SETE-SÓIS E SETE-LUAS: UMA HISTÓRIA DE ... - Unisalesiano
SETE-SÓIS E SETE-LUAS: UMA HISTÓRIA DE ... - Unisalesiano
SETE-SÓIS E SETE-LUAS: UMA HISTÓRIA DE ... - Unisalesiano
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UNISALESIANO<br />
Centro Universitário Católico Salesiano Auxilium<br />
Letras<br />
Cauê Garcia Soares<br />
Flávia Bergamo Calderari<br />
<strong>SETE</strong>-<strong>SÓIS</strong> E <strong>SETE</strong>-<strong>LUAS</strong>: <strong>UMA</strong> <strong>HISTÓRIA</strong> <strong>DE</strong><br />
AMOR SEM PALAVRAS<br />
LINS – SP<br />
2011
CAUÊ GARCIA SOARES<br />
FLÁVIA BERGAMO CAL<strong>DE</strong>RARI<br />
<strong>SETE</strong>-<strong>SÓIS</strong> E <strong>SETE</strong>-<strong>LUAS</strong>: <strong>UMA</strong> <strong>HISTÓRIA</strong> <strong>DE</strong><br />
AMOR SEM PALAVRAS<br />
Trabalho de Conclusão de Curso<br />
apresentado à Banca Examinadora do<br />
Centro Universitário Católico Salesiano<br />
Auxilium, como requisito parcial para<br />
obtenção do título de Graduação em<br />
Letras, sob a orientação do Profª Me.<br />
Paulo Sérgio Fernandes e orientação<br />
técnica da Profª Ma. Fatima Eliana<br />
Frigatto Bozzo.<br />
LINS – SP<br />
2011
Calderari, Flávia Bergamo; Soares, Cauê Garcia<br />
C152s<br />
Sete-Sóis e Sete-Luas: uma história de amor sem palavras. /<br />
Flávia Bergamo Calderari; Cauê Garcia Soares. – – Lins, 2011.<br />
55p. il. 31cm.<br />
Monografia apresentada ao Centro Universitário Católico<br />
Salesiano Auxilium – UNISALESIANO, Lins-SP, para graduação em<br />
Letras, 2011.<br />
Orientadores: Paulo Sérgio Fernandes; Fátima Eliana Frigatto<br />
Bozzo.<br />
1. Memorial do Convento. 2. Blimunda. 3. Baltasar. 4. Saramago,<br />
José. 5. Literatura Portuguesa. I Título.<br />
CAUÊ GARCIA SOARES<br />
CDU 82<br />
FLÁVIA BERGAMO CAL<strong>DE</strong>RARI
CAUÊ GARCIA SOARES<br />
FLÁVIA BERGAMO CAL<strong>DE</strong>RARI<br />
<strong>SETE</strong>-<strong>SÓIS</strong> E <strong>SETE</strong>-<strong>LUAS</strong>: <strong>UMA</strong> <strong>HISTÓRIA</strong> <strong>DE</strong> AMOR SEM PALAVRAS<br />
Monografia apresentada ao Centro Universitário Católico Salesiano Auxilium,<br />
para obtenção do título de Graduação em Letras.<br />
Aprovada em: 08/12/2011<br />
Banca Examinadora:<br />
Prof. Orientador: Paulo Sérgio Fernandes<br />
Titulação: Doutorando e Mestre em Letras<br />
1º Prof(a): Adriana Monteiro Piromali Guarizo<br />
Titulação: Doutoranda e Mestre em Letras<br />
2º Prof(a): Paola de Carvalho Buvolini<br />
Assinatura: _________________________________<br />
Assinatura: _________________________________<br />
Titulação: Especialista em Formação de Professor de Línguas<br />
Assinatura: _________________________________
Gostaríamos de fazer muito mais do que<br />
simplesmente dedicar este trabalho a alguém.<br />
Nosso intuito é compartilhar a alegria do objetivo<br />
alcançado. A descoberta do escritor, do livro e, até<br />
mesmo, das personagens foi graças a uma<br />
semente plantada, durante as aulas de Literatura<br />
Portuguesa, e as expectativas que tínhamos foram<br />
alcançadas e superadas. Dedicamos este trabalho<br />
à professora Silvani, que nos passou muito mais do<br />
que conteúdo, ensinou-nos a gostar de literatura e<br />
a admirar a arte nela contida.
AGRA<strong>DE</strong>CIMENTOS<br />
Além de agradecermos a Deus, pois foi nas mãos d’Ele<br />
que nos entregamos em muitos momentos, deixamos aqui,<br />
registrada, nossa gratidão e carinho:<br />
por nossos familiares. Eu, Flávia, quero citar,<br />
especialmente, minha mãe Angela, minha irmã Fernanda,<br />
meu namorado Fabio e toda minha família e amigos, além<br />
do Cauê, pois, sem ele, não seria possível; Eu, Cauê, quero<br />
citar, especialmente, minha mãe Luzia, meu primo João,<br />
minha namorada Gabrielle, todos meus amigos e familiares<br />
e minha companheira de estudos e sorrisos Flávia, que<br />
sempre caminhou ao meu lado;<br />
por nossos amigos Gabriela, Luis Felippe e Laura, que<br />
não nos abandonaram em nenhum instante e entenderam<br />
todas as vezes que trocamos os momentos de convívio<br />
pelos estudos;<br />
pela professora Silvani, que, enquanto pode, ajudou-nos<br />
muito; pelo professor Paulo, que nos acolheu quando mais<br />
precisamos; pela professora Adriana, que nos ajudou<br />
quando necessitamos, pelos colegas de classe, docentes e<br />
orientadores do curso de Letras.
"leite, leitura<br />
letras, literatura,<br />
tudo o que passa,<br />
tudo o que dura<br />
tudo o que duramente passa<br />
tudo o que passageiramente dura<br />
tudo,tudo,tudo<br />
não passa de caricatura<br />
de você, minha amargura<br />
de ver que viver não tem cura"<br />
Paulo Leminski
RESUMO<br />
O trabalho teve como objetivo geral conhecer mais sobre todo o romance e, em<br />
particular, sobre a relação das personagens Baltasar e Blimunda entre si e<br />
destas com toda a obra. Os objetivos específicos foram os de identificar os<br />
elementos responsáveis pela importância desse romance, na obra<br />
saramaguiana; analisar literariamente a obra e comparar a relação entre o<br />
casal real e o casal ficcional. O desenvolvimento realizou-se por meio de<br />
revisão bibliográfica. O romance Memorial do Convento, da Literatura<br />
Portuguesa, escrito por José Saramago, apresenta uma nova versão da<br />
história da construção do convento de Mafra, em Portugal, a qual é contada por<br />
meio de uma visão do lado mais fraco, destacando aquelas pessoas que não<br />
tiverem enfoque, nos relatos oficiais. Os elementos fictícios convivem, porém<br />
se sobrepõem a todos os outros elementos históricos; em especial, o casal<br />
Baltasar e Blimunda, personagens que representam todo o povo que sofreu<br />
para a construção do palácio-mosteiro, e que foram esquecidos pela História<br />
oficial. Quando comparados elementos históricos e fictícios, evidencia-se a<br />
prevalência e maior importância de um sobre o outro. É contada a história da<br />
construção do convento, do rei e da rainha de Portugal, bem como a vida da<br />
realeza como um todo, da sociedade da época e os seus costumes religiosos e<br />
culturais. Simultaneamente a estes elementos históricos, também é contada a<br />
história de pessoas simples e trabalhadoras, em especial este casal, mais<br />
conhecido como Sete-Sóis e Sete-luas, que, além de representar o povo,<br />
também vive uma história de amor, sem palavras. Esta definição se deve ao<br />
fato de expressarem o sentimento que tinham um pelo outro através de gestos<br />
e olhares, não precisavam dizer muito para se entenderem e saberem o que o<br />
outro estava sentindo, desde a primeira conversa que tiveram, no momento em<br />
que se conheceram, já predominou o silêncio, como forma de se declarar.<br />
Apesar de serem fictícias, as duas personagens apresentam grande riqueza de<br />
detalhes e uma forma de amor singular e distinta do que se observava na<br />
sociedade da época, que encantam e fascinam o leitor.<br />
Palavras-Chave: Memorial do Convento. Blimunda. Baltasar. Saramago.<br />
Literatura Portuguesa.
ABSTRACT<br />
The work’s general objective was to know more about the whole novel and,<br />
specially, about the relationship of the characters Baltasar e Blimunda and their<br />
relation with the novel. The specific objectives were to identify the responsible<br />
elements for the importance of this book in the saramaguiana’s compositions; to<br />
analyze literally the novel and to compare the relation between the real couple<br />
and the fictional couple. The development was done by the bibliographic review<br />
method. The novel Memorial do Convento, from Portuguese Literature, written<br />
by José Saramago, shows a new version of the history of the Mafra convent<br />
construction, in Portugal, which is told by a vision of the weak part, highlighting<br />
those people who didn’t have focus in the official reports. The fictional elements<br />
live together, however they overlap all the historic elements, specially the<br />
couple Baltasar and Blimunda, characters that represent the people who<br />
suffered to construct the palace-monastery, and that were forgotten by the<br />
official History. When these historic and fictional elements are compared, it gets<br />
clear the prevalence and the major importance of one over the other. It’s told<br />
the convent construction history, the king and queen of Portugal, as well as the<br />
royalty life as a whole, the society of that time and its religious and cultural<br />
customs. Simultaneously to these historic elements, it’s also told the simple and<br />
working people story, in special this couple, better known as Sete-Sóis and<br />
Sete-Luas, that not only represent the people, but also live a wordless love<br />
story. This definition is about the fact that they manifest their feelings through<br />
gestures and looks, they didn’t need to say too much to understand each other<br />
and know what the other was feeling, since the first talk, in the meeting<br />
moment, the silence predominated as a way of declaration. Despite being<br />
fictional, the two characters have great abundance in details and a form of<br />
singular love and distinct of what was observed in the society of that time, it’s<br />
delightful and fascinates the reader.<br />
Key-words: Memorial do Convento. Blimunda. Baltasar. Saramago. Portuguese<br />
Literature.
LISTA <strong>DE</strong> ILUSTRAÇÕES<br />
Figura 1: Convento de Mafra .................................................................. 14<br />
Figura 2: Passarola ................................................................................. 21<br />
Figura 3: Blimunda e Baltasar ................................................................. 50
MC: Memorial do Convento<br />
LISTA <strong>DE</strong> ABREVIATURAS E SIGLAS
SUMÁRIO<br />
INTRODUÇÃO ......................................................................................... 11<br />
CAPÍTULO I – JOSÉ SARAMAGO E O MEMORIAL DO CONVENTO .. 14<br />
1 A GÊNESE DO ROMANCE ............................................................ 14<br />
1.1 Resumo da obra ............................................................................. 16<br />
1.2 Aspectos do romance ..................................................................... 24<br />
CAPÍTULO II – LEITURA DO MEMORIAL DO CONVENTO ................. 29<br />
2 ANÁLISE LITERÁRIA .................................................................... 29<br />
2.1 Narrador ......................................................................................... 29<br />
2.2 Estrutura do texto ........................................................................... 32<br />
2.3 Tempo e espaço ............................................................................. 33<br />
2.4 Personagens .................................................................................. 33<br />
2.4.1 Personagens Fictícias .................................................................... 33<br />
2.4.2 Personagens históricas .................................................................. 36<br />
CAPÍTULO III – A SUPERAÇÃO <strong>DE</strong> BALTASAR E BLIMUNDA ......... 39<br />
3 COMPARAÇÃO ENTRE OS CASAIS ............................................ 39<br />
CONCLUSÃO .......................................................................................... 53<br />
REFERÊNCIAS ....................................................................................... 55
INTRODUÇÃO<br />
O romance Memorial do Convento (MC) de José Saramago não é<br />
somente um relato histórico da construção do convento de Mafra, mas sim a<br />
mistura de realidade e ficção, que permite a descoberta de aspectos que não<br />
se encontram em livros oficiais da época.<br />
A partir de sua leitura, é possível perceber o quanto o autor se<br />
empenhou para que os elementos ficcionais tivessem a merecida importância<br />
ante a história, e esse objetivo foi atingido com êxito, pois a repercussão da<br />
obra foi de proporções surpreendentes.<br />
Além disso, surpreendente é também a impressão que o romance causa<br />
em quem o lê e, consequentemente, a apaixonante simpatia que cresce, à<br />
medida que se vai conhecendo o casal Baltasar e Blimunda. Dentre os<br />
elementos da obra, eles chamam a atenção, devido à perfeita construção de<br />
suas personagens como representação de um objetivo e a perfeita harmonia<br />
entre estas.<br />
Através de um estudo aprofundado e uma análise crítica do casal<br />
Baltasar e Blimunda, deste romance, foi possível atingir o objetivo geral de<br />
conhecer mais sobre todo o romance e, em particular, sobre a relação das<br />
duas personagens entre si e destas com toda a obra. Os objetivos específicos<br />
foram os de identificar os elementos responsáveis pela importância deste<br />
romance, na obra saramaguiana; analisar literariamente a obra e comparar a<br />
relação entre o casal real e o casal ficcional.<br />
A personagem Baltasar representa o homem trabalhador, que se<br />
dedicava em uma obra de imensas proporções por pouco dinheiro para<br />
sustentar sua esposa, o soldado que é abandonado por seu país quando perde<br />
a mão, tornando-se inútil para a guerra e as pessoas que foram presas e<br />
condenadas pela inquisição. Blimunda representa as mulheres que sofriam por<br />
medo de perder seus maridos na construção, as mulheres que tiveram que se<br />
esconder da inquisição, para não perderem a vida e representa, ainda, as<br />
ideias heréticas do autor, na obra.<br />
11
Nesta obra, Saramago representa Baltasar e Blimunda como exemplos<br />
do amor ideal, e são feitas até mesmo obras, músicas, óperas para ressaltar a<br />
grandeza de particularidades contidas neles.<br />
A importância do casal se deve ao fato do autor ter dado maior<br />
importância e maior relevo para os elementos fictícios do que para os<br />
elementos histórico-oficiais, com o objetivo de mostrar outro lado da história,<br />
talvez mais importante que o lado oficial, já que, sem essas pessoas de classe<br />
social mais baixa, não seria possível transformar todo o sonho do convento em<br />
realidade.<br />
A vida difícil que eles levam, até mesmo depois de passarem a viver<br />
juntos, representa a vida de todas as outras pessoas na mesma condição<br />
social e que viviam no mesmo contexto que eles. Mas a história de Baltasar e<br />
Blimunda não é só mais uma, em meio a tantas outras. Eles são especiais<br />
tanto um para o outro, quanto para o romance. Carinho, amizade,<br />
cumplicidade, afetividade, envolvimento sentimental, harmonia e,<br />
principalmente, amor são apenas alguns exemplos da base da relação entre<br />
eles, sem mencionar o segredo de Blimunda e a forma como este era tratado<br />
por ela e por Baltasar. Desde o princípio já sabiam que ficariam juntos, mesmo<br />
sem saber ao certo o porquê.<br />
12<br />
Há muitos modos de juntar um homem e uma mulher, mas, não<br />
sendo isto inventário nem vademeco de casamentar, fiquem<br />
registrados apenas dois deles, e o primeiro é estarem ele e ela perto<br />
um do outro, nem te sei nem te conheço, num auto-de-fé, da banda<br />
de fora, claro está, a ver passar os penitentes, e de repente volta-se a<br />
mulher para o homem e pergunta, Que nome é o seu, não foi<br />
inspiração divina, não perguntou por sua vontade própria, foi ordem<br />
mental que lhe veio da própria mãe, a que ia na procissão, a que<br />
tinha visões e revelações, e se, como diz o Santo Ofício, as fingia,<br />
não fingiu estas, não, que bem viu e se lhe revelou ser este soldado<br />
maneta o homem que haveria de ser de sua filha, e desta maneira os<br />
juntou. (SARAMAGO, 2010, p.107-108)<br />
Teresa Cristina Cerdeira da Silva (1989, p. 84) afirma que “A união de<br />
Baltasar e Blimunda não se ressente da ausência de um herdeiro. Talvez<br />
porque tenham descoberto a plenitude no encontro a dois, priorizando o<br />
erotismo e não a fertilidade [...]”. Não se casaram nos moldes da época e<br />
também não tiveram filhos, porém isso não era motivo para frustração e nem
vergonha, eram plenamente felizes a sua maneira, independente do que<br />
pudesse parecer para os outros.<br />
Com relação à sexualidade, viviam na “[...] ,<br />
momento em que a sociedade burguesa, fundamentada no trabalho como<br />
garantia do poder, sentiu a necessidade de coibir a actividade sexual,<br />
fundamentalmente antiprodutiva [...]”, segundo Teresa Cristina Cerdeira da<br />
Silva (1989, p. 76) classificou. A sociedade da época se preocupava demais<br />
com a opinião alheia e com os atos pecaminosos que seriam condenados pela<br />
Inquisição ou pelo juízo final. Porém, Baltasar e Blimunda não viviam a esta<br />
sombra, viviam da forma que os fazia bem e felizes.<br />
O desenvolvimento deste trabalho realizou-se por meio de revisão<br />
bibliográfica, desenvolvida a partir de material já elaborado, constituído<br />
principalmente de livros e artigos científicos, abrangendo a temática do casal<br />
Baltasar e Blimunda na obra MC de José Saramago.<br />
Foram selecionados textos que abordam construtivamente o assunto,<br />
para operacionalizar a pesquisa, utilizando as técnicas de análise funcional.<br />
Quanto aos objetivos, a pesquisa foi do tipo exploratória, por que teve<br />
como objetivo proporcionar maior familiaridade com o problema, com vistas a<br />
torná-lo mais explícito ou a construir hipóteses e, principalmente, o<br />
aprimoramento de ideias. Ela envolveu levantamento bibliográfico, análise de<br />
exemplos de “estímulo a compreensão” e análise crítica no levantamento da<br />
pesquisa.<br />
O plano de trabalho consta da análise da obra pelo autor, pois à medida<br />
em que se conhece melhor o autor, também se conhece melhor a obra e as<br />
características deste, presentes nela. Também são analisados a repercussão<br />
do romance e seus aspectos histórico-religiosos, todos constantes no Capítulo<br />
1.<br />
No Capítulo 2, é feita uma análise literária do romance, uma visão da<br />
obra pela obra.<br />
Por último, é feita a comparação entre o casal real, D. João V e D. Maria<br />
Ana, e o casal natural, Baltasar e Blimunda, constante no Capítulo 3. Esta é<br />
uma visão da obra pelo leitor e pela crítica literária, com a finalidade de mostrar<br />
o papel dessas personagens, dentro do romance.<br />
13
CAPÍTULO I<br />
JOSÉ SARAMAGO E O MEMORIAL DO CONVENTO<br />
1. GÊNESE DO ROMANCE<br />
José Saramago trabalhou aproximadamente dois anos até que sua obra<br />
Memorial do Convento fosse publicada em 1982 pela Editorial Caminho. Após<br />
conseguir estabilizar-se financeiramente, Saramago pode dedicar-se a sua<br />
profissionalização como autor e, nesse momento, surge o interesse por contar<br />
a tão conhecida história do convento de Mafra, vista por outros olhos. O<br />
escritor passou a visitar Mafra frequentemente, em busca de documentos,<br />
relatos ou outras fontes que o ajudassem a reconstituir a História, objetivando<br />
conta-la pela visão do povo, que não recebeu espaço nos relatos oficiais.<br />
Fonte: http://sombrasdotempo.org/itiner/mafra_convento/v/1<br />
Figura 1: Convento de Mafra.<br />
14
A partir da obra Levantado do Chão (1980), Saramago começa a ganhar<br />
destaque, devido ao seu peculiar estilo de escrita, denominado estilo<br />
saramaguiano. As características desse estilo consistem em transmitir a<br />
oralidade por meio de longos períodos, com pouco ou nenhuma marca de<br />
discurso direto, com escasso recurso a pontuação e a constante interação do<br />
narrador com o que é narrado. Sobre o surgimento do estilo, o autor declarou:<br />
15<br />
[...] comecei a escrever como toda a gente faz, com guião, com<br />
diálogos, com a pontuação convencional, seguindo a norma dos<br />
escritores. [...] Quando ia na página vinte e quatro ou vinte e cinco, e<br />
talvez esta seja das coisas mais bonitas que me aconteceram desde<br />
que estou a escrever, sem o ter pensado, quase sem me dar conta,<br />
começo a escrever assim: interligando, interunindo o discurso directo<br />
e o discurso indirecto, saltando por cima de todas as regras<br />
sintácticas ou sobre muitas delas. (ARIAS, 2003, p. 74)<br />
Neste mesmo ano, ele divulga ter dois projetos em andamento, O Ano<br />
da Morte de Ricardo Reis e O Convento. Porém, foi o segundo projeto que se<br />
desenvolveu mais facilmente, sendo, mais tarde, lançado no mercado como<br />
Memorial do Convento.<br />
Desde seu lançamento, o livro foi sucesso absoluto, vendendo mais de<br />
50 mil exemplares e tendo mais de dez edições, em apenas dois anos. Ele,<br />
também, foi traduzido em 12 idiomas e editado em 15 países. A qualidade e o<br />
sucesso da obra foram, então, consagrados definitivamente com diversas<br />
premiações, dentre elas a do PEN Club e do Município de Lisboa em 1983 e, a<br />
do Nobel de Literatura em 1998. Também serviu como base para a ópera<br />
Blimunda, do compositor italiano Azio Corghi, que foi levada ao palco do teatro<br />
alla Scala de Milão, em maio de 1990.<br />
MC é escrito com o objetivo de imortalizar os heróis, que foram deixados<br />
de lado pela História oficial, esta, que é vista por Saramago como parcial e<br />
parcelar. Ele acredita que a História é parcelar, pois conta apenas uma parte<br />
do ocorrido. O único tempo que existe para o autor é o passado. Ele vê o<br />
passado como que em uma tela, onde se encontram as coisas que a História<br />
conta e aquelas que ela não menciona. Nesse caos, criado pela falta de<br />
conexão entre fatos que a História, por si só, não consegue (ou não pode) criar,<br />
surge a vontade de Saramago de encontrar os nexos entre esses fatos. Outra<br />
visão do autor sobre a História, é de que a mesma é parcial. No sentido em que
se apresenta como uma espécie de lição orientada e ideológica, algo que<br />
conheceremos com o termo de História Pátria. Essa parcialidade é reconhecida<br />
e pode ser, muitas vezes, verificada, analisada e corrigida em suas<br />
deformidades.<br />
A falta de informação sobre as personagens que participaram da história<br />
e não são mencionados na História oficial é o ponto culminante da agonia do<br />
autor, criando um sentimento trágico de desperdício humano. O foco de suas<br />
obras é o povo comum e corrente, aquelas pessoas que desaparecem sem<br />
deixar registros de sua passagem.<br />
A família de Saramago era formada por camponeses, sem-terra, gente<br />
pobre, analfabetos, em sua maioria. A classe que irá defender é a mesma que<br />
o originou. Tomemos, por exemplo, Goethe. Se ele não tivesse nascido, o<br />
mundo seria o mesmo, igual. Mas ele é lembrado como parte da História,<br />
sendo que muitas outras pessoas são responsáveis por quem conhecemos<br />
como Goethe, hoje. Muitas pessoas que desapareceram nos registros do<br />
mundo. Na tentativa de representar esse povo que desapareceu, Saramago<br />
nomeia os operários da construção do convento, em MC, de A a Z. Os nomes<br />
não serão mais encontrados, mas essa representação serve para todos os<br />
nomes que realmente foram os daqueles trabalhadores.<br />
Outro fator importante, que podemos encontrar na vida do autor, para<br />
essa indignação diante da omissão cometida pela História é o fato da falta de<br />
registros da morte de seu irmão. O irmão do autor havia falecido com dois anos<br />
e meio de idade, mas não constavam registros de sua morte, ele continuava<br />
vivo para a História.<br />
Com essa experiência, o autor começou a entender a História como uma<br />
versão do passado. Sendo que muitos a entendem e a explicam como uma<br />
verdade absoluta, ele nos apresenta as lacunas deixadas pelos textos oficiais.<br />
Encontrando tantas falhas no que é oficial, surge a pergunta: “Por que é que a<br />
literatura não há-de ter também sua própria versão da História?” (REIS, 1998,<br />
p. 87)<br />
1.1. Resumo da obra<br />
16
O romance começa a ser contado pela história do rei de Portugal, Dom<br />
João V, no ano de 1711, quando sua esposa, Dona Maria Ana Josefa, havia<br />
acabado de chegar da Áustria, para morar com seu esposo e lhe dar um filho,<br />
que seria o herdeiro do trono de Portugal. Eles não tinham uma vida conjugal<br />
baseada em afetividade, dormiam em quartos separados e só se encontram no<br />
início da noite, para terem suas relações amorosas.<br />
Apesar de tentarem (e rezarem muito), a rainha não conseguia ficar<br />
grávida e, num determinado dia o rei recebeu a visita de um franciscano que<br />
lhe disse que, se ele prometesse levantar um convento em Mafra, Deus lhe<br />
daria um filho, em troca do favor. Dom João V prometeu e não chegou a contar<br />
o ocorrido para a rainha. Naquela mesma noite, eles tentaram conceber o tão<br />
esperado herdeiro. Após descobrir que Dona Maria Ana estava grávida, a<br />
dúvida era: fora realmente um milagre de Deus, em recompensa pela<br />
promessa de Dom João, ou a rainha já suspeitava estar grávida e, contando<br />
isso em confissão, um dos franciscanos se aproveitou para pedir o convento<br />
que tanto queriam em Mafra.<br />
Lisboa recebeu então um novo morador, seu nome era Baltasar Mateus,<br />
mais conhecido como Sete-Sóis. Ele era soldado, 26 anos de idade, e tinha<br />
acabado de chegar da guerra. Por uma fatalidade, perdeu a mão esquerda na<br />
última batalha em que esteve presente. Devido à falta do membro, não poderia<br />
mais servir ao país.<br />
Baltasar adquiriu um gancho para colocar no lugar da mão que faltava e<br />
sua aparência, depois disso, começou a causar medo nas pessoas. Entretanto,<br />
ele não se intimidou e usou desse artifício para pedir esmola nas ruas de<br />
Lisboa. Seu objetivo era voltar para Mafra, sua cidade natal e onde morava<br />
toda sua família.<br />
Devido à Inquisição, houve em Lisboa um dia de auto-de-fé e, nesse dia<br />
em específico, 104 sentenciados seriam julgados e condenados a um castigo,<br />
dependendo do que haviam cometido. Toda a cidade sempre se fazia presente,<br />
desde os mais pobres até o rei e a rainha. Mas, nessa data, Dona Maria Ana<br />
não pode estar presente, devido à gravidez frágil, de cinco meses apenas, e<br />
também por estar de luto por um irmão imperador que, havia morrido na<br />
Áustria.<br />
17
No meio da multidão que seria julgada, estava Sebastiana Maria de<br />
Jesus, acusada de ter visões e revelações sobre o futuro. Ela era mãe de<br />
Blimunda, que também estava na rua, assistindo à mãe ser levada. Blimunda<br />
estava junto com o padre Bartolomeu Lourenço, conhecido da família e, em<br />
meio aquele alvoroço, ela conheceu Baltasar Sete-Sóis, que imediatamente se<br />
apaixonou pelos olhos dela.<br />
Todos vão para a casa de Blimunda, exceto a mãe, que fora condenada<br />
a degredo na Angola. E é somente quando chega em casa que a filha<br />
demonstra tristeza pelo acontecido. Ela era uma jovem muito misteriosa e um<br />
pouco insensível. O padre vai embora e deixa o casal a sós. Eles mal se<br />
conhecem, mas ela o deixa ficar e dormir com ela.<br />
Dias depois, Baltasar conheceu melhor o padre Bartolomeu Lourenço,<br />
chamado de o Voador, devido ao seu sonho de encontrar uma maneira de<br />
fazer o homem voar. O padre contou sobre suas ideias para ele e juntos eles<br />
foram a São Sebastião da Pedreira, onde já havia uma máquina sendo<br />
construída para levantar voo. A admiração de Baltasar fez com que ele<br />
aceitasse o convite do padre, de ajudar a terminar a construção, mesmo tendo<br />
somente uma mão. Além do mais, o padre o convenceu de que Deus também<br />
era maneta.<br />
Enquanto o padre Bartolomeu não comprava todos os materiais<br />
necessários, para que Baltasar possa continuar construindo a máquina<br />
voadora, Sete-Sóis fez bicos em um açougue e, junto com Blimunda, comia os<br />
restos que o dono doava a eles.<br />
Já no palácio, chegou o dia que a rainha deu a luz ao seu bebê. Foi uma<br />
festa em Portugal. Era uma menina e foi batizada de Maria Xavier Francisca<br />
Leonor Bárbara. Apesar de todas as comemorações o rei não esqueceu a<br />
promessa que fez do convento em Mafra.<br />
Depois de passado um tempo morando juntos, Baltasar percebeu que<br />
Blimunda não abria os olhos pela manhã enquanto não comesse ao menos um<br />
pedaço de pão e este mistério já estava deixando-o muito intrigado. Um dia, de<br />
tanto insistir para que Blimunda contasse o segredo para ele, ela decidiu<br />
compartilhar e contou que, em jejum, ela conseguia ver as pessoas por dentro,<br />
conseguia ver através das coisas e isso deixava de acontecer na mudança da<br />
lua. Ela teve de provar que era verdade, pois Baltasar não acreditava, e saíram<br />
18
os dois pela rua, ela olhou para baixo e viu uma moeda sob uns tijolos no chão.<br />
Após toda a revelação e a promessa de que ela nunca olharia Baltasar por<br />
dentro, os dois não tinham mais segredos.<br />
No palácio, então, nasceu o segundo filho do rei, homem desta vez.<br />
Depois do batizado deste, o rei escolheu o lugar exato em que seria construído<br />
o convento em Mafra. O rei estava se preocupando muito com este feito e, com<br />
isso, deixava de lado outros assuntos, como recompensas que deveriam ser<br />
pagas aqueles que se machucaram na guerra, defendendo o país, o caso de<br />
Baltasar, que até o momento não tinha recebido nada.<br />
Baltasar e Blimunda decidiram, então, mudar-se para São Sebastião da<br />
Pedreira e lá ele continuou a construir a máquina de voar, agora chamada por<br />
eles de passarola, pela semelhança com um pássaro, e as instruções do padre<br />
eram essenciais para que eles conseguissem. O padre Bartolomeu Lourenço<br />
tornou-se muito amigo do casal e chegou até a atribuir a Blimunda o apelido de<br />
Sete-Luas, pois ela era aquela que conseguia ver às escuras, ao contrário de<br />
Sete-Sóis, que só via às claras.<br />
Enquanto o padre Bartolomeu viajou para a Holanda, à procura de<br />
conhecimento para terminar a passarola, o casal continuou na casa,<br />
responsável pelos cuidados da máquina. Antes de o padre retornar para<br />
Lisboa, Baltasar e Blimunda partiram para Mafra, onde encontraram a família<br />
dele, que a muito não viam.<br />
Em Mafra, Baltasar reencontra sua família: mãe, pai, irmã, cunhado e<br />
dois sobrinhos, e ele conta tudo que aconteceu no período em que esteve fora,<br />
como perdeu sua mão, a dificuldade que está passando para arrumar um<br />
emprego e como conheceu Blimunda. Todos gostaram dela. Apesar do pai de<br />
Baltasar ter precisado vender suas tão queridas terras, para a construção do<br />
convento, eles continuavam tendo uma vida feliz e harmoniosa, ainda mais<br />
agora que o filho tinha voltado.<br />
Enquanto estavam lá, Baltasar e Blimunda vivenciaram um momento<br />
muito triste da família, que foi a perda do filho mais novo da irmã de Baltasar.<br />
Ao mesmo tempo, morria no paço o segundo filho do rei. A rainha, apesar de<br />
preocupada com o rei, que vinha tendo desmaios frequentes, conseguiu<br />
engravidar novamente. Este será o futuro herdeiro do trono real.<br />
19
Passados três anos, o Padre Bartolomeu Lourenço voltou da Holanda e<br />
vai a Coimbra, onde iria aprofundar seus estudos e formar-se doutor. O padre,<br />
também, procurou pelo casal e os encontrou em Mafra. Conversando sobre a<br />
passarola, contou o que aprendeu na Holanda, o padre explicou aos dois que o<br />
éter que fará a passarola voar fica dentro das pessoas, é a vontade de viver<br />
que elas têm dentro de si, e este éter colocado na passarola seria atraído pelo<br />
sol, fazendo a máquina subir e voar.<br />
O padre pediu, então, a Blimunda que usasse o seu dom de ver as<br />
pessoas por dentro, para ver quem está deixando a vontade escapar e, nesse<br />
momento, recolhê-la em um pote, para mais tarde usarem na passarola.<br />
Baltasar e Blimunda retornaram a Lisboa. Ela com o objetivo de recolher<br />
vontades e ele de continuar a construção da máquina de voar.<br />
Certo dia, quando Blimunda foi à igreja e recebeu a hóstia, ela percebeu<br />
que o que estava dentro da Eucaristia é a mesma coisa que está dentro dos<br />
homens; e fica decepcionada, pois achava que seria algo divino e não dos<br />
homens.<br />
Em Mafra, iniciaram-se as festividades de inauguração da construção do<br />
convento, foi depois delas que os operários realmente começaram a trabalhar.<br />
Baltasar e Blimunda, assim como muitas outras pessoas, estiveram presentes<br />
nessa festa, e depois retornaram para Lisboa para continuar trabalhando na<br />
passarola.<br />
Nessa época, o padre disse para Blimunda que seriam necessárias<br />
aproximadamente duas mil vontades para que a passarola levantasse voo e ela<br />
só tinha conseguido trinta, por enquanto. Ele sugeriu que ela fosse à procissão<br />
do Corpo de Deus e recolhesse o máximo que pudesse. Próximo ao dia da<br />
procissão, Blimunda perdeu o seu poder visionário, devido à mudança da lua.<br />
Só depois que tudo já acabara é que ela voltou a enxergar por dentro das<br />
pessoas, deixando de conseguir várias vontades.<br />
Padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão tornou-se doutor em cânones.<br />
O maestro Domenico Scarlatti estava em Portugal para dar lições de música<br />
para a infanta D. Maria Bárbara. O padre ficou conversando com Scarlatti após<br />
uma das lições. Nesta conversa, o padre convidou o músico para ver a<br />
passarola. Então, Domenico Scarlatti foi à S. Sebastião da Pedreira,<br />
apresentando-se a Baltasar e Blimunda e conheceu a máquina de voar.<br />
20
O cravo de Scarlatti foi levado para a quinta. O instrumento chegou<br />
desafinado, por causa dos balanços e solavancos do caminho. Scarlatti afinou-<br />
o e começou a tocar, enquanto o casal trabalhava na passarola. Domenico<br />
Scarlatti revelou ter a vontade de voar com a passarola e tocar no céu.<br />
Baltasar e Blimunda foram a Lisboa buscar vontades entre as pessoas<br />
doentes pela peste. Blimunda adoeceu, após recolher as duas mil vontades.<br />
Baltasar ficou ao lado de sua cama por todo o tempo. Com a música de<br />
Scarlatti ela começou a se recuperar.<br />
O casal foi ver o padre Bartolomeu, que estava com remorso por ter<br />
colocado Blimunda naquela situação. Durante a visita, o padre informa da<br />
vontade de declarar ao rei que a máquina estava pronta, mas que não faria<br />
isso antes de experimentá-la primeiro.<br />
A justiça determinou que o rei devolvesse a quinta de S. Sebastião da<br />
Pedreira ao Duque de Aveiro. Às pressas, a abegoaria da quinta foi<br />
desmontada, para que a passarola pudesse sair voando por ela. O padre<br />
Bartolomeu receava que o santo ofício entendesse sua máquina como arte<br />
demoníaca.<br />
Baltasar, Blimunda e o Padre Bartolomeu voaram com a passarola.<br />
Scarlatti encontrou a quinta vazia, viu apenas seu cravo na abegoaria, que foi<br />
jogado por ele no poço, para evitar problemas com o Santo Ofício.<br />
Fonte: http://desastresaereosnews.blogspot.com/2010_06_07_archive.html<br />
Figura 2: Passarola.<br />
21
Começaram a ter preocupações com o que aconteceria quando o sol se<br />
escondesse e as vontades não fossem mais atraídas para o céu. Blimunda e<br />
Baltasar abraçaram-se às esferas das vontades e a passarola desceu e pousou<br />
num monte. O padre Bartolomeu tentou, então, destruir a passarola colocando<br />
fogo nela, mas foi impedido pelo casal. Quando o fogo foi apagado, o padre<br />
fugiu. O casal escondeu a passarola com ramos das moitas do Monte Junto e<br />
seguiu para Mafra.<br />
Baltasar, com a ajuda de Álvaro Diogo, conseguiu trabalho nas obras do<br />
convento. A obra do convento estava atrasada. As chuvas constantes e as<br />
dificuldades no transporte dos materiais são as causas.<br />
Baltasar regressou ao Monte Junto, para verificar os estragos na<br />
passarola e a possibilidade do encontro com o padre Bartolomeu. Domenico<br />
Scarlatti foi visitar o convento e encontrou-se com Blimunda, contando a ela<br />
que o padre Bartolomeu de Gusmão morrera em Toledo, na Espanha, durante<br />
um terremoto.<br />
Num dia, em um bar, Baltasar escuta a história de outros homens que<br />
trabalhavam no convento: Francisco Marques, José Pequeno, Joaquim da<br />
Rocha, Manuel Milho, João Anes, Julião Mau-Tempo. Acaba por contar sua<br />
história também.<br />
A construção continuava. Baltasar foi promovido a boieiro, com a ajuda<br />
de José Pequeno. Como boieiro, foi com outros seiscentos homens, que<br />
deveriam buscar uma grande pedra em Pêro Pinheiro. Dentre esses homens,<br />
foi à frente Francisco Marques, pois queria encontrar-se com a mulher e filhos.<br />
A pedra pesava trinta e um mil e vinte e um quilos. Sete metros de<br />
comprimento, três de largura e sessenta e quatro centímetros de espessura.<br />
Os quatrocentos bois que a puxariam, naquele momento, pareciam poucos.<br />
A viagem de volta começa mal, um homem descuida-se e perde o pé.<br />
Os bois deveriam puxar igualmente dos dois lados, o que raramente acontecia.<br />
O caminho não era de grande ajuda, passaram por colinas, subindo e<br />
descendo. Francisco Marquês era um dos responsáveis pelo calço. Distraiu-se,<br />
pensando na mulher e a plataforma em que a pedra estava presa passou com<br />
a roda, sobre seu ventre. Terminou a viagem em seu oitavo dia.<br />
Baltasar sempre que podia, retornava ao Monte Junto para conferir e<br />
concertar os estragos causados pelo tempo na passarola. Certa vez, Blimunda<br />
22
acompanhou-o, pois queria conhecer o caminho, caso tivesse de ir sozinha, um<br />
dia. Consertaram o que havia de ser concertado. Na passarola, passaram a<br />
noite. Antes que Baltasar acordasse, Blimunda, sem comer seu pão, foi<br />
verificar se as vontades não haviam fugido. Lá estavam.<br />
D. João V montara uma maquete da basílica de São Pedro com os<br />
filhos: D. José e D. Maria Bárbara. Toda a corte foi assistir. O rei, vendo a<br />
maquete da basílica montada, sente o desejo de ter igual em seu reino.<br />
Chamou o arquiteto do convento de Mafra. O arquiteto dissuadiu-o da ideia,<br />
mas D. João estava decidido a fazer uma grande obra. Deu ordem para que o<br />
arquiteto preparasse uma nova planta. O convento de Mafra teria a capacidade<br />
para trezentos frades, não mais oitenta, esta era a vontade real.<br />
Precisariam de mais homens para trabalhar na construção. Foi enviada<br />
uma ordem para as vilas, todos os homens, que trabalhassem no ofício da<br />
construção, deveriam ser levados a Mafra por vontade, ou contra ela.<br />
Em 1729, realizaram-se os casamentos entre os príncipes de Portugal e<br />
os príncipes da Espanha. Maria Bárbara e José, com os espanhóis Fernando e<br />
Mariana Vitória.<br />
As estátuas dos santos do convento vieram da Itália, ao mesmo tempo<br />
em que foi dada ordem para que os frades trouxessem seus noviços para o<br />
convento. É o ano 1730. Ano da consagração do convento.<br />
Baltasar estava velho, mas não aos olhos de Blimunda. Há dezessete<br />
anos encontraram-se pela primeira vez e ela ainda o via da mesma forma.<br />
Baltasar saiu, então, numa manhã, para ver a passarola. Blimunda<br />
acompanhou-o até o início da estrada.<br />
Enquanto consertava os recentes estragos da passarola, distraiu-se,<br />
pisou em uma tábua apodrecida, que rachou e o fez cair. Na queda os panos<br />
que cobriam a passarola saíram, a luz entrou e, ao encontrar as vontades, fez<br />
com que a passarola voasse.<br />
Por duas noites não dormia Blimunda, quando saiu à procura dele.<br />
Chegando ao Monte, percebeu que Baltasar não estava lá, nem a passarola.<br />
Somente encontrou o seu alforje com seu espigão. Começou a procurá-lo. Sem<br />
sucesso, pensou em subir ao topo do Monte Junto, para ter uma visão melhor.<br />
Descobriu que no topo do Monte existia um convento. Encontrou um frade no<br />
23
caminho, que ofereceu um abrigo para ela passar a noite em uma ruína ao lado<br />
do convento. Ela negou.<br />
Quando a noite chegou, com medo dos animais que poderiam estar a<br />
sua espreita, voltou ao topo do monte. Encontrou a ruína, onde poderia dormir.<br />
No meio da noite acordou com um barulho. Reconheceu a sombra do frade,<br />
passando por uma fresta. O frade queria matar as vontades da carne. Ela tirou<br />
o espigão do alforje e, quando o padre, de batina erguida sentiu o abraço<br />
daquela mulher, sentiu, também, seu sangue escorrer pelas costas. Blimunda<br />
caminhou por toda a noite. Nada mais a assustava. Seguiu para Mafra;<br />
Baltasar poderia ter voltado. Quando chegou, percebeu que ele não estava ali,<br />
mas acabou adormecendo.<br />
No domingo, vinte e dois de outubro de mil setecentos e trinta, sagrou-se<br />
o convento de Mafra, mas é neste mesmo dia que Blimunda sai da cidade<br />
procurando Baltasar.<br />
Durante nove anos, Blimunda procurou por Baltasar. Aonde chegava,<br />
perguntava por seu homem. Ficou conhecida, de terra em terra, como a<br />
Voadora, pelas histórias que contava.<br />
Por seis vezes passou por Portugal, esta é a sétima. Não comia a quase<br />
vinte e quatro horas. Algo não a deixava comer, algo que segurava sua mão<br />
sempre que a ia levar a boca.<br />
Em Lisboa, havia fogueiras em S. Domingos. Onze pessoas estavam<br />
sendo queimadas. Dentre elas queimava um homem que não possuía a mão<br />
esquerda, mas possuía uma nuvem fechada no centro de seu corpo.<br />
“Então Blimunda disse, Vem. Desprendeu-se a vontade de Baltasar<br />
Sete-Sóis, mas não subiu para as estrelas, se à terra pertencia e a Blimunda.”<br />
(SARAMAGO, 2010, p. 347)<br />
1.2. Aspectos do romance<br />
A História tem presença confirmada neste romance, já que tudo que está<br />
registrado em documentos oficiais é mencionado pelo autor. Porém, isto é feito<br />
de uma forma em que as lacunas são preenchidas com elementos ficcionais<br />
24
que representam o objetivo de Saramago, ao reescrever a história da<br />
construção do convento de Mafra, que é conhecê-la pela visão dos dominados.<br />
O MC traz um importante conceito de dominante e dominado que retrata<br />
a sociedade na época, onde o dominante é representado pelo rei e a rainha,<br />
que tomam decisões baseados em interesses políticos e econômicos. Já o<br />
dominado é o povo, que é obrigado a aceitar o que lhes é imposto e sofre para<br />
viver dignamente, no romance os seus representantes são muitos, mas<br />
especialmente Baltasar e Blimunda.<br />
A Guerra de Sucessão da Espanha é um dos temas que compunham a<br />
História européia no século XVIII, ela se faz presente no MC por ter Baltasar<br />
participado dela e por aparecer no contexto da realeza, por algumas vezes.<br />
Esta guerra era disputada por dominantes, dois grandes blocos econômicos;<br />
inicialmente Portugal se alia aos franceses e depois acaba mudando de lado,<br />
se juntando aos ingleses, no bloco austríaco. Porém não leva nenhuma<br />
vantagem quando a França se torna herdeira do trono. Longe de vantagens, o<br />
que os portugueses tiveram foram somente desvantagens, principalmente se<br />
for tomada a visão do povo que lutava, que vivia em situação precária e os<br />
muitos que perderam membros e vidas, lutando por um objetivo que<br />
desconheciam, que não era deles, nem de Portugal; um objetivo político entre<br />
grandes potências. Baltasar é um dos muitos soldados que lutou pelo país,<br />
perdeu a mão numa batalha e deixa de ter serventia, recebendo o tratamento<br />
de desprezo e descaso, sem nenhum reconhecimento pelo esforço e trabalho<br />
empenhados.<br />
José Saramago também usa o romance para falar sobre o contexto<br />
econômico que prevaleceu no reinado de D. João V. A base da economia era o<br />
Brasil, com os carregamentos de madeira, açúcar, algodão, mandioca e<br />
tabaco, levados por mar, caracterizando, assim, a exploração colonial. A<br />
situação se tornou mais acentuada, quando se descobriu o ouro e os<br />
diamantes. Então, Portugal passou a viver na fartura desses produtos, os<br />
poderosos passaram a viver de luxúria e supérfluos.<br />
No ápice desse luxo é que surge a construção do convento de Mafra.<br />
Suas dimensões e seus gastos excessivos e desnecessários refletem o modo<br />
como o rei administrava os bens que explorava das minas brasileiras e como<br />
ele agiu para garantir o poder. O autor traz esse ponto de vista crítico ao<br />
25
omance, de uma forma acentuada, através de inserção em outro<br />
acontecimento e ele “[...] parece surgir ao acaso da narrativa, trazido ou<br />
lembrado ludicamente por um processo de alusão arbitrário, como o de<br />
.” (SILVA, 1989, p. 39)<br />
O convento surge do ouro do Brasil, por promessa feita pelo rei, diante<br />
da impossibilidade de ter um filho. Essa obra toma proporções gigantescas, e<br />
se torna difícil defini-la como convento ou palácio. A coroa adquiriu os terrenos<br />
onde seria a construção, os materiais, os operários e também gastou com as<br />
cerimônias de inaugurações da obra e do convento pronto. As constantes<br />
alterações de dimensão da obra, durante sua construção, ajudaram a atrasar a<br />
data de inauguração. Foi quando o rei decidiu que queria a sagração do<br />
convento, no dia de seu 41º aniversário, e outras medidas mais trágicas foram<br />
tomadas para cumprimento do prazo, como por exemplo, obrigar todos os<br />
homens em condições de trabalho a ir ajudar na construção, e muitas famílias<br />
foram destruídas e tiveram prejuízos em suas rendas, além do prejuízo que a<br />
economia de Portugal também já tinha.<br />
Quanto ao trabalho, enquanto mão de obra, MC apresenta dois tipos de<br />
relações que o trabalhador pode ter, em relação ao seu objeto de trabalho.<br />
Essa relação se baseia na identificação do homem com aquilo que ele constrói,<br />
se o objeto é a realização de um sonho ou se é alheio aos seus interesses. No<br />
primeiro caso, a expectativa do trabalhador, para realizar seu sonho de ver o<br />
objeto pronto, faz com que a produção seja melhor e o operário acaba<br />
crescendo junto com a obra. Já no segundo caso, não há interesse no que é<br />
construído, então o homem se aliena, o resultado é indiferente para ele e seu<br />
crescimento pessoal é nulo. “No Memorial do Convento convivem esses dois<br />
processos, vida e morte, em relação ao trabalho.” (SILVA, 1989, p. 55)<br />
A construção do convento era um sonho do rei D. João V e não dos<br />
operários que estavam trabalhando na obra. Isso significa que, para eles, o<br />
interesse era nulo, a ideia de realização de um sonho era ausente, além de<br />
implicar a questão de repressão, por estarem, a maioria, obrigados ao serviço.<br />
Esse era um sonho de grandeza pessoal e vaidade do rei, seu ideal não foi<br />
repassado aos trabalhadores, estes só podiam ser pequenas peças de uma<br />
grande obra que os esmagava, e não os ajuda a crescer como pessoas e/ou<br />
profissionais.<br />
26
Por outro lado, há a construção da passarola, um sonho compartilhado<br />
entre o padre Bartolomeu Lourenço, idealizador, e Baltasar e Blimunda,<br />
executores. Participando de um mesmo ideal, os três sentem prazer em<br />
trabalhar no objeto sonhado, realizam-se como trabalhadores em relação à<br />
obra, e crescem junto com ela. Mais também contribui Domenico Scarlatti com<br />
sua música, para que a leveza a ajudasse a subir aos ares, e essa harmonia<br />
dos quatro sonhadores com a passarola é perfeita. O Memorial do Convento<br />
acaba se tornando, também, o memorial da passarola, outro elemento que<br />
serve como representante do objetivo de mostrar um lado da história que não<br />
está nos documentos oficiais.<br />
Para que a passarola pudesse levantar voo, era indispensável a<br />
contribuição do homem, pelas mãos dele que a máquina seria capaz de subir<br />
aos ares. E foi acreditando nisso que Baltasar sentiu novamente que ele tinha<br />
serventia, sentimento que perdera ao ser dispensado da guerra, quando<br />
perdeu a mão. Ele passa a ser valorizado pelo que faz e, por ter Blimunda ao<br />
seu lado, se sente completo como homem e como trabalhador; seu<br />
crescimento pessoal contribui significativamente para o crescimento da<br />
máquina voadora.<br />
O MC representa, também, os aspectos religiosos de Portugal, no<br />
Século XVIII. A Inquisição, os autos-de-fé, a vida conventual e as festas<br />
religiosas desenvolvem-se em contraste com as heresias cometidas pelas<br />
personagens, podendo-se dizer que o romance desenvolve-se entre o sagrado<br />
e o profano.<br />
Por meio dos documentos históricos, sabemos que a Inquisição entrou<br />
em Portugal, a pedido de D. João III, em 1534. Foi instaurado em Portugal, por<br />
causa da “[...] ameaça judaica e deve ser entendido não apenas como defesa<br />
religiosa, mas como possibilidade de enriquecimento da Coroa através dos<br />
bens confiscados aos judeus condenados.” (SILVA, 1989, p. 45)<br />
O Auto-de-fé, como a maioria das cerimônias religiosas, inicia-se com<br />
uma procissão, esta não é dos eleitos, mas dos condenados, seguindo para a<br />
leitura das sentenças e, por fim, os suplícios. A fogueira, o garrote, o degredo,<br />
a prisão perpétua e o açoite eram as penas, geralmente, aplicadas pela Santa<br />
Inquisição aos heréticos, inimigos da fé. O Auto-de-fé foi utilizado pelo autor<br />
para fazer um marco na história do casal analisado. “Eles são cerimoniais de<br />
27
morte que polarizam a vida de Baltasar e Blimunda – do primeiro encontro e do<br />
nascimento e dois até ao encontro final no momento da morte.” (SILVA, 1989,<br />
p. 47)<br />
O MC apresenta uma visão irônica e, ao mesmo tempo, realista do<br />
catolicismo da época, em Portugal, onde clero tinha uma vida de hipocrisia e<br />
libertinagem. Entre o grande número de religiosos, em Portugal, poucos o eram<br />
por opção feita e, dentre estes muitos acabavam sendo corrompidos. E os<br />
leigos aproveitavam as festas religiosas para realizarem seus desejos carnais.<br />
Toda a obra constrói-se da tensão entre o sagrado e o profano. Como<br />
exemplo, as obras criadas pelo homem: a passarola e o convento. Na primeira,<br />
temos o desejo pelo desconhecido, pelo domínio do ar. Na segunda, está<br />
investido um caráter religioso, apesar das dores e perdas para sua construção.<br />
A heresia, também, está presente no discurso utilizado pelo narrador,<br />
que, em todos os momentos, apresenta-se irônico e cético diante dos milagres<br />
vistos pelos homens. Adquire uma postura questionadora, em face a<br />
necessidade do convento, apresentando dúvida no milagre ocasionado da<br />
promessa do rei. “Agora não vá dizer que, por segredos de confissão<br />
divulgados, souberam os arrábidos que a rainha estava grávida antes mesmo<br />
que ela o participasse ao rei.” (SARAMAGO, 2010, p.26)<br />
Podemos caracterizar a narração como paródica e questionadora às<br />
ideias que são vistas como inquestionáveis, sendo elas de origem literária,<br />
histórica ou bíblica. Concedendo o poder de fazer milagres aos homens, e não<br />
a Deus.<br />
28
2. ANÁLISE LITERÁRIA<br />
CAPÍTULO II<br />
LEITURA DO MEMORIAL DO CONVENTO<br />
A seguir, será feita a análise literária do romance MC, levando em<br />
consideração o narrador, a estrutura, o tempo, o espaço e as características<br />
das personagens.<br />
2.1. Narrador<br />
O poeta não é um historiador, pois não pretende contar a história do<br />
modo como ela aconteceu, mas do modo que ela poderia ter acontecido.<br />
Acrescentando a imaginação com a mistura dos contos populares e dos relatos<br />
oficiais, Saramago apresenta uma narrativa fascinante e propõe uma nova<br />
dimensão à narrativa histórica, na qual o narrador apresenta um período<br />
remoto com uma perspectiva moderna e extremamente critica. O estilo<br />
narrativo utilizado é uma das marcas saramaguianas. O narrador comenta os<br />
acontecimentos e atribui suas próprias opiniões sobre o que se está sendo<br />
narrado. O uso constante da ironia e parodia são também ferramentas<br />
constantemente aplicadas à narrativa.<br />
29<br />
Agora não se vá dizer que, por segredos de confissão divulgados,<br />
souberam os arrábidos que a rainha estava grávida antes mesmo que<br />
ela o participasse ao rei. Agora não se vá dizer que D. Maria Ana, por<br />
ser tão piedosa senhora, concordou calar-se o tempo bastante para<br />
aparecer com o chamariz da promessa o escolhido e virtuoso frei<br />
António. Agora não se vá dizer que el-rei contará as luas que<br />
decorrerem desde a noite do voto ao dia em que nascer o infante, e<br />
as achará completas. Não se diga mais do que ficou dito.<br />
(SARAMAGO, 2010, p. 26)
O narrador faz uso da ironia por todo o livro. Por contar os fatos do modo<br />
que aconteceram pela História, apresenta-os ironizados para demonstrar sua<br />
visão diante das decisões politicas e religiosas da época. Este é o modo que o<br />
narrador escolheu para afirmar qual lado da história pretende defender. Não se<br />
utiliza, pois, destas ferramentas, para o trato das personagens, fictícias ou<br />
injustiçadas, apresentadas no romance, que são as que foram esquecidas ou<br />
mal-entendidas pela História.<br />
Que caiba a culpa ao rei, nem pensar, primeiro porque a esterilidade<br />
não é mal dos homens, das mulheres sim, por isso são repudiadas<br />
tantas vezes, e segundo, material prova, se necessária ela fosse,<br />
porque abundam no reino bastardos da real semente e ainda agora a<br />
procissão vai na praça. (SARAMAGO, 2010, p. 11)<br />
O uso de digressões, também, é constantemente utilizado na narrativa:<br />
30<br />
Três, se não quatro, vidas diferentes tem o padre Bartolomeu<br />
Lourenço, e uma só apenas quando dorme, que mesmo sonhando<br />
diversamente não sabe destrinçar, acordado, se no sonho foi o padre<br />
que sobe ao altar e diz canonicamente a missa, se o académico tão<br />
estimado que vai incógnito el-rei ouvir-lhe a oração por trás do<br />
reposteiro, no vão da porta, se o inventor da máquina de voar ou dos<br />
vários modos de esgotar sem gente as naus que fazem água, se esse<br />
outro homem conjunto, mordido de sustos e dúvidas, que é pregador<br />
na igreja, erudito na academia, cortesão no paço, visionário e irmão<br />
de gente mecânica e plebeia em S. Sebastião da Pedreira, e que<br />
torna ansiosamente ao sonho para reconstruir uma frágil, precária<br />
unidade, estilhaçada mal os olhos se lhe abrem, nem precisa estar<br />
em jejum como Blimunda. (SARAMAGO, 2010, p. 170)<br />
Por vezes, as digressões apresentam novas histórias, novos<br />
comentários, até que o narrador esteja satisfeito e tenha se feito entender.<br />
Nesses momentos, dá-se a impressão de que uma palavra puxa a outra, e com<br />
essa nova palavra vem uma nova história.<br />
Como explica Pedrouços (1991) sobre a narrativa saramaguiana:<br />
O oral e o escrito, o poético e o prosaico, o discursivo e o<br />
descritivo/narrativo, o jogo e a sobriedade, a ironia e a verdade, o<br />
humor e a solenidade, fluem em turbilhão, rodopiam, numa<br />
redundância quase, porque nunca chega a sê-lo, ainda que<br />
apetecida, numa de palavra puxa palavra (...).<br />
No trecho a seguir, observa-se o mesmo:
31<br />
No Memorial, Saramago trabalha com metáforas continuadas e,<br />
assim sendo, ordena os elementos narrativos a uma figuração<br />
seqüencial, a uma representação que nunca se fecha, nunca se<br />
totaliza e que trabalha com fragmentos de uma estilhaçada realidade<br />
barroca. (SANTOS, 2006)<br />
A fala dos personagens é apresentada por meio do discurso indireto<br />
livre. Neste romance, as falas são separadas por vírgulas, sem uso do<br />
travessão ou aspas, aumentando a velocidade da narração e algumas são<br />
precedidas por verbo dicendi, diferenciando da regra de discurso indireto livre.<br />
[...] sentou-se o padre numa pedra, fez sinal a Sete-Sóis para que se<br />
acomodasse ao lado dele, e enfim respondeu, como se agora mesmo<br />
tivesse ouvido a pergunta, Porque eu voei, e disse Baltasar,<br />
duvidoso, Com perdão da confiança, só os pássaros voam, e os<br />
anjos, e os homens quando sonham, mas em sonhos não há firmeza,<br />
Não tens vivido em Lisboa, nunca te vi, Estive na guerra quatro anos<br />
e a minha terra é Mafra, Pois eu faz dois anos que voei, [...]<br />
(SARAMAGO, 2010, p. 60)<br />
Durante a leitura do romance, é difícil determinar onde está o narrador<br />
que, em certos momentos, apresenta-se com uma visão onisciente dos fatos;<br />
logo em seguida, utiliza o pronome “nós”, como se estivesse junto ao povo, e<br />
com o mesmo pronome, em momento diferente, coloca-se ao lado do leitor.<br />
Além de mudar de posição, com o passar da história, o narrador, também,<br />
compartilha a fala com alguns personagens, durante a narrativa. No quarto<br />
capítulo, a personagem Sebastiana Maria de Jesus, mãe de Blimunda, toma a<br />
voz e seu pensamento narra sua passagem, na procissão do auto-de-fé.<br />
A intertextualidade é muito utilizada por todo o romance, a todo<br />
momento, parodiando, principalmente, com os Lusíadas: “[...] quem sabe que<br />
perigos os esperam, que adamastores, que fogos-de-santelmo, acaso se<br />
levantam do mar, que ao longe e vê, trombas-d’água que vão sugar os ares e<br />
o tornam a dar salgado.” (SARAMAGO, 2010, p. 193)<br />
O vocabulário apresentado pelo autor é alternado, dependendo da<br />
situação apresentada, modificando, não só o estilo da narração, como as<br />
palavras utilizadas. Levando a esta ferramenta muito utilizada por diversos<br />
autores, palavra-puxa-palavra, que, como foi citado anteriormente, aparece<br />
constantemente durante a narrativa do MC.
2.2. Estrutura do texto<br />
A pontuação utilizada por Saramago destacou suas obras destravando-<br />
as das pausas criadas pelo sistema de pontuação. Neste novo sistema, a<br />
vírgula e o ponto final substituem todos os outros sinais de pontuação,<br />
causando o efeito de que o leitor participa com mais intensidade da história,<br />
pois é ele que executa a função de encontrar as exclamações, interrogações e<br />
demais expressões dentro do texto.<br />
32<br />
Ao fim de uma hora levantou-se Scarlatti do cravo, cobriu-o com um<br />
pano de vela, e depois disse para Baltasar e Blimunda, que tinham<br />
interrompido o trabalho, Se a passarola do padre Bartolomeu de<br />
Gusmão chegar a voar um dia, gostaria de ir nela e tocar no céu, e<br />
Blimunda respondeu, Voando a máquina, todo o céu será música, e<br />
Baltasar, lembrando-se da guerra, Se não for inferno todo o céu.<br />
(SARAMAGO, 2010, p. 171)<br />
Outro fator marcante é o uso de parágrafos longos, que, por vezes,<br />
duram por mais de três páginas. Os parágrafos são maiores do que o normal<br />
por que a narrativa apresenta descrições extensas e pormenorizadas,<br />
enriquecendo o texto, no qual tudo que é descrito por palavras pode ser<br />
perfeitamente visualizado pelo autor. Os capítulos não são nomeados ou<br />
numerados. Iniciam-se com um espaço na página, que sinaliza a mudança de<br />
capítulo.<br />
O vocabulário muda constantemente. Dependendo do assunto, pode ser<br />
mais rebuscado ou coloquial. Essa escolha, dependerá, também, do lugar onde<br />
encontra-se o narrador, sendo que este altera sua proximidade<br />
constantemente, durante a narrativa. Uso de expressões em latim é comum<br />
quando o narrador inicia um assunto religioso: “In hoc signo vinces”.<br />
(SARAMAGO, 2010, p. 338)<br />
De pronto, sua escrita não só confirmava o insólito “estilo<br />
saramaguiano” de transmitir a oralidade por meio de longos períodos<br />
sem nenhum ponto final, mas também articulava a linguagem popular<br />
com um barroquismo setecentista de elevada qualidade. (LOPES,<br />
2010, p. 101)
O romance diferencia-se de um texto histórico por mostrar uma opinião<br />
diante dos fatos. O que a História Oficial não pode fazer é inventar, preencher<br />
as lacunas, com a ficção e, nesse ponto, o MC diferencia-se, mas não é por ser<br />
um romance que se esquece do que existiu e ainda existe. As igrejas e<br />
imagens de santos que existiam na Portugal do século XVIII são nomeadas<br />
diversas vezes. Para isso, o narrador utiliza-se de descrições que tomam<br />
páginas, para que possam ser colocados os nomes de todos os santos<br />
presentes nessas igrejas.<br />
2.3. Tempo e espaço<br />
O tempo da narrativa é cronológico e tem duração aproximada de 22<br />
anos, compreendidos entre as datas de novembro de 1717 e 1739. Em relação<br />
à História de Portugal, o romance registra uma época rica em acontecimentos<br />
políticos, religiosos, inclusive a Inquisição, e sociais, percorrendo<br />
aproximadamente 30 anos na História oficial.<br />
história:<br />
São dois os espaços principais em que acontece o desenrolar da<br />
Mafra: passa de uma vila antiga e esquecida para uma vila nova e de<br />
notoriedade, onde está sendo construído o convento. Também são descritos<br />
seus arredores.<br />
Lisboa: são descritos vários ambientes, como o Terreiro do Paço, local<br />
onde trabalha Baltasar quando chega a Lisboa, e também é usado como<br />
cenário para a Procissão do Corpo de Deus, e a quinta de São Sebastião da<br />
Pedreira, uma chácara abandonada, onde construíam a passarola.<br />
2.4. Personagens<br />
2.4.1. Personagens fictícias<br />
33
As personagens fictícias no MC são uma representação do povo<br />
português da época. Um povo que passou pela pobreza e humilhação para a<br />
construção de um palácio-convento. É possível que Saramago tenha criado<br />
estes personagens por meio de relatos contados pelo povo, relatos históricos e<br />
ainda a visão que ele mesmo teve sobre a pobreza. Por meio desta análise, é<br />
possível determinar o tipo de personagem criada por Saramago no MC:<br />
“Personagens elaboradas com fragmentos de vários modelos vivos, sem<br />
predominância sensível de uns sobre outros, resultando uma personalidade<br />
nova.” (CANDIDO, 1973, p. 73)<br />
Blimunda de Jesus, a Sete-Luas. O nome Blimunda é o gerúndio de<br />
Blenda que significa legar, deslumbrar. Na construção da passarola, Blimunda<br />
é a mão que falta para Baltasar e os olhos que analisam o que é feito. Ela tem<br />
os olhos da percepção, os olhos que veem a verdade que o mundo esconde,<br />
sendo que este é o modo mais difícil de se ver, pois vê-se o que existe e não<br />
apenas o que se quer ver.<br />
34<br />
[...] olhos como estes nunca se viram, claros de cinzento, ou verde,<br />
ou azul, que com a luz de fora variam ou o pensamento de dentro, e<br />
às vezes tornam-se negros nocturnos ou brancos brilhantes como<br />
lascado carvão de pedra. (SARAMAGO, 2010, p.53)<br />
Os elementos sublime e sagrado são unidos no erotismo do casal, no<br />
qual o amante, através do ato sexual, é transformado na coisa amada. Em<br />
momentos, as relações do casal são apresentadas, no romance, com mais<br />
presença do sagrado do que a própria missa.<br />
Blimunda, também, representa a razão entre eles. Quando olha para o<br />
padre Bartolomeu antes de voarem, reconhece nele o olhar dos perseguidos<br />
pelo Santo Ofício. Quando estão voando na passarola é ela que percebe<br />
primeiro o que irá acontecer, quando o sol se pôr. Blimunda pensa livremente,<br />
pois vê livremente. Razão que nasceu com ela, onde mesmo quando estava na<br />
barriga de sua mãe, permaneceu “de olhos abertos”. (SARAMAGO, 2010, p.<br />
322)<br />
Ao encontrar Baltasar queimando na fogueira, não quer deixa-lo partir.<br />
Depois de nove anos de busca, no momento em que o encontra, ela percebe
que ele será tirado dela para sempre. Blimunda não aceita essa sentença e,<br />
em um rito sagrado, como que comunga de sua vontade. A relação do casal<br />
apresenta, de acordo com Madruga (1998, p. 84): “Significativa circularidade<br />
aberta, a deste romance, num percurso erótico-místico, onde se respira uma<br />
poeticidade e regiosidade.”<br />
Não só o casal apresenta um amor que é considerado um ideal<br />
saramaguiano, mas, também, Blimunda pode ser considerada a mulher ideal<br />
dentro da galeria saramaguiana. Ela tem uma forte presença no romance e, em<br />
todos os momentos, é a desencadeadora e motora das ações. Em outras<br />
palavras, uma mulher de iniciativa.<br />
Quando questionado em uma entrevista sobre a personagem Blimunda,<br />
Saramago responde:<br />
35<br />
Essa senhora faz-se a si própria. Nunca a projectei assim ou assim.<br />
Foi no processo da escrita que a personagem se foi formando. E ela<br />
surgiu-me como uma força que a partir de certa altura me limitei a<br />
acompanhar. (CALVINO,1993, p.145)<br />
Baltasar Mateus, o Sete-Sóis. O ex-soldado maneta que encontra, na<br />
visionária, sua companheira para toda a vida. A perda da mão esquerda parece<br />
apresentar-se, na história, como a primeira grande tragédia na vida de<br />
Baltasar. Longe de casa, desprezado por sua nação e sem uma mão. Ao<br />
contrario disso, este fato apresenta-se como um símbolo de purificação da<br />
personagem.<br />
Por meio da explicação do Padre Bartolomeu, a mão esquerda de Deus<br />
é vista como tenebrosa, lugar onde nada existe, pois os eleitos ficam em sua<br />
mão direita, mas a mão esquerda não é citada nos relatos religiosos, se nunca<br />
foi citada, não existe. Então, Deus não tem mão esquerda, assim como<br />
Baltasar.<br />
Baltasar recuou assustado, persignou-se rapidamente, como para<br />
não dar tempo ao diabo de concluir as suas obras, Que está a dizer,<br />
padre Bartolomeu Lourenço, onde é que se escreveu que Deus é<br />
maneta, Ninguém escreveu, não está escrito, só eu digo que Deus<br />
não tem a mão esquerda, porque é à sua direita, à sua mão direita,<br />
que se sentam os eleitos, não se fala nunca da mão esquerda de<br />
Deus, nem as Sagradas Escrituras, nem os Doutores da Igreja, à<br />
esquerda de Deus não se senta ninguém, é o vazio, o nada, a<br />
ausência, portanto Deus é maneta. Respirou fundo o padre, e<br />
concluiu, Da mão esquerda. (SARAMAGO, 2010, p. 65)
O amor da personagem é demonstrado como puro, afetivo e sexual. Ele<br />
apaixona-se primeiro pelos olhos de Blimunda e, somente depois, pelo seu<br />
corpo. A cruz e o pão são sinais da sagração do relacionamento do casal. A<br />
cruz representa o amor do casal e o pão é a concretização da promessa de<br />
Blimunda de nunca ver seu amado.<br />
36<br />
Deitaram-se. Blimunda era virgem. Que idade tens, perguntou<br />
Baltasar, e Blimunda respondeu, Dezanove anos, mas já então se<br />
tornara muito mais velha. Correu algum sangue sobre a esteira. Com<br />
as pontas dos dedos médio e indicador humedecidos nele, Blimunda<br />
persignou-se e fez uma cruz no peito de Baltasar, sobre o coração.<br />
Estavam ambos nus. Numa rua perto ouviram vozes de desafio, bater<br />
de espadas, correrias. Depois o silêncio. Não correu mais sangue.<br />
(SARAMAGO, 2010, p. 55)<br />
Quando, de manhã, Baltasar acordou, viu Blimunda deitada ao seu<br />
lado, a comer pão, de olhos fechados. Só os abriu, cinzentos àquela<br />
hora, depois de ter acabado de comer, e disse, Nunca te olharei por<br />
dentro. (SARAMAGO, 2010, p. 55)<br />
Sua aparência física é descrita pelo narrador como desafrontada. As<br />
vestes são desparelhadas e os pés descalços. Mão esquerda cortada no nó do<br />
pulso, escapulário ao peito e espada no cinto.<br />
Sua aparência descrita por Sebastiana de Jesus: “[...] tão alto [...], pelas<br />
roupas soldado, pelo rosto castigado, pelo pulso cortado.” (SARAMAGO, 2010,<br />
p. 51)<br />
2.4.2. Personagens históricas<br />
No momento em que uma personagem real é transplantada da realidade<br />
para a ficção, esta personagem é adulterada, pois é impossível para o autor<br />
captar a totalidade do ser de uma pessoa. Essa falta de conhecimento é<br />
preenchida com a visão que o autor tem dos mistérios dessa personagem.<br />
Padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão, O Voador. Companheiro do<br />
casal e antigo amigo da família de Blimunda. O Padre Bartolomeu é um<br />
cientista religioso no tempo em que ciência e religião não se conheciam e não<br />
podiam compartilhar a mesma mente. Ele encontra-se tentado pela vontade de<br />
voar e, ao mesmo tempo, teme pelo modo que a Inquisição verá sua obra.
Quando aparece pela primeira vez no romance, está com 26 anos, a mesma<br />
idade de Baltasar.<br />
O padre Bartolomeu é citado em vários documentos históricos da época.<br />
Nasceu em 1685, no Brasil. Recebeu o apelido de Voador por ter inventado um<br />
aparelho voador. As notícias sobre o invento são imprecisas e contraditórias.<br />
Grande foi a repercussão de sua invenção, pois não se soube nem o formato<br />
de seu invento, criando-se muitas versões da história. Bartolomeu Lourenço foi<br />
um grande orador sacro. No Memorial, sua personagem apresenta as mesmas<br />
características que nos arquivos históricos. No desenvolvimento do livro<br />
começa a ter problemas com o Santo Ofício, por causa de suas crescentes<br />
ideias heréticas. É tomado pela loucura e morre em território espanhol.<br />
A loucura que acomete ao padre é causada pela pressão de ser<br />
descoberto pelo Santo Ofício. Sendo este mais uma casualidade das mentes<br />
poderosas da Igreja. Fazendo com que este entre na lista das personagens<br />
que foram danificadas pelas perseguições religiosas.<br />
37<br />
O padre Bartolomeu Lourenço entrou violentamente na abegoaria,<br />
vinha pálido, lívido, cor de cinza, como um ressuscitado que já fosse<br />
apodrecendo, Temos de fugir, o Santo Ofício anda à minha procura,<br />
querem prender-me, onde estão os frascos. (SARAMAGO, 2010, p.<br />
186)<br />
Domenico Scarlatti, o músico. Os relatos históricos citam a chegada de<br />
Doménico Scarlatti, músico italiano, em Lisboa para ensinar música à infanta D.<br />
Maria Bárbara, em 1720 ou 1721. Ficou em Portugal até o ano de 1729. Sua<br />
personagem desempenha função fundamental da criação da passarola,<br />
oferecendo a arte para que ela fosse criada. Também, toca seu cravo para a<br />
recuperação de Blimunda, por uma semana ele toca para a recuperação dela.<br />
Representa a cultura e a arte que não foram atacadas pelo Santo Ofício.<br />
D. João V, el rei. Lembrado pela história por construir o convento de<br />
Mafra, mas construtor não foi, o convento foi construído pelos pobres, que não<br />
foram lembrados. El rei é caracterizado como uma grande criança ignorante e<br />
vulgar. No momento em que deseja algo, tenta consegui-lo, mesmo que a<br />
razão, ou seus contadores, digam o contrario. Isto, também, pode ser<br />
exemplificado com a postura adultera do rei. Este procura deitar-se com outras
mulheres, para saciar suas necessidades, mesmo a religião dizendo que isto é<br />
errado.<br />
38<br />
É minha vontade que seja construída na corte uma igreja como a de<br />
S. Pedro de Roma, e, tendo assim dito, olhou severamente o artista.<br />
Ora, a um rei nunca se diz não, e este Ludovice [...]. Porém, há<br />
limites, este rei não sabe o que pede, é tolo, é néscio, se julga que a<br />
simples vontade, mesmo real, faz nascer um Bramante, um Rafael,<br />
um Sangallo, um Peruzzi, um Buonarroti, um Fontana, um Della<br />
Porta, um Maderno, se julga que basta vir dizer-me, a mim, Ludwig,<br />
ou Ludovisi, ou Ludovice, se é para orelhas portuguesas, Quero S.<br />
Pedro, e S. Pedro aparece feito, [...]. (SARAMAGO, 2010, p. 270)<br />
É uma personagem plana, pois não altera suas atitudes com o passar da<br />
história, e apesar de tomar decisões que de certa forma surpreendem o leitor,<br />
ao mesmo tempo, é motivado por razões esperadas.<br />
D. Maria Ana, a rainha. A rainha é apresentada com uma mulher que<br />
não pode ser mulher, não pode desempenhar a função de mulher, como<br />
Blimunda o faz. Por ser rainha, não pode tomar decisões, portar-se como quer.<br />
É, até mesmo, ridicularizada pelo narrador, quando este narra sobre a coberta<br />
com percevejos com que ela dorme.<br />
Essa mesma característica é apresentada pelos sonhos que a rainha<br />
tem, com o irmão do rei. D. João não é o homem de seus sonhos, pois este foi<br />
relacionado a ela por um casamento arranjado, mas ela não pode expressar<br />
seus desejos, pois é uma rainha e não cabe a ela desejar, apenas ocupar seu<br />
trono.
CAPÍTULO III<br />
A SUPERAÇÃO <strong>DE</strong> BALTASAR E BLIMUNDA<br />
3. COMPARAÇÃO ENTRE OS CASAIS<br />
Em Memorial do Convento, ficam claras as diferenças existentes entre<br />
os principais casais do romance, que são o rei e a rainha, e Baltasar e<br />
Blimunda, pois os papéis que essas personagens cumprem na obra são<br />
carregados de características que evidenciam o objetivo geral do autor. São<br />
essas diferenças de características entre os pares que levam o leitor a captar a<br />
mensagem que José Saramago quis passar, aquela de dar maior relevo ao<br />
povo e aos detalhes que não foram citados, nos livros oficiais, através de<br />
elementos fictícios, dentro de um romance histórico, como já dito<br />
anteriormente.<br />
39<br />
Essa oposição entre as duas histórias pode também ser comprovada<br />
pelos casais que as representam: a oficial mostra um casamento,<br />
arranjado politicamente, que respeita aparentemente os preceitos do<br />
Cristianismo, mas que não dá nenhum sinal de afeto entre o rei D.<br />
João e a rainha D. Maria Ana [...]; já a popular apresenta um amor<br />
incrível, à primeira vista, entre Blimunda e Baltasar, abençoado por<br />
um padre que se converteu ao Judaísmo e marcado por uma<br />
intimidade em desacordo com a moral conservadora da época.<br />
(CALBUCCI, 1999, p. 33-34)<br />
A história se inicia com a apresentação do casal real, rei D. João V e<br />
rainha D. Maria Ana Josefa, e suas histórias de vida; ambos de famílias nobres,<br />
ela da Áustria e ele de Portugal. Como em todo casamento arranjado da época,<br />
ela saiu de sua casa para ir morar com o marido, e tinha a função de “dar<br />
infantes à coroa portuguesa” (SARAMAGO, 2010, p. 11); função que até<br />
aquele momento ainda não havia sido cumprida. Fica evidente, neste casal, a<br />
ausência de sentimento amoroso, como forma de se unirem em matrimônio,<br />
pois não se conheceram antes de casar-se. Isso quer dizer que não se<br />
casaram apaixonados e, mesmo depois de casados, ainda é possível notar que
não havia esse sentimento, pois há passagens onde é narrado que o rei<br />
cumpre seus deveres conjugais, sendo isso obrigação e não prazer.<br />
40<br />
Não há nenhuma solenidade, nem mesmo a menor intimidade com os<br />
personagens capaz de situar os factos a partir de uma visão<br />
interiorizada e complacente. A relação conjugal do rei e da rainha<br />
resume-se num único objectivo – dar um herdeiro à coroa. Nenhuma<br />
afectividade. Nenhum envolvimento. (SILVA, 1989, p. 78)<br />
A apresentação do casal natural, Baltasar e Blimunda, é feita de forma<br />
totalmente distinta, iniciando-se com a história de Baltasar Mateus, a partir do<br />
momento em que ele é dispensado da guerra e está voltando para a casa, com<br />
algumas informações sobre seu passado. Num dado momento, surge, em seu<br />
caminho, Blimunda e a narrativa conta em que situação eles se conheceram, o<br />
momento mágico da primeira conversa e como se deu a união conjugal.<br />
Blimunda assistia friamente a mãe, na procissão do auto-de-fé. Esta, ao<br />
ver a filha e o homem que estava ao lado dela, sentiu que precisava juntar os<br />
dois, e através de seus poderes paranormais, pediu a Blimunda que<br />
perguntasse o nome do rapaz. E Blimunda tomou essa iniciativa, mesmo sem<br />
nunca ter visto aquele homem, perguntou o nome dele. Ele respondeu<br />
naturalmente se apresentando como o chamavam, Sete-Sóis. Quando<br />
terminou o auto-de-fé, Blimunda foi embora para casa com o padre<br />
Bartolomeu, e Baltasar os seguiu, na certeza que não havia motivo melhor para<br />
se sentir nesse direito do que ter ela lhe perguntado o nome. Ela deixou a porta<br />
aberta, num sinal de que o queria com ela também, ele entrou e ficou sentado<br />
assistindo-a chorar pela condenação da mãe, porém cada vez que ela o olha<br />
de volta “ele sente um aperto na boca do estômago, porque olhos como este<br />
nunca se viram.” (SARAMAGO, 2010, p. 53)<br />
A partir destes gestos já é possível perceber que a história de amor<br />
deste casal é muito especial e que, ao contrário do casal real, a presença de<br />
sentimentos é abundante, mesmo com a quase ausência de diálogo, pois eles<br />
se entendiam sem precisarem dizer muitas palavras um ao outro.<br />
A relação se tornou ainda mais íntima quando Blimunda usou uma<br />
colher, que havia sido usada anteriormente por Baltasar. Ela faz dela o que<br />
havia sido dele, como se dissesse sim num casamento, seguidos por uma<br />
benção do padre. Após a primeira conversa, eles se conheceram um pouco<br />
mais e o encantamento foi ainda maior: ela um pouco fria e ele enfeitiçado
pelos seus olhos, jurando que ela o havia encantado olhando-o por dentro.<br />
Negando esta afirmação, ela faz uma importante promessa de que nunca o<br />
olharia por dentro.<br />
O momento que concretizou a relação do casal e a intimidade deles foi<br />
quando dormiram juntos pela primeira vez, naquela mesma noite. Ela ainda era<br />
virgem e, com o sangue que escorreu pela esteira, ela umedeceu os dedos<br />
indicador e médio, persignou-se e fez uma cruz no peito de Baltasar, sobre o<br />
seu coração.<br />
Tal ação revela a singularidade da relação que estava se iniciando<br />
naquele dia, mas que já parecia ter alguns anos de duração, a forma como se<br />
conheceram, as poucas conversas que tiveram e a maneira como consagraram<br />
sua união, indicam o não seguimento das convenções sociais da época. É<br />
como se eles passassem por um “Ritual de comunhão plena, que alia o<br />
encontro oral – da colher e da palavra – ao encontro erótico do prazer e do<br />
sangue.” (SILVA, 1989, p. 56)<br />
Daquele momento em diante, o padre Bartolomeu Lourenço, que já era<br />
amigo da família de Blimunda, passou a ser amigo desse casal, que acabou de<br />
se juntar e seu papel é de grande importância na relação deles dois, sendo<br />
algumas vezes um ajudante, outras vezes um conselheiro, mas, sobretudo um<br />
amigo verdadeiro. Ele contou a Baltasar seus planos para construir uma<br />
máquina voadora e Baltasar concordou em ajudá-lo neste projeto, que teria<br />
início algum tempo depois.<br />
Na corte, além do fato da união do rei e da rainha não ser baseada na<br />
amizade entre os dois, também não tinham nenhum outro amigo próximo a<br />
eles, alguém em quem confiassem e contassem. As pessoas que viviam<br />
próximas a eles eram seus criados e não tinham nenhuma participação em<br />
suas vidas, no papel de amigos.<br />
Entre D. João V e D. Maria Ana não faltava respeito, mas também não<br />
havia intimidade, não sabiam nada da vida íntima um do outro, não se<br />
interessavam pelas manias e pelo jeito de ser do outro, e não compartilhavam<br />
segredos.<br />
Justamente um segredo que Blimunda guardava começou a despertar<br />
em Baltasar uma grande curiosidade: ela não abria os olhos, pela manhã,<br />
enquanto não comesse um pedaço de pão. Ele chegou a perguntar ao padre<br />
41
se este sabia do que se tratava, mas o padre também não o respondeu. Numa<br />
determinada manhã ele, escondeu o pão dela para que ela o contasse o<br />
segredo, Blimunda ficou desesperada e não queria revelar, mas a insistência<br />
de Baltasar foi tanta que ela acabou aceitando compartilhar o segredo, em<br />
troca do pão.<br />
Blimunda revelou a Baltasar que ela podia ver as pessoas por dentro, e<br />
não só as pessoas, as coisas também, e que isso só deixava de acontecer<br />
quando era tempo de lua nova. Mesmo revelando o segredo, Baltasar não<br />
acreditou e temia que o Santo Ofício a condenasse, mas ela explicou que não<br />
fazia nenhum tipo de feitiçaria e também desejaria não ter esse dom, e nesse<br />
ponto ele concordou, também não gostaria de ter esse dom. Ela provou a<br />
Baltasar sua capacidade de ver através das coisas, num passeio que eles<br />
deram e ela foi revelando o que havia dentro das pessoas e por trás das<br />
coisas, mas sempre reforçando a mesma promessa de que nunca olharia<br />
Baltasar por dentro.<br />
No momento em que Blimunda compartilhou com Baltasar este segredo,<br />
ele entendeu a promessa que ela havia feito e aceitou-a do jeito que ela era,<br />
acreditando que aquilo não se tratava de heresia nem feitiçaria. Aliás, ambos<br />
não eram muito apegados a convenções religiosas, não sacramentaram sua<br />
relação na igreja por vontade própria, formavam um casal ilegítimo e<br />
acreditavam na força do sacramento que eles mesmos fizeram com o sangue<br />
da virgindade, que, para Blimunda, significava sangue da vida, e não<br />
pensavam naquilo como uma heresia.<br />
“Blimunda e Baltasar – casal legítimo, ilegitimamente unido , sem palavras de amor, sem sacramento, mas unidos e<br />
complementares.” (SILVA, 1989, p. 57)<br />
Para a rainha tudo era considerado pecado, suas próprias ações eram<br />
policiadas constantemente, para não infringirem a lei de Deus, e, como era<br />
muito religiosa, sempre estava se auto-penitenciando com orações, mesmo<br />
quando em sonhos ela pecava, no outro dia já estava a rezar e a pedir perdão.<br />
O rei também era religioso, promovia e participava de todas as festas<br />
religiosas. No entanto que prometeu e construiu um convento em Mafra, mas<br />
sua santidade é contestável, porque fica explícito, na história, que ele se<br />
deitava com as freiras dos conventos e até mesmo as engravidava.<br />
42
“Os conventos para mulheres eram praticamente famosos pelas histórias<br />
de corrupção sexual.” (SILVA, 1989, p. 48) e até mesmo o rei o fazia, como se<br />
observa: “[...] escândalo de que são causa os freiráticos, nobres e não nobres,<br />
que frequentam as esposas do senhor e as deixam grávidas no tempo de uma<br />
ave-maria, que o faça D. João V, só lhe fica bem, [...].” (SARAMAGO, 2010, p.<br />
91)<br />
Esta é outra atitude que releva a situação desse casamento: o marido<br />
traía a mulher com várias outras, e isso, além de mostrar sua infidelidade,<br />
também mostra a relação fria que eles mantinham.<br />
Baltasar, em nenhum momento, se relacionou com outra mulher, nem<br />
sequer em pensamentos, todos os seus pensamentos eram de Blimunda.<br />
Quando se lembrava dela, logo lhe vinha à mente os seus olhos, que eram de<br />
uma cor indefinida e lhe causavam grande admiração.<br />
Esta é uma característica que se atribui ao autor, Jose Saramago, que<br />
em seus livros cria “[...] quadros de casais, onde homem e mulher buscam o<br />
bem humano que os tempos actuais parecem incapazes de promover”<br />
(MADRUGA, 1998, p. 141), procurando o bem humano, esses personagens se<br />
dedicam inteiramente ao seu parceiro.<br />
Blimunda mostrava nos gestos o amor que sentia por Baltasar, como<br />
nos momentos em que ela segurava o gancho que ele tinha no lugar da mão<br />
como se fosse a própria mão, e ele sentia como se a tivesse e sentia a pele<br />
dela ao segurá-lo. Num dos momentos em que ele reclamava a perda da mão,<br />
ela o respondeu “Deixa lá, tu e eu temos três mãos” (SARAMAGO, 2010, p.<br />
94), demonstrando todo seu companheirismo. E mesmo o simples gesto de um<br />
tirar comichão do outro é algo que encanta ao leitor pela simplicidade e<br />
lealdade.<br />
Eles se mudaram para a abegoaria, onde estava sendo construída a<br />
máquina de voar do padre Bartolomeu, chamada por eles de passarola. E a<br />
amizade deles três se tornou ainda mais intensa, assim como o trabalho<br />
também se tornou mais intenso, e Baltasar passou a trabalhar na construção<br />
da máquina, recebendo, às vezes, a ajuda de sua mulher. Blimunda cuidava<br />
principalmente da casa, o padre os deixou morando lá, em troca do trabalho<br />
prestado e eles cuidavam daquele cantinho que tinham com muito amor e<br />
carinho, assim como cuidavam da passarola também.<br />
43
Ao contrário da rainha, que não participava de nenhuma atividade do rei,<br />
e nem ao menos cuidava de sua casa como um lar para a família que tinham,<br />
todo o serviço era terceirizado aos empregados, inclusive a criação dos filhos.<br />
O padre Bartolomeu Lourenço, estando próximo aos dois e assistindo<br />
com admiração, àquela união, não os recriminou por não serem<br />
sacramentados na igreja, pelo contrário, os abençoou, e num determinado dia<br />
deu a Blimunda o apelido de Sete-Luas, em comparação a Sete-Sóis, pois este<br />
via as claras e aquela via as escuras, fazendo alusão ao seu dom.<br />
Na realeza, até mesmo as relações entre os familiares são impessoais,<br />
pois no palácio também mora o irmão do rei D. João, o infante D. Francisco,<br />
cujo principal interesse se concentrava na morte do rei, para que ele ficasse<br />
com a coroa. D. Francisco chegou a propor à rainha que ela se casasse com<br />
ele caso o rei falecesse, sem saber que ela tinha alguns sonhos com o<br />
cunhado.<br />
Os que estavam em volta se preocupavam com os protocolos a serem<br />
cumpridos com o rei e não com a pessoa que precisava de ajuda, como nota-<br />
se: “Por costume e cautela acodem-lhe logo com a extrema-unção, não pode<br />
sua majestade morrer inconfessa como qualquer comum soldado em campo de<br />
batalha, [...].” (SARAMAGO, 2010, p. 110)<br />
A família que Baltasar e Blimunda tinham era a dele, e quando foram<br />
visitar seus pais e irmã em Mafra, foram muito bem recebidos, apesar de serem<br />
uma família conservadora e acharem Blimunda uma mulher misteriosa.<br />
Baltasar a apresentou à família e explicou que ela não era judia, apesar da<br />
mãe ter sido condenada pelo Santo Ofício, que ela não era cristã-nova e que<br />
eles haviam sido casados pelo padre Bartolomeu; nas apresentações algumas<br />
mentiras foram ditas para que se salvassem outras verdades.<br />
Enquanto moraram em Mafra, a relação com a família foi estreitada pelo<br />
trabalho diário que exerciam, ele ajudando o pai no trabalho e ela ajudando a<br />
sogra nos afazeres de casa. Não foi pelo fato de não estarem mais morando<br />
sozinhos que a relação deles mudou, eles continuavam tendo relações sexuais<br />
todas as vezes que tinham vontade, conversando por simples olhares e com<br />
esses olhares eles se entendiam completamente, não era necessário usarem<br />
palavras.<br />
44
No retorno do padre Bartolomeu da Irlanda, este foi visitar o casal, na<br />
casa dos pais de Baltasar, e ele confirmou a mentira de que os havia casado<br />
em Lisboa. Isso deixou os familiares mais seguros da presença de Blimunda<br />
entre eles, mesmo desconfiando que havia algo misterioso naquela mulher.<br />
Naquela visita o padre deixou Blimunda responsável por recolher as<br />
vontades das pessoas, porque só com elas é que seria possível fazerem a<br />
passarola levantar voo, e com seu dom, Blimunda poderia ver quando as<br />
vontades estavam saindo do corpo das pessoas e recolhê-las num frasco de<br />
vidro. Baltasar ficou responsável por terminar a construção da máquina,<br />
enquanto o padre viajava a Coimbra.<br />
Recomeçar a construção da passarola, para eles, era como retomar<br />
suas rotinas, pois sentiam grande prazer em trabalhar naquela máquina, que<br />
era o sonho dos três e, nesse sonho, eles se realizavam, viam se<br />
concretizando aquilo que imaginavam. Há a “[...] realização plena do<br />
trabalhador em relação ao objecto do trabalho, de harmonia entre o desejo e a<br />
realização do desejo, de acordo entre a coisa sonhada e o sonho realizado.”<br />
(SILVA, 1989, p. 55)<br />
A construção do convento não gerava nenhum prazer nos operários,<br />
pois eles não pensavam naquele trabalho como a realização de um sonho<br />
próprio, já que o sonho pertencia ao rei D. João V. Porém, este não trabalhava<br />
efetivamente para que esse sonho se tornasse realidade. O rei tinha mais o<br />
“sonho de garantia de um poder, troca de favores com a magnitude divina,<br />
espécie de negócio com um Deus que levou tempo para conceder infantes à<br />
coroa portuguesa.” (SILVA, 1989, p. 67) Ele ordenava e os trabalhadores<br />
cumpriam, era um modelo de repressão e de inexistência do sonho do<br />
trabalhador.<br />
Assim como a realeza, toda a sociedade da época cumpria suas<br />
obrigações religiosas devotamente, sem questionar nem duvidar do que lhes<br />
era ensinado e pregado. O rei e a rainha tiveram o casamento sacramentado<br />
na igreja, batizaram todos os seus filhos e frequentavam assiduamente as<br />
missas e outras festas religiosas.<br />
Sete-Sóis e Sete-Luas, apesar de não serem cristãos perfeitos, nos<br />
moldes da época, frequentavam também as festividades da igreja, porém<br />
tinham suas dúvidas sobre o que o clero pregava. Motivada por estas dúvidas,<br />
45
Blimunda foi à missa sem ter comido o seu pão, queria ver se o que tinha<br />
dentro da hóstia era realmente Deus, pois já conhecia o que havia dentro dos<br />
homens. Ela declarou: “[...] Esperava ver Cristo crucificado, ou ressurrecto em<br />
glória, e vi uma nuvem fechada.” (SARAMAGO, 2010, p. 126) A nuvem fechada<br />
que viu, era exatamente igual à nuvem que via dentro dos homens, as<br />
vontades, e aquilo só aumentou sua decepção e descrença na religião.<br />
declararam:<br />
A respeito de ver as vontades das pessoas, Baltasar e Blimunda<br />
46<br />
Ninguém pode ver a sua própria vontade, e de ti jurei que nunca te<br />
veria por dentro, mas tu, Baltasar Sete-Sóis, minha mãe não se<br />
enganou, quando me dás a mão, quando te encostas a mim, quando<br />
me apertas, não preciso ver-te por dentro, Se eu morrer antes de ti,<br />
peço-te que me vejas, Morrendo tu, vai-se-te a vontade do corpo,<br />
Quem sabe. (SARAMAGO, 2010, p. 136)<br />
Baltasar recomeçou a construção da passarola e Blimunda começou a<br />
recolher as duas mil vontades de que precisariam. De tanto esforço que teve<br />
para isso, acabou adoecendo e era como se ela própria estivesse perdendo<br />
sua vontade de viver. Quem a ajudou foi o músico Domenico Scarlatti, que<br />
havia se tornado amigo deles, por intermédio do padre Bartolomeu; e tendo seu<br />
amado ao seu lado e ouvindo a música que Domenico tocava, Blimunda foi<br />
melhorando, como num milagre.<br />
Comparando ao rei quando ficou doente, a rainha não esteve ao seu<br />
lado e ele não recebeu ajuda de nenhum amigo próximo, os mais próximos<br />
dele queriam mesmo sua morte, por interesses particulares.<br />
A personagem citada, o músico Domenico Scarlatti, participou durante<br />
algum tempo da rotina de Baltasar, Blimunda e o padre, no entanto que a ele<br />
foi confiado o segredo da máquina de voar. Quando os conhece e ao local de<br />
trabalho, compara o casal a Venus e Vulcano, e os três juntos a uma trindade<br />
terrestre: sendo o padre Bartolomeu, o Pai, Baltasar, o Filho e Blimunda, o<br />
Espírito Santo.<br />
Segundo SILVA (1989, p. 62), “quatro é o símbolo de totalidade e<br />
imagem da terra: quatro são os pontos cardeais, as fases da lua, as estações,<br />
[...]” e por isso que os três juntos adquirem a plenitude “com a chegada do
quarto elemento Domenico Scarlatti. A eles e ao seu trabalho, o músico vem<br />
acrescentar a sua arte, [...].” (SILVA, 1989, p. 62)<br />
Domenico Scarlatti também participou da rotina no palácio real, porém a<br />
sua função era de professor de música da infanta e não foi um amigo do rei e<br />
da rainha.<br />
Quando o padre Bartolomeu precisou sair às pressas da cidade de<br />
Lisboa e decidiu usar a passarola para isso, fugindo pelo céu, Baltasar e<br />
Blimunda não o abandonaram e levantaram voo junto com ele, esse era o<br />
sonho dos três. A máquina de voar pousou num monte distante e o padre, que<br />
já apresentava sinais de loucura, acabou fugindo, depois de tentar acabar com<br />
a passarola. O casal conseguiu impedi-lo de destruir a máquina, afinal, o sonho<br />
deles havia se realizado, mas não conseguiram impedi-lo de fugir e, mais tarde,<br />
ficaram sabendo que ele morreu louco na Espanha. Apesar de tudo, fica<br />
comprovado o companheirismo que sempre esteve presente entre o casal e<br />
deles com o amigo padre; diferente do casal real, onde o companheirismo é<br />
ausente.<br />
Após esse acontecimento, Baltasar voltou a Mafra e começou a<br />
trabalhar com carros de mão nas construções do convento, o fato de ele ser<br />
maneta não o prejudicou muito, desta vez, pois estavam precisando de muitos<br />
trabalhadores na obra, devido as suas imensas proporções. Blimunda<br />
continuou ao seu lado, apoiando-o e amando-o, independente de sua profissão<br />
ou idade, ela partilhava com ele cada momento, por mais simples que fosse,<br />
como buscá-lo no caminho depois do trabalho.<br />
47<br />
A bem dizer, melhor do que isto, que o há, só uma mulher na cama, e<br />
se a mulher é a que se quer, não precisa mais que aparecer no<br />
caminho, como agora vemos Blimunda, veio partilhar o mesmo frio e<br />
a mesma chuva, e traz uma saia das suas que lança sobre a cabeça<br />
do homem, este cheiro de mulher que faz subir lágrimas aos olhos,<br />
Estás cansado, perguntou ela, quanto basta para que o mundo se<br />
torne suportável, uma aba de saia cobre as duas cabeças, mal<br />
comparado é um céu, assim vivesse Deus com os nossos anjos.<br />
(SARAMAGO, 2010, p. 211-212)<br />
E Baltasar continuava sentindo o mesmo amor, confiança e admiração<br />
por sua mulher, era ela que fazia o seu mundo se tornar suportável, pois ele já<br />
não estava mais tão feliz com o seu trabalho, ele chegava a compará-la a um<br />
anjo, e assim ele se comparava a Deus, por ter esse anjo ao seu lado.
Amor assim não se via entre o rei e a rainha, e nem mesmo confiança,<br />
como mostra o trecho: “Dizem que vai agastada por não querer D. João V<br />
confiar-lhe o governo do reino, realmente não está bem desconfiar assim um<br />
marido de sua mulher, são resistências da ocasião, [...].” (SARAMAGO, 2010,<br />
p. 111)<br />
Blimunda é o motivo pelo qual Baltasar continua tendo forças para viver,<br />
pois a morte do padre “[...] foi um abalo muito grande, como um terramoto<br />
profundo que lhe tivesse rachado os alicerces, [...]” (SARAMAGO, 2010, p.<br />
224) e com isso ele começou a beber, mas não se embriagava, pois sentia<br />
como se Blimunda tivesse ao seu lado, pedindo-o para parar, e ele parava,<br />
porque, por ela, ele fazia tudo.<br />
Nem a morte de um filho não deixava o casal rei e rainha tão abalados<br />
como estava Baltasar, acrescentando que o motivo da morte foi por falta de<br />
dedicação e cuidados: “querendo Deus, qualquer causa de morte serve, a que<br />
levará o herdeiro da coroa de Portugal será o tirarem-lhe a mama, [...].”<br />
(SARAMAGO, 2010, p. 103)<br />
Baltasar não abandonou a passarola, continuou indo visitá-la de vez em<br />
quando no local que havia pousado. Além de se sentir bem estando junto<br />
àquela máquina, ele também cuidava dela, para que o desgaste do tempo não<br />
a arruinasse. Levou consigo Blimunda uma vez, por insistência desta que<br />
sentia que devia aprender o caminho e, chegando lá, tiveram uma linda noite<br />
de amor, porque para eles não havia hora nem lugar, bastavam suas vontades.<br />
Mesmo tão ativos sexualmente, não tiveram filhos, “Talvez porque<br />
tenham descoberto a plenitude no encontro a dois, priorizando o erotismo e<br />
não a fertilidade, [...]” (SILVA, 1989, p. 84); a isso, opõem-se o rei e a rainha,<br />
que só se encontravam sexualmente para fins procriativos e fica evidente a<br />
desvalorização da mulher, “[...] é o caso da rainha, devota parideira que veio ao<br />
mundo só para isso, ao todo dará seis filhos, [...].” (SARAMAGO, 2010, p.108)<br />
Sete-Sóis e Sete-Luas são eternos namorados, mesmo com certa idade,<br />
ainda prezam momentos de demonstração de carinho e juras de amor, como<br />
ele faz neste trecho: “Terra, que bela é Blimunda.” (SARAMAGO, 2010, p. 259)<br />
Quando foram visitar a passarola, foram de mãos dadas durante o caminho, ela<br />
foi enfeitando os lugares por onde passaram, como se aquele amor<br />
contagiasse tudo a sua volta e, ao chegarem, trabalharam juntos nos consertos<br />
48
da máquina, ela era uma mulher que não deixava de ser companheira do seu<br />
homem.<br />
As demonstrações de amor por mais simples que fossem, para eles dois<br />
era algo muito importante, como os sinais que foram gravados no convés da<br />
passarola: “Lá estavam o sol e a lua, numa tábua inscritos, nenhum outro sinal<br />
se lhes juntara, era como se não houvesse mais ninguém neste mundo.”<br />
(SARAMAGO, 2010, p. 260)<br />
Outra característica importante é que um não vivia sem o outro, de tão<br />
forte que era aquele sentimento. Na ocasião em que Baltasar fora a Pero<br />
Pinheiro ajudar a buscar a pedra gigante que seria usada na construção do<br />
convento, Blimunda foi despedir-se do seu homem e ficou apreensiva,<br />
esperando que ele voltasse logo.<br />
A rainha não teria a mesma atitude se fosse o rei que tivesse ficado oito<br />
dias fora de casa a trabalho. O rei, neste caso, foi aquele que ordenou que se<br />
buscasse a pedra, mas sem a força de centenas de trabalhadores, ele não teria<br />
sua pedra no convento. Ele também não viu a força que o povo fez para<br />
transportá-la, não acompanhou a obra: “todo o mundo puxa com entusiasmo,<br />
homens e bois, pena é que não esteja D. João V no alto da subida, não há<br />
povo que puxe melhor que este.” (SARAMAGO, 2010, p. 239)<br />
O rei também não acompanhava o crescimento de seus filhos, o<br />
pensamento predominante da época é que o que vale “[...] é prolongar-se o<br />
homem nos filhos que tem [...]” (SARAMAGO, 2010, p. 268) e a forma como ele<br />
fazia isso era persuadindo “[...] os filhos a repetirem alguns gestos seus, alguns<br />
passos de vida, palavras até, [...]” (SARAMAGO, 2010, p. 268) e iam vivendo<br />
de aparências, pois os filhos fingem serem bons filhos e o rei finge provar “[...]<br />
o seu amor paternal e real [...]”. (SARAMAGO, 2010, p. 269)<br />
O rei, que prometeu um convento em troca de um filho, nunca foi capaz<br />
de levar esta filha para conhecer como estava ficando o convento, sendo que<br />
em seu nome, construía-se aquele palácio-mosteiro. Depois arranjou um<br />
casamento para ela, e a entregou para o noivo, ainda menina. Estas são as<br />
relações familiares que se observa, na realeza.<br />
Já as relações entre Baltasar e Blimunda fogem a normalidade da<br />
época, chegavam a ser “o escândalo da vila de Mafra”, (SARAMAGO, 2010, p.<br />
317) pois quando se viam, abraçavam-se em público, vivendo o amor<br />
49
plenamente. Baltasar era como um sol para Blimunda, e ela sua razão de viver.<br />
Mesmo velhos, continuam a admirar um ao outro, “talvez porque se vejam mais<br />
novos do que são, pobres cegos, ou porventura serão estes os únicos seres<br />
humanos que como são se vêem, é esse o modo mais difícil de ver [...].”<br />
(SARAMAGO, 2010, p. 317)<br />
Fonte: http://www.flickr.com/photos/anaklea/4780898166/in/photostream<br />
Figura 2: Blimunda e Baltasar.<br />
Baltasar e Blimunda também representam a sexualidade transgressora<br />
dentro do romance, “entregam-se com frequência às carícias e aos jogos<br />
eróticos, sem levarem em conta limites desejáveis, lugares reservados ou<br />
datas prescritas para a abstinência.” (SILVA, 1989, p. 82). Observa-se esta<br />
sexualidade no seguinte trecho:<br />
Para dentro da barraca o levou Blimunda, não era a primeira vez que<br />
ali entravam a horas nocturnas, ora por vontade de um, ora por<br />
vontade do outro, faziam-no quando a necessidade da carne se<br />
anunciava mais expansiva, quando adivinhavam que não poderiam<br />
sufocar o gemido, o estertor, talvez o grito, [...]. (SARAMAGO, 2010,<br />
p. 322-323)<br />
Ainda é possível observar que Blimunda também tomava as iniciativas,<br />
apesar de ser uma mulher que vivia na sociedade do século XVIII. Além das<br />
iniciativas sexuais, também foi ela que primeiro conversou com Baltasar,<br />
quando se conheceram, perguntando o nome dele. “Blimunda é daquelas<br />
50
figuras femininas que têm no romance uma forte presença, desempenhando<br />
papel de desencadeadora e motora da acção.” (MADRUGA, 1998, p. 85)<br />
A respeito da sexualidade presente entre o casal rei e rainha, não<br />
passava de obrigação: “Erotismo nulo. A preparação do acto faz parte de um<br />
cerimonial protocolar: não estão juntos, não dormem juntos, não se amam, nem<br />
sequer se desejam.” (SILVA, 1989, p. 78)<br />
Blimunda também era muito sensitiva, parecia que já sabia das coisas<br />
antes de acontecer, como na última vez em que Baltasar foi visitar a passarola,<br />
ela pediu que tomasse muito cuidado, pois nunca se sabe quando chega a<br />
hora da morte. Ela esperou apreensiva a volta dele, mas isso não aconteceu,<br />
então foi sozinha a sua procura, e ao ver que ele não estava no lugar<br />
esperado, “pela primeira vez sentiu o vazio do espaço, como se estivesse<br />
pensando, Não há nada além, [...]”. (SARAMAGO, 2010, p. 330-331)<br />
Ela se sentiu desamparada e impotente diante daquela situação, não<br />
suportava viver sem seu homem e de certa forma sabia que ele havia voado<br />
com a passarola, mas “[...] de que lhe serviu ser capaz de ver o que os outros<br />
não vêem, de lhe serviu ser recolhedora de vontades, se justamente elas foram<br />
que o levaram.” (SARAMAGO, 2010, p. 333), também surgia o sentimento de<br />
culpa.<br />
Guerreira e esperançosa, ela parecia não ter mais medo de nada, a<br />
vontade de encontrar Baltasar lhe deu forças e ela sozinha continuou a<br />
procurar em toda a região, conheceu vários lugares, conversou com muita<br />
gente e passou por situações perigosas também. Ficou conhecida como<br />
Voadora, pela história que contava ao perguntar se não haviam visto Baltasar,<br />
e as mulheres da região sentiam inveja dela, todas queriam ser fortes e<br />
corajosas, como ela se tornara.<br />
O momento em que ela encontrou um frade e este, ao tentar abusar<br />
dela, acabou sendo morto pela mesma, representa a corrupção da<br />
religiosidade, um quadro muito comum naquela época. O narrador, por sua<br />
vez, deixou “a Blimunda o espaço próprio da vingança justa, da crítica a uma<br />
estrutura religiosa falida [...]” (SILVA, 1989, p. 51).<br />
Blimunda procurou por nove anos, e enfim “Encontrou-o. Seis vezes<br />
passara por Lisboa, esta era a sétima.” (SARAMAGO, 2010, p. 346). Vinte e<br />
oito anos depois de terem se conhecido num auto-de-fé, estava ela novamente<br />
51
em um e ao olhar as pessoas que queimavam na fogueira, ela reconheceu<br />
Baltasar dentre elas, pela falta da mão esquerda e com ele ainda havia uma<br />
nuvem fechada dentro do seu corpo. “Blimunda disse, Vem. Desprendeu-se a<br />
vontade de Baltasar Sete-Sóis, mas não subiu para as estrelas, se à terra<br />
pertencia e a Blimunda.” (SARAMAGO, 2010, p. 347)<br />
Percebe-se que as cerimônias de auto-de-fé “são cerimoniais de morte<br />
que polarizam a vida de Baltasar e Blimunda – do primeiro encontro e do<br />
nascimento e dois até ao encontro final no momento da morte.” (SILVA, 1989,<br />
p. 47)<br />
52
CONCLUSÃO<br />
Através da análise do livro e dos críticos, conclui-se que foi possível<br />
conhecer mais sobre a relação do casal Baltasar e Blimunda, aumentando,<br />
assim, a compreensão de toda a obra. A importância do casal tornou-se<br />
extremamente relevante para o romance, sendo estes, os representantes do<br />
povo, objetivo principal do autor ao escrever o MC. Também, foi possível<br />
identificar características e comportamentos marcantes da sociedade que viveu<br />
em Portugal no século XVIII, identificar as excentricidades da corte, assim<br />
como entender as dificuldades passadas pelos pobres e trabalhadores.<br />
Com o estudo da origem do MC, dentro da obra saramaguiana, foi<br />
possível entender melhor o estilo utilizado pelo autor e as motivações que o<br />
levaram a escrever este romance. Compreendendo-se, deste modo, que a<br />
visão que o autor tem do passado, levou a obra a um novo patamar na<br />
Literatura-histórica. Completando com a ficção onde a História deixou lacunas,<br />
Saramago apresenta os valores de seu povo, que sofreu com as vontades de<br />
seu rei. O autor não desmerece em nenhum momento a verdade, ele apenas a<br />
mostra por outro ângulo, resgatando fatos e dados que não se encontravam<br />
nas escrituras, mas que eram de tanta importância quanto o que já existia em<br />
documentos.<br />
A comparação entre o casal real e o casal natural foi o ponto de partida<br />
para as respostas buscadas inicialmente, possibilitando a descoberta dos<br />
papéis que cada um deles desempenha dentro da história e no livro como um<br />
todo.<br />
D. João V e D. Maria Ana são o casal que vivia sem amor, que teve uma<br />
vida baseada nas relações de poder e nos protocolos da corte. São os<br />
representantes dos dominantes, que cumpriam seu dever como governantes,<br />
sem se importarem com os que estavam abaixo, na pirâmide social, muitas<br />
vezes tomando decisões por luxuria e capricho próprios. O autor os utiliza para<br />
criticar esse tipo de vida, recorrendo constantemente à ironia para atingir seu<br />
objetivo.<br />
Já Baltasar e Blimunda representam uma história de amor sem palavras,<br />
que é singular na literatura e também era singular na sociedade em que viviam,<br />
53
e um ideal do próprio autor. Uma relação baseada em afetividade e<br />
sexualidade, sem a necessidade de julgar o parceiro, nem de cobrá-lo, apenas,<br />
amá-lo e ser amado, completando-o e acompanhando-o nas dificuldades e<br />
alegrias do dia-a-dia. Cabe ressaltar a importância de Blimunda, figura feminina<br />
com forte presença dentro do romance, capaz de tomar difíceis decisões e<br />
iniciativas. Sete-Sóis e Sete-luas também representam os dominados, o povo<br />
que não tinha voz e não teve espaço na História oficial, que tinha que obedecer<br />
a ordens superiores, estando sujeito às vontades dos dominantes.<br />
As personagens Baltasar e Blimunda representam tão bem os<br />
verdadeiros heróis desta nova versão da história que ganharam vida fora dos<br />
limites do romance, se tornaram conhecidas e adoradas por todos os leitores<br />
de Memorial do Convento.<br />
54
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55