O Anticristo | Friedrich Nietzsche - Charlezine
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www.mundocultural.com.br<br />
O <strong>Anticristo</strong> | <strong>Friedrich</strong> <strong>Nietzsche</strong><br />
www.mundocultural.com.br<br />
A história de Israel é inestimável como uma típica história de uma tentativa de<br />
deturpar todos os valores naturais: exponho três fatos corroboram isso. Originalmente,<br />
e acima de tudo no tempo da monarquia, Israel manteve uma atitude justa em relação<br />
às coisas, ou seja, uma atitude natural. O seu Iavé(1) era a expressão da consciência<br />
de seu próprio poder, de sua alegria consigo mesmo, da esperança que tinha em si:<br />
através dele os judeus buscavam a vitória e a salvação, através dele esperavam que a<br />
natureza lhes desse tudo que fosse necessário para sua existência – acima de tudo,<br />
chuva. Iavé é o Deus de Israel e, conseqüentemente, o Deus da justiça: essa é a<br />
lógica de toda raça que possui poder em suas mãos e que o utiliza com a consciência<br />
tranqüila. Na cerimônia religiosa dos judeus ambos aspectos dessa auto-afirmação<br />
ficam manifestos. A nação é grata pelo grande destino que a possibilitou obter<br />
domínio; é grata pela benéfica regularidade na mudança das estações e por toda a<br />
fortuna que favorece seus rebanhos e colheitas. – Essa visão das coisas permaneceu<br />
ideal por um longo período, mesmo após ter sido despojada de validade tragicamente:<br />
dentro, a anarquia, fora, os assírios. Mas o povo ainda conservou, como uma projeção<br />
de sua mais alta aspiração, a visão de um rei que era ao mesmo tempo um galante<br />
guerreiro e um decoroso juiz – foi conservada sobretudo por aquele profeta típico (ou<br />
seja, crítico e satírico do momento), Isaías. – Mas toda a esperança foi vã. O velho<br />
Deus não podia mais fazer o que fizera noutros tempos. Deveria ter sido abandonado.<br />
Mas o que ocorreu de fato? Simplesmente isto: sua concepção foi mudada – sua<br />
concepção foi desnaturalizada; esse foi o preço que tiveram de pagar para mantê-lo. –<br />
Iavé, o Deus da “justiça” – não está mais de acordo com Israel, não representa mais o<br />
egoísmo da nação; agora é apenas um Deus condicionado... A noção pública desse<br />
Deus agora se torna meramente uma arma nas mãos de agitadores clericais, que<br />
interpretam toda felicidade como recompensa e toda desgraça como punição em<br />
termos de obediência ou desobediência a Deus, em termos de “pecado”: a mais<br />
fraudulenta das interpretações imagináveis, através da qual a “ordem moral do<br />
mundo” é estabelecida e os conceitos fundamentais, “causa” e “efeito”, são colocados<br />
de ponta cabeça. Uma vez que o conceito de causa natural é varrido do mundo por<br />
doutrinas de recompensa e punição, algum tipo de causalidade inatural torna-se<br />
necessária: seguem-se disso todas as outras variedades de negação da natureza. Um<br />
Deus que ordena – no lugar de um Deus que ajuda, que dá conselhos, que no fundo é<br />
meramente um nome para cada feliz inspiração de coragem e autoconfiança...<br />
A moral já não é mais um reflexo das condições que promovem vida sã e o<br />
crescimento de um povo; não é mais um instinto vital primário; em vez disso se<br />
tornou algo abstrato e oposto à vida – uma perversão dos fundamentos da fantasia,<br />
um “olhar maligno” contra todas as coisas. Que é a moral judaica? Que é a moral<br />
cristã? A sorte despida de sua inocência; a infelicidade contaminada com a idéia de<br />
“pecado”; o bem-estar considerado como um perigo, como uma “tentação”; um<br />
desarranjo fisiológico causado pelo veneno do remorso...<br />
1 – Uma das designações do Deus de Israel utilizadas nos Livros Sagrados. (Pietro<br />
Nasseti)