A riqueza brasileiraBrasil possui a maior biodiversidade do planeta, o que,sem dúvida, é uma dádiva divina. A natureza, além desua beleza plástica, oferece recursos para a solução demuitos problemas que afligem a humanidade neste finalde milênio. Doenças consideradas incuráveis, como ocâncer e a AIDS, por exemplo, podem ser erradicadas a partir dosrecursos disponíveis na biodiversidade. Só que esse tesouro precisaser bem conhecido e conservado para ser utilizado.Preocupada com a proteção da biodiversidade brasileira, asenadora Marina Silva, do PT do Acre, elaborou um projeto de leipara regulamentar o uso e o acesso aos recursos biológicos. Oembrião desse projeto foi apresentado em 1995 e, hoje, já recebeuvárias emendas no Senado Federal, depois de passar por audiênciaspúblicas e discussões com segmentos representativos da sociedadebrasileira, incluindo cientistas, políticos, professores, sindicalistas,lideranças indígenas, povos da floresta etc.A senadora Marina Silva nasceu no Estado do Acre e conhecebem de perto a exploração ilegal da biodiversidade e dos povos dafloresta. E, por isso, a luta em defesa da biodiversidade e dascomunidades da Amazônia sempre fez parte de sua vida, desde oinício de sua carreira como professora, vereadora, deputada estaduale, hoje, como senadora da República.Para falar sobre o projeto de lei e outros assuntos, a senadoraMarina Silva concedeu esta entrevista exclusiva à revistaBIOTECNOLOGIA Ciência & Desenvolvimento, na qual ressaltou,entre outros aspectos, que o conhecimento dos povos da floresta e dascomunidades indígenas é de fundamental importância para aconservação e o uso sustentado dos recursos biológicos do nosso país.Maria Fernanda Diniz Avidos eLucas Tadeu FerreiraRecursos BiológicosBC&D - A senhora é autora do projetode lei do Senado nº 306, de 1995, que estátramitando no Congresso Nacional, oqual visa a estabelecer normas e demaisinstrumentos legais de controle e acessoaos recursos da biodiversidade brasileira.O que a motivou a apresentar esteprojeto de lei?Marina Silva - As motivações são deordem interna e têm raízes históricas. Eunasci e me criei ouvindo histórias de coisasque eram retiradas dos seringais da floresta.No início, eu não entendia o porquê daspessoas levarem pedaços de pau, lama eoutros materiais, e achava que essas pessoaseram malucas. Com o passar do tempo,quando passei a ter acesso a informações,eu percebi que elas eram malucas pordinheiro. Além disso, fui motivada tambémpelo meu compromisso com a luta social eambiental e com os interesses das populaçõestradicionais de seringueiros e índios.Passei a perceber que as informações e ascoisas que a gente utilizava no cotidiano,digamos, em nossa medicina tradicional,eram repassadas e patenteadas sob a formade remédios e outros produtos. Essa preocupaçãomarcou a minha vida, desde queeu comecei como professora e vereadora.Quando eu cheguei aqui no Senado, me vidiante da possibilidade de solucionar essasquestões. Uma das primeiras iniciativas foipegar a Convenção da Biodiversidade, assinadadurante a Rio-92, da qual o Brasil ésignatário junto com outros 143 países, e, apartir daí, fazer uma referência para apresentaro projeto de lei que desse umaresposta ao problema secular do Brasil daexploração indevida dos nossos recursosnaturais. O projeto foi concebido com aparticipação de representantes da comunidadecientífica, de organizações não-governamentais- ONG´s, de consultores doSenado e de populações tradicionais dafloresta.BC&D - A Convenção da DiversidadeBiológica estabelece que a diversidadebiológica deve trazer benefícios para ahumanidade, reconhecendo ainda a soberaniados Estados sobre o uso e a disponibilidadedos recursos biológicos encontradosem seus territórios. Comoconciliar os interesses do Brasil com osdos outros países, no tocante ao uso e adisponibilidade da biodiversidade?Marina Silva - No processo de discussãoda lei, foi levantado o interesse dahumanidade. Se nós tivermos, por exemplo,o remédio que vai curar a AIDS, nãotemos por que evitar esse benefício. Oconhecimento científico deve serdisponibilizado sob a forma de capital. Poroutro lado, nós não podemos fazer isso deuma forma despreocupada. Historicamente,o Brasil sempre assumiu uma posição de44 <strong>Biotecnologia</strong> Ciência & Desenvolvimento
país colonizado, onde seus recursos naturaissão retirados de forma indiscriminada.Com relação aos recursos da biodiversidade,é muito importante que sejam utilizadospara promover o desenvolvimento econômicoe social do país. Outra preocupaçãoé que a lei não seja marcada por umnacionalismo primitivo, já que temos consciênciade que o mundo vive, hoje, em umaeconomia globalizada, na qual o relacionamentodo Brasil com outros países é fundamental.Para elaborar o projeto de lei,foram considerados acordos decomercialização internacional, como oGATT, por exemplo. Nós levamos em contaainda que o Brasil é dependente de outrospaíses em termos de recursos genéticos.Cerca de 70% dos produtos utilizados emnossa alimentação são oriundos de outrospaíses. Por isso, não poderíamos ter uma leique fosse excessivamente restritiva, já quedificultaria o intercâmbio de material genético,que somos obrigados a fazer comoutros países.BC&D - A Constituição Brasileira incumbeo Estado de preservar a diversidadee a integridade do patrimônio genéticoe de fiscalizar as entidades dedicadasà pesquisa e à manipulação genética.Como preservar a integridade dos recursosbiológicos, em um país de dimensõescontinentais, onde a Amazônia ocupaquase a metade do território nacional eonde a "biopirataria" é um fato?Marina Silva - Já discutimos essa questãocom pesquisadores do Peru e da Bolívia,e o objetivo é chegar a um acordo deregulamentação de acesso aos recursosbiológicos da Amazônia, que estabeleçapontos comuns de interesse entre os paísesdo Pacto Amazônico. Para que esse acordotenha efetividade, todos os países têm queparticipar levando em conta os seus respectivosdomínios fronteiriços e o interessede conservação e uso dos recursos biológicosda Amazônia como um todo.BC&D - No seu projeto de lei de acessoaos recursos biológicos proposto aoCongresso Nacional, a senhora quer garantira participação das comunidadeslocais e dos povos indígenas nas decisõesque tenham por objetivo o acessoaos recursos genéticos nas áreas queocupam. A senhora poderia explicitar deque forma se dará essa participação e seessas comunidades terão algum ganhoeconômico?Marina Silva - Pelo o que diz a Convençãoda Biodiversidade, as populações tradicionaistêm direito à remuneração, quandoseus recursos biológicos e conhecimentosforem utilizados. O pagamento pode serfeito através de royalties, pelo direito intelectualcoletivo. A questão de patentes nãose aplica às comunidades tradicionais, porser uma forma sui generis de conhecimentovalioso. Sabe-se, hoje, que, de cada milindicações de uso feitas pelas populaçõestradicionais, há retorno econômico de pelomenos uma. Se não tivessem essas indicações,os pesquisadores teriam que investigarum universo muito maior de amostraspara chegarem a resultados promissores.Durante muitos anos, o conhecimentoempírico e o senso comum foram tratadosde forma preconceituosa pela ciência, e, naverdade, deve ser altamente valorizado eremunerado através de um fundo de apoioa todas as populações tradicionais. A idéiaé que este fundo seja gerido pelo Estado epelos representantes dessas populações.BC&D - O seu projeto de lei prevê quedeverá ser dada prioridade, no acessoaos recursos genéticos, para os empreendimentosque se realizem no territórionacional. Quais os limites que a leipretende estabelecer para as expediçõesde estrangeiros realizadas na Amazôniabrasileira?Marina Silva - A lei prevê que a autoridadecompetente concederá uma espéciede licença para a realização de expediçõesestrangeiras, mediante o cumprimento dealguns requisitos. Na medida do possível,os investimentos e a fixação de tecnologiasoriundas dos recursos biológicos e dosconhecimentos têm que ser realizados noBrasil. Além disso, todas as expediçõesestrangeiras devem ser acompanhadas decientistas brasileiros vinculados a instituiçõesde ensino e de pesquisa nacionais,para que o Brasil possa incorporar o materialbiológico e o conhecimento obtidos.Para tanto, será criada uma comissão nacionalpara assegurar o cumprimento da leie gerir o processo como um todo.BC&D - O Brasil, até hoje, não conhece,adequadamente, os recursosflorísticos de seus parques florestais.No seu projeto, a senhora prevê algumaação mais contundente, por partedo Estado, no conhecimento da fauna, daflora e dos microrganismos brasileiros?Marina Silva - A lei prevê que parte dosrecursos oriundos da aplicação de multase de penalidades, bem como o pagamentode royalties, seja destinada a promover odesenvolvimento científico de conhecimentoda biodiversidade.BC&D - Algumas correntes de economistastêm defendido que os recursosbiológicos devem fazer parte do cálculoda riqueza dos países, ou seja, do ProdutoInterno Bruto - PIB; é o chamado"biocapital". Sendo o Brasil um país ricoem biodiversidade e pobre em riquezaeconômica, o seu projeto de lei pretendeconsiderar, no cálculo do PIB, as riquezasbiológicas?Marina Silva - A biodiversidade donosso país vem sendo devastada, ao longodo tempo, com a visão de que as áreas deflorestas que não sofrem ação antrópicasão consideradas improdutivas. Para valorizarsuas propriedades, as pessoas derrubavamas florestas e faziam queimadas e"benfeitorias". No entanto, a biodiversidadetem seu valor, e temos que ser capazes demensurá-lo. Hoje, sabemos que cada elementoda diversidade biológica representauma riqueza e deve ser computado comopatrimônio. A purificação do ar pela florestaAmazônica, por exemplo, tem um valorimensurável para a humanidade. Aliás, oBrasil quando aparece como país emergenteno mundo, não é pela nossa capacidadede disputar tecnologias de ponta,como a indústria automobilística, ainformática etc. Se temos alguma voz éporque somos detentores demegadiversidade e, por isso, devemos usaressa riqueza para participar de negociaçõesinternacionais.BC&D - O Estado do Acre, com base noseu projeto de lei, já aprovou uma lei deacesso aos recursos biológicos locais. Asenhora acha que essa medida deve serestimulada e encampada pelos demaisestados da Federação?Marina Silva - Eu acho positivo que osestados procurem regulamentar a Convençãoda Biodiversidade, em nível local, nacompetência do estado, mas tendo comoreferência a lei que será aprovada noCongresso Nacional. Representantes dosestados têm solicitado informações nessesentido e nós sempre fornecemos, mascom a observação de que qualquer medidasó pode ser tomada depois da aprovaçãoda lei federal.BC&D - É comum ouvirmos que existemdois tipos de lei no Brasil: "as quepegam" e "as que não pegam". Para que aLei de Acesso aos Recursos Biológicosnão se enquadre no segundo grupo, quemedidas de conscientização que o seuprojeto prevê para serem desenvolvidascom os diferentes segmentos representativosda sociedade brasileira?Marina Silva - Um dos pontos fundamentaispara que a lei seja aceita e incorporadapela população é a informação parapúblicos em níveis diferenciados, segundoas peculiaridades de cada segmento dasociedade. Eu acho que essa é uma lei deimportância estratégica para o Brasil, porser detentor de megadiversidade. Estamospensando em desenvolver várias estratégiasde divulgação, entre as quais uma cartilha,com linguagem bem acessível, para popularizara lei, a partir da sua aprovação. Essacartilha vai ser distribuída, principalmente,para populações tradicionais. A lei temtambém caráter educativo.<strong>Biotecnologia</strong> Ciência & Desenvolvimento 45