O Anticristo | Friedrich Nietzsche - Charlezine
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LVI<br />
www.mundocultural.com.br<br />
O <strong>Anticristo</strong> | <strong>Friedrich</strong> <strong>Nietzsche</strong><br />
www.mundocultural.com.br<br />
– Em última análise, chega-se a isto: qual a finalidade da mentira? O fato de<br />
que, no cristianismo, os fins “sagrados” não são visíveis é minha objeção aos seus<br />
meios. Só existem maus fins: o envenenamento, a calúnia, a negação da vida, o<br />
desprezo pelo corpo, a degradação e envilecimento do homem através do conceito de<br />
pecado – logo, seus meios também são maus. – Tenho o sentimento oposto quando<br />
leio o código de Manu, uma obra incomparavelmente mais intelectual e superior; seria<br />
um pecado contra a inteligência simplesmente nomeá-lo juntamente com a Bíblia. É<br />
fácil ver o porquê: há uma filosofia genuína por detrás dele, nele próprio, e não apenas<br />
uma mixórdia fétida de rabinismo judaico e superstição – oferece, mesmo aos<br />
psicólogos mais delicados, algo saboroso. E não nos esqueçamos do mais importante,<br />
ele difere fundamentalmente de toda espécie de Bíblia: através dele os nobres, os<br />
filósofos e guerreiros preservam o domínio sobre a maioria; está cheio de valores<br />
nobres, denota um sentimento de perfeição, de aceitação da vida, um ar triunfante em<br />
relação a si e à vida – o sol brilha sobre o livro todo. – Todas as coisas sobre as quais<br />
o cristianismo descarrega sua inexaurível vulgaridade – por exemplo, a procriação, as<br />
mulheres e o casamento – nele são tratadas seriamente, com respeito, amor e<br />
confiança. Como alguém pode colocar nas mãos de crianças e mulheres um livro<br />
contentor de palavras tão abjetas: “Para evitar a impudicícia, que cada homem tenha<br />
sua própria esposa e que cada mulher tenha seu próprio marido; ...pois é melhor<br />
casar-se que queimar-se(1)”? E será possível ser um cristão enquanto a origem do<br />
homem estiver cristianizada, isto é, maculada pela doutrina da immaculata<br />
conceptio?... Não conheço qualquer outro livro em que sejam ditas tantas coisas boas<br />
e ternas sobre a mulher quanto no código de Manu; aqueles velhos e santos possuíam<br />
um modo tão amável de ser com as mulheres que talvez seja impossível superá-los. “A<br />
boca de uma mulher”, diz um trecho, “o seio de uma donzela, a oração de uma criança<br />
e a fumaça de um sacrifício são sempre puros”. Noutro trecho: “Não há nada mais<br />
puro que a luz do sol, a sombra de uma vaca, o ar, a água, o fogo e a respiração de<br />
uma donzela”. Finalmente, esta última passagem – que talvez também seja uma<br />
mentira sagrada –: “todos orifícios do corpo acima do umbigo são puros, todos os<br />
abaixo são impuros. Apenas na donzela o corpo todo é puro”.<br />
1 – I Coríntios 7:2 e 7:9.