O Anticristo | Friedrich Nietzsche - Charlezine
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XXXI<br />
www.mundocultural.com.br<br />
O <strong>Anticristo</strong> | <strong>Friedrich</strong> <strong>Nietzsche</strong><br />
www.mundocultural.com.br<br />
Antecipadamente dei minha resposta ao problema. Seu pré-requisito é a<br />
assunção de que o tipo do Salvador chegou até nós com sua forma altamente<br />
distorcida. Tal distorção é muito provável: há muitos motivos para que esse tipo não<br />
deva ser transmitido em sua forma pura, completa e livre de acréscimos. O ambiente<br />
no qual esta estranha figura se movia deve ter deixado vestígios nela, e ainda mais<br />
deve ter sido feito pela história, pelo destino das primeiras comunidades cristãs; a<br />
última, de fato, deve ter embelezado o tipo retrospectivamente com caracteres que<br />
apenas podem ser compreendidos enquanto finalidades de guerra e propaganda.<br />
Aquele mundo estranho e doentio ao qual os Evangelhos nos conduzem – um mundo<br />
aparentemente vindo de uma novela russa, no qual a escória da sociedade, as<br />
moléstias nervosas e a idiotice “pueril” se reúnem – deve, de qualquer modo, ter<br />
tornado o tipo grosseiro: os primeiros discípulos, em particular, devem ter sido<br />
forçados a traduzir, com sua crueza própria, um ser totalmente formado por símbolos<br />
e coisas ininteligíveis para poderem compreender alguma coisa – na visão deles o tipo<br />
apenas existiu após ter sido reformado em moldes mais familiares... O profeta, o<br />
messias, o futuro juiz, o professor de moral, o milagreiro, João Batista – todas<br />
simplesmente chances de desfigurá-lo... Finalmente, não subestimemos o proprium(1)<br />
de todas as grandes venerações, especialmente as sectárias: tendem a apagar dos<br />
objetos venerados todas as características originais e idiossincrasias, não raro<br />
dolorosamente estranhas – nem mesmo os vê. Deve-se lamentar muito que nenhum<br />
Dostoievski tenha vivido nas vizinhanças do mais interessante dos décadents – ou<br />
seja, alguém que teria sentido o comovente encanto de tal mistura do sublime, do<br />
mórbido e do infantil. Em última análise, o tipo, enquanto tipo da decadência, talvez<br />
possa realmente ter sido peculiarmente complexo e contraditório: não se deve excluir<br />
essa possibilidade. Contudo, as probabilidades parecem estar em seu desfavor, pois<br />
neste caso a tradição teria sido particularmente precisa e objetiva, enquanto temos<br />
razões para admitir o contrário. Entretanto, existe uma contradição entre o pacífico<br />
pregador das montanhas, dos lagos e dos campos, que parece como um novo Buda em<br />
um solo muito pouco indiano, e o fanático agressivo, o inimigo mortal dos teólogos e<br />
dos eclesiásticos, que é glorificado pela malícia de Renan como “lê grand maitre em<br />
ironie(2)”. Pessoalmente não tenho qualquer dúvida de que a maior parte desse<br />
veneno (e não menos de esprit(3)) haja penetrado no tipo do Mestre apenas como um<br />
resultado da agitada natureza da propaganda cristã: todos conhecemos a<br />
inescrupulosidade dos sectários quando decidem fazer de seu líder uma apologia para<br />
si mesmos. Quando os primeiros cristãos precisaram de um teólogo hábil, contencioso,<br />
pugnaz e maliciosamente sutil para enfrentar outros teólogos, criaram um “Deus” para<br />
satisfazer tal necessidade, exatamente como também, sem hesitação, colocaram em<br />
sua boca certas idéias que eram necessárias a eles, mas totalmente divergentes dos<br />
Evangelhos – “a volta de Cristo”, “o juízo final”, todos os tipos de expectativas e<br />
promessas temporais. –<br />
1 – Propriedade, qualidade.<br />
2 – O grande mestre em ironia.<br />
3 – Espírito, ironia.