<strong>VI</strong> AS ARTES E AS CONFLUÊNCIAS INTERCULTURAIS...abismar-se em virtualidades de um experimentar além de si. Como acrescentaJosé Gil: «O que requer todo um <strong>ou</strong>tro campo de descrição: deste “participar”,dessa “dissolução” do sujeito, etc. Não convém, pois, falar em “percepçãoestética”, m<strong>as</strong> num <strong>ou</strong>tro tipo de “fenómenos” <strong>ou</strong> de “acontecimentos”. É, deresto, pela ideia (deleuziana) de acontecimento que a metafenomenologia abre oseu campo próprio» 49 .Será num tal âmbitotransformado que, mes -mo de um ponto de vis taepistémico sobre o domínioda interculturalidaded<strong>as</strong> <strong>artes</strong>, terá sentido in -terrogarem-se <strong>as</strong> dimensõesfundamentais daiden tidade (<strong>as</strong>sim «alterada») e da alterida de(<strong>as</strong>sim «identificada»), noque já não é uma abordagemracional e dialécti c a,JORGE PINHEIRO, serigrafia, sem título, 1978m<strong>as</strong> da ordem origináriade um a fazer, a que José Gil chama da imagem-nua, e a que Heidegger poderia(antes de Deleuze) referir pela Ereignis, como con-juntura, também <strong>as</strong>simintrínseca à experiência estético-cultural 50 .A especificidade da poiética e o âmbito da estéticaA consciência do corpo induz um contacto paradoxalcom o mundo: é imediato porque conecta a consciênciacom <strong>as</strong> forç<strong>as</strong> do mundo, fazendo a dança tornar--se, desde o início, «pensamento do mundo», por umlado; m<strong>as</strong>, por <strong>ou</strong>tro, é o corpo que estabelece a mediaçãoentre o pensamento e o mundo, não sendo estedado «em carne e osso», m<strong>as</strong> na realidade da suaenergia.JOSÉ GIL,Movimento Total – O Corpo e a Dança,Lisboa, Antropos, 2001, p. 181.196
Carlos H. do C. SilvaIdentidade pulverizada por tantos rostos alheios, no tu impossível de aceitar em mim (cf. M.BUBER, Ich und Du…), a relação do mesmo com o <strong>ou</strong>tro resulta de factores mínimos (quais«petites perceptions», como salienta José Gil), cuja in-significância se torna, em determinadosmo mentos, o perfil abrupto de um ressentimento.M<strong>as</strong> logo a nudeza sem identidade regressa ao jogo da identificação, ainda que, n<strong>as</strong> form<strong>as</strong> amedrontad<strong>as</strong>face ao <strong>ou</strong>tro, <strong>ou</strong>, logo, violent<strong>as</strong> de racismo, de esclavagismo <strong>ou</strong> de nacionalismo queimpõem um modelo absolutizante (cf. Charles BOXER, Relações Raciais no Império ColonialPortuguês, 1412-1825, Porto, Afrontamento, 1977).Em cultur<strong>as</strong> mais intelectuais e ortodox<strong>as</strong>, <strong>as</strong>sim, no seu voluntarismo, aquela Ideia absoluta éobstáculo à interculturalidade, <strong>ou</strong>trossim, porosa e emotiva de um con-sentimento estéticoque não julga, m<strong>as</strong> tolera a diferença, como acontece na cultura portuguesa.Porém, na exigência reflexiva de um pensar a identidade, ainda pela inteligência d<strong>as</strong> <strong>artes</strong>, torna--se evidente o hiato des-medido entre a linguagem – então, predominantemente abstracta(como se apura na pintura não-figurativa…) –, dessa mesma estética, perante o que se viveno multicolorido de um sentir, ainda que sem identificação racional (cf. José-Augusto FRANÇA,O Romantismo em Portugal, Lisboa, Livros Horizonte, 1974…).Interculturalidade, desta sorte, <strong>ou</strong> esquizofrenia pátria?A relação intercultural é <strong>as</strong>sim abstracta face ao concreto da alteração real que se dá n<strong>ou</strong>tra artede ser português (não como em Teixeira de P<strong>as</strong>coaes) e em diáspora interior.A relação d<strong>as</strong> <strong>artes</strong> com <strong>as</strong> cultur<strong>as</strong> tem naturalmente a ver com <strong>as</strong> sociedadesem causa, não numa especial <strong>ou</strong> «elitista» competência para a leitura d<strong>as</strong><strong>artes</strong> e sua identificação cultural, m<strong>as</strong> na democratização da própria cultura eadvento do espaço comunitário para pluralidade de opções, dentro de cadacultura, e simbiose entre essa mesma cultura, a natureza e a sociedade, <strong>ou</strong>entre o cósmico e o humano como tal 51 . Contudo, o mais interferente noestatuto d<strong>as</strong> <strong>artes</strong> advém do quadro técnico e industrial, ligando culturalmenteo gosto e a utilidade, a função estética e a economia tecnológica, fazendo ressaltardo discurso do «<strong>artes</strong>anato» estético para o campo d<strong>as</strong> nov<strong>as</strong> técnic<strong>as</strong> ecapacidades interdisciplinares com <strong>ou</strong>tros domínios de significação, de eficácia,mesmo de beleza, etc. 52Não é só a arte que se torna científica, melhor dizendo, técnica 53 , m<strong>as</strong> a in -ven ção científica que reconquista o sentido artístico capaz de fazer catapultar<strong>as</strong> form<strong>as</strong> estétic<strong>as</strong>, do campo da sensibilidade e da emoção <strong>ou</strong> da sua inteli-197