de</strong>r do que o lerdo que nunca chega a<br />

nada. E ele po<strong>de</strong> muito bem per<strong>de</strong>r tudo sem ter culpa alguma: é só vir a guerra, a enfermida<strong>de</strong><br />

ou a injustiça e lançar tudo no colo <strong>de</strong> outra pessoa. Se ele é atormentado, também o são aqueles<br />

que têm riqueza material e pobreza interior, pois o problema não é simplesmente que alguns<br />

bens são menos satisfatórios que outros, o que sem dúvida acontece, ou que estes nos são dados<br />

escassamente. Uma pessoa po<strong>de</strong> ter tudo que os homens sonham (o que nos termos do Antigo<br />

Testamento significava filhos às <strong>de</strong>zenas e anos <strong>de</strong> vida aos milhares) e ainda assim partir sem<br />

ser percebido ou lamentado 54 e sem ter satisfação.<br />

A esta altura po<strong>de</strong>mos protestar dizendo que afinal <strong>de</strong> contas a fida não é tão negra assim<br />

para a maioria das pessoas. Normalmente, po<strong>de</strong>mos aceitar as dificulda<strong>de</strong>s junto com as<br />

alegrias, achando que a vida <strong>de</strong>cididamente vale a pena ser vivida. É claro que isto é verda<strong>de</strong> e<br />

está muito bem fundamentado, se somos homens <strong>de</strong> fé como aqueles que conhecemos no final<br />

do capítulo cinco. Mesmo que não o sejamos, ainda assim po<strong>de</strong>mos viver satisfeitos, como<br />

milhares <strong>de</strong> pessoas vivem, sem nos preocupar com o significado final das coisas.<br />

A isto Coelet po<strong>de</strong>ria respon<strong>de</strong>r, primeiramente, que ele está falando <strong>de</strong> algumas pessoas e<br />

não <strong>de</strong> todas; e, em segundo lugar, que se nós não estamos interessados em significados e<br />

valores, outras pessoas estão – e quem somos nós para <strong>de</strong>scartar essa responsabilida<strong>de</strong>? Mais<br />

uma vez ele nos convida a pensar, e particularmente a pensar através da posição do secularista.<br />

Se esta vida é tudo, oferecendo a algumas pessoas mais frustração do que satisfação e nada lhes<br />

<strong>de</strong>ixando para dar àqueles que <strong>de</strong>las <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m; se, além disso, todos igualmente aguardam a<br />

sua vez <strong>de</strong> ser esquecidos (v.6c) então alguns realmente po<strong>de</strong>m invejar os natimortos, que<br />

tiveram mais proveito. Em certas horas, Jó e Jeremias teriam concordado com isso<br />

fervorosamente (Jó 3; Jr 20:14ss.); e se nós discordamos coma disposição <strong>de</strong> espírito <strong>de</strong>sses dois<br />

homens é porque julgamos suas vidas pelos valores que transcen<strong>de</strong>m a morte e que ultrapassam<br />

os sofrimentos e os prazeres <strong>de</strong>sta vida, um critério que o secularista não po<strong>de</strong> logicamente usar.<br />

Tudo isto estraga qualquer quadro cor-<strong>de</strong>-rosa que se tenha do mundo; a BLH <strong>de</strong>staca isso<br />

dizendo “tenho visto outra coisa muito triste que acontece neste mundo...” (6:1), e faz 6:2 dizer:<br />

“e não está certo”. 55 Coelet está muito longe <strong>de</strong> afirmar que o homem tem direitos que Deus<br />

ignora; antes, o homem tem necessida<strong>de</strong>s que Deus <strong>de</strong>nuncia. Algumas <strong>de</strong>las, como já vimos, são<br />

<strong>de</strong> um tipo que o mundo temporal não po<strong>de</strong> nem começar a usufruir, uma vez que Deus “pôs a<br />

eternida<strong>de</strong> no coração do homem” (3:11); outras, mais limitadas, são <strong>de</strong> um tipo que o mundo<br />

po<strong>de</strong> satisfazer um pouco e por algum tempo; nenhuma <strong>de</strong>las, porém, com certeza e em<br />

profundida<strong>de</strong>. Se isto é sofrimento e pesa sobre os homens (v.1), também é uma coisa muito<br />

salutar. O próprio mundo no-lo diz com a única linguagem que geralmente enten<strong>de</strong>mos: “não é<br />

lugar aqui <strong>de</strong> <strong>de</strong>scanso”. 56<br />

Mas, por enquanto, não somos incentivados a colher disso qualquer sabedoria, pois a<br />

“corrida <strong>de</strong>senfreada” por si mesma não faz nenhum sentido. Assim o capítulo conclui com uma<br />

nota <strong>de</strong>pressiva e incerta, bem a<strong>de</strong>quada ao estado do homem abandonado a si mesmo.<br />

Perguntas sem resposta<br />

6: 7 Todo trabalho do homem é para a sua boca; e, contudo, nunca se satisfaz o seu apetite.<br />

8 Pois que vantagem tem o sábio sobre o tolo? Ou o pobre que sabe andar perante os vivos?<br />

9 Melhor é a vista dos olhos do que o andar ocioso da cobiça; também isto é vaida<strong>de</strong> e correr<br />

atrás do vento.<br />

10 A tudo quanto há <strong>de</strong> vir já se lhe <strong>de</strong>u o nome, e sabe-se o que é o homem, e que não po<strong>de</strong><br />

conten<strong>de</strong>r com quem é mais forte do que ele.<br />

54 Esta é a força <strong>de</strong> não tiver sepultura (6:3); veja Jr 22:18ss<br />

55 O AT po<strong>de</strong> usar a palavra mal (6:1) em um sentido neutro, para indicar dificulda<strong>de</strong> ou <strong>de</strong>sastre; cf., por<br />

exemplo, Is 45:7 (“o mal”); Am 3:6 (“Suce<strong>de</strong>rá algum mal à cida<strong>de</strong>...”). semelhantemente, bem nesta<br />

passagem é traduzido por “gozar do bem” e “fartar do bem” (5:18; 6:3). A última frase do versículo 2, tão<br />

distante do significado <strong>de</strong> “não está certo” (BLH), é lit. “é uma grave enfermida<strong>de</strong>” (como na ERC “má<br />

envermida<strong>de</strong>”) ou com o sentido próximo <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> aflição (ERAB).<br />

56 Mq 2:10<br />

30


11 É certo que há muitas coisas que só aumentam a vaida<strong>de</strong>, mas que aproveita isto ao<br />

homem?<br />

12 Pois quem sabe o que é bom para o homem durante os poucos dias da sua vida <strong>de</strong><br />

vaida<strong>de</strong>, os quais gasta como sombra? Quem po<strong>de</strong> <strong>de</strong>clarar ao homem o que será <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>le<br />

<strong>de</strong>baixo do sol?<br />

As idéias e as perguntas do parágrafo final do capítulo voltam a tocar em alguns assuntos<br />

que já vimos antes, para consubstanciar o lema do livro, “vaida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vaida<strong>de</strong>s!”.<br />

A primeira <strong>de</strong>las (v.7) insiste em um ponto que é tão real para o homem mo<strong>de</strong>rno em sua<br />

rotina industrial quanto o era para o lavrador primitivo que mal tirava da terra o seu sustento:<br />

que se trabalha para comer, a fim <strong>de</strong> ter forças para continuar trabalhando e continuar comendo.<br />

Mesmo quando se gosta do que faz – e do que se come – a compulsão continua existindo. Quem<br />

governa, parece, é a boca e não a mente.<br />

Quando objetamos que os homens tema algo mais do que isso, e coisas melhores pelas<br />

quais viver, o versículo 8 não permite que tal argumentação fique sem resposta. A sabedoria, por<br />

exemplo, po<strong>de</strong> ser infinitamente melhor que a loucura, como já vimos numa passagem anterior<br />

(2:13); mas será que o sábio vive em melhores condições do que o tolo? Materialmente, tanto<br />

po<strong>de</strong> ser que sim como não, embora ele certamente o mereça; e nós já vimos que a morte vai<br />

nivelar os dois com total indiferença. 57 Quanto à felicida<strong>de</strong>, a clareza <strong>de</strong> visão do homem sábio<br />

não se constitui só <strong>de</strong> alegria: “Porque na muita sabedoria”, como vimos em 1:18, “há muito<br />

enfado; e quem aumenta ciência, aumenta tristeza.”<br />

Como que sentindo que nós ainda não estamos muito convencidos, uma vez que avaliamos<br />

a qualida<strong>de</strong> da vida <strong>de</strong> um homem acima do seu conforto, Coelet faz a prática pergunta <strong>de</strong> 8b: o<br />

que um pobre, por mais respeitado que seja, 58 realmente recebe em troca do seu sofrimento? É<br />

uma pergunta honesta. Invertendo um dos conhecidos ditados <strong>de</strong> R.L Stevenson, para a maioria<br />

<strong>de</strong> nós é melhor chegar do que viajar cheio <strong>de</strong> esperanças. Esta é a ênfase do versículo 9a, e o seu<br />

senso prático não dá lugar a fantasias. O problema é que “chegar”, em qualquer sentido final e<br />

realizador, está alem do nosso po<strong>de</strong>r. Qualquer coisa que nós consigamos vai se <strong>de</strong>sfazer como<br />

vaida<strong>de</strong> e correr atrás do vento, quer seja o espírito <strong>de</strong> iniciativa do pobre, quer seja o sucesso do<br />

rico.<br />

Será isto <strong>de</strong>rrotismo ou realismo? Em termos da vida “<strong>de</strong>baixo do sol” é realismo total,<br />

como a argumentação do livro já no-lo provou. Por mais palavras magníficas que<br />

multipliquemos acerca do homem ou contra o seu Criador, os versículos 10 e 11 nos fazem<br />

lembrar que não po<strong>de</strong>mos alterar a maneira como nós e o nosso mundo foram feitos. Estas<br />

coisas já receberam um nome e sabe-se (v.10) o que são, o que é uma outra maneira <strong>de</strong> dizer,<br />

como o restante das Escrituras, que <strong>de</strong>vem a sua existência à or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> Deus; e esta or<strong>de</strong>m inclui<br />

agora a sentença passada a Adão na Queda. É claro que achamos tal sentença dura e queremos<br />

protestar. A idéia <strong>de</strong> discutir com o Todo-po<strong>de</strong>roso (VS. 10b,11) fascinava Jó, que a abandonou<br />

apenas <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> muito sondar o seu coração; 59 a mesma idéia recebeu uma repreensão clássica<br />

em Isaías 45:9ss., com o exemplo do barro dando ao oleiro um conselho intrometido. Mas nós<br />

continuamos achando mais fácil exagerar a maneira como achamos que as coisas <strong>de</strong>veriam ser<br />

do que enfrentar a verda<strong>de</strong> do que elas são.<br />

Mas esta verda<strong>de</strong>, para que seja a verda<strong>de</strong> total, <strong>de</strong>ve incluir o que elas estão se tornando e<br />

o que vai ser <strong>de</strong> nós. Uma parte disto, que vamos morrer, já sabemos muito bem; do restante,<br />

apenas um pouquinho. Assim o capítulo, no meio do livro, acaba com uma enfiada <strong>de</strong> perguntas<br />

sem resposta. O homem secular, que caminha para a morte e precipita-se ao léu das mudanças,<br />

só po<strong>de</strong> fazer-lhes eco: “Pois quem sabe o que é bom...? Quem po<strong>de</strong> <strong>de</strong>clarar ao homem o que será<br />

<strong>de</strong>pois <strong>de</strong>le... ?”<br />

É um duplo espanto. Ele fica sem valores absolutos pelos quais viver (“o que é bom?”) e<br />

sem nenhuma certeza prática (“o que será?”) para fazer planos.<br />

57 Ec 2:14ss.<br />

58 A expressão “que sabe andar...” po<strong>de</strong> dar a enten<strong>de</strong>r uma vida moral ou socialmente bem conduzida. A<br />

palavra aqui usado como pobre é aquela que em outras passagens ten<strong>de</strong> a distinguir o oprimido que busca<br />

ajuda <strong>de</strong> Deus.<br />

59 Veja, por exemplo, Jó, capítulos 9,13 e 23; também 31:35-37; 42:1-6<br />

31


Segundo Resumo:<br />

Retrospectiva <strong>de</strong> <strong>Eclesiastes</strong> 4:9-6:12<br />

Em nosso primeiro resumo, fomos lembrados <strong>de</strong> quão amplamente se esten<strong>de</strong>ram os<br />

primeiros capítulos em busca <strong>de</strong> um fim satisfatório para a vida. Então, por um pouco, a<br />

investigação parece que ficou suspensa. De 4:9 até mais ou menos 5:12 conseguimos fazer uma<br />

pausa para olhar à nossa volta e estudar o cenário humano com certa neutralida<strong>de</strong>. Os<br />

comentários foram penetrantes como sempre, mas o tom foi tranqüilo, quase con<strong>de</strong>scen<strong>de</strong>nte.<br />

Mas foi a ironia, não aceitação. De 5:13 em diante já não fomos mais poupados à<br />

inquietação que as anomalias e tragédias do mundo <strong>de</strong>veriam <strong>de</strong>spertar em nós. Nós<br />

experimentamos seus causticantes <strong>de</strong>sapontamentos: a súbita ruína do trabalho <strong>de</strong> toda uma<br />

vida (5:13-17) e também as realizações <strong>de</strong>slumbrantes que não trouxeram felicida<strong>de</strong> alguma<br />

(6:1-6). Houve m vislumbre <strong>de</strong> coisas melhores no final do capítulo 5, um sinal <strong>de</strong> que Coelet nos<br />

levaria a uma reposta no final; mas o alívio teve curta duração. O capítulo 6, que começou com a<br />

<strong>de</strong>núncia <strong>de</strong> algumas vidas vazias, continuou <strong>de</strong>smascarando a ativida<strong>de</strong> constante e sem<br />

sentido (6:7-9) do nosso formigueiro humano, e concluiu repudiando nossos belos discursos<br />

sobre o progresso (6:10-12). Pois, apesar <strong>de</strong> todo esse falatório, o homem por si não tem a<br />

capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> mudar-se a si mesmo; não tem nenhuma permanência nem sequer um lugar para<br />

on<strong>de</strong> ir.<br />

<strong>Eclesiastes</strong> 7:1-22 -<br />

Interlúdio: Mais reflexões, máximas e verda<strong>de</strong>s<br />

Com um toque seguro, o autor introduz agora uma mudança estimulante no seu estilo e<br />

método. Em vez <strong>de</strong> refletir e argumentar, ele vai nos bombar<strong>de</strong>ar com o forte impacto e variados<br />

ângulos <strong>de</strong> ataque dos provérbios. Os primeiros são provocativamente melancólicos; os<br />

restantes (na sua maioria) são provocativamente tranqüilos e sagazes.<br />

Você po<strong>de</strong> também enfrentar os fatos!<br />

7: 1 Melhor é a boa fama do que o ungüento precioso, e o dia da morte, melhor do que o dia<br />

do nascimento.<br />

2 Melhor é ir à casa on<strong>de</strong> há luto do que ir à casa on<strong>de</strong> há banquete, pois naquela se vê o fim<br />

<strong>de</strong> todos os homens; e os vivos que o tomem em consi<strong>de</strong>ração.<br />

3 Melhor é a mágoa do que o riso, porque com a tristeza do rosto se faz melhor o coração.<br />

4 O coração dos sábios está na casa do luto, mas o dos insensatos, na casa da alegria.<br />

5 Melhor é ouvir a repreensão do sábio do que ouvir a canção do insensato.<br />

6 Pois, qual o crepitar dos espinhos <strong>de</strong>baixo <strong>de</strong> uma panela, tal é a risada do insensato;<br />

também isto é vaida<strong>de</strong>.<br />

Nada na primeira meta<strong>de</strong> do versículo 1 nos prepara para o golpe da segunda meta<strong>de</strong>.<br />

Houve algo parecido no capítulo anterior (6:1-6), mas falava <strong>de</strong> casos especiais. Estas palavras<br />

são tão arrasadoras e tão contrárias à opinião normal que temos <strong>de</strong> dar um pulo até o Novo<br />

Testamento, on<strong>de</strong> “partir e estar com Cristo” é consi<strong>de</strong>rado “muito melhor” do que ficar aqui<br />

(em 3:21, contudo, <strong>Eclesiastes</strong> já se recusou a pressupor a existência <strong>de</strong> uma vida futura); ou,<br />

então, temos <strong>de</strong> continuar lendo, na esperança <strong>de</strong> que haja esclarecimento a seguir.<br />

Isto não vamos encontrar, com certeza; e fica enunciado mais explicitamente no final do<br />

versículo seguinte, em especial na expressão e os vivos que o tomem em consi<strong>de</strong>ração. Em outras<br />

palavras, o dia da morte tem mais a nos ensinar do que o dia do nascimento; suas lições são mais<br />

concretas e, paradoxalmente, mais vitais. No nascimento (e, como falam os versículos seguintes,<br />

em todas as ocasiões alegres e festivas) o ambiente é <strong>de</strong> excitação e expansivida<strong>de</strong>. Não é hora<br />

<strong>de</strong> se pensar na brevida<strong>de</strong> da vida ou nas limitações humanas: <strong>de</strong>ixamos que nossas fantasias e<br />

esperanças subam alto na casa on<strong>de</strong> há luto, por outro lado, o ambiente é sério e a realida<strong>de</strong> é<br />

evi<strong>de</strong>nte. Se não pensamos nela, a culpa é nossa: não teremos outra oportunida<strong>de</strong> melhor <strong>de</strong><br />

32


encará-la. O gran<strong>de</strong> salmo sobre a mortalida<strong>de</strong> humana, o Salmo90, expõe o assunto com<br />

majestosa simplicida<strong>de</strong>:<br />

“Ensina-nos a contar os nossos dias,<br />

para que alcancemos coração sábio.”<br />

Assim como o salmo, esta passagem tem em vista um resultado positivo, o que fica<br />

explícito com a insistência na palavra melhor, e especialmente na última parte do versículo 3<br />

conforme a ER: a tristeza do rosto torna melhor o coração. A idéia <strong>de</strong> que a tristeza, além <strong>de</strong> ser<br />

substituída pela alegria, também é em si mesma uma preparação para uma forma mais perfeita<br />

<strong>de</strong> gozo (ao contrário da jovialida<strong>de</strong> confusa e vazia dos tolos, rápida em se acen<strong>de</strong>r e rápida em<br />

se apagar 60) é mais claramente exposta em João 16:20ss., on<strong>de</strong> se usa a analogia do parto, cujas<br />

dores preparam o caminho para uma alegria especial. Em outros termos, veja-se 2Coríntios<br />

4:17ss. e, no Antigo Testamento, Jó 33:19-30.<br />

Já a BLH toma “coração” como o sentido <strong>de</strong> “mente”: “a tristeza faz o rosto ficar abatido,<br />

mas torna o coração compreensivo.” Apesar <strong>de</strong> ocorrer com freqüência este sentido no AT, a<br />

expressão encontrada aqui é um padrão para o sentimento <strong>de</strong> alegria (cf., por ex., Rt 3:7)<br />

Você também po<strong>de</strong> ser racional!<br />

7: 7 Verda<strong>de</strong>iramente, a opressão faz endoi<strong>de</strong>cer até o sábio, e o suborno corrompe o<br />

coração.<br />

8 Melhor é o fim das coisas do que o seu princípio; melhor é o paciente do que o arrogante.<br />

9 Não te apresses em irar-te, porque a ira se abriga no íntimo dos insensatos.<br />

10 Jamais digas: Por que foram os dias passados melhores do que estes? Pois não é sábio<br />

perguntar assim.<br />

11 Boa é a sabedoria, havendo herança, e <strong>de</strong> proveito, para os que vêem o sol.<br />

12 A sabedoria protege como protege o dinheiro; mas o proveito da sabedoria é que ela dá<br />

vida ao seu possuidor.<br />

13 Atenta para as obras <strong>de</strong> Deus, pois quem po<strong>de</strong>rá endireitar o que ele torceu?<br />

14 No dia da prosperida<strong>de</strong>, goza do bem; mas, no dia da adversida<strong>de</strong>, consi<strong>de</strong>ra em que Deus<br />

fez tanto este como aquele, para que o homem nada <strong>de</strong>scubra do que há <strong>de</strong> vir <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>le.<br />

15 Tudo isto vi nos dias da minha vaida<strong>de</strong>: há justo que perece na sua justiça, e há perverso<br />

que prolonga os seus dias na sua perversida<strong>de</strong>.<br />

16 Não sejas <strong>de</strong>masiadamente justo, nem exageradamente sábio; por que te <strong>de</strong>struirias a ti<br />

mesmo?<br />

17 Não sejas <strong>de</strong>masiadamente perverso, nem sejas louco; por que morrerias fora do teu<br />

tempo?<br />

18 Bom é que retenhas isto e também daquilo não retires a mão; pois quem teme a Deus <strong>de</strong><br />

tudo isto sai ileso.<br />

19 A sabedoria fortalece ao sábio, mais do que <strong>de</strong>z po<strong>de</strong>rosos que haja na cida<strong>de</strong>.<br />

20 Não há homem justo sobre a terra que faça o bem e que não peque.<br />

21 Não apliques o coração a todas as palavras que se dizem, para que não venhas a ouvir o<br />

teu servo a amaldiçoar-te,<br />

22 pois tu sabes que muitas vezes tu mesmo tens amaldiçoado a outros.<br />

Há aqui quase tantas opiniões e pontos <strong>de</strong> vista quantas afirmações; uma certa melancolia<br />

para com o assunto, porém, <strong>de</strong>staca-se na maioria <strong>de</strong>las. Encarando o homem do mundo no seu<br />

próprio ambiente não muito elevado, Coelet <strong>de</strong>staca que há vantagens auto-evi<strong>de</strong>ntes em se<br />

tentar dar sentido à vida, em vez <strong>de</strong> cair no cinismo e no <strong>de</strong>sespero.<br />

No versículo 7 po<strong>de</strong>mos reconhecer a essência <strong>de</strong> uma lei que, nos tempos mo<strong>de</strong>rnos, Lord<br />

Acton formulou da seguinte maneira: “Todo po<strong>de</strong>r ten<strong>de</strong> a corromper...”. É interessante que a<br />

exortação implícita aqui é para com o auto-respeito, pois ninguém gosta <strong>de</strong> se fazer <strong>de</strong> tolo, o<br />

que o funcionário cruel ou corrupto faz por <strong>de</strong>finição, uma vez que age sem referência aos<br />

méritos <strong>de</strong> um caso. Sua mente foi adulterada: em vez <strong>de</strong> servir à verda<strong>de</strong>, transformou-se em<br />

ferramenta da avareza e da malevolência.<br />

Reunindo os versículos 8 e 9, vemos <strong>de</strong> novo o lado puramente louco das atitu<strong>de</strong>s que o<br />

60 O versículo 6 faz um trocadilho com os dois sentidos <strong>de</strong> sir no heb., “espinho” e “panela”.<br />

33


moralista con<strong>de</strong>naria sob fundamentos mais graves, mas que são fundamentos que pouco dizem<br />

ao homem mundano. Consi<strong>de</strong>rando ou não a paciência uma virtu<strong>de</strong> e a disputa um vício,<br />

po<strong>de</strong>mos finalmente ver o bom senso prático do autocontrole: examinar uma questão por<br />

completo, em vez <strong>de</strong> abandoná-la diante da primeira afronta contra a nossa dignida<strong>de</strong>. Este não<br />

é o único setor em que a atitu<strong>de</strong> errada também po<strong>de</strong> ser acertadamente <strong>de</strong>scrita como infantil.<br />

O versículo 10 é ainda mais esmagador, pois condiz com uma reação nostálgica, que é um<br />

estado <strong>de</strong> ânimo enervante e auto-indulgente. Suspirar pelos “bons dias do passado” é uma coisa<br />

(po<strong>de</strong>mos refletir) duplamente irreal: um substituto não somente para a ação como também<br />

para um raciocínio a<strong>de</strong>quado, uma vez que invariavelmente são esquecidos os males que<br />

tiveram uma forma diferente ou que prejudicaram uma outra seção da socieda<strong>de</strong> em outros<br />

tempos. O esclarecido Coelet é a última pessoa a se impressionar com esta neblina dourada do<br />

passado; ele já <strong>de</strong>clarou que uma época é muito parecida com outra. “O que foi, é o que há <strong>de</strong><br />

ser... nada há, pois, novo <strong>de</strong>baixo do sol” (1:9). Tudo isto, ele agora dá a enten<strong>de</strong>r, é bastante<br />

óbvio para que valha a pena argumentar: ele só precisa nos pedir que falemos com mais<br />

sensatez.<br />

Nos versículos 11 e 12 surge uma estimativa invulgarmente mundana <strong>de</strong> sabedoria.<br />

Embora haja algumas dúvidas sobre a tradução correta, é certo que a sabedoria está sendo<br />

tratada, no momento, em pé <strong>de</strong> igualda<strong>de</strong> com o dinheiro, pois é um valor vantajoso: uma<br />

garantia comparável ou superior contra os riscos da vida. 61 Neste caso, dificilmente seria uma<br />

comparação lisonjeira para alguma coisa cujo verda<strong>de</strong>iro valor é incalculável, <strong>de</strong> acordo com<br />

Provérbios 8:11 e muitas outras passagens. O versículo 12b talvez esteja dizendo que a<br />

sabedoria, ao contrário do dinheiro, dá vida; 62 mas para estarmos <strong>de</strong>ntro dos mo<strong>de</strong>stos alvos<br />

<strong>de</strong>sta passagem temos que consi<strong>de</strong>rar apenas o valor prático e protetor do dinheiro. A frase em<br />

11b, <strong>de</strong> proveito para os que vêem o sol, talvez seja uma observação ambígua, um lembrete <strong>de</strong> que<br />

há um limite <strong>de</strong> tempo para o benefício que até mesmo a sabedoria, neste nível <strong>de</strong> bom senso<br />

geral, po<strong>de</strong> oferecer. Não produz divi<strong>de</strong>ndo algum na sepultura.<br />

O restante <strong>de</strong>ssas variadas afirmações, que seguem até o versículo 22, mostra como é<br />

inconstante o conselho do bom senso quando não tem um princípio unificante. Vai da resignação<br />

piedosa até o cinismo moral (vs 13-18); e observa as imperfeições da natureza humana, embora<br />

muitíssimo interessada em tentar conviver com elas (vs. 20-22).<br />

Examinando essas afirmações um pouco mais <strong>de</strong>talhadamente: o versículo 13 não está<br />

falando <strong>de</strong> <strong>de</strong>feitos morais, mas da forma das coisas e dos acontecimentos que nós achamos<br />

estranhos, mas temos <strong>de</strong> aceitar como vindos <strong>de</strong> Deus. Isto inclui os seus juízos – pois ele<br />

”transtorna” o caminho dos ímpios”, como o Salmo 146:9 <strong>de</strong>clara literalmente (ou “torce”,<br />

usando um outro verbo) – mas também presumivelmente muitas das provações da vida, como<br />

sugere o versículo seguinte (v.14). este versículo é um clássico sobre a maneira correta <strong>de</strong> se<br />

comportar quando tudo vai bem ou quando tudo vai mal, ou seja, aceitar ambas as situações<br />

como vindas <strong>de</strong> Deus: nem com a impassivida<strong>de</strong> do estóico nem com a inquietação daqueles que<br />

não conseguem aceitar um prêmio com <strong>de</strong>leite, ou um golpe da sorte com espírito aberto e<br />

refletivo.<br />

“Aceite o que Ele dá,<br />

E louve-o, igual:<br />

No bem e na doença<br />

Ele é Deus eternal.” 63<br />

Mas, <strong>de</strong> acordo com este tema, Coelet <strong>de</strong>ve <strong>de</strong>stacar o mistério daquilo que Deus dá, e<br />

especialmente a sua imprevisibilida<strong>de</strong>, o que apara as asas da nossa auto-suficiência. Esse ponto<br />

já foi <strong>de</strong>stacado em 3:11, on<strong>de</strong> o tempo e a eternida<strong>de</strong>, assim como a obscurida<strong>de</strong> e a clareza, nos<br />

tantalizam e nos alertam, no caso <strong>de</strong> imaginarmos sermos nada mais do que animais ou nada<br />

61 O versículo 11 po<strong>de</strong> significar que ter as duas coisas, riqueza e sabedoria, é uma dupla vantagem (como<br />

na ERAB); mas provavelmente, o sentido seja o <strong>de</strong> comparar uma com outra (ER, BLH, ERC): “boa é<br />

sabedoria como a herança” (ER); cf. o heb. De, por exemplo, 2:16b; Jó 38:18, on<strong>de</strong> “da mesma sorte” é lit.<br />

“com”.<br />

62 A simples expressão traduzida por dá a vida também po<strong>de</strong> significar “preserva a vida” (ER) ou<br />

“conserva” (BLH) – cf., por exemplo, 1Sm 2:6; Sl 85:6 (Heb. 7). E “vida” no AT, como no NT, geralmente<br />

significa vitalida<strong>de</strong> espiritual e não simplesmente existência física.<br />

63 Richard Baxter, “Ye holy angels bright”.<br />

34


menos do que <strong>de</strong>uses.<br />

Agora surge o cinismo, nos versículos 15-18: o lado <strong>de</strong>sgastado e egoísta do senso prático.<br />

Para nos mostrar a lógica da posição secular, Coelet abandona por uns instantes qualquer indício<br />

<strong>de</strong> uma fé genuína, e introduz a religião no final apenas em uma forma <strong>de</strong> superstição, o que<br />

reduziria Deus ao status <strong>de</strong> uma cláusula <strong>de</strong> compensação.<br />

De maneira bastante esclarecedora (embora o versículo 15 possa ser comparado e até<br />

ultrapassado pelas meditações <strong>de</strong> Jó, que pinta quadros evocativos do pecador tranqüilo e do<br />

santo atormentado, como nos capítulos 21 e 30-31), Jó nunca chega à conclusão mesquinha<br />

apresentada nos versículos 16ss. ele preferiria morrer a renunciar suas reivindicações <strong>de</strong> justiça,<br />

ainda que para sustentá-las tivesse <strong>de</strong> <strong>de</strong>safiar o próprio céu. “Eis que me matará, já não tenho<br />

esperança; contudo <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>rei o meu procedimento.” 64<br />

Ao lado <strong>de</strong>ssa resolução vigorosa, o lema “não sejas <strong>de</strong>masiadamente” jamais pareceu tão<br />

vulgar como nestes versículos, que recomendam covardia moral com uma atitu<strong>de</strong> tão séria que<br />

sentimo-nos forçados a aceitá-la com serieda<strong>de</strong> no momento. Ao fazê-lo, percebemos que na<br />

verda<strong>de</strong> se trata da moralida<strong>de</strong>, reconhecida ou não do homem mundano, se ele é fiel aos seus<br />

princípios. Po<strong>de</strong>ríamos acrescentar que isso está se tornando cada vez mais normal em nossa<br />

atual socieda<strong>de</strong>. O versículo 18 sonda as profundida<strong>de</strong>s, advogando, um tanto<br />

misteriosamente, 65 não apenas a falta <strong>de</strong> sincerida<strong>de</strong> no bem ou no mal, mas uma generosa<br />

mistura ambos, uma vez que a religião vai resolver tudo e a pessoa vai, portanto, <strong>de</strong>sfrutar<br />

ambos os estilos <strong>de</strong> vida.<br />

Depois disso, a <strong>de</strong>claração irrepreensível do versículo 19 restaura um pouco a nossa<br />

confiança no valor do bom senso (embora não, talvez, no valor dos políticos). Mesmo tratando da<br />

sabedoria, um versículo posterior (9:16) vai nos lembrar que não <strong>de</strong>vemos esperar muito<br />

reconhecimento por uma qualida<strong>de</strong> tão intangível.<br />

Isolado do cinismo dos versículos 16-18, o versículo 20 po<strong>de</strong> ser aceito ao pé da letra,<br />

como uma confissão e não uma justificativa. Não se trata <strong>de</strong> uma postura indiferente, como os<br />

versículos anteriores dariam a enten<strong>de</strong>r; em continuação, Coelet parece suavizar um pouco essa<br />

verda<strong>de</strong>. Os versículos 21ss. são em si mesmos, um excelente conselho, uma vez que, quando<br />

encaramos com muita serieda<strong>de</strong> o que as pessoas dizem <strong>de</strong> nós ficamos magoados; e <strong>de</strong><br />

qualquer forma todos nós já dissemos coisas ferinas algum dia. Mas talvez os três versículos (20-<br />

22) juntos consi<strong>de</strong>rem nossas falhas com um pouco mais <strong>de</strong> negligência do que as Escrituras<br />

costumam fazê-lo, e quem sabe ainda estejamos dando ouvidos aqui ao Sr Sensato (tomando<br />

emprestado o nome <strong>de</strong> C.S. Lewis), 66 em vez <strong>de</strong> ouvir a voz autêntica da sabedoria. Certamente<br />

Coelet não encontra um ponto <strong>de</strong> apoio em nenhuma <strong>de</strong>ssas máximas: ele está profundamente<br />

insatisfeito com sua superficialida<strong>de</strong>, conforme veremos em suas próximas palavras.<br />

<strong>Eclesiastes</strong> 7:23-29 -<br />

A busca continua<br />

7: 23 Tudo isto experimentei pela sabedoria; e disse: tornar-me-ei sábio, mas a sabedoria<br />

estava longe <strong>de</strong> mim.<br />

24 O que está longe e mui profundo, quem o achará?<br />

25 Apliquei-me a conhecer, e a investigar, e a buscar a sabedoria e meu juízo <strong>de</strong> tudo, e a<br />

conhecer que a perversida<strong>de</strong> é insensatez e a insensatez, loucura.<br />

26 Achei coisa mais amarga do que a morte: a mulher cujo coração são re<strong>de</strong>s e laços e cujas<br />

mãos são grilhões; quem for bom diante <strong>de</strong> Deus fugirá <strong>de</strong>la, mas o pecador virá a ser seu<br />

prisioneiro.<br />

27 Eis o que achei, diz o Pregador, conferindo uma coisa com outra, para a respeito <strong>de</strong>las<br />

formar o meu juízo,<br />

28 juízo que ainda procuro e não o achei: entre mil homens achei um como esperava, mas<br />

entre tantas mulheres não achei nem sequer uma.<br />

64 Jó 13:15; cf., por exemplo, 27:1-6<br />

65 Isto e daquilo referem-se ao que acaba <strong>de</strong> ser citado no v.15, isto é, a justiça e a perversida<strong>de</strong>. A linha<br />

final ficou bem parafraseada pela BLH: “Se você temer a Deus, terá sucesso em tudo”.<br />

66 C.S. Lewis, The Pilgrim’s Regress (2ªed., Bles, 1943) pg 82ss<br />

35


29 Eis o que tão-somente achei: que Deus fez o homem reto, mas ele se meteu em muitas<br />

astúcias.<br />

A admissão honesta <strong>de</strong> fracasso na busca da sabedoria (na verda<strong>de</strong>, quando a observamos,<br />

recuamos a cada passo, ao percebermos que nenhuma <strong>de</strong> nossas sondagens chega até o fundo<br />

das coisas) é, se não co começo da sabedoria, pelo menos um passo na direção do começo.<br />

Depois da ambiciosa busca do capítulo 2, a investigação passa agora a áreas menos exóticas,<br />

mergulhando na experiência comum e fazendo pausas <strong>de</strong> vez em quando para ver o que se po<strong>de</strong><br />

fazer da vida no dia-a-dia, sejam quais forem finalmente os seus segredos. Neste nível, as<br />

<strong>de</strong>scobertas talvez tenham sido bastante sagazes, até sagazes <strong>de</strong>mais. Mas tendo dito tudo isto<br />

experimentei-o (v.23), em busca <strong>de</strong> uma resposta à pergunta “o que é a vida?”, elas não <strong>de</strong>ram<br />

nem sobra <strong>de</strong> resposta.<br />

Portanto a confissão <strong>de</strong> 7:23 tem uma finalida<strong>de</strong> <strong>de</strong>vastadora. Po<strong>de</strong>ria ser o epitáfio <strong>de</strong><br />

qualquer filósofo, e nós po<strong>de</strong>ríamos dispô-la nesta forma, a<strong>de</strong>quada para qualquer sepultura:<br />

“Eu disse:<br />

tornar-me-ei sábio,<br />

mas a sabedoria estava longe <strong>de</strong> mim.<br />

O que está longe e mui profundo,<br />

quem o achará?”<br />

Como qualquer pergunta sem resposta, este quebra-cabeças acerca da vida tinha sido um<br />

estímulo no princípio. A série <strong>de</strong> verbos, conhecer... investigar... buscar (v.25), transmite a<br />

sincerida<strong>de</strong> da busca, como Edgar Jones <strong>de</strong>staca. 67 Mas faz parte da condição do homem que,<br />

embora ele possa formular a sua tarefa em termos <strong>de</strong> pesquisa imparcial e com filosofias<br />

(buscando um resumo total das coisas, 68 consciente do mal como estultícia e loucura) 69, ele tem<br />

também <strong>de</strong> se voltar para a esfera dos relacionamentos humanos em sua busca <strong>de</strong> significado<br />

para o mundo, ainda que os vendo necessariamente através das lentes distorcidas do pecado.<br />

Assim o nosso autor nos <strong>de</strong>ixa perplexos com o seu amargo veredito: entre mil homens ele<br />

encontrou apenas um que não fosse um <strong>de</strong>sapontamento, mas mulher nenhuma. Como vamos<br />

encarar isso?<br />

Para começar, <strong>de</strong>vemos observar que ele não está dogmatizando, mas informando. É a<br />

experiência <strong>de</strong> um homem e ele não a universaliza. 70 Mas o mais pertinente é que ele nos<br />

apresenta o papel que o pecado po<strong>de</strong> <strong>de</strong>sempenhar em ambos os lados <strong>de</strong> um encontro entre os<br />

sexos. Um caso profundamente <strong>de</strong>senganador como o <strong>de</strong>scrito no versículo 26 po<strong>de</strong> distorcer ou<br />

até mesmo <strong>de</strong>struir qualquer tentativa subseqüente <strong>de</strong> relacionamento. Sem dúvida Coelet<br />

conseguiu escapar, como ele dá a enten<strong>de</strong>r no versículo 26b – mas não sem ferimentos. Sua<br />

busca infrutífera <strong>de</strong> uma mulher em que pu<strong>de</strong>sse confiar po<strong>de</strong> nos dizer muita coisa sobre ele e<br />

sobre a sua maneira <strong>de</strong> pensar, como também sobre as suas amiza<strong>de</strong>s. Sentimo-nos tentados a<br />

acrescentar (e isto po<strong>de</strong>ria ser concebivelmente relevante) que, tal como Salomão, cujo manto<br />

ele assumira anteriormente, 71 Coelet teria feito melhor se tivesse lançado a sua re<strong>de</strong> sobre um<br />

número menor, e não sobre “mil”! ele quase diz o mesmo em 9:9, com um elogio à simples<br />

fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> conjugal.<br />

No último versículo do capítulo 7 sua conclusão sobre a natureza humana é mais firme do<br />

que ele po<strong>de</strong>ria ter adquirido por sua simples experiência. Ele se volta para o que foi revelado,<br />

baseando-se evi<strong>de</strong>ntemente em Gênesis 1-3. Para apreciarmos a importância <strong>de</strong>ste ponto <strong>de</strong><br />

vista bíblico acerca <strong>de</strong> Deus e o homem, só precisamos ouvir a narrativa sobre o assunto na<br />

Teodicéia Babilônica, on<strong>de</strong> os <strong>de</strong>uses são os responsáveis pela malignida<strong>de</strong> dos homens: “com<br />

mentiras, e não verda<strong>de</strong>, eles os dotaram para sempre.” 72 Tal perspectiva é paralisante, pois a<br />

67 Jones, pg 321<br />

68 O juízo (vs 25,27) po<strong>de</strong>ria ser traduzido por “o balanço” com os dois sentidos que esse termo possui;<br />

isto é, a “totalida<strong>de</strong>” e a “exposição” das coisas (cf. McNeile).<br />

69 O versículo 25b está bem traduzido na ERAB: “...a perversida<strong>de</strong> é insensatez, e a insensatez é loucura”;<br />

melhor do que “a malda<strong>de</strong> e a falta <strong>de</strong> juízo são loucura” (BLH).<br />

70 Por outro lado, o v.20 mostra que ele não <strong>de</strong>ixará <strong>de</strong> universalizar, quando for o caso.<br />

71 Veja os comentários iniciais da sessão 1:12-2:26<br />

72 “The Babylonian Theodicy”, linha 280 em Babylonian Wisdom Literature <strong>de</strong> W. G. Lambert (Claredon,<br />

Oxford, 1960) pg89<br />

36


virtu<strong>de</strong> já é bastante difícil sem o acréscimo da suspeita <strong>de</strong> que não existe verda<strong>de</strong> do seu lado, e<br />

<strong>de</strong> que <strong>de</strong> fato ela vai contra tudo o que há <strong>de</strong> mais humano. A propósito, esta idéia não se<br />

restringe aos antigos babilônios. Na prática ela é a opinião (sem a teologia) <strong>de</strong> todos os que<br />

crêem ser reto (v.29) é ser ingênuo e um tanto infantil.<br />

Essa suspeita e esse ponto <strong>de</strong> vista, somos advertidos, levam-nos <strong>de</strong> volta à Queda, mas<br />

não às nossas origens. Depois das apalpa<strong>de</strong>las <strong>de</strong>ste capítulo, o versículo 29 nos dá a certeza<br />

restauradora <strong>de</strong> que nossas muitas astúcias (nosso obscurecimento moral, nossa recusa a andar<br />

corretamente) são nossa culpa, não nosso <strong>de</strong>stino. Já é muito mau termos estragado o que era<br />

perfeito; isso é culpa. Mas simplesmente fazer parte do que não tem sentido levaria ao<br />

<strong>de</strong>sespero. As palavras, Deus fez o homem reto, muito embora tenham seus efeitos trágicos, já são<br />

suficientes para levantar uma questão sobre o refrão “vaida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vaida<strong>de</strong>s”. Consi<strong>de</strong>rando que<br />

“futilida<strong>de</strong>” não foi a primeira palavra enunciada sobre o nosso mundo, também não tem <strong>de</strong> ser a<br />

última.<br />

<strong>Eclesiastes</strong> 8:1-17 -<br />

Frustração<br />

8: 1 Quem é como o sábio? E quem sabe a interpretação das coisas? A sabedoria do homem<br />

faz reluzir o seu rosto, e muda-se a dureza da sua face.<br />

2 Eu te digo: observa o mandamento do rei, e isso por causa do teu juramento feito a Deus.<br />

3 Não te apresses em <strong>de</strong>ixar a presença <strong>de</strong>le, nem te obstines em coisa má, porque ele faz o<br />

que bem enten<strong>de</strong>.<br />

4 Porque a palavra do rei tem autorida<strong>de</strong> suprema; e quem lhe dirá: Que fazes?<br />

5 Quem guarda o mandamento não experimenta nenhum mal; e o coração do sábio conhece<br />

o tempo e o modo.<br />

6 Porque para todo propósito há tempo e modo; porquanto é gran<strong>de</strong> o mal que pesa sobre o<br />

homem.<br />

7 Porque este não sabe o que há <strong>de</strong> suce<strong>de</strong>r; e, como há <strong>de</strong> ser, ninguém há que lho <strong>de</strong>clare.<br />

8 Não há nenhum homem que tenha domínio sobre o vento para o reter; nem tampouco tem<br />

ele po<strong>de</strong>r sobre o dia da morte; nem há tréguas nesta peleja; nem tampouco a perversida<strong>de</strong> livrará<br />

aquele que a ela se entrega.<br />

9 Tudo isto vi quando me apliquei a toda obra que se faz <strong>de</strong>baixo do sol; há tempo em que<br />

um homem tem domínio sobre outro homem, para arruiná-lo.<br />

Talvez, como muitos pensam, Coelet tenha tomado emprestado uma citação familiar para<br />

o versículo <strong>de</strong> abertura em que elogia a sabedoria e o sábio. Mas com os perigosos caprichos <strong>de</strong><br />

um rei a levar em conta, a sabedoria tem <strong>de</strong> recolher suas asas e assumir uma forma discreta,<br />

contentando-se em po<strong>de</strong>r manter longe <strong>de</strong> problemas o seu possuidor. Esta é apenas a primeira<br />

<strong>de</strong> suas frustrações, e a menor <strong>de</strong>las; pelo menos há uma coisa útil que ela po<strong>de</strong> realizar nesta<br />

situação, ao passo que mais adiante, no capítulo ela terá <strong>de</strong> enfrentar problemas <strong>de</strong>licados, tais<br />

como a morte, a perversida<strong>de</strong> moral e o mistério do governo divino.<br />

A discrição é, então, o aspecto principal da sabedoria nesta situação, embora o versículo<br />

1a, com um lembrete acerca <strong>de</strong> José e Daniel, Aitofel e Husai, 73 enfatize a parte que o talento<br />

mais positivo do sábio, a interpretação das cousas, <strong>de</strong>sempenha na corte do rei. A não ser aqui, a<br />

sabedoria é uma figura <strong>de</strong>corosa e mo<strong>de</strong>sta neste parágrafo, on<strong>de</strong> po<strong>de</strong>mos refletir sobre a<br />

loucura <strong>de</strong> um rei (ou <strong>de</strong> qualquer lí<strong>de</strong>r) cujo <strong>de</strong>sprezo ou temor da verda<strong>de</strong> reduz a sabedoria<br />

ao silêncio, mediante o expediente <strong>de</strong> fazer calar as mentes pensantes.<br />

Cauteloso como <strong>de</strong>ve ser o homem sábio, ele não está aqui sendo pressionado a abandonar<br />

a sua integrida<strong>de</strong>. Sua disposição em agradar não precisa ser servil. A expressão alegre e<br />

agradável <strong>de</strong> sua fisionomia, que o versículo 1b <strong>de</strong>staca, não é fingimento: realmente é a sua<br />

expressão, a pessoa que ele é e a disposição <strong>de</strong> sua mente. Há em sua obediência, não<br />

oportunismo, mas também princípios, fato este revelado pela correta tradução do versículo 2: “...<br />

73 2Sm 16:20-17:14<br />

37


Observa o mandamento do rei, e isso por causa do teu juramento feito a Deus.” 74 Dentro <strong>de</strong>ssa<br />

estrutura, ele usa também, como todo sábio, 75 sua capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> discernimento para avaliar uma<br />

situação perigosa (v.3) 76 e o senso <strong>de</strong> oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> suas ações (vv 5b, 6ª). Muitas passagens<br />

no Antigo Testamento dão testemunho dos limites que a lealda<strong>de</strong> a Deus <strong>de</strong>ve estabelecer<br />

quando é necessário agir com tato, submissão e dignida<strong>de</strong>; basta lembrar a franqueza dos<br />

profetas e, entre os sábios, do indômito Daniel e seus companheiros. Se tais exemplos nos<br />

enchem <strong>de</strong> vergonha e nos arrancam do conformismo, estes versículos mantêm o equilíbrio<br />

i<strong>de</strong>al, ensinando-nos o <strong>de</strong>vido respeito para com o governo. Da mesma forma, o Novo<br />

Testamento as vezes enfatiza um lado da questão, às vezes outro. 77<br />

A menção do tempo e do modo 78 (vv 5,6) que o sábio apren<strong>de</strong> a reconhecer (a verda<strong>de</strong> e o<br />

momento da verda<strong>de</strong> que po<strong>de</strong> ser aproveitado ou <strong>de</strong>ixado <strong>de</strong> lado) lembra o tema do capítulo 3,<br />

os traços <strong>de</strong> um mundo condicionado pelo tempo, sempre mutante. Lá, estávamos tateando em<br />

busca <strong>de</strong> alguma coisa permanente; aqui, buscamos algo previsível (v.7). É um consolo<br />

<strong>de</strong>sanimador <strong>de</strong>scobrir que apenas a morte se encaixa neta categoria; e um pouco melhor<br />

quando a pessoa se recupera da perspectiva para ser confrontada com um presente cheio <strong>de</strong><br />

sofrimento, em que um homem tem domínio sobre outro homem, para arruiná-lo (v.9). há uma<br />

ironia toda especial nesta última observação, on<strong>de</strong> a expressão que mais choca ao falar do abuso<br />

do po<strong>de</strong>r humano (tem domínio) relembra claramente o que acaba <strong>de</strong> ser dito sobre a<br />

impotência humana em outras áreas: sua incapacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> dominar os eu próprio espírito, 79 ou<br />

<strong>de</strong> dominar a morte, visto que uma só família <strong>de</strong> palavras soberbas dão colorido a todas estas<br />

<strong>de</strong>clarações. O restante do versículo 8 apresenta o último encontro em termos bem vivos, que<br />

permitiriam uma paráfrase: “Há uma batalha à qual não po<strong>de</strong>mos fugir; não po<strong>de</strong>mos trapacear.”<br />

Perversida<strong>de</strong> moral<br />

8: 10 Assim também vi os perversos receberem sepultura e entrarem no repouso, ao passo<br />

que os que freqüentavam o lugar santo foram esquecidos na cida<strong>de</strong> on<strong>de</strong> fizeram o bem; também<br />

isto é vaida<strong>de</strong>.<br />

11 Visto como se não executa logo a sentença sobre a má obra, o coração dos filhos dos<br />

homens está inteiramente disposto a praticar o mal.<br />

12 Ainda que o pecador faça o mal cem vezes, e os dias se lhe prolonguem, eu sei com certeza<br />

que bem suce<strong>de</strong> aos que temem a Deus.<br />

13 Mas o perverso não irá bem, nem prolongará os seus dias; será como a sombra, visto que<br />

não teme diante <strong>de</strong> Deus.<br />

Se existe algo que mais nos revolte é ver os perversos progredindo e cheios <strong>de</strong> si. Mas a<br />

perversida<strong>de</strong> respeitada e recebendo a bênção da religião (v.10a) 80 é ainda mais enojante. No<br />

74 No TM o versículo refere-se ao “juramento <strong>de</strong> Deus”; quer seja a legitimação do rei feita por Deus, quer<br />

seja o juramento <strong>de</strong> lealda<strong>de</strong> do indivíduo (os dois casos são possíveis); a questão fica <strong>de</strong> qualquer forma<br />

colocada numa situação religiosa. O fato <strong>de</strong> a obediência compensar (v.5) é um incentivo adicional, que o<br />

NT também consi<strong>de</strong>ra digno <strong>de</strong> menção (Rm 13:3-5)<br />

75 Cf., por exemplo, Pv 14:15ss.; 22:3<br />

76 O v.3 que começa com a frase “Não te apresses”, é difícil. De início po<strong>de</strong> ser um conselho contra a<br />

ocupação <strong>de</strong> altos cargos, ou contra uma renúncia impulsiva (Barton, Jones). Sua sintaxe é ambígua. A<br />

cláusula seguinte po<strong>de</strong> significar “não insista em fazer uma coisa errada” (como na BLH) ou ainda como na<br />

BJ, “Nem te coloques em má situação”.<br />

77 Por exemplo, Mt 23:2, 3a, em contrapartida com o restante <strong>de</strong>ste capítulo, Cf. 1Pe 2:13ss. com Atos 5:29<br />

78 Alternativamente, talvez, seja correto enten<strong>de</strong>r modo (v.5ss) e mal (v.6) em seus sentidos primários,<br />

como “juízo” e “mal” ou “misericórdia” (como na ER). Neste caso (como Delitzsch <strong>de</strong>staca) a passagem<br />

logra o seu intento ao dizer que o homem sábio aguardará o tempo <strong>de</strong> Deus para o juízo (ou julgamento) e<br />

não tomará a situação em suas próprias mãos com rebeldia.<br />

79 A palavra heb. Para “vento” (ERAB) serve também para “espírito” (ER). O “vento” é proverbialmente<br />

incontrolável (cf Pv 27:16), mas “espírito” é mais diretamente relevante neste ponto. A BV registra:<br />

“Ninguém po<strong>de</strong> se manter vivo para sempre, ninguém po<strong>de</strong> evitar o dia <strong>de</strong> sua morte!”<br />

80 O versículo 10 está longe <strong>de</strong> ser claro. Temos apoio esmagador em ativas versões (e muitos MSS) para<br />

ler “louvados” (Vsbh) no lugar <strong>de</strong> “esquecidos” (Vskh). A BLH segue esta interpretação: “Eu vi o enterro <strong>de</strong><br />

pessoas más. Na volta do cemitério notei que eram elogiadas, e isso na mesma cida<strong>de</strong> on<strong>de</strong> haviam feito o<br />

mal”.<br />

38


espetáculo aqui <strong>de</strong>scrito, os parasitas não têm sequer a justificativa da ignorância. Os vilões<br />

estão sendo honrados no próprio cenário <strong>de</strong> suas malda<strong>de</strong>s, e já não estão mais vivos para<br />

conquistar o temor ou o favor <strong>de</strong> alguém. Assim, por mais incrível que pareça, a admiração tem<br />

<strong>de</strong> ser genuína, tornando bem claro que o julgamento moral popular po<strong>de</strong> estar totalmente<br />

<strong>de</strong>sviado, dominado pela evidência do sucesso ou do fracasso e recebendo a paciência dos céus<br />

como aprovação. O ditador ou o magnata corrupto po<strong>de</strong> ter contornado as regras, dizem; mas<br />

afinal eles fizeram alguma coisa, eles tinham talento, viviam com estilo.<br />

Isso é <strong>de</strong>mais para Coelet. Ele acaba fazendo uma <strong>de</strong> suas raras <strong>de</strong>clarações <strong>de</strong> fé, <strong>de</strong>ixando<br />

cair a máscara do secularismo que normalmente usa a bem da exposição. Isso já acontecera<br />

antes (veja 2:26; 3:17; 5:18-20; 7:14), e nos capítulos finais já não será mais exceção, mas a<br />

regra.<br />

O que ele certamente afirma aqui é o julgamento. No final, a coisa certa será feita, <strong>de</strong><br />

qualquer jeito: ... bem suce<strong>de</strong> aos que temem a Deus. Mas o perverso não irá bem... o que ele<br />

também talvez esteja tenuemente <strong>de</strong>spertando em nossas mentes é a idéia <strong>de</strong> uma vida após a<br />

morte para os piedosos. Neste caso, ele o faz através <strong>de</strong> um paradoxo não solucionado acerca dos<br />

perversos, pois na mesma tirada ele fala do vilão cuja vida é prolongada (v.12) e daquele que não<br />

prolongará os seus dias (v.13). isto talvez signifique que, enquanto o homem piedoso tem<br />

esperanças além da sepultura, o ímpio não a tem; por mais adiada que seja, a morte será o seu<br />

fim. Esta é a maneira como alguns dos salmos apresentam o assunto. 81<br />

Mas a recusa <strong>de</strong> Coelet <strong>de</strong> pronunciar-se mais sobre isto, contentando-se coma pergunta<br />

“Quem sabe?” (3:21), indica mais provavelmente que ele está generalizando o assunto. A<br />

perversida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>clara, não produz benefícios reais (v.13a); e, como regra, por mais notáveis que<br />

sejam as exceções (vs 12, 14), ela criva <strong>de</strong> incertezas. A carreira do homem perverso é toda<br />

aparência, não tem substância. 82<br />

Pequenas expectativas<br />

8: 14 Ainda há outra vaida<strong>de</strong> sobre a terra: justos a quem suce<strong>de</strong> segundo as obras dos<br />

perversos, e perversos a quem suce<strong>de</strong> segundo as obras dos justos. Digo que também isto é vaida<strong>de</strong>.<br />

15 Então, exaltei eu a alegria, porquanto para o homem nenhuma coisa há melhor <strong>de</strong>baixo<br />

do sol do que comer, beber e alegrar-se; pois isso o acompanhará no seu trabalho nos dias da vida<br />

que Deus lhe dá <strong>de</strong>baixo do sol.<br />

Há um momento fomos lembrados da regra geral <strong>de</strong> que a perversida<strong>de</strong> cava a sua própria<br />

sepultura e a justiça, por assim dizer, o seu próprio jardim. Mas com muita freqüência o padrão é<br />

invertido, confundindo tudo; 83 não há maneira certa <strong>de</strong> saber quando (ou por quê) a vida vai<br />

<strong>de</strong>sferir sobre nós o seu próximo golpe OUA sua próxima bênção. Esforços morais talvez não<br />

paguem divi<strong>de</strong>ndos, e embora isso torne tudo ainda mais nobre, é natural buscar algum tipo<br />

mais seguro <strong>de</strong> investimento. Naqueles termos – que no versículo 15 são duas vezes acentuados<br />

com as palavras <strong>de</strong>baixo do sol – os prazeres simples da vida são os mais sadios. Não é a primeira<br />

vez que somos trazidos <strong>de</strong> volta a eles, nem será a última; mas Coelet jamais os valoriza<br />

<strong>de</strong>masiadamente. Coloca-os sempre lado a lado com algum lembrete do lado duro da vida (aqui,<br />

o seu trabalho), que eles só po<strong>de</strong>m mitigar.<br />

O enigma permanece<br />

8: 16 Aplicando-me a conhecer a sabedoria e a ver o trabalho que há sobre a terra—pois<br />

nem <strong>de</strong> dia nem <strong>de</strong> noite vê o homem sono nos seus olhos—,<br />

81 Por exemplo, Sl 49:14ss.; 73:18ss<br />

82 A frase acerca da sombra no v.13 <strong>de</strong>veria provavelmente ser entendida como “os seus dias, que são<br />

como uma sombra”; cf. por exemplo 6:12, Sl 102:11; 109:23, etc. Com menos probabilida<strong>de</strong>, po<strong>de</strong>ria<br />

<strong>de</strong>screver o prolongamento das sombras ao entar<strong>de</strong>cer; mas esse prolongamento anuncia, e não adia, a<br />

aproximação da noite.<br />

83 A BLH, contudo, aplica a frase “isso não tem sentido” às <strong>de</strong>clarações dos versículos 12ss., <strong>de</strong>pois <strong>de</strong><br />

mudar a afirmação “eu sei....” para “eu sei que dizem...”. isto é muito engenhoso, mas não faz parte do<br />

texto..<br />

39


17 então, contemplei toda a obra <strong>de</strong> Deus e vi que o homem não po<strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r a obra<br />

que se faz <strong>de</strong>baixo do sol; por mais que trabalhe o homem para a <strong>de</strong>scobrir, não a enten<strong>de</strong>rá; e,<br />

ainda que diga o sábio que a virá a conhecer, nem por isso a po<strong>de</strong>rá achar.<br />

Se precisávamos ser lembrados <strong>de</strong> que o trabalho árduo e a vida simples só po<strong>de</strong>m<br />

protelar nossas perguntas mais importantes, mas nunca respondê-las, bastaria esta continuação<br />

do conselho suave do versículo 15. Os próprios negócios 84 da vida nos levam a perguntar para<br />

on<strong>de</strong> estão nos levando, e o que significam, se é que significam alguma coisa. Nem é preciso<br />

Coelet nos indicar que esta é exatamente a questão que nos <strong>de</strong>rrota. A longa história das<br />

filosofias do mundo, cada uma por sua vez <strong>de</strong>nunciando as omissões <strong>de</strong> suas pre<strong>de</strong>cessoras,<br />

torna isso mais o que claro.<br />

Coelet o <strong>de</strong>staca, entretanto, dando-nos um raio <strong>de</strong> esperança através da maneira como o<br />

faz. É a obra <strong>de</strong> Deus que nos <strong>de</strong>sconcerta (v.17); não é “uma história contada por um idiota”.<br />

Mas, e se ela for contada a um idiota? Parece que o capítulo termina assim, sem <strong>de</strong>ixar aos<br />

nossos homens mais sábios qualquer perspectiva <strong>de</strong> sucesso. Não obstante, captaremos melhor<br />

o seu significado se consi<strong>de</strong>rarmos a alusão do versículo 17ª concernente à gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>claração <strong>de</strong><br />

3:11. Ali também encaramos nossa incapacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> conhecimento, mas vimos que tanto a<br />

eternida<strong>de</strong> quanto o tempo tem acesso às nossas mentes. Embora os, como habitantes do tempo,<br />

vejamos a obra <strong>de</strong> Deus em lampejos tantalizantes, o próprio fato <strong>de</strong> po<strong>de</strong>rmos indagar acerca<br />

<strong>de</strong> todo o plano e <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejarmos vê-lo é uma evidência <strong>de</strong> que não somos prisioneiros totais do<br />

nosso mundo.<br />

Em palavras promissoras, esta é uma evidência não só <strong>de</strong> como fomos feitos, mas também<br />

<strong>de</strong> por quem fomos criados.<br />

<strong>Eclesiastes</strong> 9:1-18 -<br />

Perigo<br />

Antes que a ênfase positiva dos três capítulos finais possa vir à tona, temos <strong>de</strong> nos<br />

certificar <strong>de</strong> que estaremos edificando sobre algo que não está <strong>de</strong>sprovido da realida<strong>de</strong> nua e<br />

crua. E, caso acariciemos alguma ilusão confortadora, o capítulo 9 nos coloca diante do pouco<br />

que sabemos e a seguir com a vastidão daquilo que não po<strong>de</strong>mos controlar: particularmente, a<br />

morte, os altos e baixos da sorte e os possíveis favores caprichosos da multidão. Em primeiro<br />

lugar, porém, ele faz uma pergunta crucial: estamos nas mãos <strong>de</strong> um amigo ou <strong>de</strong> um inimigo?<br />

Será amor ou ódio?<br />

9: 1 Deveras me apliquei a todas estas coisas para claramente enten<strong>de</strong>r tudo isto: que os<br />

justos, e os sábios, e os seus feitos estão nas mãos <strong>de</strong> Deus; e, se é amor ou se é ódio que está à sua<br />

espera, não o sabe o homem. Tudo lhe está oculto no futuro.<br />

Só precisamos usar os olhos sem preconceito, <strong>de</strong> acordo com o Salmo 19 e Romanos<br />

1:19ss., para ver que há um Criador po<strong>de</strong>roso e glorioso. Mas é preciso mais do que uma simples<br />

observação para <strong>de</strong>scobrir qual a disposição <strong>de</strong>le para conosco. Quer tomemos aqui as palavras<br />

amor e ódio como uma forma bíblica <strong>de</strong> dizer "aceitação ou rejeição", ou simplesmente em seu<br />

sentido primário, teremos, <strong>de</strong> qualquer maneira, apenas uma vaga resposta acerca do caráter do<br />

Criador se consi<strong>de</strong>rarmos o mundo em que vivemos, com sua mistura <strong>de</strong> <strong>de</strong>leite e terror, <strong>de</strong><br />

beleza e repugnância. 85<br />

Se a questão fosse colocada no lugar exato, ainda seria <strong>de</strong>sconcertante; e quanto menos à<br />

vonta<strong>de</strong> nos sentíssemos, tanto mais nos sentiríamos entregues nas mãos <strong>de</strong> Deus (v. 1a). Mas<br />

84 O insone do v. 16b é consi<strong>de</strong>rado pela BLH como o pensador com o problema. Mas seria mais honesto<br />

traduzir aplicando a referência às pessoas que ele observa. Cf. a BV: “observei tudo o que acontecia em<br />

toda a terra – uma ativida<strong>de</strong> contínua, dia e noite sem parar.”<br />

85 Po<strong>de</strong>mos imaginar, entretanto, que o versículo 1b fala <strong>de</strong> atitu<strong>de</strong>s humanas e não divinas; cf. BJ: "O homem não conhece o amor<br />

nem o ódio". Delitzsch e alguns outros, inclusive a BLH, concluem a partir <strong>de</strong> 1a que o homem não é suficientemente dono <strong>de</strong> si<br />

mesmo para saber se vai amar ou odiar numa <strong>de</strong>terminada situação (embora não negando ser responsável por aceitar ou rejeitar o<br />

sentimento que experimenta). Para mim, a ênfase na inescrutabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus em 8:17, imediatamente antes <strong>de</strong>ste versículo, torna<br />

mais provável (e mais relevante ao argumento) que aqui se trata da atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus e não do homem.<br />

40


agora Coelet torna a questão ainda mais difícil para nós, <strong>de</strong>stacando um fato que parece colocar a<br />

balança <strong>de</strong>cisivamente contra nós (sempre supondo que estamos raciocinando apenas baseados no<br />

que po<strong>de</strong>mos ver). Então, ainda por cima, antes <strong>de</strong> concluir o capítulo, ele nos faz enfrentar dois<br />

fatos associados ao anterior. O primeiro dos três é a morte.<br />

A morte<br />

9: 1 Deveras me apliquei a todas estas coisas para claramente enten<strong>de</strong>r tudo isto: que os<br />

justos, e os sábios, e os seus feitos estão nas mãos <strong>de</strong> Deus; e, se é amor ou se é ódio que está à sua<br />

espera, não o sabe o homem. Tudo lhe está oculto no futuro.<br />

2 Tudo suce<strong>de</strong> igualmente a todos: o mesmo suce<strong>de</strong> ao justo e ao perverso; ao bom, ao puro e<br />

ao impuro; tanto ao que sacrifica como ao que não sacrifica; ao bom como ao pecador; ao que jura<br />

como ao que teme o juramento.<br />

3 Este é o mal que há em tudo quanto se faz <strong>de</strong>baixo do sol: a todos suce<strong>de</strong> o mesmo;<br />

também o coração dos homens está cheio <strong>de</strong> malda<strong>de</strong>, nele há <strong>de</strong>svarios enquanto vivem; <strong>de</strong>pois,<br />

rumo aos mortos.<br />

4 Para aquele que está entre os vivos há esperança; porque mais vale um cão vivo do que um<br />

leão morto.<br />

5 Porque os vivos sabem que hão <strong>de</strong> morrer, mas os mortos não sabem coisa nenhuma, nem<br />

tampouco terão eles recompensa, porque a sua memória jaz no esquecimento.<br />

6 Amor, ódio e inveja para eles já pereceram; para sempre não têm eles parte em coisa<br />

alguma do que se faz <strong>de</strong>baixo do sol.<br />

7 Vai, pois, come com alegria o teu pão e bebe gostosamente o teu vinho, pois Deus já <strong>de</strong><br />

antemão se agrada das tuas obras.<br />

8 Em todo tempo sejam alvas as tuas vestes, e jamais falte o óleo sobre a tua cabeça.<br />

9 Goza a vida com a mulher que amas, todos os dias <strong>de</strong> tua vida fugaz, os quais Deus te <strong>de</strong>u<br />

<strong>de</strong>baixo do sol; porque esta é a tua porção nesta vida pelo trabalho com que te afadigaste <strong>de</strong>baixo<br />

do sol.<br />

10 Tudo quanto te vier à mão para fazer, faze-o conforme as tuas forças, porque no além,<br />

para on<strong>de</strong> tu vais, não há obra, nem projetos, nem conhecimento, nem sabedoria alguma.<br />

Se estamos certos em iniciar o versículo 2 com as palavras "Tudo lhe está oculto no futuro (v.<br />

1c), o fato é que, embora as coisas que nos cercam não nos dêem qualquer indicação do que Deus<br />

pensa <strong>de</strong> nós, nossas esperanças tornam tudo muito claro. A julgar pelas aparências, Deus<br />

simplesmente não se importa. As coisas que supostamente <strong>de</strong>veriam lhe interessar mais acabam não<br />

fazendo diferença alguma (pelo menos, nenhuma que se perceba) na forma como somos <strong>de</strong>scartados<br />

no final. Moral ou imoral, religioso ou profano, somos todos ceifados da mesma maneira. Daqui a cem<br />

anos, como dizemos, continuará sendo a mesma coisa.<br />

Mas, embora a morte pareça dizer isso - e ela sempre dá um jeito <strong>de</strong> ficar com a última<br />

palavra - nós imediatamente apresentamos um protesto. Coelet fala por nós todos ao exclamar:<br />

"isso é o pior <strong>de</strong> tudo o que acontece neste mundo" (v. 3b - BLH). O que talvez não tenhamos<br />

notado, pois ele não chama a nossa atenção para isso neste ponto, é que este sentimento <strong>de</strong> ultraje é<br />

um fato tão certo a nosso respeito quanto a nossa mortalida<strong>de</strong>. O que torna este livro tão fascinante<br />

são principalmente estas colisões entre os fatos obstinados da observação e as intuições igualmente<br />

obstinadas. Assim ele nos impulsiona rumo a uma síntese que fica muito além <strong>de</strong> suas páginas -<br />

neste caso, a perspectiva da recompensa e do castigo no mundo futuro.<br />

Enquanto isso, examinamos o mundo como ele se nos apresenta, tendo a morte como<br />

obliteradora universal e o mal aumentando em profusão. As duas coisas têm uma certa relação.<br />

Viver em um mundo aparentemente sem significado é profundamente frustrante, e a <strong>de</strong>silusão dá<br />

lugar à aniquilação e ao <strong>de</strong>sespero, à loucura dos violentos ou ao <strong>de</strong>sespero dos solitários.<br />

Será que o <strong>de</strong>sespero é tudo que nos resta? Para nossa surpresa, o homem <strong>de</strong> um modo<br />

geral pensa que não, ou, então, a raça humana já teria acabado há muito tempo. E Coelet concorda<br />

com isso. A vida <strong>de</strong>cididamente vale a pena ser vivida. Afinal, na pior das hipóteses, ou quase isso,<br />

a vida é melhor do que o nada, que é o que a morte parece ser. O forte senso prático do versículo<br />

4, 86 com o popular provérbio ilustrando o seu ponto <strong>de</strong> vista, abre caminho para uma recusa<br />

86 O TM diz "aquele que é escolhido" (Vbhr), que dá pouco sentido e parece ser um erro <strong>de</strong> copista na palavra "junto" (com os<br />

vivos) (Vhbr), que tem o apoio da LXX et al.<br />

41


vigorosa nos próximos dois versículos em <strong>de</strong>ixar que a morte intimi<strong>de</strong> os vivos antes da hora. Antes,<br />

que a vida meta a morte no chinelo! Será que o homem vivo sabe tanto para se sentir consolado?<br />

Mas <strong>de</strong> que valeria ser um cadáver sem saber nada, 87 sem esperar nada, sem nenhum valor no<br />

mundo?<br />

Sob a própria sombra da morte, este espírito positivo ilumina o restante da passagem (vs. 7-10)<br />

tanto quanto o faria uma coisa temporal, pois, embora não seja a resposta completa, <strong>de</strong>sfruta da<br />

aprovação <strong>de</strong> Deus. Não é à toa que ele é a fonte <strong>de</strong> todos os dons da vida terrena: o pão e o vinho,<br />

as festas e o trabalho, o casamento e o amor.<br />

Há notáveis semelhanças entre esta passagem (9:7-10) e algumas linhas da Epopéia <strong>de</strong><br />

Gilgamesh, um poema acadiano que data do tempo <strong>de</strong> Abraão ou antes e que era muito conhecido<br />

no mundo antigo. Neste ponto da história o herói, impelido pela morte <strong>de</strong> seu gran<strong>de</strong> amigo a ir em<br />

busca da imortalida<strong>de</strong>, chega ao jardim dos <strong>de</strong>uses. Ali a jovem Siduri, a fabricante <strong>de</strong> vinhos, lhe<br />

fala:<br />

"Gilgamesh, por on<strong>de</strong> você está vagueando?<br />

A vida que está procurando, você nunca encontrará,<br />

pois os <strong>de</strong>uses, quando criaram o homem, <strong>de</strong>ram-lhe<br />

a morte como quinhão, e a vida<br />

ficou retida nas mãos <strong>de</strong>les.<br />

Gilgamesh, encha o estômago!<br />

Alegre-se dia e noite,<br />

encha os seus dias <strong>de</strong> alegria,<br />

dance e faça música <strong>de</strong> dia e <strong>de</strong> noite.<br />

Use roupas limpas,<br />

tome banho e lave a cabeça.<br />

Olhe para o filho que lhe segura a mão,<br />

e que sua esposa se <strong>de</strong>leite com o seu abraço.<br />

Apenas essas coisas dizem respeito ao homem." 88<br />

Este não é o único lugar on<strong>de</strong> se encontram sentimentos <strong>de</strong>ste tipo. A canção <strong>de</strong> um banquete<br />

fúnebre egípcio, talvez mais ou menos contemporâneo <strong>de</strong> Gilgamesh, contém o seguinte conselho,<br />

após advertir os vivos acerca do que terão <strong>de</strong> enfrentar:<br />

"Realiza os teus <strong>de</strong>sejos enquanto estiveres vivo. Unge a tua cabeça com mirra, veste-te <strong>de</strong><br />

linho fino, e unge-te..., e não aborreças o teu coração, até que chegue o dia da lamentação." 89<br />

Um escritor mo<strong>de</strong>rno, no entanto, <strong>de</strong>staca acertadamente a nota diferente tocada por Coelet<br />

ainda que ele escreva nesse mesmo tom. "Os seus conselhos recomendando aceitar e gozar o que é<br />

possível em cada caso contêm um lembrete da existência <strong>de</strong> Deus", na verda<strong>de</strong> <strong>de</strong> "uma vonta<strong>de</strong><br />

positiva <strong>de</strong> Deus". 90 Isto está particularmente claro na convicção do versículo 7b, <strong>de</strong> que Deus já<br />

aceitou o gesto <strong>de</strong> gratidão. Esse gesto é consi<strong>de</strong>rado não apenas <strong>de</strong> gratidão, mas <strong>de</strong> humilda<strong>de</strong> e<br />

avi<strong>de</strong>z, na máxima faze-o conforme as tuas forças (v. 10). E, neste ponto, a brevida<strong>de</strong> da vida tornouse<br />

um impulso, como o foi para o nosso Senhor quando falou da chegada da "noite ... quando<br />

ninguém po<strong>de</strong> trabalhar" (Jo 9:4). Mas uma característica <strong>de</strong>ste livro é que, até mesmo nesta<br />

conexão, a morte não é apresentada com uma visão passageira, mas com um olhar fixo para os seus<br />

aspectos <strong>de</strong>soladores. A morte, porém, não é o único perigo.<br />

Mudanças e oportunida<strong>de</strong>s<br />

9: 11 Vi ainda <strong>de</strong>baixo do sol que não é dos ligeiros o prêmio, nem dos valentes, a vitória,<br />

nem tampouco dos sábios, o pão, nem ainda dos pru<strong>de</strong>ntes, a riqueza, nem dos inteligentes, o favor;<br />

porém tudo <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> do tempo e do acaso.<br />

87 Fora do contexto, os mortos não sabem cousa nenhuma (v. 5) tem às vezes sido tratado como uma <strong>de</strong>claração doutrinária<br />

direta. Mas, mesmo à parte do método do autor, tanto esta <strong>de</strong>claração como a seguinte (nem tão pouco terão eles recompensa)<br />

entrariam em choque com outras passagens bíblicas se fossem assim interpretadas. Cf., por exemplo, Lc 16:23ss.; 2 Co<br />

5:10.<br />

88 A Epopéia <strong>de</strong> Gilgamesh, parte da placa X, traduzida por H. Frankfort et al., em Before Philosophy (Pelican, 1949), pág.<br />

226.<br />

89 Traduzido para o inglês por A. Erman, em The Literature of the Ancient Egyptians (Methuen, 1927), pág. 133.<br />

90 G. von Rad. Old Testament Theology (Tradução inglesa, Oliver and Boyd, 1962), I, pág. 457.<br />

42


12 Pois o homem não sabe a sua hora. Como os peixes que se apanham com a re<strong>de</strong> traiçoeira<br />

e como os passarinhos que se pren<strong>de</strong>m com o laço, assim se enredam também os filhos dos homens<br />

no tempo da calamida<strong>de</strong>, quando cai <strong>de</strong> repente sobre eles.<br />

O tempo e o acaso estão lado a lado, sem dúvida porque ambos têm um jeito <strong>de</strong> arrancar<br />

subitamente as coisas <strong>de</strong> nossas mãos. Isto é bastante óbvio no que se refere às oportunida<strong>de</strong>s, pois<br />

a providência opera em segredo, e na perspectiva do homem a vida é feita principalmente <strong>de</strong> passos<br />

rumo ao <strong>de</strong>sconhecido e <strong>de</strong> acontecimentos que surgem do nada, que po<strong>de</strong>m mudar totalmente o<br />

padrão da nossa existência num dado momento. Quanto ao tempo, o capítulo 3, com o "tempo <strong>de</strong><br />

nascer ... tempo <strong>de</strong> morrer", e assim por diante, já provou quão inexoravelmente nossas vidas são<br />

jogadas <strong>de</strong> um extremo para o outro pela força das vagas da maré que não po<strong>de</strong>mos controlar. Tudo<br />

isso vem contrabalançar a impressão que po<strong>de</strong>mos adquirir das máximas acerca do trabalho duro,<br />

<strong>de</strong> que o sucesso é nosso quando queremos. No mar da vida somos mais como os peixes que se<br />

apanham com a re<strong>de</strong> traiçoeira, ou os que são inexplicavelmente poupados, e não os donos <strong>de</strong><br />

nosso <strong>de</strong>stino nem os capitães <strong>de</strong> nossas almas.<br />

A terceira coisa que perturba os nossos cálculos apresenta-se-nos <strong>de</strong> forma um tanto<br />

enternecedora na pequena parábola dos versículos 13-16, e nas reflexões que perpassam o resto<br />

do capítulo.<br />

A inconstância dos homens<br />

9: 13 Também vi este exemplo <strong>de</strong> sabedoria <strong>de</strong>baixo do sol, que foi para mim gran<strong>de</strong>.<br />

14 Houve uma pequena cida<strong>de</strong> em que havia poucos homens; veio contra ela um gran<strong>de</strong> rei,<br />

sitiou-a e levantou contra ela gran<strong>de</strong>s baluartes.<br />

15 Encontrou-se nela um homem pobre, porém sábio, que a livrou pela sua sabedoria;<br />

contudo, ninguém se lembrou mais daquele pobre.<br />

16 Então, disse eu: melhor é a sabedoria do que a força, ainda que a sabedoria do pobre é<br />

<strong>de</strong>sprezada, e as suas palavras não são ouvidas.<br />

17 As palavras dos sábios, ouvidas em silêncio, valem mais do que os gritos <strong>de</strong> quem governa<br />

entre tolos.<br />

18 Melhor é a sabedoria do que as armas <strong>de</strong> guerra, mas um só pecador <strong>de</strong>strói muitas<br />

coisas boas.<br />

Po<strong>de</strong>mos i<strong>de</strong>ntificar-nos imediatamente com o povo da pequena cida<strong>de</strong> sitiada, e sentimos o seu<br />

alívio quando o estrategista amador (ou seria um diplomata?) dá o seu golpe <strong>de</strong> mestre. Se formos<br />

honestos, po<strong>de</strong>remos ver-nos ainda na última cena, quando todos se esqueceram totalmente <strong>de</strong>le.<br />

Mas a parábola não é uma fábula que visa mostrar o que as pessoas <strong>de</strong>veriam fazer: é uma história<br />

<strong>de</strong> advertência para mostrar como elas são. Se formos nos i<strong>de</strong>ntificar com alguém, será com o homem<br />

pobre, porém sábio. Não que <strong>de</strong>vamos nos imaginar como consultores universais, mas simplesmente<br />

que, é triste dizer, <strong>de</strong>veríamos apren<strong>de</strong>r a não contar com nada tão transitório como a gratidão<br />

pública.<br />

"O frio, por mais intenso,<br />

Não machuca tanto quanto<br />

Um benefício não lembrado,<br />

E, embora as águas congele,<br />

Não traz sofrer mais agudo<br />

Que o <strong>de</strong> um amigo olvidado.91"<br />

No padrão do capítulo este é mais um exemplo do que é imprevisível e cruel na vida, para<br />

solapar a nossa confiança naquilo que po<strong>de</strong>ríamos fazer com nossas próprias forças. Os dois<br />

últimos versículos (vs. 17ss.) constituem um arremate à parábola, mostrando, primeiro, como a<br />

sabedoria é preciosa e, então, como ela é vulnerável. Somos abandonados com a suspeita <strong>de</strong> que, na<br />

política humana, a última palavra fica geralmente com os gritos do versículo 17 ou com o aço frio do<br />

versículo 18. Raramente com a verda<strong>de</strong>, raramente com o mérito.<br />

91 Shakespeare, As You Like It, Ato II, Cena 7.<br />

43


Terceiro Resumo:<br />

Retrospectiva <strong>de</strong> <strong>Eclesiastes</strong> 7:1-9:18<br />

As palavras do nosso autor, como as <strong>de</strong> Jeremias, po<strong>de</strong>riam ser assim resumidas:<br />

"para arrancares e <strong>de</strong>rribares,<br />

para <strong>de</strong>struíres e arruinares,"<br />

mas, então, e apenas então,<br />

"para edificares e para plantares". 92<br />

Ao chegar ao final do capítulo 9 ele já apresentou os argumentos contra a nossa autosuficiência.<br />

A primeira meta<strong>de</strong> do livro, cujo andamento resumimos rapidamente às páginas 36 e 51,<br />

<strong>de</strong>ixou-nos poucas <strong>de</strong>sculpas para a complacência, e os três últimos capítulos têm insistido ainda<br />

mais no assunto.<br />

Ao contrário dos textos anteriores, os provérbios e as reflexões <strong>de</strong> 7:1-22 não nos aliviaram <strong>de</strong><br />

nossa preocupação principal, embora os intitulássemos <strong>de</strong> interlúdio. Com poucas exceções, as<br />

afirmações são todas severas (por exemplo, 7:1-4) e até mesmo, sob certo aspecto, cínicas (7:15-18),<br />

impelindo duramente o secularista contra o fato e as implicações da morte (para ele). E quando o<br />

argumento foi retomado em 7:23, levantou novas dúvidas quanto à sabedoria humana. O capítulo 2<br />

já apresentara o fato <strong>de</strong> que o sábio é tão mortal quanto o estulto. Agora, porém, surge a questão<br />

premente: se, afinal <strong>de</strong> contas, a sabedoria na verda<strong>de</strong> po<strong>de</strong> ser alcançada. Por mais sábio que<br />

alguém possa ser em muitos <strong>de</strong>talhes da vida (8:1-6; 9:13-18), tornou-se claro que ele nunca chegará<br />

ao âmago das coisas ou sequer à certeza <strong>de</strong> que a verda<strong>de</strong>, caso a <strong>de</strong>scubra, po<strong>de</strong>rá ser enfrentada.<br />

"Quem o achará?" (7:24); "como há <strong>de</strong> ser" (8:7); "se é amor ou se é ódio ... não o sabe o homem"<br />

(9:1).<br />

Sob outros aspectos também o quadro se obscureceu. Agora temos relances <strong>de</strong> torpeza moral,<br />

<strong>de</strong> injustiça não apenas <strong>de</strong>senfreada mas também admirada (8:10ss.), e do homem que, além <strong>de</strong><br />

fraco, também "está inteiramente disposto a praticar o mal", seguindo o seu caminho "cheio <strong>de</strong><br />

malda<strong>de</strong>" (8:11; 9:3). E, ao longo da <strong>de</strong>struição que a morte traz e que já foi enfatizada por todo<br />

o livro, surgem agora os perigos do tempo e da casualida<strong>de</strong> (9:11ss.), para tornar ainda mais inúteis<br />

os planos do homem.<br />

Apesar <strong>de</strong> tudo isto, houve alguns lampejos <strong>de</strong> coisas melhores, mantendo <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> nós um<br />

pouco <strong>de</strong> esperança, a ser acalentada e justificada nos capítulos restantes, pois finalmente Coelet<br />

acabou sua obra <strong>de</strong> <strong>de</strong>molição. O local foi <strong>de</strong>sobstruído: ele po<strong>de</strong> começar a edificar e a plantar. Quer<br />

consi<strong>de</strong>remos o próximo capítulo como um mo<strong>de</strong>sto começo <strong>de</strong>ste processo, quer como um<br />

interlúdio para aliviar a tensão (comparável a 4:9 - 5:12 e 7:1-22), ele vai permitir que retomemos o<br />

fôlego antes <strong>de</strong> voltarmos à veemente questão do livro: se a vida tem algum significado e, se tem,<br />

qual é.<br />

No início, então, há questões <strong>de</strong> senso prático que convém notarmos, pois fazem parte da<br />

sabedoria e <strong>de</strong> uma vida sã tanto quanto as perguntas que temos <strong>de</strong> respon<strong>de</strong>r, <strong>de</strong>ntro dos limites<br />

do nosso conhecimento. Após sermos estabilizados com os lembretes para sermos sensatos (capítulo<br />

10), po<strong>de</strong>mos nos atirar com mais segurança ao convite para sermos corajosos (11:1-6), alegres (11:7-<br />

10) e tementes a Deus (capítulo 12).<br />

<strong>Eclesiastes</strong> 10:1-20 -<br />

Interlúdio: Sê pru<strong>de</strong>nte!<br />

Este capítulo apresenta uma visão calma da vida, escolhendo os exemplos a esmo a fim <strong>de</strong><br />

ajudar-nos a manter elevados os nossos próprios padrões, sem nos surpreen<strong>de</strong>rmos <strong>de</strong>mais com as<br />

esquisitices das outras pessoas nem ficarmos in<strong>de</strong>fesos ao nos <strong>de</strong>pararmos com os po<strong>de</strong>rosos.<br />

Loucura<br />

10:1 Qual a mosca morta faz o ungüento do perfumador exalar mau cheiro, assim é para a<br />

sabedoria e a honra um pouco <strong>de</strong> estultícia.<br />

2 O coração do sábio se inclina para o lado direito, mas o do estulto, para o da esquerda.<br />

92 Jr 1:10.<br />

44


3 Quando o tolo vai pelo caminho, falta-lhe o entendimento; e, assim, a todos mostra que é<br />

estulto.<br />

O versículo 1 coloca <strong>de</strong> forma pitorescamente <strong>de</strong>sagradável o princípio com o qual se concluiu<br />

o capítulo anterior: que é preciso muito menos para arruinar uma coisa do que para criá-la. Isto, a<br />

propósito, faz parte das vantagens do mal e do apelo que este exerce sobre a nossa parte má, pois<br />

dizendo-o da maneira ru<strong>de</strong> como Coelet o faz, é mais fácil criar fedor do que perfume. Mas neste<br />

versículo o que cria o problema é a súbita falta ou o impulso tolo; e há infinitos exemplos <strong>de</strong><br />

prêmios que foram perdidos e <strong>de</strong> bons começos que foram estragados em um só momento <strong>de</strong><br />

imprudência, não apenas pelos irresponsáveis, como Esaú, mas também pelos que estavam sendo<br />

dolorosamente provados, como Moisés e Arão.<br />

No versículo 2 algumas versões mo<strong>de</strong>rnas foram infelizes ao usar uma anatomia duvidosa,<br />

tipo "o coração do sábio está à sua mão direita... "(ERC). Talvez a BJ seja a melhor tradução, ainda<br />

que livre: "O sábio se orienta bem, o insensato se <strong>de</strong>svia". A mão direita e a mão esquerda sempre<br />

foram generalizadamente consi<strong>de</strong>radas como sendo respectivamente <strong>de</strong> boa sorte e <strong>de</strong> má sorte;<br />

coisa boa e má (cf. o sentido da palavra latina sinistro, que significa "esquerda"). Na figura que o<br />

nosso Senhor usou para com as ovelhas e os bo<strong>de</strong>s, os dois lados correspon<strong>de</strong>m a dois vereditos<br />

contrários. Mas, <strong>de</strong> maneira menos <strong>de</strong>cisiva, também há bênçãos provenientes da mão direita e da<br />

mão esquerda, diferindo apenas em grau. 93 O estulto, portanto, inclina-se para o que tem menos<br />

valor, o menos bom e, além disso, para o que é positivamente errado. A preferência apresenta-se<br />

<strong>de</strong> muitas maneiras, não apenas moral e espiritualmente. Por outro lado, as predileções do<br />

homem sábio são enunciadas na gran<strong>de</strong> lista dos "tudo o que é" <strong>de</strong> Filipenses 4:8.<br />

No versículo 3 surge a comédia, como acontece freqüentemente em Provérbios ao tratar <strong>de</strong>ste<br />

tema. No parecer prático <strong>de</strong> Coelet, o estulto não tem como disfarçar o que é, 94 a não ser talvez com<br />

o silêncio total (cf. Pv 17:28). Mesmo assim o seu comportamento <strong>de</strong> algum modo o acabará<br />

<strong>de</strong>nunciando. Mas <strong>de</strong> fato ele é convencido <strong>de</strong>mais para se abster <strong>de</strong> expor seus pontos <strong>de</strong> vista a<br />

todos que venha a conhecer. Julgando a partir <strong>de</strong> Provérbios, suas frases elaboradas são incongruentes<br />

(Pv 17:7) e suas observações sem tato, impertinentes (Pv 18:6); e quando se fala com ele, não presta<br />

atenção (Pv 18:2). Se tem uma <strong>mensagem</strong> para alguém transmite-a com erros, e se <strong>de</strong> repente faz uma<br />

observação sábia, é por acaso (Pv 26:6ss.). Felizmente po<strong>de</strong>-se sentir a sua aproximação pelos<br />

esforços que todos fazem para <strong>de</strong>saparecer (Pv 17:12).<br />

A corda bamba social<br />

10:4 Levantando-se contra ti a indignação do governador, não <strong>de</strong>ixes o teu lugar, porque o<br />

ânimo sereno acalma gran<strong>de</strong>s ofensores. 5 Ainda há um mal que vi <strong>de</strong>baixo do sol, erro que proce<strong>de</strong><br />

do governador: 6 O tolo posto em gran<strong>de</strong>s alturas, mas os ricos assentados em lugar baixo. 7 Vi os<br />

servos a cavalo, e os príncipes andando a pé como servos sobre a terra.<br />

Por trás do suave conselho do versículo 4, percebe-se um agudo senso <strong>de</strong> observação, pois o<br />

que ele nos convida a notar é o mais absurdo fenômeno humano: o acesso <strong>de</strong> raiva. Se a pessoa<br />

consegue reconhecer os seus sintomas, po<strong>de</strong> livrar-se <strong>de</strong> prejuízos provocados por ela mesma, pois,<br />

embora possa sentir-se sublime "<strong>de</strong>mitindo-se do seu posto" (ostensivamente por princípio, mas na<br />

realida<strong>de</strong> em um acesso <strong>de</strong> orgulho), na verda<strong>de</strong> isto é menos impressionante e mais imaturo do<br />

que parece. Submeter-se às autorida<strong>de</strong>s, além <strong>de</strong> ser <strong>de</strong>ver do crente (como o Novo Testamento nos<br />

ensina, 1 Pe 2:18ss.), também é sábio, uma vez que a ira que po<strong>de</strong> ser acalmada pelo ânimo sereno<br />

(v. 4b) tem ela mesma os sintomas <strong>de</strong> um acesso <strong>de</strong> raiva; e uma pessoa nessa condição é melhor<br />

do que duas.<br />

Pior ainda, talvez, do que o autocrata é o covar<strong>de</strong>. Com ele no po<strong>de</strong>r tudo po<strong>de</strong> acontecer. As<br />

transformações sociais do versículo 6 e 7 acontecem por causa do governador do versículo 5 e nos<br />

fazem pensar em quão frágeis são as nossas pequenas hierarquias. Mas qualquer época po<strong>de</strong> ser<br />

tomada <strong>de</strong> surpresa. Do antigo Egito, muitos séculos antes <strong>de</strong>stas palavras terem sido escritas,<br />

recebemos as <strong>de</strong>soladas observações que nos parecem tão oportunas quanto as <strong>de</strong> Coelet:<br />

"Ora, imaginem, os nobres estão se lamentando, enquanto os pobres se alegram..."<br />

"Imaginem só, todas as servas soltaram a língua. Quando as senhoras falam, as servas se<br />

93 Cf. Efraim e Manasses, Gn 48:13ss.; veja também Pv 3:16.<br />

94 Um sentido alternativo para 3b seria gramaticalmente possível: "chama a todos <strong>de</strong> estultos". Os comentaristas se divi<strong>de</strong>m<br />

a esse respeito, mas a maioria das traduções portuguesas concordam com a ERAB.<br />

45


aborrecem... Eis que as senhoras da nobreza são agora respiga<strong>de</strong>iras, e os nobres estão na<br />

oficina." 95<br />

Se há quem se sinta inclinado a aplaudir, Coelet não vai exatamente discutir com eles, pois o<br />

seu alvo, do começo ao fim, é sacudir a nossa fé patética na permanência <strong>de</strong> nossas ações; e, <strong>de</strong> forma<br />

alguma, ele tem ilusões quanto aos homens que estão por cima. 96 Mas ele tampouco consi<strong>de</strong>ra tais<br />

<strong>de</strong>posições como triunfos da justiça social. Os exemplos que ele testemunhou foram tanto giros da<br />

roda da fortuna (v. 7), como também, nomeações <strong>de</strong> pessoas erradas (o tolo posto em gran<strong>de</strong>s<br />

alturas, v. 6). Po<strong>de</strong>mos nós mesmos imaginar as intrigas, as ameaças, as bajulações e os subornos<br />

que lhes abriram o caminho.<br />

Fatos concretos da vida<br />

10:8 Quem abre uma cova nela cairá, e quem rompe um muro, mordê-lo-á uma cobra.<br />

9 Quem arranca pedras será maltratado por elas, e o que racha lenha expõe-se ao perigo.<br />

10 Se o ferro está embotado, e não se lhe afia o corte, é preciso redobrar a força; mas a<br />

sabedoria resolve com bom êxito.<br />

11 Se a cobra mor<strong>de</strong>r antes <strong>de</strong> estar encantada, não há vantagem no encantador.<br />

O ponto <strong>de</strong> vista em que se baseiam estas observações não é o fatalismo, como se po<strong>de</strong>ria<br />

<strong>de</strong>duzir dos versículos 8 e 9 por si mesmos, 97 mas um realismo elementar. O lampejo ofuscante do<br />

óbvio no versículo 10, apoiado pelo humor sarcástico do versículo seguinte, acaba com qualquer<br />

dúvida. Somos instados a usar a cabeça, olhando um pouco mais adiante, pois qualquer ação<br />

vigorosa envolve riscos, e a pessoa que nós chamamos <strong>de</strong> <strong>de</strong>sastrada geralmente <strong>de</strong>ve culpar-se a si<br />

mesma e não à sua sorte. Ela <strong>de</strong>veria saber, <strong>de</strong>veria tomar cuidado. Mas Coelet faz-nos entrever<br />

uma parábola falando em cova e serpente, pois a cova que serve <strong>de</strong> arapuca para quem a fez era uma<br />

figura proverbial da justiça poética, 98 e a serpente que não se percebe era a própria imagem da<br />

retribuição que nos pega <strong>de</strong> emboscada. Era assim que o profeta Amós entendia, como também as<br />

testemunhas do encontro <strong>de</strong> Paulo com a víbora. 99<br />

Assim, talvez o versículo 8 esteja apresentando um aspecto diferente do versículo 9, dirigido<br />

mais aos inescrupulosos do que aos irresponsáveis. Quanto a estes últimos, eles (ou nós?) são muito<br />

bem atingidos nos versículos 10 e 11, primeiro com a esmerada paciência que se <strong>de</strong>ve ter para com<br />

os ignorantes e, então, com um lampejo <strong>de</strong> bom senso e um toque <strong>de</strong> farsa. Depois do<br />

surpreen<strong>de</strong>nte começo, on<strong>de</strong> a cobra é rápida <strong>de</strong>mais, quase po<strong>de</strong>mos perceber a indiferença que<br />

acompanha a última linha, como a dizer: "o encantador per<strong>de</strong> a sua remuneração". Quanto à<br />

vítima... para que perguntar?<br />

Bom senso e falta <strong>de</strong> senso<br />

10: 12 Nas palavras do sábio há favor, mas ao tolo os seus lábios <strong>de</strong>voram.<br />

13 As primeiras palavras da boca do tolo são estultícia, e as últimas, loucura perversa.<br />

14 O estulto multiplica as palavras, ainda que o homem não sabe o que suce<strong>de</strong>rá; e quem lhe<br />

manifestará o que será <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>le?<br />

15 O trabalho do tolo o fatiga, pois nem sabe ir à cida<strong>de</strong>.<br />

As palavras são naturalmente um assunto preferido pelos escritores da Sabedoria, pois<br />

<strong>de</strong>sempenham um papel óbvio na arte <strong>de</strong> viver; e é a arte, e não o objetivo da vida, que predomina<br />

neste capítulo.<br />

Mas <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> examinarmos rapidamente o uso correto das palavras, enfrentaremos<br />

<strong>de</strong>moradamente o seu mal uso. Quem sabe a proporção <strong>de</strong>sses enfoques seja justa.<br />

Dizer, como muitas versões mo<strong>de</strong>rnas, que nas palavras <strong>de</strong> um homem sábio há favor (v. 12) é<br />

apenas meia verda<strong>de</strong>, embora isto faça um perfeito contraste com a segunda linha. O que realmente<br />

está sendo dito é que suas palavras são "cheias <strong>de</strong> graça" (ER). Mais do que outra coisa, é<br />

95 "As Advertências <strong>de</strong> Ipu-wer", traduzidas para o inglês por John A. Wilson em ANET, págs. 441s. Provavelmente<br />

escritas antes <strong>de</strong> 2000 a.C.<br />

96 Cf. 3:16; 4:lss., 13ss.; 5:8s.<br />

97 As afirmações dos versículos 8ss. são generalizações, <strong>de</strong>ixando <strong>de</strong> fora as exceções e meras probabilida<strong>de</strong>s por causa do<br />

resumo bem <strong>de</strong>finido. A BV os traduz: "po<strong>de</strong> acabar caindo nele... po<strong>de</strong> ser mordido", etc. sacrificando um pouco a sua<br />

potência.<br />

98 Por exemplo, Sl 7:15; 9:15; 35:7ss.; 57:6.<br />

99 Am 5:18-20; 9:3; Atos 28:4.<br />

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certamente isto que abrange igualmente encanto e <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za, que obtém o favor. Acima <strong>de</strong> tudo,<br />

porém, ela é <strong>de</strong>sinteressada e brota da humilda<strong>de</strong> básica que é o princípio da sabedoria.<br />

Da mesma forma, o pequeno retrato do tolo indica as atitu<strong>de</strong>s interiores que jazem por trás<br />

<strong>de</strong> suas palavras. Se rimos <strong>de</strong>le no versículo 3, vemos agora o seu lado trágico e perigoso. Nas<br />

Escrituras ele é consi<strong>de</strong>rado mais teimoso do que obtuso: as suas idéias (e, portanto, suas palavras)<br />

recusam-se a aceitar a existência <strong>de</strong> Deus. É o que se diz claramente no versículo 13, <strong>de</strong>sdobrando-se<br />

todo o processo, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o seu tolo início até o seu fim <strong>de</strong>sastroso. Esse fim, a loucura perversa, talvez<br />

pareça chocante <strong>de</strong>mais para ser verda<strong>de</strong>; mas os seus dois elementos, o moral e o mental, são os<br />

frutos finais da recusa em aceitar a vonta<strong>de</strong> e a existência <strong>de</strong> Deus. Se há incontáveis incrédulos cujo<br />

fim terreno dificilmente po<strong>de</strong>ria ser <strong>de</strong>scrito como perversida<strong>de</strong> ou loucura, é apenas porque a<br />

lógica <strong>de</strong> sua incredulida<strong>de</strong> não foi levada aos extremos, <strong>de</strong>vido à graça misericordiosa <strong>de</strong> Deus.<br />

Mas, quando toda uma socieda<strong>de</strong> se torna secular, o processo é muito mais evi<strong>de</strong>nte e completo.<br />

Os versículos seguintes examinam dois aspectos da conversa <strong>de</strong> um tolo. Ela é impru<strong>de</strong>nte, não<br />

lhe fazendo bem algum (v. 12); e in<strong>de</strong>corosa, não <strong>de</strong>monstrando qualquer acanhamento diante do<br />

<strong>de</strong>sconhecido (v. 14). Embora este seja o caso com todos nós, em nossos próprios momentos <strong>de</strong><br />

tolice, é verda<strong>de</strong> em um nível mais sério na vida do verda<strong>de</strong>iro tolo, do homem sem Deus, cuja<br />

maneira <strong>de</strong> falar trai em tudo os seus pontos <strong>de</strong> vista (cf. Mt 12:34-37) e cujas opiniões confiantes<br />

jovialmente ignoram a nossa necessida<strong>de</strong> humana <strong>de</strong> revelação.<br />

O versículo 15 é um apêndice do próprio tolo, mas apenas um sábio saberia exatamente o que<br />

significa! A segunda linha é evi<strong>de</strong>ntemente um arremate proverbial sobre o tipo <strong>de</strong> pessoa que<br />

consegue errar nas coisas mais simples (cf. Is 35:8); ele se per<strong>de</strong>ria, como diríamos hoje, até mesmo<br />

se o colocássemos numa escada rolante. Esta linha ficaria mais simplesmente traduzida sem o<br />

"pois" com que inicia: (alguém) que "nem sabe ir à cida<strong>de</strong>!" Assim começa a surgir o quadro <strong>de</strong> um<br />

homem que, por causa <strong>de</strong> sua estupi<strong>de</strong>z, torna as coisas <strong>de</strong>snecessariamente difíceis para si próprio.<br />

Muito possivelmente há uma conexão com o tolo loquaz do versículo anterior, que faz tempesta<strong>de</strong><br />

em um copo <strong>de</strong> água em assuntos que estão totalmente além <strong>de</strong> sua alçada; mas muito<br />

provavelmente estamos sendo apresentados a apenas mais um lado da estrutura <strong>de</strong> uma pessoa<br />

tola. Neste caso, isto também se encaixa no tema do livro, com a sua ênfase sobre a inutilida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

qualquer trabalho que não tenha objetivo (cf., por exemplo, 1:8; 2:18-23); e quem sabe <strong>de</strong>vemos<br />

lembrar que, em última análise, é isto que po<strong>de</strong> fazer-nos <strong>de</strong> tolos. O livro termina com uma<br />

advertência ao tolo culto, cujo "muito estudo" apenas o <strong>de</strong>sgasta e o afasta do que é mais importante<br />

(a suma, 12:12ss.), que é o temor <strong>de</strong> Deus. Estar sempre apren<strong>de</strong>ndo, nunca alcançando nada, como 2<br />

Timóteo 3:7 <strong>de</strong>screve algumas pessoas, é ser uma pessoa frívola que consegue se per<strong>de</strong>r até mesmo<br />

no caminho mais direto para a cida<strong>de</strong>. Isto é loucura que não tem sequer a justificativa da<br />

ignorância.<br />

Principalmente acerca dos governantes<br />

10:16 Ai <strong>de</strong> ti, ó terra cujo rei é criança e cujos príncipes se banqueteiam já <strong>de</strong> manhã.<br />

17 Ditosa, tu, ó terra cujo rei é filho <strong>de</strong> nobres e cujos príncipes se sentam à mesa a seu<br />

tempo para refazerem as forças e não para bebedice.<br />

18 Pela muita preguiça <strong>de</strong>saba o teto, e pela frouxidão das mãos goteja a casa.<br />

19 O festim faz-se para rir, o vinho alegra a vida, e o dinheiro aten<strong>de</strong> a tudo.<br />

20 Nem no teu pensamento amaldiçoes o rei, nem tampouco no mais interior do teu quarto,<br />

o rico; porque as aves dos céus po<strong>de</strong>riam levar a tua voz, e o que tem asas daria notícia das tuas<br />

palavras.<br />

O capítulo termina, assim como começou, com observações sagazes sobre procedimentos na<br />

vida prática, como que para tornar a enfatizar que o interesse do sábio nas questões importantes não<br />

afeta o seu interesse pelo presente. O homem sábio importa-se muito com a forma como o seu país é<br />

governado, e como <strong>de</strong>ve se comportar e dirigir os seus negócios em um mundo que é ao mesmo<br />

tempo exigente (v. 18), gostoso (v. 19) e perigoso (v. 20).<br />

Os versículos 16 e 17 fazem-nos lembrar da influência que emana dos homens que estão lá em<br />

cima, para estabelecer o ambiente <strong>de</strong> toda uma comunida<strong>de</strong>. Aplica-se tanto às comunida<strong>de</strong>s<br />

menores quanto às maiores. O primeiro quadro é o <strong>de</strong> um governante sem dignida<strong>de</strong> ou sem<br />

sabedoria, ro<strong>de</strong>ado <strong>de</strong> homens responsáveis. Caso queiramos consi<strong>de</strong>rar criança ou nobres nestes<br />

versículos em um sentido muito limitado, uma passagem anterior já nos fez ver que ida<strong>de</strong> e status<br />

não significam nada, mesmo para o rei, e já falou do jovem joão-ninguém que chega com nada<br />

47


mais a seu favor além dos seus dotes naturais (4:13). A criança, ou "rapaz", do versículo 16, bem<br />

po<strong>de</strong> ser que seja um homem feito que nunca amadureceu (cf. Is 3:12), em contraste, por assim<br />

dizer, com o jovem Josias que "sendo ainda moço, começou a buscar o Deus <strong>de</strong> Davi", 100 para<br />

bênção do seu país. E a menção <strong>de</strong> nobres, ou "príncipes", não é um toque <strong>de</strong> esnobismo, mas<br />

apenas <strong>de</strong> estabilida<strong>de</strong> política. Eles não são <strong>de</strong>scritos nas Escrituras como exemplos <strong>de</strong> virtu<strong>de</strong>, 101<br />

nem homens como Davi ou Jeroboão são <strong>de</strong>squalificados por não terem saído <strong>de</strong>sse círculo. A ênfase<br />

<strong>de</strong> ambos os versículos é dada pela profecia da <strong>de</strong>rrocada social em Isaías 3:1-5, on<strong>de</strong> os homens <strong>de</strong><br />

peso na comunida<strong>de</strong> seriam <strong>de</strong>sapossados:<br />

"Dar-lhes-ei meninos por príncipes,<br />

crianças governarão sobre eles...<br />

o menino se atreverá contra o ancião<br />

e o vil contra o nobre."<br />

Quanto aos cortesãos <strong>de</strong>ca<strong>de</strong>ntes (v. 16), Israel os conhecia muito bem. Os profetas pintam<br />

quadros fiéis <strong>de</strong> suas farras diárias (Is 5:11,22), sua ociosida<strong>de</strong> acalentada (Am 6:4ss.) e seu<br />

aviltamento até o estupor e a obscenida<strong>de</strong> (Is 28:7ss.). Em tais situações, a justiça e a verda<strong>de</strong><br />

transformam-se nos principais <strong>de</strong>sastres nacionais, "tropeçando pelas praças" (Is 59:14).<br />

Parece que os provérbios dos versículos 18 e 19 foram colocados aí especialmente por sua<br />

aplicação à vida dos po<strong>de</strong>rosos, seus mandos e <strong>de</strong>smandos, seu uso e abuso dos dons <strong>de</strong> Deus, como<br />

já vimos nos versículos anteriores. Então o versículo 20 volta-se mais explicitamente para essa<br />

gente.<br />

Certamente a preguiça (v. 18), que silenciosamente <strong>de</strong>strói uma casa negligenciada ou um<br />

espírito indolente, é tão fatal para um reino quanto para um prédio ou uma pessoa. Nada mais é<br />

preciso para que <strong>de</strong>sabe, e nada é mais <strong>de</strong>vastador. Sejam quais forem os prejuízos que possam ser<br />

consi<strong>de</strong>rados, o apodrecimento não está entre eles, pois o tempo está a seu favor. Quanto às<br />

autorida<strong>de</strong>s indolentes castigadas pelos profetas nas passagens que consi<strong>de</strong>ramos, sua própria<br />

<strong>de</strong>cadência iria espalhar a sua podridão à estrutura que os abrigava, até que esta <strong>de</strong>smoronasse<br />

sobre suas cabeças.<br />

No provérbio do versículo 19, as duas primeiras linhas po<strong>de</strong>m empatar com as cenas dos<br />

festins, boas e más, que dão início ao parágrafo (16ss.); mas em qualquer outro contexto nós as<br />

veríamos relacionadas à questão do dinheiro. Não é preciso ser cínico: a questão não é que todo<br />

homem tem o seu preço, mas que cada bem tem o seu uso; e a prata, na forma <strong>de</strong> dinheiro, é o mais<br />

versátil <strong>de</strong> todos. Nosso Senhor fez o mesmo tipo <strong>de</strong> observação em Lucas 16:9, e<br />

caracteristicamente <strong>de</strong>scortinou uma nova visão ao fazê-lo. No contexto atual, entretanto, as duas<br />

primeiras linhas dos provérbios talvez <strong>de</strong>staquem que comer para refazer as forças, e não para<br />

bebedice (v. 17), é uma coisa boa, ao passo que os excessos não têm sentido. Os dons <strong>de</strong> Deus são<br />

todos eles bons, e o seu uso a<strong>de</strong>quado e agradável é perfeitamente suficiente.<br />

Com o versículo 20 retornamos explicitamente aos homens do po<strong>de</strong>r, inclusive do po<strong>de</strong>r<br />

financeiro (a que o versículo 19c vai se referir especificamente). Eles não são uma companhia<br />

agradável. Para o leitor do século vinte, há algo <strong>de</strong> familiar em sua hipersensibilida<strong>de</strong> em relação aos<br />

diz-que-diz, mas eles não precisam <strong>de</strong> espionagem eletrônica. Eles não teriam atingido alturas<br />

vertiginosas, nem permanecido lá, sem um sexto sentido para com os dissi<strong>de</strong>ntes.<br />

Prático como sempre, o escritor vê isso como um fato da vida, e conclui o capítulo com o<br />

conselho <strong>de</strong> que se aprenda a conviver com isso. Sobreviver é o primeiro passo, embora não seja <strong>de</strong><br />

forma alguma o último. Agora ele já po<strong>de</strong> nos conduzir adiante até o clímax do livro.<br />

<strong>Eclesiastes</strong> 11:1-12:8 -<br />

Em direção do alvo<br />

Agora o passo torna-se mais acelerado. O cenário permanece inalterado: tem as mesmas<br />

sombras profundas e ocasionais fachos <strong>de</strong> luz, mas agora o consi<strong>de</strong>ramos com resolução e não com<br />

ansieda<strong>de</strong>. Conhecemos o pior - melhor ainda: po<strong>de</strong>mos partir na direção certa.<br />

Três diferentes investidas nos colocam no caminho dos "finalmentes". Po<strong>de</strong>mos resumi-las<br />

100 2 Cr 34:3.<br />

101 São covar<strong>de</strong>s em 1 Rs 21:8,11; excessivamente transigentes em Ne 6:17ss.; 13:17; e parte <strong>de</strong> um regime <strong>de</strong>sastroso em<br />

Jr 39:6.<br />

48


nos títulos que escolhemos aqui para as três partes que abrangem estes dois últimos capítulos: Sê<br />

corajoso! Alegra-te! Teme a Deus!<br />

Sê corajoso!<br />

11:1 Lança o teu pão sobre as águas, porque <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> muitos dias o acharás.<br />

2 Reparte com sete e ainda com oito, porque não sabes que mal sobrevirá à terra.<br />

3 Estando as nuvens cheias, <strong>de</strong>rramam aguaceiro sobre a terra; caindo a árvore para o sul<br />

ou para o norte, no lugar em que cair, aí ficará.<br />

4 Quem somente observa o vento nunca semeará, e o que olha para as nuvens nunca segará.<br />

5 Assim como tu não sabes qual o caminho do vento, nem como se formam os ossos no ventre<br />

da mulher grávida, assim também não sabes as obras <strong>de</strong> Deus, que faz todas as coisas.<br />

6 Semeia pela manhã a tua semente e à tar<strong>de</strong> não repouses a mão, porque não sabes qual<br />

prosperará; se esta, se aquela ou se ambas igualmente serão boas.<br />

Isto nos leva diretamente ao sábio conselho do capítulo 10, que nós resumimos na expressão:<br />

"Sê pru<strong>de</strong>nte!" A cautela teve então o seu <strong>de</strong>vido lugar; agora, tem <strong>de</strong> ce<strong>de</strong>r o caminho ao<br />

empreendimento.<br />

Uma das coisas frustrantes da vida observadas em 9:11 ss. foi o fato <strong>de</strong> que o tempo e as<br />

oportunida<strong>de</strong>s po<strong>de</strong>m inverter os nossos melhores planos. Se isso é um pensamento paralisante,<br />

também po<strong>de</strong> ser um incentivo à ação, pois, se há riscos por toda parte, é melhor falhar sendo<br />

arrojado do que agarrando os recursos e guardando-os para nós mesmos. Até parece que<br />

sentimos o Novo Testamento soprando através dos dois primeiros versículos, um reflexo do<br />

paradoxo predileto <strong>de</strong> nosso Senhor, que disse: "Quem ama a sua vida, per<strong>de</strong>-a" e "com a medida<br />

com que tiver<strong>de</strong>s medido vos medirão também". 102 Isto é verda<strong>de</strong>, numa certa proporção, quer<br />

Coelet esteja falando aqui <strong>de</strong> ousadia nos negócios ou <strong>de</strong> simples generosida<strong>de</strong>, pois é difícil<br />

discernir ao certo do que ele está realmente falando, 103 ou se ele fala primeiro <strong>de</strong> um e <strong>de</strong>pois do<br />

outro.<br />

O pensamento dos versículos 3 e 4 trazem novamente à tona coisas sobre as quais nada<br />

po<strong>de</strong>mos fazer e aquelas que exigem uma firme <strong>de</strong>cisão e ação. Os dois exemplos dados (as<br />

nuvens que seguem suas próprias leis e tempos, não os nossos, e a árvore caída que não consultou<br />

a conveniência <strong>de</strong> ninguém) po<strong>de</strong>m nos levar a pensar no que po<strong>de</strong> acontecer e no que<br />

po<strong>de</strong>ria ter acontecido; a nós, porém, cabe apenas agarrar o que realmente existe e o que está ao<br />

nosso alcance. São poucos os gran<strong>de</strong>s empreendimentos que aguardaram condições i<strong>de</strong>ais; nós<br />

também não po<strong>de</strong>mos esperar. Então o versículo 5 relaciona o reino do <strong>de</strong>sconhecido e do<br />

<strong>de</strong>sconhecível com Deus, que faz todas as cousas. O exemplo que ele escolheu é o das mais<br />

notáveis obras divinas, do qual <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m todos os nossos questionamentos e pensamentos: a<br />

maravilha do corpo humano e o espírito humano. Será que nosso Senhor tinha este versículo em<br />

mente ao falar a Nico<strong>de</strong>mos sobre o segundo nascimento? Tal como Coelet, ele usou<br />

apropriadamente o fato <strong>de</strong> que uma mesma palavra serve na linguagem bíblica para vento (v. 4)<br />

e para espírito como algumas versões traduzem no versículo 5, 104 e captou os mesmos pontos:<br />

sua invisibilida<strong>de</strong> e sua liberda<strong>de</strong> em relação ao nosso controle, mas também a sua po<strong>de</strong>rosa<br />

realida<strong>de</strong>.<br />

O versículo 6, arrematando a passagem, tem uma leveza <strong>de</strong> espírito que novamente nos faz<br />

lembrar o Novo Testamento. A verda<strong>de</strong>ira reação para com a incerteza é um esforço redobrado,<br />

"aproveitando o tempo", "quer seja oportuno, quer não", expressa por Coelet em termos <strong>de</strong> um<br />

fazen<strong>de</strong>iro e o seu trabalho, e por Paulo em termos <strong>de</strong> colheita espiritual da boa semente do<br />

evangelho e das obras <strong>de</strong> misericórdia. 105<br />

É um conselho estimulante, sem idéias <strong>de</strong> vacilação, mas sem traços <strong>de</strong> bravata ou<br />

irresponsabilida<strong>de</strong>. A própria pequenez <strong>de</strong> nosso conhecimento e <strong>de</strong> nossa capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

102 Jo 12:25; Mt 7:2.<br />

103 "Envia" (não lança, que po<strong>de</strong> ser enganoso) dá idéia <strong>de</strong> comércio, caso pão represente cereais ou a subsistência <strong>de</strong> alguém.<br />

Da mesma forma, o versículo 2 com a sua referência a um futuro incerto já foi muitas vezes comparado ao ditado: "Não<br />

colocar todos os ovos num único cesto". Por outro lado, pão é o presente apropriado para o faminto (embora geralmente<br />

este se encontre na localida<strong>de</strong>, não além do mar), e a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vir a enfrentar maus dias (2b) po<strong>de</strong> muito bem ser um<br />

argumento para dar com liberalida<strong>de</strong> enquanto se po<strong>de</strong>. Cf. Atos 11:27-30; 2 Co 9:6ss.; Gl 6:7ss.<br />

104 Cf. Jo 3:8.<br />

105 Cf. Ef 5:16; 2 Tm 4:2ss.; 2 Co 8:2; 9:6.<br />

49


controle, e a própria probabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> tempos difíceis (v. 2b), tão freqüentemente enfatizados<br />

para nós em todo o livro, transformam-se em motivos para nos reanimar e levar à ativida<strong>de</strong>.<br />

Neste estado <strong>de</strong> espírito, po<strong>de</strong>mos agora voltar-nos para os prazeres da vida, assunto dos<br />

próximos versículos, não como se fossem ópio para nos tranqüilizar, mas como revigorantes<br />

dons <strong>de</strong> Deus.<br />

Alegra-te!<br />

11:7 Doce é a luz, e agradável aos olhos, ver o sol.<br />

8 Ainda que o homem viva muitos anos, regozije-se em todos eles; contudo, <strong>de</strong>ve lembrar-se<br />

<strong>de</strong> que há dias <strong>de</strong> trevas, porque serão muitos. Tudo quanto suce<strong>de</strong> é vaida<strong>de</strong>.<br />

9 Alegra-te, jovem, na tua juventu<strong>de</strong>, e recreie-se o teu coração nos dias da tua mocida<strong>de</strong>;<br />

anda pelos caminhos que satisfazem ao teu coração e agradam aos teus olhos; sabe, porém, que <strong>de</strong><br />

todas estas coisas Deus te pedirá contas.<br />

10 Afasta, pois, do teu coração o <strong>de</strong>sgosto e remove da tua carne a dor, porque a juventu<strong>de</strong> e<br />

a primavera da vida são vaida<strong>de</strong>.<br />

Com a sincerida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sempre, estes versículos combinam o <strong>de</strong>leite <strong>de</strong> viver com a<br />

serieda<strong>de</strong> da vida. Cada alegria aqui é confrontada com o seu oposto, ou o seu complemento; não<br />

há nenhuma tinta cor-<strong>de</strong>-rosa. A bem-aventurança <strong>de</strong> estar vivo é captada pela beleza da sentença<br />

que inicia a passagem: Doce é a luz ... (v. 7). E esta jovial radiância po<strong>de</strong> durar, como<br />

<strong>de</strong>staca o versículo 8a, até o final. Mas não além. O autor não se retrata <strong>de</strong> sua insistência em<br />

dizer que, por si mesmos, o tempo e todas as coisas temporais vão nos <strong>de</strong>sapontar, pois temos a<br />

eternida<strong>de</strong> em nossos corações (cf. 3:11). Essa luz tem <strong>de</strong> dar lugar aos dias <strong>de</strong> trevas e à<br />

<strong>de</strong>struição <strong>de</strong> tudo que há <strong>de</strong>baixo do sol; e temos <strong>de</strong> enfrentar o fato, ou então seremos<br />

<strong>de</strong>struídos por ele. A alegria não precisa <strong>de</strong> pretextos para se intensificar. Mas como ela po<strong>de</strong><br />

sobreviver diante da morte e das frustrações do mundo é um segredo que apenas o próximo<br />

capítulo vai começar a <strong>de</strong>svendar.<br />

Enquanto isso o versículo 9 nos faz lembrar <strong>de</strong> um outro aspecto da alegria: sua relação<br />

com aquilo que é certo. À primeira vista este lembrete do julgamento parece uma espada <strong>de</strong><br />

Damocles pendurada sobre a nossa cabeça, para roubar à festa todo o seu sabor. Talvez seja<br />

verda<strong>de</strong>, mas apenas se a nossa alegria for uma paródia da verda<strong>de</strong>ira alegria. Os caminhos que<br />

satisfazem ao teu coração e agradam aos teus olhos, ou, em outras palavras, a verda<strong>de</strong>ira liberda<strong>de</strong>,<br />

<strong>de</strong>vem ter um alvo que valha a pena alcançar, um "muito bem!" que <strong>de</strong>sejamos ouvir para ter<br />

satisfação. Caso contrário, a trivialida<strong>de</strong> ou, o que é pior ainda, o vício assume a direção. Seja qual<br />

for a conotação que a palavra "playboy" tenha para nós, sabemos que é uma pessoa que não relaciona<br />

a sua vida com coisa alguma que seja exigente, e muito menos com os valores eternos; é uma<br />

pessoa miserável. Assim este versículo, ao insistir que nossos caminhos interessam a Deus e são,<br />

portanto, significativos em toda a sua extensão, não rouba alegria alguma, mas apenas acaba com o<br />

vazio.<br />

A meu ver, o versículo 10 acompanha esta linha <strong>de</strong> pensamento. À primeira vista talvez não<br />

pareça mais que um simples escapismo, uma tentativa <strong>de</strong>sesperada <strong>de</strong> extrair o prazer <strong>de</strong> uma<br />

situação sem sentido. Mas ele adquire mais sentido 106 se for uma extensão do convite feito ao<br />

"jovem" do versículo 9 para regozijar-se na sua juventu<strong>de</strong>, porém <strong>de</strong> maneira responsável.<br />

Idolatrar a condição <strong>de</strong> jovem e temer perdê-la é <strong>de</strong>sastroso: prejudica o dom, mesmo enquanto<br />

ainda o <strong>de</strong>sfrutamos. Consi<strong>de</strong>rá-lo, por outro lado, como uma fase passageira, "bela no seu tempo"<br />

mas não além <strong>de</strong>le, é libertar-se <strong>de</strong> suas frustrações. O <strong>de</strong>sgosto do qual se fala neste versículo vem a<br />

nosso encontro mais <strong>de</strong> uma vez no livro como a amargura provocada por um mundo duro e frustrante.<br />

107 Ele tem o seu lugar para tornar-nos realistas, como <strong>de</strong>staca 7:3; não é motivo, contudo,<br />

para nos tornarmos pessimistas. Des<strong>de</strong> o seu início, este versículo afasta a <strong>de</strong>pressão; e a segunda<br />

linha, remove da tua carne a dor, po<strong>de</strong> muito bem ser um eco a reforçar a primeira, segundo o estilo da<br />

poesia hebraica. Mas também po<strong>de</strong> estar levando o pensamento um passo além, ao reino moral, uma<br />

vez que a palavra aqui traduzida por dor significa basicamente "mal" 108. Neste caso, ela sincroniza<br />

106 Observe a relação existente entre as duas frases: a segunda dá razão à primeira.<br />

107 Veja 1:18; 2:23; 7:3 (heb.).<br />

108 Isto não é mais que uma possibilida<strong>de</strong>, pois em geral é moralmente neutro (cf. 12:1). Contudo o conselho "remove da tua<br />

carne o mal" (ER, ERC) dá uma introdução mais a<strong>de</strong>quada para a linha final: porque a juventu<strong>de</strong> e a primavera da vida são<br />

vaida<strong>de</strong>.<br />

50


com o lembrete que diz que todos os nossos caminhos interessam a Deus, que é o nosso juiz (v. 9c).<br />

A alegria foi criada para dançar junto com a bonda<strong>de</strong> e não sozinha.<br />

Mas essa maneira positiva <strong>de</strong> encarar a vida, que perpassou todo este capítulo, <strong>de</strong>ve<br />

repousar sobre alguma coisa mais substancial do que jovialida<strong>de</strong>, coragem, ou até mesmo<br />

moralida<strong>de</strong> perfeita. O capítulo final <strong>de</strong>dica-se ao que é básico e insta conosco a que não percamos<br />

tempo ocupando-nos também com isso.<br />

Teme a Deus!<br />

12:1 Lembra-te do teu Criador nos dias da tua mocida<strong>de</strong>, antes que venham os maus dias, e<br />

cheguem os anos dos quais dirás: Não tenho neles prazer;<br />

2 antes que se escureçam o sol, a lua e as estrelas do esplendor da tua vida, e tornem a vir as<br />

nuvens <strong>de</strong>pois do aguaceiro;<br />

3 no dia em que tremerem os guardas da casa, os teus braços, e se curvarem os homens<br />

outrora fortes, as tuas pernas, e cessarem os teus moedores da boca, por já serem poucos, e se<br />

escurecerem os teus olhos nas janelas;<br />

4 e os teus lábios, quais portas da rua, se fecharem; no dia em que não pu<strong>de</strong>res falar em alta<br />

voz, te levantares à voz das aves, e todas as harmonias, filhas da música, te diminuírem;<br />

5 como também quando temeres o que é alto, e te espantares no caminho, e te<br />

embranqueceres, como floresce a amendoeira, e o gafanhoto te for um peso, e te perecer o apetite;<br />

porque vais à casa eterna, e os pranteadores an<strong>de</strong>m ro<strong>de</strong>ando pela praça;<br />

6 antes que se rompa o fio <strong>de</strong> prata, e se <strong>de</strong>spedace o copo <strong>de</strong> ouro, e se quebre o cântaro<br />

junto à fonte, e se <strong>de</strong>sfaça a roda junto ao poço,<br />

7 e o pó volte à terra, como o era, e o espírito volte a Deus, que o <strong>de</strong>u.<br />

8 Vaida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vaida<strong>de</strong>, diz o Pregador, tudo é vaida<strong>de</strong>.<br />

Finalmente estamos prontos, se a nossa intenção tem sido essa, para olhar além das vaida<strong>de</strong>s<br />

terrenas para Deus, que nos fez para si. O título Criador 109 foi bem escolhido, fazendo-nos lembrar<br />

a partir <strong>de</strong> passagens anteriores no livro, que só Deus vê o padrão da existência como um todo<br />

(3:11), que nós estragamos a obra <strong>de</strong> suas mãos com as nossas "astúcias" (7:29) e que a sua<br />

criativida<strong>de</strong> é contínua e inescrutável (11:5). A nossa parte, lembra-te <strong>de</strong>le, não é um ato perfunctório<br />

ou puramente mental: é <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> lado a nossa pretensão à auto-suficiência, entregando-nos a ele.<br />

Isto é o mínimo que as Escrituras exigem do homem em seu orgulho ou em situações extremas. 110 No<br />

seu sentido melhor e mais forte, a lembrança po<strong>de</strong> ser uma questão <strong>de</strong> fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> apaixonada, uma<br />

lealda<strong>de</strong> tão intensa quanto a do salmista para com a sua terra natal:<br />

"Apegue-se-me a língua ao paladar,<br />

se me não lembrar <strong>de</strong><br />

ti, se não preferir eu Jerusalém<br />

à minha maior alegria." 111<br />

Quando a lembrança significa tudo isto, não po<strong>de</strong> haver meias medidas ou contemporização. A<br />

juventu<strong>de</strong> e o todo da vida não são suficientes para extravasá-la. É neste espírito que <strong>de</strong> novo somos<br />

instados a enfrentar o fato <strong>de</strong> nossa mortalida<strong>de</strong>. Desta última vez o trecho é mais <strong>de</strong>morado. Ao<br />

mesmo tempo é uma das mais belas seqüências <strong>de</strong> figuras <strong>de</strong> palavras <strong>de</strong>ste mestre da linguagem,<br />

uma realização suprema <strong>de</strong> sua dupla ambição: achar "palavras agradáveis" e "palavras <strong>de</strong><br />

verda<strong>de</strong>" (v. 10).<br />

No começo e no final <strong>de</strong>sta passagem ele escreve diretamente, sem metáforas. Ouvimos a<br />

cadência da própria ida<strong>de</strong> avançada nas palavras <strong>de</strong> sauda<strong>de</strong>: Não tenho neles prazer" (v. 1), e no<br />

versículo 7 somos lembrados da sentença <strong>de</strong> Deus a Adão: "ao pó tornarás". Mas entre estes<br />

pontos há uma profusão <strong>de</strong> imagens, algumas das quais vão evocar com a máxima vivi<strong>de</strong>z alguns<br />

aspectos do envelhecimento ou da morte, enquanto outras nos provocam com alusões que a esta<br />

distância mal po<strong>de</strong>mos captar, <strong>de</strong>spertando em nós o poeta ou o pedante.<br />

Deveria ser o poeta, ou pelo menos o apreciador da poesia. Se algumas obscurida<strong>de</strong>s nestas<br />

linhas po<strong>de</strong>m ser esclarecidas, tanto melhor para acen<strong>de</strong>r a nossa imaginação; tanto pior, no<br />

109 A versão inglesa (Today's English Version) sugere a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> haver um trocadilho entre "Criador" e "sepultura", já<br />

que em heb. essas duas palavras têm o mesmo som, mas grafia diferente. Contudo "sepultura" nunca vem acompanhada <strong>de</strong><br />

um possessivo (tua, etc), exceto quando usada em sentido primário <strong>de</strong> "poço" ou "cisterna".<br />

110 Dt 8:17,18; Jn 2:7.<br />

111 Sl 137:6.<br />

51


entanto, se elas nos levam a tratar este gracioso poema como se fosse um elaborado criptograma,<br />

forçando cada <strong>de</strong>talhe em um simples e rígido esquema.<br />

No versículo 2 percebemos no ar o frio do inverno, enquanto a chuva persiste e as nuvens<br />

transformam a luz do dia em penumbra, e, então, a noite em trevas <strong>de</strong> breu. É uma cena bastante<br />

sombria para fazer-nos pensar não apenas nos nossos po<strong>de</strong>res físicos e mentais que se <strong>de</strong>svanecem,<br />

mas nas <strong>de</strong>solações mais generalizadas da ida<strong>de</strong> avançada. São muitas as luzes que ficam então<br />

sujeitas a serem apagadas, além dos sentidos e das faculda<strong>de</strong>s, quando os velhos amigos vão<br />

partindo um a um, os costumes familiares vão mudando e esperanças há muito acalentadas têm <strong>de</strong><br />

ser abandonadas. Tudo isto chegará num estágio da vida quando já não haverá mais a capacida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> recuperação da juventu<strong>de</strong> ou a perspectiva <strong>de</strong> uma compensação. No começo da vida e na<br />

maior parte <strong>de</strong>la os problemas e as enfermida<strong>de</strong>s são geralmente apenas contratempos, mas não<br />

<strong>de</strong>sastres. Esperamos que o céu finalmente clareie <strong>de</strong> novo. É difícil ajustar-se à conclusão <strong>de</strong>ste<br />

longo capítulo, e saber que agora, no trecho final, não haverá mais possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> melhora: as<br />

nuvens vão sempre se ajuntar <strong>de</strong> novo e o tempo já não vai mais curar, mas sim matar.<br />

Assim, estes fatos inexoráveis são melhor enfrentados, não na ida<strong>de</strong> avançada, mas na<br />

mocida<strong>de</strong>, quando ainda po<strong>de</strong>m nos levar à ação, aquela reação total para com Deus que foi o<br />

assunto do versículo 1, sem <strong>de</strong>sespero e arrependimentos vãos.<br />

Nos versículos 3 e 4a o quadro muda. 112 Já não é mais a noite que cai, nem a tempesta<strong>de</strong> ou o<br />

inverno, mas uma gran<strong>de</strong> casa em <strong>de</strong>clínio. Suas antigas glórias <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, estilo, vivacida<strong>de</strong> e<br />

hospitalida<strong>de</strong> po<strong>de</strong>m agora ser percebidas apenas através do contraste com suas poucas e patéticas<br />

relíquias. Na corajosa luta pela sobrevivência há um lembrete da <strong>de</strong>cadência quase mais perceptível do<br />

que a ruína total. Ainda faz parte do nosso próprio cenário; o futuro nos aguarda e não po<strong>de</strong>mos<br />

fugir ao envolvimento com esse seu aperitivo.<br />

Este quadro, na minha mente, fica mais visível na sua inteireza e não quando é<br />

laboriosamente quebrado nas metáforas que o constituem (braços, pernas, <strong>de</strong>ntes humanos e<br />

assim por diante) e que sem dúvida se encontram aí como se o poeta se houvesse expressado ina<strong>de</strong>quadamente.<br />

A casa que está em <strong>de</strong>cadência revela-nos a nós mesmos como nenhum catálogo ou<br />

inventário po<strong>de</strong>ria fazê-lo.<br />

Com a segunda meta<strong>de</strong> do versículo 4, entretanto, o método muda, embora não a disposição.<br />

Já não há mais um simples esquema, mas metáforas separadas, particulares, que exigem, portanto,<br />

um estudo individual.<br />

No versículo 4b, a ER fala "no dia em que... nos levantarmos à voz das aves, e todas as filhas<br />

da música ficarem abatidas"; esta versão parece estar bem <strong>de</strong> acordo com o heb., com o sentido <strong>de</strong><br />

abordar o <strong>de</strong>spertar <strong>de</strong> um velho <strong>de</strong> madrugada. 113 "Harmonias" (ERAB) po<strong>de</strong>, entretanto, significar<br />

as filhas da música, como diz o hebraico; <strong>de</strong> qualquer forma, quer o entendamos <strong>de</strong>ste modo ou<br />

significando canções ou notas musicais, pouca diferença faz para o sentido do texto.<br />

Com a ida<strong>de</strong> avançada, estas alegres evidências <strong>de</strong> um mundo vivo ao nosso redor tornam-se<br />

distantes e frágeis; a pessoa já não se sente mais parte integrante <strong>de</strong> tudo isso.<br />

O versículo 5 acrescenta um toque novo ao quadro; primeiro através da observação <strong>de</strong> um<br />

homem idoso com medo <strong>de</strong> cair ou <strong>de</strong> ser empurrado, agora que já não tem mais firmeza e anda<br />

<strong>de</strong>vagar; <strong>de</strong>pois, com o pequeno conjunto <strong>de</strong> metáforas que nos levam a meditar; e, finalmente,<br />

pelo vislumbre <strong>de</strong> um funeral em andamento. Quanto às metáforas, o cabelo branco da ida<strong>de</strong><br />

avançada é vivamente sugerido pela amendoeira que troca as negras cores do inverno por sua coroa<br />

<strong>de</strong> flores brancas. A falta <strong>de</strong> naturalida<strong>de</strong> da marcha lenta e dura do velho, uma paródia da<br />

flexibilida<strong>de</strong> e leveza da juventu<strong>de</strong>, apresenta-se através da visão incongruente <strong>de</strong> um gafanhoto, a<br />

personificação da leveza e a agilida<strong>de</strong>, arrastando-se pesadamente em virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong> algum aci<strong>de</strong>nte ou<br />

do frio. 114 A terceira metáfora é convenientemente interpretada para nós nas palavras e te perecer o<br />

112 Alguns, entretanto, veriam uma simples estrutura <strong>de</strong> referências por todo o poema; por exemplo, uma alegoria anatômica<br />

do começo ao fim; ou uma impressão do inverno, da tempesta<strong>de</strong> ou do anoitecer no que eles afetam o mundo da natureza e as<br />

ativida<strong>de</strong>s dos homens; ou a narrativa <strong>de</strong> uma família a caminho do velório na morte do seu patriarca. Quanto a discussões<br />

<strong>de</strong>ssas teorias, veja os gran<strong>de</strong>s comentários.<br />

113 Com a sur<strong>de</strong>z, dificilmente ele será <strong>de</strong>spertado ou assustado pelas aves; mas talvez a frase seja simplesmente uma<br />

observação <strong>de</strong> horário, como "ele acorda com as galinhas" para nós (cf. a BLH: "levantará cedo, quando os pássaros<br />

começam a cantar"). O heb. também daria lugar, apenas como uma possibilida<strong>de</strong>, à tradução: "Ele (isto é, a sua voz) tem o<br />

timbre da voz das aves"; mas seria uma maneira estranha <strong>de</strong> falar.<br />

114 A ERAB segue a interpretação <strong>de</strong> um verbo que significa "sobrecarregar-se" ou "tornar-se um peso", ao dizer: e o<br />

gafanhoto te for um peso. Neste caso, o significado é que, por menor que seja o fardo, é pesado para o idoso (Cf. a BV:<br />

52


apetite ou, melhor traduzidas, "e falhar o <strong>de</strong>sejo" (ER), que é o verda<strong>de</strong>iro sentido da expressão<br />

hebraica "e o fruto da alcaparra falhar". Esse fruto era altamente apreciado como estimulante do<br />

apetite e como afrodisíaco. A resposta do idoso Barzilai à oferta <strong>de</strong> Davi, que queria lhe dar um lugar<br />

na corte, tem sido citada freqüentemente por sua semelhança com todo este contexto: "Oitenta<br />

anos tenho hoje; po<strong>de</strong>ria eu discernir entre o bom e o mau? Po<strong>de</strong>ria o teu servo ter gosto no que<br />

come e no que bebe? Po<strong>de</strong>ria eu mais ouvir a voz dos cantores e cantoras?" 115<br />

Assim, no final <strong>de</strong>ste versículo 5, o fluxo das metáforas é interrompido pela conversa explícita<br />

sobre o final da jornada do homem e sobre o funeral, a última cerimônia (aliás, sem efeito algum) que<br />

os amigos vão realizar. A expressão casa eterna refere-se aqui apenas ao final <strong>de</strong> tudo, e não da<br />

perspectiva cristã <strong>de</strong> uma "casa não feita por mãos, eterna, nos céus" (2 Co 5:1).<br />

É impressionante como as figuras do versículo 6 captam a beleza e a fragilida<strong>de</strong> da estrutura<br />

humana: uma obra-prima <strong>de</strong> <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za trabalhada como qualquer obra <strong>de</strong> arte, mas tão frágil<br />

quanto uma peça <strong>de</strong> cerâmica e tão inútil no final quanto uma roda quebrada. A primeira meta<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>ste versículo parece <strong>de</strong>screver um can<strong>de</strong>labro <strong>de</strong> ouro suspenso por uma corrente <strong>de</strong> prata;<br />

bastará apenas que se quebre repentinamente um elo para que caia e se quebre. E se isto parece um<br />

quadro sutil <strong>de</strong>mais para <strong>de</strong>screver nosso ser tão familiar, temos o equilíbrio da cena do poço<br />

abandonado: quadro eloqüente da transitorieda<strong>de</strong> das coisas mais simples e mais básicas que<br />

fazemos. Haverá uma última vez para cada caminhada familiar, para cada tarefa rotineira. No<br />

versículo 7 há um lembrete da tragédia por trás <strong>de</strong>sta seqüência, a escolha fatal que conduz à<br />

sentença:<br />

"Porque tu és pó e ao pó tomaras." 116<br />

Esta não é a única alusão que o escritor faz à queda do homem: já antes, em 7:29, ele havia<br />

colocado a culpa <strong>de</strong> nossa condição em seu <strong>de</strong>vido lugar: "Deus fez o homem reto, mas ele se meteu<br />

em muitas astúcias." E se, aos nossos ouvidos, há uma nota <strong>de</strong> esperança no final do versículo 7, e o<br />

espírito volte a Deus, que o <strong>de</strong>u, certamente estamos querendo ouvir mais do que ele pretendia. Ele já<br />

levantou antes a questão <strong>de</strong> uma vida após a morte, e recusou-se a dizer uma coisa <strong>de</strong>ssas. 117 O<br />

significado <strong>de</strong>stas últimas palavras não precisam ir além do que diz o Salmo 104:29 a respeito dos<br />

homens e dos animais: "Se ocultas o teu rosto, eles se perturbam; se lhes cortas a respiração, 118<br />

morrem, e voltam ao seu pó." Em outras palavras, a vida não nos pertence. O corpo reverterá ao seu<br />

próprio elemento; e o hálito da vida sempre pertenceu a Deus e a Deus cabe tomá-lo.<br />

No versículo 8, portanto, tendo atrás <strong>de</strong> nós a experiência <strong>de</strong> todo o livro e à nossa frente o<br />

reforço trazido pelas incisivas figuras <strong>de</strong>ste capítulo acerca da mortalida<strong>de</strong>, retornamos à<br />

exclamação inicial, Vaida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vaida<strong>de</strong>!, concluindo que ela tem razão <strong>de</strong> ser. Nada em nossa busca<br />

nos levou ao alvo; nada que nos seja oferecido <strong>de</strong>baixo do sol nos pertence <strong>de</strong> fato.<br />

Mas estamos esquecendo o contexto. Esta passagem mesma indica-nos uma coisa além daquilo<br />

que está "<strong>de</strong>baixo do sol", nas palavras teu Criador, e nos convida a respon<strong>de</strong>r. Também nos aponta<br />

o presente como o momento da oportunida<strong>de</strong>. A morte ainda não nos alcançou: que ela sacoleje<br />

suas correntes diante <strong>de</strong> nós e nos <strong>de</strong>sperte para a ação!<br />

<strong>Eclesiastes</strong> 12:9-14 -<br />

Conclusão<br />

O pensador como ensinador<br />

12:9 O Pregador, além <strong>de</strong> sábio, ainda ensinou ao povo o conhecimento; e, atentando e<br />

esquadrinhando, compôs muitos provérbios.<br />

10 Procurou o Pregador achar palavras agradáveis e escrever com retidão palavras <strong>de</strong><br />

verda<strong>de</strong>.<br />

Afastamo-nos um pouco para ver a pessoa e o processo que se escon<strong>de</strong>m por trás <strong>de</strong>ste<br />

notável livro. As observações iniciais apontam para a parceria entre as idéias e a expressão, a busca e<br />

os ensinamentos, que o próprio livro ilustrou. Vimos como os capítulos <strong>de</strong> conselhos práticos<br />

"...anda se arrastando").<br />

115 2 Sm 19:35.<br />

116 Veja Gn 3.<br />

117 3:21.<br />

118 Lit. "o espírito". É a mesma palavra que foi usada em nosso versículo.<br />

53


equilibraram e suplementaram as profundas reflexões por eles interrompidas. O que surge no<br />

restante <strong>de</strong>stes dois versículos é a gran<strong>de</strong> importância que o autor dá ao seu papel <strong>de</strong> ensinador. Ele<br />

não é o orgulhoso pensador que não tem tempo para as mentes menos privilegiadas; antes, aceita o<br />

i<strong>de</strong>al <strong>de</strong>safiador da perfeita luci<strong>de</strong>z. Como <strong>de</strong>staca o versículo 10, é preciso ter a habilida<strong>de</strong> e a<br />

integrida<strong>de</strong>, o encanto e a coragem <strong>de</strong> um artista e <strong>de</strong> um mestre para fazer justiça à tarefa. Na força<br />

<strong>de</strong>ste único versículo, este homem po<strong>de</strong>ria ser o santo patrono dos escritores.<br />

Ensinamentos penetrantes<br />

12:11 As palavras dos sábios são como aguilhões, e como pregos bem fixados as sentenças<br />

coligidas, dadas pelo único Pastor.<br />

12 Demais, filho meu, atenta: não há limite para fazer livros, e o muito estudar é enfado da<br />

carne.<br />

Eis aí mais duas qualida<strong>de</strong>s que caracterizam os oportunos ensinamentos do sábio: eles<br />

<strong>de</strong>spertam a vonta<strong>de</strong> e se fixam na memória. Com isto, Coelet, mestre como é, paga um tributo<br />

involuntário ao maior <strong>de</strong> todos os mestres da sabedoria: nosso Senhor, cujas palavras apresentam<br />

estas duas marcas <strong>de</strong> maneira suprema, da mesma forma como ultrapassam o critério do versículo<br />

10, <strong>de</strong> "palavras agradáveis" e "palavras <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>". Elas casam a justeza com a intrepi<strong>de</strong>z,<br />

parceiras que não <strong>de</strong>vem ser separadas.<br />

O que importa acima <strong>de</strong> tudo é que são palavras <strong>de</strong> autorida<strong>de</strong>. Com toda a sua varieda<strong>de</strong> e<br />

evi<strong>de</strong>nte humanida<strong>de</strong>, elas são dadas aos sábios. Constituem uma unida<strong>de</strong>, e provêm <strong>de</strong> Deus. Este<br />

segundo termo aplicado a Deus, o único Pastor, é um complemento apropriado ao majestoso título<br />

do versículo 1, "teu Criador". O Deus "distante", cuja or<strong>de</strong>m alcança a todos, também é o Deus<br />

"próximo", 119 que conhece e po<strong>de</strong> ser conhecido, que nos fala com voz humana mas <strong>de</strong>cisiva.<br />

O curioso é que, como percebemos no versículo 12, isto não nos agrada. Nós nos tornamos<br />

viciados na pesquisa propriamente dita, apaixonados pelas nossas perguntas mais difíceis. Uma<br />

resposta estragaria tudo. C. S. Lewis, em uma <strong>de</strong> suas confrontações no livro The Great Divorce (O<br />

Gran<strong>de</strong> Divórcio), capta o tom e a qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sta atitu<strong>de</strong>, à altura em que ela finalmente se apossa<br />

do homem. Nessa cena, na fronteira do céu, um "pesquisador" vitalício é convidado a entrar.<br />

Dizem-lhe:<br />

"Não posso lhe prometer... qualquer campo <strong>de</strong> ação para os seus talentos: apenas o perdão<br />

por havê-los pervertido. Nenhuma atmosfera <strong>de</strong> pesquisa, pois vou introduzi-lo na terra on<strong>de</strong> não<br />

há perguntas, apenas respostas, e você verá a face <strong>de</strong> Deus."<br />

"Ah! mas nós <strong>de</strong>vemos interpretar essas belas palavras à nossa própria maneira! Para mim não<br />

existe resposta final. O vento livre da pesquisa <strong>de</strong>ve continuar sempre soprando através <strong>de</strong> nossa<br />

mente, não <strong>de</strong>ve?"...<br />

... "Ouça!", disse o Espírito Branco. "Você já foi criança. Você apren<strong>de</strong>u para que servia a<br />

pesquisa. Houve um tempo em que você fazia perguntas porque queria respostas, e ficava satisfeito<br />

quando as encontrava. Torne-se essa criança novamente, agora mesmo."<br />

"Ah! mas quando eu me tornei um homem eu <strong>de</strong>ixei <strong>de</strong> lado as coisas infantis! 120<br />

Nenhum argumento, nenhum apelo valerá contra esta infinita elasticida<strong>de</strong>. O encontro, já<br />

infrutífero, acaba com o gentil sofista lembrando-se <strong>de</strong> que tem um encontro; <strong>de</strong>sculpa-se, então, e<br />

corre para o seu grupo <strong>de</strong> <strong>de</strong>bates no inferno.<br />

O ponto <strong>de</strong> chegada<br />

12:13 De tudo o que se tem ouvido, a suma é: Teme a Deus e guarda os seus mandamentos;<br />

porque isto é o <strong>de</strong>ver <strong>de</strong> todo homem.<br />

14 Porque Deus há <strong>de</strong> trazer a juízo todas as obras, até as que estão escondidas, quer sejam<br />

boas, quer sejam más.<br />

Até agora, nenhum dos nossos caminhos nos levou a parte alguma. Eles acabaram muito<br />

antes <strong>de</strong> alcançarmos qualquer coisa eterna e absoluta. Mas o caminho a que nos trouxe este<br />

capítulo aponta para Deus, o Eterno, para quem "a eternida<strong>de</strong> no coração do homem" (cf. 3:11) foi<br />

criada para ali habitar e gravitar:<br />

Se esta maneira <strong>de</strong> colocar as coisas <strong>de</strong>staca mais a necessida<strong>de</strong> do homem do que a exigência<br />

119 Cf. Jr 23:23ss.<br />

120 C. S. Lewis, The Great Divorce (Bles, 1945), págs. 40ss.<br />

54


<strong>de</strong> Deus, estes dois versículos logo vão restabelecer o equilíbrio. Mas eles prazerosamente conce<strong>de</strong>m<br />

ao elemento humano o seu <strong>de</strong>vido direito, através das palavras porque isto é o todo do homem. É<br />

verda<strong>de</strong> que, entre outras cousas, é o seu <strong>de</strong>ver; mas o heb. não diz isso; <strong>de</strong>ixa esse todo in<strong>de</strong>finido.<br />

"Isto", como po<strong>de</strong>ríamos traduzir, "é tudo o que o homem tem"; mas é um "tudo" que fica em total<br />

contraste com a "vaida<strong>de</strong>" com que nos tem confrontado o livro. Aqui finalmente encontraremos<br />

realida<strong>de</strong> e nos encontraremos a nós mesmos.<br />

Não, entretanto (e com isto o equilíbrio é restaurado), como perfeccionistas que buscam<br />

para si o que é melhor, mas como servos apresentando-se ao seu legítimo senhor. Teme a Deus é uma<br />

convocação que nos coloca no nosso <strong>de</strong>vido lugar, e a todos os <strong>de</strong>mais temores, esperanças e<br />

perplexida<strong>de</strong>s nos seus <strong>de</strong>vidos lugares.<br />

O <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iro versículo <strong>de</strong>staca o ponto que acabamos <strong>de</strong> apresentar, com um golpe final que<br />

é bastante forte para machucar, mas bastante inteligente para nos fazer sair da apatia. Acaba com a<br />

complacência, avisando-nos <strong>de</strong> que nada passa <strong>de</strong>spercebido e sem avaliação, nem mesmo as coisas<br />

que nós escon<strong>de</strong>mos <strong>de</strong> nós mesmos. Mas ao mesmo tempo transforma a vida. Se Deus se importa<br />

tanto assim, então nada po<strong>de</strong> ser sem sentido.<br />

Esta é a verda<strong>de</strong> que já nos foi apresentada em 11:9; e, além do mais, ela dá colorido a todos<br />

os ensinamentos <strong>de</strong> Cristo, para quem nenhum <strong>de</strong>talhe aqui na terra po<strong>de</strong>ria ser pequeno <strong>de</strong>mais<br />

para ser importante no céu: uma palavra fútil, a morte <strong>de</strong> um pássaro, um copo <strong>de</strong> água fria, o<br />

arrependimento <strong>de</strong> um pecador. Foi isto também que incitou Paulo a ser insistente "a tempo e fora<br />

<strong>de</strong> tempo" e a concluir a sua carreira com alegria. Para qualquer outro senhor, ou para nenhum.<br />

"As nações labutam - apenas para o fogo, e os povos se fatigam - tudo para nada." 121<br />

É uma coisa totalmente diferente ficar sob as or<strong>de</strong>ns <strong>de</strong> um senhor que se importa<br />

profundamente tanto com o trabalhador como com o trabalho e cujo julgamento é infalível.<br />

Não compete ao nosso autor pesquisar mais sobre este julgamento, como e quando será<br />

realizado. Há um lugar para isso. Mas há um lugar também, e é aqui, para o silêncio que chama a<br />

atenção para o simples fato da aprovação ou da <strong>de</strong>saprovação <strong>de</strong> Deus. Quando todos os <strong>de</strong>talhes<br />

tiverem sido concluídos, este continuará sendo o ponto crucial. Em torno disto e nada mais gira a<br />

questão: se "tudo é vosso" (como Paulo o colocou, especificando ainda: "o mundo ... a vida ... a<br />

morte ... as cousas presentes ... as futuras") 122 ou se, irremediavelmente, "tudo é vaida<strong>de</strong>".<br />

121 Hc 2:13, conforme traduzido para o inglês por J. H. Eaton (Torch Bible Commentaries, SCM Press, 1961).<br />

122 1 Co 3:21ss.<br />

55


Terceira Parte<br />

E nós, o que temos a dizer?<br />

- um epílogo<br />

O cristão po<strong>de</strong> acrescentar o seu amém a esta voz do Antigo Testamento. Nosso autor foi<br />

breve: po<strong>de</strong>mos seguir o seu exemplo. Uma confissão, um poema, uma oração e uma das gran<strong>de</strong>s<br />

perorações <strong>de</strong> Paulo serão suficientes para concluir este livro.<br />

A confissão é <strong>de</strong> Agostinho. Bastante conhecida para ser repetida, contudo po<strong>de</strong>ria ter sido<br />

escrita como uma coda para este livro, em vez <strong>de</strong> um prelúdio à sua própria história:<br />

Tu nos fizestes para ti mesmo,<br />

e nosso coração não tem <strong>de</strong>scanso até que repouse em ti<br />

O poema é <strong>de</strong> George Herbert, e a sua a<strong>de</strong>quabilida<strong>de</strong> torna-se mais e mais aparente, à<br />

medida que se aproxima da sua perfeita conclusão.<br />

No começo, quando Deus fez o homem,<br />

tomando um cálice cheio <strong>de</strong> bênçãos, disse:<br />

Vamos <strong>de</strong>rramar sobre ele o máximo possível<br />

para que as riquezas do mundo, que são dispersas<br />

contraiam-se em um pequeno espaço.<br />

Assim a força foi a primeira a cair;<br />

então fluiu a beleza, a sabedoria, a honra e o prazer.<br />

Quando quase tudo já havia sido <strong>de</strong>rramado, Deus fez uma pausa,<br />

percebendo que apenas um <strong>de</strong> todos os seus tesouros,<br />

bem no fundo, tinha restado.<br />

Se eu, disse ele,<br />

conce<strong>de</strong>sse esta jóia também à minha criatura,<br />

ela adoraria os meus dons e não a mim,<br />

e confiaria na natureza, não no Deus da natureza:<br />

e ambos seriam per<strong>de</strong>dores assim.<br />

Deixemos-lhe, contudo, o restante,<br />

mas com uma inquietação aflitiva:<br />

Que seja rico e exausto, para que ao menos,<br />

se a bonda<strong>de</strong> não o orientar,<br />

a fadiga o impulsione ao meu seio, enfim.<br />

Esta oração foi escrita por William Laud:<br />

Permite, ó Senhor, que possamos viver no teu amor,<br />

morrer no teu favor, repousar na tua paz,<br />

ressuscitar no teu po<strong>de</strong>r e reinar na tua glória;<br />

por amor do teu próprio Filho amado,<br />

Jesus Cristo, nosso Senhor.<br />

56


A peroração é <strong>de</strong> 1Coróintios 15:54,58, aquela resposta final ao grito: “Vaida<strong>de</strong>!”<br />

E, quando este corpo corruptível se revestir <strong>de</strong><br />

incorruptibilida<strong>de</strong>, e o que é mortal se revestir <strong>de</strong><br />

imortalida<strong>de</strong>, então, se cumprirá a palavra que está escrita:<br />

Tragada foi a morte pela vitória.<br />

Portanto, meus amados irmãos, se<strong>de</strong> firmes, inabaláveis<br />

e sempre abundantes na obra do Senhor, sabendo que,<br />

no Senhor, o vosso trabalho não é vão.<br />

57


A MENSAGEM DE ECLESIASTES<br />

Será que a vida é um absurdo, um caos, totalmente sem sentido?<br />

A função <strong>de</strong> <strong>Eclesiastes</strong> é levar-nos ao ponto <strong>de</strong><br />

ver que a vida parece ser sem sentido. "E realmente<br />

o é, se <strong>de</strong> fato tudo está morrendo. Defrontamo-nos com<br />

a espantosa conclusão <strong>de</strong> que nada tem significado,<br />

nada vale a pena <strong>de</strong>baixo do sol. É então<br />

que po<strong>de</strong>mos ouvir, como uma boa nova, que<br />

tudo vale a pena, que tudo tem sentido..."<br />

Com gran<strong>de</strong> discernimento e clareza <strong>Derek</strong> <strong>Kidner</strong> leva o<br />

leitor a conhecer este livro do Antigo Testamento que<br />

fala <strong>de</strong> maneira tão po<strong>de</strong>rosa à nossa geração.<br />

<strong>Derek</strong> <strong>Kidner</strong> foi <strong>de</strong>ão da Tyndale House, em Cambridge.<br />

É autor <strong>de</strong> comentários bíblicos sobre Gênesis,<br />

Esdras e Neemias, Salmos e Provérbios,<br />

e do livro A Mensagem <strong>de</strong> Oséias.<br />

ABU EDITORA — LIVROS PARA GENTE QUE PENSA<br />

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