XXXII www.mundocultural.com.br O <strong>Anticristo</strong> | <strong>Friedrich</strong> <strong>Nietzsche</strong> www.mundocultural.com.br Repito que me oponho a todos os esforços para introduzir o fanatismo na figura do Salvador: a própria palavra imperieux(1), usada por Renan, sozinha é suficiente para anular o tipo. A “boa-nova” nos diz simplesmente que não existem mais contradições; o reino de Deus pertence às crianças; a fé anunciada aqui não é mais conquistada por lutas – está ao alcance das mãos, existiu desde o princípio, é um tipo de infantilidade que se refugiou no espiritual. Tal puberdade retardada e incompleta dos organismos é familiar aos fisiologistas como sintoma da degeneração. A fé desse tipo não é furiosa, não denuncia, não se defende: não empunha “espada” – não entende como poderia um dia colocar homem contra homem. Não se manifesta através de milagres, recompensas, promessas ou “escrituras”: é, do principio ao fim, seu próprio milagre, sua própria recompensa, sua própria promessa, seu próprio “reino de Deus”. Essa fé não se formula – simplesmente vive, e assim guarda-se contra fórmulas. Com certeza, a casualidade do ambiente, da formação educacional dá proeminência aos conceitos de certa espécie: no cristianismo primitivo encontramos apenas noções de caráter judaico-semítico (– a de comer e beber em comunhão pertence a esta categoria – uma idéia que, como tudo que é judaico, foi severamente fustigada pela Igreja). Cuidemo-nos para não ver nisso tudo mais que uma linguagem simbólica, uma semântica(2), uma oportunidade para falar em parábolas. A teoria de que nenhuma palavra deve ser tomada ao pé da letra era um pressuposto para que este anti-realista pudesse discursar. Colocado entre hindus teria usado os conceitos de Shanhya(3), e entre chineses os de Lao-Tsé(4) – e em ambos os casos isso não faria qualquer diferença a ele. – Tomando uma pequena liberdade no uso das palavras, alguém poderia de fato chamar Jesus de “espírito livre(5)” – não lhe importa o que está estabelecido: a palavra mata(6), tudo aquilo que é estabelecido mata. A noção de “vida” como uma experiência, como apenas ele a concebe, a seu ver encontra-se em oposição a todo tipo de palavra, fórmula, lei, crença e dogma. Fala apenas de coisas interiores: “vida”, ou “verdade”, ou “luz”, são suas palavras para o mundo interior – a seu ver todo o resto, toda a realidade, toda natureza, mesmo a linguagem, tem valor apenas como um sinal, uma alegoria. – Aqui é de suprema importância não se deixar conduzir ao erro pelas tentações existentes nos preconceitos cristãos, ou melhor, eclesiásticos: este simbolismo par excellence encontra-se alheio a toda religião, todas noções de adoração, toda história, toda ciência natural, toda experiência mundana, todo conhecimento, toda política, toda psicologia, todos livros, toda arte – sua “sabedoria” é precisamente a ignorância pura(7) em relação a todas essas coisas. Nunca ouviu falar de cultura; não a combate – nem mesmo a nega... O mesmo pode ser dito do Estado, de toda a ordem social burguesa, do trabalho, da guerra – não tem motivos para negar o “mundo”, nem sequer tem conhecimento do conceito eclesiástico de “mundo”... Precisamente a negação lhe era impossível. – De modo idêntico carece de capacidade argumentativa, não acredita que um artigo de fé, que uma “verdade” possa ser estabelecida através de provas (– suas provas são “iluminações” interiores, sensações subjetivas de felicidade e auto-afirmação, simples “provas de força” –). Tal doutrina não pode contradizer: não sabe que outras doutrinas existem ou podem existir, é inteiramente incapaz de imaginar um juízo oposto... E se, porventura, o encontra, lamenta por tal “cegueira” com uma sincera compaixão – pois somente ela vê a “luz” – no entanto não fará quaisquer objeções... 1 – Imperioso. 2 – A palavra semiótica está no texto, mas é provável que semântica seja a palavra que <strong>Nietzsche</strong> tinha em mente. (H. L. Mencken)
O <strong>Anticristo</strong> | <strong>Friedrich</strong> <strong>Nietzsche</strong> 3 – Um dos seis grandes sistemas da filosofia hindu. (H. L. Mencken) 4 – Considerado o fundador do taoísmo. (H. L. Mencken) www.mundocultural.com.br www.mundocultural.com.br 5 – O nome que <strong>Nietzsche</strong> da aos que aceitam sua filosofia. (H. L. Mencken) 6 – Isto é, a rigorosa palavra da lei – o objetivo mais importante nas primeiras pregações de Jesus. (H. L. Mencken) 7 – Referência à “ignorância pura” (reine Thorheit) do Parsifal de Richard Wagner. (H. L. Mencken)