O Anticristo | Friedrich Nietzsche - Charlezine
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LII<br />
www.mundocultural.com.br<br />
O <strong>Anticristo</strong> | <strong>Friedrich</strong> <strong>Nietzsche</strong><br />
www.mundocultural.com.br<br />
O cristianismo também se encontra em oposição a toda boa constituição<br />
intelectual – somente a razão enferma pode ser usada como razão cristã; toma o<br />
partido de tudo que é idiota; lança sua maldição contra o “intelecto”, contra a soberba<br />
do intelecto são. Visto que a doença é inerente ao cristianismo, segue-se disso que o<br />
estado típico do cristão, “a fé”, também é necessariamente uma forma de doença;<br />
todos os caminhos retos, legítimos e científicos devem ser banidos pela Igreja como<br />
sendo caminhos proibidos. A própria dúvida é um pecado... A completa ausência de<br />
limpeza psicológica no padre – identificada por um simples olhar – é um fenômeno<br />
resultante da decadência – observando-se mulheres histéricas e crianças raquíticas<br />
notar-se-á regularmente que a falsificação dos instintos, o prazer de mentir por mentir<br />
e a incapacidade de olhar e caminhar direito são sintomas da decadência. “Fé” significa<br />
não querer saber o que é a verdade. O padre, o devoto de ambos os sexos, é uma<br />
fraude porque é doente: seus instintos exigem que a verdade jamais tenha direito em<br />
qualquer ponto. “Tudo que torna doente é bom; tudo que surge da plenitude, da<br />
superabundância, do poder, é mau”: assim pensa o crente. Uma compulsão para<br />
mentir – é através disso que reconheço todo teólogo predestinado. – Outra<br />
característica do teólogo é sua incapacidade filológica. O que quero dizer com filologia<br />
é, de modo geral, a arte de ler bem – a capacidade de absorver fatos sem interpretálos<br />
falsamente, sem perder, na ânsia de compreendê-los, a cautela, a paciência e a<br />
sutileza. Filologia como ephexis(1) na interpretação: trate-se de livros, de notícias de<br />
jornal, dos mais funestos eventos ou de estatísticas meteorológicas – para não<br />
mencionar a “salvação da alma”... A maneira como um teólogo, seja de Berlim ou<br />
Roma, explica, digamos, uma “passagem bíblica”, ou um acontecimento, por exemplo,<br />
a vitória do exército nacional, sob a sublime luz dos Salmos de Davi, é sempre tão<br />
ousada que faz um filólogo subir pelas paredes. E o que dizer quando devotos e outras<br />
vacas da Suábia(2) usam o “dedo de Deus” para converter sua miserável existência<br />
cotidiana e sedentária em um milagre da “graça”, da “providência”, em uma<br />
“experiência divina”? O mais modesto exercício de intelecto, para não dizer de<br />
decência, deveria de certo ser suficiente para convencer esses intérpretes da perfeita<br />
infantilidade e indignidade de tal abuso da destreza digital de Deus. Apesar de sermos<br />
poucos compassivos, caso encontrássemos um Deus que curasse oportunamente um<br />
constipado, ou que nos colocasse em uma carruagem no instante em que começasse a<br />
chover, ele nos pareceria um Deus tão absurdo que, mesmo existindo, teríamos de<br />
aboli-lo. Deus como empregado doméstico, como carteiro, como mensageiro – no<br />
fundo, Deus é simplesmente um nome dado para a mais imbecil espécie de acaso... A<br />
“Divina Providência”, na qual terça parte da “Alemanha culta” ainda acredita, é um<br />
argumento tão forte contra Deus que em vão se procuraria por um melhor. E em todo<br />
caso é um argumento contra os alemães!...<br />
1 – Ceticismo.<br />
2 – Uma referência à Universidade de Tübingen e sua famosa escola de crítica Bíblica.<br />
O líder da escola era F. C. Baur, e um dos homens que ele mais fortemente influenciou<br />
era uma abominação de <strong>Nietzsche</strong>, David F. Strauss, ele próprio, um suábio. (H. L.<br />
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