O Anticristo | Friedrich Nietzsche - Charlezine
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LIII<br />
www.mundocultural.com.br<br />
O <strong>Anticristo</strong> | <strong>Friedrich</strong> <strong>Nietzsche</strong><br />
www.mundocultural.com.br<br />
– É tão pouco verdadeiro que mártires oferecem qualquer verossimilhança a<br />
uma causa que me sinto inclinado a negar que qualquer mártir já teve alguma coisa a<br />
ver com a verdade. No tom com que um mártir lança sua convicção à cara do mundo<br />
revela-se um grau tão baixo de probidade intelectual, tamanha insensibilidade ao<br />
problema da “verdade”, que nunca chega a ser necessário refutá-lo. A verdade não é<br />
algo que alguns homens têm e outros não: na melhor das hipóteses, só há<br />
camponeses e apóstolos de camponeses, da classe de Lutero, que possam pensar<br />
assim da verdade. Pode-se ter certeza de que, quanto maior for o grau de consciência<br />
intelectual de um homem, maior será sua modéstia, sua discrição neste ponto. Ser<br />
competente em cinco ou seis coisas e se recusar, com delicadeza, a saber algo mais...<br />
O entendimento que todos profetas, sectários, livres-pensadores, socialistas e homens<br />
de igreja têm da palavra “verdade” é simplesmente uma prova cabal de que nem<br />
sequer foi dado o primeiro passo em direção à disciplina intelectual e ao autocontrole<br />
necessários à descoberta da menor das verdades. – Os mártires, diga-se de passagem,<br />
foram uma grande desgraça na história: seduziram... A conclusão a que todos idiotas,<br />
mulheres e plebeus chegam é que deve haver algum valor em uma causa pela qual<br />
alguém afronta a morte (ou que, como o cristianismo primitivo, engendra uma<br />
epidemia de gente à procura da morte) – essa conclusão impede o exame os fatos,<br />
tolhe por inteiro o espírito investigativo e circunspeto. Os mártires danificaram a<br />
verdade... Mesmo hoje, basta uma certa dose de crueldade na perseguição para<br />
proporcionar uma honrável reputação ao mais vazio tipo de sectarismo. – Como? O<br />
valor de uma causa é alterado pelo fato alguém ter se sacrificado por ela? – Um erro<br />
que se torna honroso é simplesmente um erro que possui um encanto sedutor: julgais,<br />
senhores teólogos, que vos daremos a chance de serdes martirizados por vossas<br />
mentiras? – Melhor se refuta uma causa colocando-a, respeitosamente, no gelo – esse<br />
também é o melhor meio para refutar os teólogos... Foi precisamente esta a estupidez<br />
histórico-mundial de todos os perseguidores: deram uma aparência honrosa à causa a<br />
que se opuseram – deram-lhe de presente a fascinação do martírio... Mulheres ainda<br />
se ajoelham ante um erro porque lhes disseram que um indivíduo morreu na cruz por<br />
ele. A cruz, então, é um argumento? – Mas sobre todas essas coisas um, e somente<br />
um, disse aquilo de que há milhares de anos se tinha necessidade – Zaratustra:<br />
Traçaram sinais de sangue pelo caminho que percorreram, e sua loucura<br />
ensinava que a verdade se prova através do sangue.<br />
Mas o sangue é, de todas, a pior testemunha da verdade; sangue envenena até<br />
a doutrina mais pura e a converte em insânia e ódio do coração.<br />
E quando alguém atravessa o fogo por sua doutrina – que isso prova? Mais<br />
vale, em verdade, que do nosso próprio incêndio venha a nossa doutrina!(1)<br />
1 – “Assim falou Zaratustra”, parte II, “Dos Sacerdotes”.