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O Anticristo | Friedrich Nietzsche - Charlezine

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XXXIX<br />

www.mundocultural.com.br<br />

O <strong>Anticristo</strong> | <strong>Friedrich</strong> <strong>Nietzsche</strong><br />

www.mundocultural.com.br<br />

– Farei uma pequena regressão para explicar a autêntica história do<br />

cristianismo. – A própria palavra “cristianismo” é um mal-entendido – no fundo só<br />

existiu um cristão, e ele morreu na cruz. O “Evangelho” morreu na cruz. O que, desse<br />

momento em diante, chamou-se de “Evangelho” era exatamente o oposto do que ele<br />

viveu: “más novas”, um Dysangelium(1). É um erro elevado à estupidez ver na “fé”, e<br />

particularmente na fé na salvação através de Cristo, o sinal distintivo do cristão:<br />

apenas a prática cristã, a vida vivida por aquele que morreu na cruz, é cristã... Hoje tal<br />

vida ainda é possível, e para certos homens até necessária: o cristianismo primitivo,<br />

genuíno, continuará sendo possível em quaisquer épocas... Não fé, mas atos; acima de<br />

tudo, um evitar atos, um modo diferente de ser... Os estados de consciência, uma fé<br />

qualquer, por exemplo, a aceitação de alguma coisa como verdade – como todo<br />

psicólogo sabe, o valor dessas coisas é perfeitamente indiferente e de quinta ordem se<br />

comparado ao dos instintos: estritamente falando, todo o conceito de causalidade<br />

intelectual é falso. Reduzir o ato ser cristão, o estado de cristianismo, a uma aceitação<br />

da verdade, a um mero fenômeno de consciência, equivale a formular uma negação do<br />

cristianismo. De fato, não existem cristãos. O “cristão” – aquele que por dois mil anos<br />

passou-se por cristão – é simplesmente uma auto-ilusão psicológica. Examinado de<br />

perto, parece que, apesar de toda sua “fé”, foi apenas governado por seus instintos – e<br />

que instintos! – Em todas as épocas – por exemplo, no caso de Lutero – “fé” nunca foi<br />

mais que uma capa, um pretexto, uma cortina por detrás da qual os instintos faziam<br />

seu jogo – uma engenhosa cegueira à dominação de certos instintos... Eu já denominei<br />

a “fé” uma habilidade especialmente cristã – sempre se fala de “fé” mas se age de<br />

acordo com os instintos... No mundo de idéias do cristão não há qualquer coisa que<br />

sequer toque a realidade: ao contrário, reconhece-se um ódio instintivo contra a<br />

realidade como força motivadora, como único poder de motivação no fundo do<br />

cristianismo. Que se segue disso? Que mesmo aqui, in psychologicis, há um erro<br />

radical, isto é, determinante da essência, ou seja, da substância. Retire-se uma idéia e<br />

coloque-se uma realidade genuína em seu lugar – e todo o cristianismo reduz-se a um<br />

nada! – Visto calmamente, este fenômeno é dos mais estranhos, uma religião não<br />

apenas dependente de erros, mas inventiva e engenhosa apenas em criar erros<br />

nocivos, venenosos à vida e ao coração – constitui um verdadeiro espetáculo para os<br />

Deuses – para aquelas divindades que também são filósofas, as quais encontrei, por<br />

exemplo, nos célebres diálogos de Naxos. No momento em que a repugnância as<br />

deixar (– e também a nós!) ficarão agradecidas pelo espetáculo proporcionado pelos<br />

cristãos: talvez por causa desta curiosa exibição somente o miserável e minúsculo<br />

planeta chamado Terra mereça olhar divino, uma demonstração de interesse divino...<br />

Portanto, não subestimemos os cristãos: o cristão, falso até a inocência, está muito<br />

acima do macaco – uma teoria das origens bastante conhecida(2), quando aplicada<br />

aos cristãos, torna-se simplesmente uma delicadeza...<br />

1 – Um dos muitos neologismos de <strong>Nietzsche</strong>. Ele compõe este vocábulo angelium<br />

(cuja origem vem do grego e que significa “nova”, “notícia”) fazendo oposição com os<br />

prefixos dys (mau, infeliz – “notícia má”) e eu (bom, feliz – “boa nova”, “boa notícia”).<br />

(Pietro Nasseti)<br />

2 – Referência à teoria de Charles Darwin sobre as origens do homem. (Pietro Nasseti)

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